RAIN MAN (1988)

(Rain Man)

 

Videoteca do Beto #53

Vencedores do Oscar #1988

Dirigido por Barry Levinson.

Elenco: Dustin Hoffman, Tom Cruise, Valeria Golino, Gerald R. Molen, Jack Murdock, Michael D. Roberts, Ralph Seymour, Lucinda Jenney, Bonnie Hunt, Barry Levinson e Kim Robillard.

Roteiro: Ronald Bass e Barry Morrow, baseado em estória de Barry Morrow.

Produção: Mark Johnson.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido o filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

O autismo é uma disfunção global do desenvolvimento, que afeta a capacidade de comunicação, de estabelecer relacionamentos e de responder apropriadamente ao ambiente do indivíduo. Confundir o autismo com qualquer outra doença mental é algo comum entre a maioria das pessoas. Em “Rain Man”, belo road movie dirigido por Barry Levinson, esta patologia é abordada de forma honesta, expondo alguns dos traços característicos da doença de forma clara e direta. E através dela, Levinson constrói uma linda estória de descoberta entre dois irmãos, mostrando como o amor pode transformar vidas e estabelecer relações, por mais diferentes que as pessoas sejam.

O jovem Charlie Babbit (Tom Cruise) descobre logo após o falecimento de seu desafeto pai que herdou apenas um automóvel Buick 1494 e algumas roseiras, enquanto os 3 milhões de dólares da herança foram deixados para um “beneficiário”. Furioso, parte em busca do tal beneficiário e descobre ser seu irmão autista Raymond (Dustin Hoffman), que ele nem conhecia, e que vive numa clínica em Wallbrook. Interessado em sua parte na herança, Charlie “seqüestra” o irmão e parte para Los Angeles, numa viagem que mudará sua vida para sempre.

Dirigido com elegância por Barry Levinson, “Rain Man” conta a trajetória do extremamente egoísta Charlie Babbit, que descobrirá dentro dele, através do contato com o irmão autista Raymond, um sentimento de amor e carinho que sequer imaginava existir. Levinson conduz a narrativa com leveza, recheando o longa com diversos momentos bem humorados, mas entregando ao espectador, acima de tudo, uma bela estória sobre a descoberta pessoal da fraternidade. O diretor também evidencia através da câmera os sentimentos dos personagens, como num plano rápido, porém muito simbólico, em que triste pela herança que não veio, Charlie aparece pequeno e pensativo. Outro plano rápido e repleto de simbolismo é o da fotografia dos irmãos dentro da água quente, já que foi justamente a água quente na banheira que separou os dois na infância de Charlie (“Nunca machuquei Charlie Babbit”, diz Ray). Após o encontro entre os dois irmãos, o diretor passa a utilizar o close com freqüência, realçando as excelentes atuações do elenco (especialmente de Dustin Hoffman), além de criar uma série de planos subjetivos, como o guard-rail da estrada, o semáforo do trem ou a máquina de lavar girando, que ilustram o olhar peculiar de Ray para o mundo. Finalmente, a bela cena em que Charlie descobre a origem do “Rain Man” é linda e extremamente bem conduzida pelo diretor, que não exagera no melodrama. Vale observar o sutil sorriso de Charlie ao descobrir que Raymond era o Rain Man.

“Rain Man” conta ainda com o bem amarrado roteiro de Ronald Bass e Barry Morrow (baseado em estória do próprio Morrow). Observe, por exemplo, como Bass e Morrow utilizam o diálogo em que Charlie explica para sua noiva Susanna (Valeria Golino) a razão de sua briga com o pai para revelar o tempo de relação do casal (um ano) e, ainda mais importante, a existência do amigo “imaginário” de Charlie na infância, o “Rain Man”. Quando a origem do amigo imaginário é revelada, o espectador se lembra deste diálogo e nota, inclusive, a proximidade da pronuncia entre os nomes de Raymond e Rain Man. Além disso, o roteiro mostra como a maioria das pessoas não conhece o autismo, freqüentemente confundindo-o com outras doenças mentais (“Ele é retardado?”, pergunta Charlie e “Ok, mas o que ele tem?”, pergunta uma enfermeira). É também repleto de momentos bem humorados, como quando Ray pára em frente ao semáforo, a engraçada discussão entre os irmãos sobre cuecas e a resposta de Ray à pergunta furiosa de Charlie (“Estou te usando Ray?”. “Sim”). É durante esta discussão, aliás, que Susanna deixa Charlie, por causa de seu egoísmo e principalmente pelo fato dele estar usando seu irmão para conseguir o dinheiro da herança.

