O NASCIMENTO DE UMA NAÇÃO (1915)

(The Birth of a Nation)

 

Filmes em Geral #42

Dirigido por D.W. Griffith.

Elenco: Lillian Gish, Mae Marsh, Henry B. Walthall, Mirian Cooper, Mary Alden, Ralph Lewis, George Siegmann, Walter Long e Robert Harron.

Roteiro: Thomas F. Dixon Jr., D.W. Griffith e Frank E. Woods.

Produção: D.W. Griffith.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

É uma pena que o filme responsável por estabelecer os padrões narrativos do cinema, o primeiro a contar uma história através das telonas da maneira que conhecemos e, verdadeiramente, o primeiro épico da história da sétima arte, seja também um filme nojento, moralmente desprezível e que apresenta um racismo tão descarado que chega a dar náuseas. É ainda mais difícil escrever sobre um filme assim, pois ao mesmo tempo em que repudio sua “ideologia” míope, sou obrigado a reconhecer os enormes avanços que este “O Nascimento de uma Nação” trouxe para a linguagem cinematográfica sob a condução de D.W. Griffith, responsável pela produção, roteiro e direção do longa.

Os irmãos Stoneman, do norte abolicionista, visitam os amigos da família Cameron em Piedmont, na Carolina do Sul e, portanto, escravagistas, mas sua amizade é afetada pela guerra civil americana, colocando as famílias amigas em lados distintos da batalha (enquanto os Stoneman defendem o exército da União, os Cameron se juntam ao exército confederado). Após a batalha, a derrota do sul trará grandes mudanças na vida daquelas pessoas. Mas o coronel Ben Cameron (Henry B. Walthall) já tinha se apaixonado por Elsie Stoneman (Lillian Gish), que também conquistara o coração de Silas Lynch (George Siegmann), principal representante político de Austin Stoneman (Ralph Lewis) e responsável por mudanças que beneficiavam os negros no sul escravagista. Revoltado, Ben Cameron decide fundar uma organização para combater os “abusos” de Lynch na região.

Escrito pelo próprio Griffith, “O Nascimento de uma Nação” utiliza a história das famílias Cameron e Stoneman para cobrir acontecimentos marcantes da história norte-americana, como a Guerra da Secessão, o assassinato do presidente Lincoln e o nascimento da Ku Klux Klan, mas, infelizmente, o faz de maneira míope, defendendo o racismo declaradamente e chegando ao absurdo de declarar a Ku Klux Klan como a organização responsável por salvar o sul. Mas deixemos o aspecto moral do longa pra depois e vamos focar em sua enorme contribuição técnica para a evolução do cinema. Além do tradicional formato dos filmes mudos (diálogos escritos na tela, imagens em preto e branco e trilha sonora incessante), Griffith estabeleceu o padrão narrativo vigente ainda hoje, alternando entre planos médios, americanos, gerais e até mesmo closes, chegando a usar o foco para destacar algo, além de utilizar locações externas e mostrar ações paralelas, o que garantiu um ritmo fluído ao longa, graças também ao bom trabalho de montagem dele próprio, auxiliado por Joseph Henabery, James Smith, Rose Smith e Raoul Walsh. Além disso, o diretor abusa de planos e movimentos de câmera ousados para a época, como os impressionantes planos gerais da marcha para o mar e dos campos de batalha, além do uso de travellings. Aliás, as batalhas são um ponto alto do trabalho de Griffith, que mantém um ritmo dinâmico embalado pela agitada trilha sonora, mostrando imagens fortes para a época, com homens feridos e uma pilha de mortos depois da guerra, assim como no confronto final ele utiliza um grande número de figurantes para mostrar outra batalha épica entre os negros e a Ku Klux Klan, novamente bastante violenta e repleta de tiros a queima roupa e assassinatos a sangue frio. Vale destacar também o plano em que duas mulheres brancas conversam ao lado de uma árvore e o capitão negro Gus (Walter Long) observa atrás da cerca, que refletirá na tensa seqüência em que ele persegue a moça e provoca a morte dela, em outra cena impressionante visualmente, com a moça despencando nas pedras. Griffith alterna planos gerais e closes, conduzindo com perfeição a cena até o absurdo momento em que a garota, após despencar e se arrebentar no chão, levanta ainda com vida, somente para morrer nas mãos do irmão, gerando enorme tristeza na família – algo refletido na própria tela, que escurece lentamente ao som da triste trilha sonora.

