CONDUZINDO MISS DAISY (1989)

(Driving Miss Daisy)

 

Videoteca do Beto #60

Vencedores do Oscar #1989

Dirigido por Bruce Beresford.

Elenco: Morgan Freeman, Jessica Tandy, Dan Aykroyd, Patti LuPone, Esther Rolle, Jo Ann Havrilla, William Hall Jr., Alvin M. Sugarman, Clarice F. Geigerman, Muriel Moore, Sylvia Kahler e Crystal R. Fox.

Roteiro: Alfred Uhry, baseado em peça teatral de Alfred Uhry.

Produção: Lili Fini Zanuck e Richard D. Zanuck.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido o filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

De forma simples e eficiente, o diretor Bruce Beresford nos traz esta tocante estória sobre uma senhora judia que hesita em aceitar seu novo motorista negro após sofrer um leve acidente com seu novo carro. A trajetória de aceitação, quebra de preconceitos e aproximação de duas pessoas solitárias, e acima de tudo, o olhar humano, despido de preconceito racial ou religioso (ele é negro, ela judia), torna este “Conduzindo Miss Daisy” um lindo filme sobre o valor do caráter humano e da verdadeira amizade.

Uma rica judia de 72 anos de idade (Jessica Tandy) acidentalmente joga seu carro novo no jardim do vizinho. Seu filho Boolie (Dan Aykroyd) tenta convencê-la de que ela precisa de um motorista, mas ela resiste à idéia. Mesmo assim, seu filho contrata o motorista Hoke (Morgan Freeman), provocando a imediata recusa de sua mãe. Mas gradativamente ela quebra a barreira da diferença cultural e racial existente entre eles, aceita suas próprias limitações e permite nascer e crescer um sentimento puro e sincero de amizade que durará décadas.

Embalado pela leve e descontraída trilha sonora do sempre ótimo Hans Zimmer, o diretor Bruce Beresford conduz este singelo “Conduzindo Miss Daisy” com enorme segurança, permitindo que os ótimos desempenhos de todo o elenco sejam a principal atração do longa. Ainda assim, a parte técnica merece destaque, a começar pelo excelente trabalho de direção de arte de Victor Kempster que, auxiliado pelos figurinos de Elizabeth McBride, cria um visual coerente com a época da narrativa, notável através do interior das casas, dos carros e da própria maneira de se vestir dos personagens. Vale observar também como a fotografia discreta e sem muita vida de Peter James reflete a personalidade de Miss Daisy, que detesta chamar a atenção, como ela mesma deixa claro ao reclamar quando Hoke para o carro na porta da igreja. Por outro lado, James explora muito bem a beleza dos jardins e ruas arborizadas da cidade, criando um interessante contraste visual. Já a maquiagem da dupla Manlio Rocchetti e Kevin Haney é simplesmente espetacular, refletindo com precisão o envelhecimento dos personagens, notável principalmente no terceiro ato do longa. E finalmente, a montagem de Mark Warner flui muito bem, cobrindo muitos anos da vida dos personagens sem jamais soar cansativa ou episódica, além de fazer a transição do tempo de forma elegante em muitos momentos, por exemplo, através do crescimento das flores no jardim. O diretor Beresford também é competente na criação de planos interessantes, como aquele em que podemos ver o reflexo de Hoke no belíssimo Hudson que ele vai dirigir por muitos anos ou na magnífica composição visual da viagem feita por Miss Daisy e seu motorista, além é claro da elegante câmera lenta que indica a morte de Idella (Esther Rolle).

Sem fugir do clichê “eles se odeiam e depois viram grandes amigos” (que neste caso é muito bem utilizado, pois o desentendimento inicial é perfeitamente aceitável, assim como o nascimento da relação de respeito e carinho entre eles), o bom roteiro de Alfred Uhry, baseado em peça teatral do próprio Uhry, estuda minuciosamente os efeitos do envelhecimento no ser humano, normalmente resistente às mudanças provocadas pela passagem do tempo. Esta resistência provoca uma enorme dificuldade em aceitar que não podemos mais fazer as mesmas coisas de antes, como quando Miss Daisy resiste em aceitar que não pode mais dirigir. Além disso, o roteiro acertadamente aborda temas complicados, como o racismo (os negros são empregados e motoristas), tão forte naquele período da história dos EUA, e a discriminação religiosa, escancarados na frase preconceituosa do policial que pára os dois idosos na estrada. Finalmente, o roteiro de Uhry conta ainda com diálogos dinâmicos, inteligentes e repletos de ironia, principalmente entre a dupla principal e entre Miss Daisy e seu filho.