E então chegamos a Charlie Babbit. Logo em suas primeiras aparições, notamos o quanto Charlie é extremamente agitado, ambicioso e bastante estressado, sendo capaz de qualquer coisa para ganhar dinheiro, chegando até mesmo a mentir para um cliente sem nenhum pudor, apenas para garantir a venda. Em sua viagem com Susanna, ficam evidentes seus claros problemas de relacionamento com ela e com seu pai, reforçados pela frieza com que reage a notícia da morte dele. Ainda assim, Charlie vai ao enterro, obviamente mais interessado na herança do que em despedir-se do velho Babbit. Mas ao chegar lá, descobre o destino de sua herança e inicia uma viagem rumo à descoberta de si próprio. Tom Cruise não sai muito de sua costumeira atuação enérgica, mas está bem no papel, em especial quando Charlie começa a perceber a importância de Raymond em sua vida. Repare sua indignação ao ouvir que não herdou os 3 milhões de dólares e compare com o belo momento em que os irmãos encostam a cabeça e demonstram carinho, já próximo da despedida deles. A transformação é lenta, gradual, mas evidente. Charlie consolida sua mudança e seu amor pelo irmão quando descobre que Ray era o Rain Man (que deixou o lar por causa do bebê Charlie), ficando sentado na cama com o olhar perdido no horizonte, apenas refletindo. Inicialmente preocupado apenas com a herança, Charlie percebe o valor da amizade de seu irmão, chegando a recusar uma oferta de suborno do Dr. Bruner, interpretado por Gerald R. Molen (“Gostei de ter meu irmão por mais de seis dias”. “Porque ninguém me contou que tinha um irmão?”, pergunta Charlie). O arco dramático do personagem é muito interessante e sua trajetória de transformação se encerra quando confessa ao irmão a importância dele em sua vida (“Eu gosto de ter você como irmão mais velho”). Felizmente, Cruise torna esta transformação crível com sua boa atuação.

E quem é esta pessoa capaz de provocar tamanha transformação em um ser desprezível como Charlie? Chegamos então a Raymond, uma criança num corpo de adulto, com deficiências incomuns e habilidades igualmente raras, resultantes de sua patologia: o autismo. O cumprimento de rotinas é essencial no dia-a-dia de Ray e sua birrenta reação quando é forçado a sair delas ou a fazer algo que não quer é um reflexo de sua mente infantil, como quando consegue, aos gritos, convencer Charlie a trocar um vôo de três horas por uma viagem longa de três dias até Los Angeles. Por outro lado, Raymond é genial ao ponto de contar em questão de segundos 246 palitos no chão ou decorar a lista telefônica. Sua mente é especial, capaz de acertar cálculos absurdamente complexos e errar contas simples somente porque a base é monetária, já que Ray desconhece o valor do dinheiro. A atuação de Dustin Hoffman na pele de Raymond Babbit é simplesmente sensacional. O competente ator compõe um personagem complexo, trabalhando nos pequenos detalhes do autismo, através de gestos e movimentos de mão, do caminhar (repare como ele anda em linha reta quando sai com Charlie pelo jardim), da voz reprimida, do olhar sempre baixo demonstrando sua enorme timidez, da constante repetição de palavras e frases (“Oh, Oh!”, “Definitivamente” e “Eu não sei”, por exemplo), do movimento com o pescoço e a cabeça para frente e para trás em diversos momentos e da constante inclinação da cabeça para um dos lados. Sua inabilidade para o contato social, perceptível em sua clara aversão ao toque, faz com que Ray se prenda ao seu mundo interior. Como diz seu amigo Vern (Michael D. Roberts), “pessoas não são importantes pra ele”, que “sequer notaria se eu fosse embora” – o que arranca imediatamente um olhar mal intencionado de Charlie, já arquitetando em sua mente o plano de fugir com o irmão. Hoffman demonstra talento ainda nos momentos de bom humor, como quando Ray imita o som do carro e o som de Charlie e Susanne transando, e nos momentos mais dramáticos, como quando a fumaça dispara o alarme de incêndio e desencadeia o distúrbio de Ray. Fechando o elenco, Valeria Golino interpreta Susanne, que trata Ray com respeito desde o primeiro minuto que o vê, chegando ao ponto de beijá-lo no elevador, talvez com pena dele por ter sido enganado por uma prostituta.

Tecnicamente, “Rain Man” conta com um trabalho discreto, porém muito eficiente. Observe, por exemplo, como o som ajuda a entender a mente de Ray através do barulho da roleta, captado por ele mesmo estando muito distante dela, mostrando como Ray se concentra em uma única coisa e se desliga do restante do mundo ao seu redor. A excelente montagem de Stu Linder garante uma fluência deliciosa ao longa, além de fazer interessantes transições, como num plano à beira da estrada que passa da noite para o dia e numa série de pequenos planos que simbolizam o tédio de Charlie enquanto aguarda a chuva passar dentro de um motel. A boa direção de fotografia de John Seale aproveita muito bem as lindas paisagens costumeiras em road movies e a simples e eficiente trilha sonora do ótimo Hans Zimmer pontua muito bem a narrativa, indicando ainda as sensações dos personagens, como por exemplo, ao ilustrar através da música empolgante a euforia de Charlie quando este descobre a habilidade de Ray para contar cartas em plena Las Vegas.

O final coerente de “Rain Man” emociona sem ser melodramático ou apelar para a trilha sonora na tentativa de provocar um mar de lágrimas no espectador. A estória dos irmãos Babbit é tocante o suficiente para emocionar a platéia e a despedida correta de Charlie e Ray é um momento sublime. Seria estranho ver Ray abraçar o irmão, por exemplo, já que durante todo o tempo ele evita o contato, chegando no máximo a aceitar encostar a cabeça em Charlie. Por isso, ao vê-lo entrando no trem sem perceber o que está acontecendo, enquanto Charlie sofre do lado de fora, o compreensível nó na garganta do espectador acontece naturalmente. Charlie mudou, Ray não. Tratando o autismo com extrema dignidade e respeito, o singelo e honesto “Rain Man” conta uma estória de fraternidade e amor de forma simples, bem humorada e, como diria Ray, “definitivamente” bela.

Texto publicado em 14 de Abril de 2010 por Roberto Siqueira

20 comentários sobre “RAIN MAN (1988)

  1. nea merlin 18 maio, 2016 / 11:13 pm

    poxa as 4;30 da madrugada me falta luz fiquei sem ver o fina do filme ….. fico como ????? muito triste ne ???????

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  2. Edilane Carla 17 março, 2016 / 1:55 pm

    Excelente filme!
    Sua crítica foi bem clara, permite o leitor refletir sobre cada detalhe!
    Parabéns!

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    • Roberto Siqueira 22 março, 2016 / 6:24 pm

      Muito obrigado Edilane.
      Abraço.

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  3. Paula 13 janeiro, 2016 / 3:07 pm

    Ótimo filme, ótima crítica você teve do filme.
    É uma pena que não vi o final, com o mal tempo a TV ficou sem sinal. Só assiste até a entrevista com os médicos.

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    • Roberto Siqueira 22 janeiro, 2016 / 2:12 pm

      Obrigado Paula.

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  4. Raphael 5 outubro, 2015 / 4:54 am

    Excelente filme, mas infelizmente a atriz que o beijou no elevador foi bem sem vergonha, visto que ela namorava o irmão do cara que ela beijou. Não me interessa que ela tenha ficado com dó do cara ter autismo. Ela foi puta e pronto… Quem namora uma pessoa, não beija outra nem por dó…

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    • Roberto Siqueira 2 novembro, 2015 / 4:44 pm

      Olá Raphael,

      Não precisa usar este linguajar para falar das mulheres. Ela já sofrem tanto nesta sociedade machista. Tente olhar com um pouco mais de ternura e quem sabe entenderá que aquele gesto não significou nada além de uma outra forma de amor, que não mudou em nada o que ela sente pelo irmão dele.

      Abraço.

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    • Anônimo 14 janeiro, 2024 / 12:05 am

      Um filme excelente e sua foi análise incrível, valeu cada minuto. Abraços!!

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  5. rauny moreira 16 agosto, 2013 / 11:32 am

    Excelente atuacao de Hoffman e uma fantastica trama, realmente mereceu o Oscar de melhor filme de 1988, abraco Beto e parabens pelo texto

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    • Roberto Siqueira 16 setembro, 2013 / 11:21 pm

      Obrigado Rauny.

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  6. cross98 14 maio, 2012 / 11:08 am

    Um excelente filme que realmente é unico, emociona, é engraçado e realista , quase uma OP. Pasoou na tv ontem e adorei

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    • Roberto Siqueira 24 maio, 2012 / 11:04 pm

      Que bom que gostou.
      Abraço.

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    • Mateus Aquino 3 junho, 2012 / 8:29 pm

      Ta na minha videoteca, quando encher outra estante, te mando uma foto por e-mail

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    • Roberto Siqueira 7 junho, 2012 / 11:59 am

      Pode mandar.

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  7. wt 24 janeiro, 2012 / 9:11 pm

    obrigada pela sua analise deste filme, ajudou bastante no meu trabalho,

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    • Roberto Siqueira 25 janeiro, 2012 / 6:17 pm

      Que legal, fico feliz.
      Abraço.

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  8. Márcio 22 dezembro, 2011 / 12:39 am

    Rain Man é absolutamente fantástico!!!
    Excelente filme…
    Enfim parabéns pela crítica excelente do filme.

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    • Roberto Siqueira 22 dezembro, 2011 / 5:17 pm

      Muito obrigado Márcio!
      Um grande abraço.

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    • Roberto Siqueira 20 novembro, 2011 / 9:38 pm

      Olá Marilia,
      Obrigado pela visita e pelo comentário.
      Um abraço e volte sempre.

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