Colaboram para o dinamismo dos diálogos as excelentes atuações do elenco, com destaque para o trio principal formado por Tandy, Freeman e Aykroyd. Jessica Tandy está perfeita como a amargurada Miss Daisy. Teimosa e extremamente autoconfiante, ela demonstra enorme dificuldade em se despir de preconceitos e alterar sua rotina, como quando reclama por mudar o caminho para o mercado Piggly. Miss Daisy é tão ranzinza que canta enquanto o filho fala, simplesmente por não concordar com o que ouve. A ironia – traço forte do roteiro que garante o tom de comédia – também está presente nas frases da personagem, como quando ela fala sobre o nariz de sua nora Florine (Patti LuPone), assim como o olhar sempre negativo para o mundo, exemplificado no sorriso dela ao constatar que algo sumiu de sua dispensa, como se já esperasse por aquilo. Esta seqüência do “roubo do salmão”, aliás, reafirma o tom bem humorado do longa, perceptível até mesmo na trilha sonora, que dá um acorde alto criando suspense. Depois da resolução do “caso”, repare como o diretor inteligentemente cria um plano com a cozinha vazia, refletindo a sensação que o espectador sente naquele momento. Extremamente resistente no inicio, Miss Daisy completa sua gradual transformação ao longo dos anos quando confessa seu sentimento de amizade por Hoke (“Você é meu melhor amigo”), e esta transformação é notável graças ao excelente trabalho da atriz. Tandy também demonstra muito bem o desespero de Miss Daisy quando começa a enfrentar problemas de memória, descendo a escada para procurar “as provas que devem ser corrigidas” e falando repetitivamente, além de mostrar competência também quando recorda da primeira vez que viajou, aos doze anos de idade, num momento nostálgico e tocante. E o responsável por toda esta mudança na vida da rica judia é um senhor simples e de enorme coração, interpretado magnificamente por Morgan Freeman. A introdução de Hoke na narrativa é perfeita, apresentando logo de cara todos os trejeitos do personagem, como a voz calma e anasalada, o sotaque diferenciado, o andar encurvado e lento, o olhar por cima dos óculos e a gargalhada. Seu jeito tranqüilo e paciente é ideal para conseguir conviver diariamente com a difícil Miss Daisy. Repare como logo na entrevista com Boolie fica evidente a ótima caracterização do personagem, reforçando a qualidade da atuação de Freeman. Vale destacar em especial dois grandes momentos do ator. O primeiro, na emocionante cena em que Hoke procura a lápide de Bauer e escancara sua deficiência na leitura, onde o ator transmite toda a dificuldade e embaraço do personagem, provocando a imediata reação de Miss Daisy, que sorri de satisfação quando o motorista consegue encontrar a lápide. O outro momento acontece quando Hoke pede aumento para Boolie. Freeman demonstra com enorme sensibilidade, através do jeito de falar, da gargalhada e do tom de voz, a intenção do personagem, ainda que as palavras não digam claramente o que ele pretende. Finalizando os destaques do elenco, Dan Aykroyd se sai muito bem no papel do divertido Boolie, que sabe perfeitamente como é difícil conviver com sua amada mãe. Por isso, ele raramente dá ouvidos às constantes reclamações da velha senhora, e até mesmo quando o faz, é sempre com um pé atrás, como no caso do salmão roubado. Além disso, o ator demonstra com competência o modo sempre irônico com que Boolie lida com os problemas da família (“Carros não agem, as pessoas que agem com eles”), como quando sua esposa reclama por não ter coco ralado no natal.

Quando Hoke se rebela e diz que é um senhor de 70 anos de idade que precisa fazer xixi, ele finalmente ganha o respeito definitivo de Miss Daisy. Os dois, aliás, começam a dar sinais evidentes da relação de amizade entre eles quando ela lhe presenteia no natal (“Não é presente de Natal. Judeus não têm nada que ver com isso”, faz questão de ressaltar). Neste momento, ainda que as fortes tradições se mantenham (Hoke fica do lado de fora da casa), o livro que ele ganha simboliza que a relação entre os dois já não é apenas profissional. E é delicioso acompanhar a construção gradual e consistente de uma amizade verdadeira. Por isso, quando chegamos à seqüência final, com os dois amigos sentados à mesa conversando enquanto Hoke alimenta Miss Daisy, nos sentimos comovidos. E esta comoção não é provocada de forma artificial ou melodramática. É simplesmente belo ver como os velhos traços da amizade permanecem, com as alfinetadas e a ironia presentes no diálogo, mas o respeito e admiração são muito mais fortes.

A velhice é tratada com respeito neste sensível “Conduzindo Miss Daisy”, extremamente bem atuado e com um roteiro bastante inteligente, que nos deixa algumas reflexões. A vida passa, o corpo enfraquece, os filhos crescem, os amigos e familiares se vão, mas as lembranças ficam. E afinal de contas, o que levamos desta vida? Levamos o amor, as verdadeiras amizades e as histórias que vivemos para contar. Melhor ainda é quando chegamos ao final desta trajetória podendo contar com alguém, seja este (a) um (a) companheiro (a) ou um verdadeiro (a) amigo (a). É isto que vale a pena na vida.

Texto publicado em 31 de Julho de 2010 por Roberto Siqueira

11 comentários sobre “CONDUZINDO MISS DAISY (1989)

  1. Anônimo 8 novembro, 2022 / 9:53 am

    Belíssimo e emocionante.

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  2. Anônimo 29 setembro, 2018 / 2:17 pm

    O preconceito no filme foi acabo?

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  3. PAULO ANTONIO 31 outubro, 2010 / 3:49 pm

    ACABEI DE VER “CONDUZINDO MISS DAYSY” E LOGO APÓS A CENA FINAL, AQUELA EM QUE HOKE ESTÁ DANDO COMIDA PARA MISS DAYSI NO ASILO, NÃO CONSEGUI REPRIMIR UMA LÁGRIMA. EU FIZ UMA LISTA DOS MELHORES FILMES QUE JÁ VI AO LONGO DOS MEUS 46 ANOS DE IDADE E ESTE ACABA DE ENTRAR PARA ESTA LISTA. TENHO MORGAN FREEMAN COMO UM DOS MAIORES GÊNIOS QUE A HUMANIDADE JÁ PODE CONCEBER E A ATUAÇÃO DELE NESSA OBRA É ALGO QUE CHEGA PRÓXIMO Á PERFEIÇÃO. O CARA NÃO PARECE ESTAR ATUANDO E A IDEIA QUE TEMOS É A DE QUE ALI ESTÁ ALGUÉM REAL, SEM CAMERAS OU SET DE FILAMGENS. SEU COMENTARIO E SUA CRÍTICA SOBRE ESSE FILME SÓ PODE SE COMAPARAR A GRANDE OBRA QUE É ESTE FILME. PARABÉNS.

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    • Roberto Siqueira 31 outubro, 2010 / 4:30 pm

      Olá Paulo.
      Muito obrigado pelo elogio, fico realmente lisonjeado.
      Um grande abraço, seja bem vindo ao Cinema & Debate e volte sempre.

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  4. Sandro 26 setembro, 2010 / 1:33 pm

    Estou a procura deste filme a muito tempo, e nao consegui encontrar. Alguem poderia me ajudar. Obrigado

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    • Roberto Siqueira 29 setembro, 2010 / 11:43 pm

      Sandro, procura no Buscapé ou Bondfaro.
      Se quiser, no lado direito da página inicial tem o link.
      Abraço.

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  5. Lúcio 19 agosto, 2010 / 1:35 am

    Eu tive um momento de paz ao assistir esse filme, chorei rindo diversas vezes, é inesquecível. E cada vez que ouço a trilha sonora do filme me comovo e sinto uma paz única.

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    • Roberto Siqueira 21 agosto, 2010 / 11:17 am

      Olá Lúcio.
      Esta magia do cinema é única. Que bom que existem filmes capazes de nos emocionar desta maneira.
      Um grande abraço, seja bem vindo ao Cinema & Debate e volte sempre.

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  6. Brasil Inteligente 1 agosto, 2010 / 1:50 am

    Adorei esse filme… Muito inteligente, com diálogos cheios de ironia que nos fazem rir, mas com uma mensagem importante sobre o relacionamento humano. Realmente Morgan Freeman é demais. Me surpreende saber que em 1989 ele ja era velho!!! hahahaha Quantos anos ele tem, sabe dizer? O cara é um fenômeno… Sobre a crítica, adorei a atenção aos detalhes… Abraço!

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    • Roberto Siqueira 3 agosto, 2010 / 11:49 pm

      Obrigado pelos elogios Thi.
      E só pra constar, Morgan Freeman tem 73 anos.
      Abraço.

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