Além do inteligente uso da câmera para contar a história, o diretor mostra sensibilidade em cenas marcantes, como o tocante momento em que uma mãe visita o filho ferido num hospital e descobre que ele foi condenado a forca, acusado de ser guerrilheiro. Ela apela de joelhos ao presidente Lincoln e ele atende ao seu pedido, escrevendo uma carta libertando seu filho. Retratado como um homem bom, Lincoln é assassinado (por motivações políticas) num teatro, em outra cena muito bem conduzida por Griffith, que, por exemplo, usa o foco da câmera para destacar a visão do assassino. Este virtuosismo técnico é ainda mais notável graças aos impecáveis figurinos de Robert Goldstein e Clare West (não creditados), que ambientam perfeitamente o espectador, além da ótima trilha sonora de Joseph Carl Breil e D.W. Griffith, repleta de melodias diferentes que pontuam a narrativa, como quando a notícia da morte de um dos Cameron chega à família e a trilha melancólica ilustra a tristeza de todos. E não posso deixar de mencionar a excelente direção de fotografia de G.W. Bitzer, que utiliza filtros com cores diferentes para transmitir sensações, como o filtro azul empregado em cenas mais tristes, que também aparece sempre que o presidente Lincoln toma uma decisão, denotando seriedade ao momento. Observe ainda como quando os Cameron perdem outro filho na guerra a imagem sequer utiliza filtro, e o preto e branco, acompanhado novamente pela trilha melancólica, reforça ainda mais a tristeza deles. Já a vida no sul é constantemente filmada com um filtro amarelo, que confere uma atmosfera brilhante e iluminada, coerente com a visão do diretor (um sulista de berço) de que aquela vida era melhor e mais bela. Por outro lado, as celebrações com fogos de artifício e as cenas de batalha utilizam um filtro vermelho, também utilizado durante a invasão do “regimento negro”, claramente como forma de intensificar a violência destes confrontos.

Mas apesar de toda sua qualidade técnica, “O Nascimento de uma Nação” é bastante comprometido pela visão política extremamente racista que defende. Frases como “a chegada dos africanos trouxe a semente da discórdia” e “a minoria branca desamparada” são apenas pequenos exemplos das atrocidades cometidas pelo longa, que mesmo sendo realizado em 1915, não tem qualquer justificativa para sua incrível cegueira (na época, provocou protestos acalorados de órgãos norte-americanos como a NAACP). Este racismo declarado aparece logo no início, quando a vida no sul (onde os negros eram escravos) é mostrada como um verdadeiro paraíso, onde, nas palavras do narrador, “não há nada melhor” – e um plano onde cão e gato brincam num cesto simboliza esta pretensa paz. Mas como, em sã consciência, pessoas que são escravizadas e trabalham das 6 da manhã às 6 da tarde poderiam estar felizes e dançando junto aos brancos, como se a vida fosse um mar de rosas? Estas mesmas pessoas, aparentemente incapazes de se rebelar, são retratadas posteriormente como selvagens quando ganham o direito de votar, por exemplo, colocando os pés descalços em cima da mesa na eleição e castigando cruelmente um criado, matando seu senhor em seguida com um tiro a queima roupa. Aliás, na ridícula visão de Griffith, esta parece ser a única maneira de um negro enfrentar um branco, como fica claro quando um homem branco briga com um monte de homens negros e sai ileso, sendo assassinado friamente com um tiro pelas costas. O roteiro de Griffith é tão maniqueísta e racista que chega ao absurdo de chamar o personagem Silas Lynch de traidor por lutar para igualar os direitos de brancos e negros – e justamente por apoiar os negros ele é eleito vice-governador. Além disso, usa o romance entre Elsie e Ben como pretexto para “demonizar” Lynch e tentar ganhar o apoio do espectador. Mas o pior ainda estava por vir, pois a segunda parte da narrativa foca na reconstrução do sul após a guerra e piora ainda mais o racismo nojento do filme, apresentando os membros da Ku Klux Klan como salvadores da nação (um grupo de crianças brincando com lençóis inspiram Ben Cameron, que funda o absurdo chamado Ku Klux Klan, a organização que “salvou o sul”). Em outras palavras, o roteiro não apenas justifica como também glorifica esta organização, alegando que eles lutavam em “defesa dos direitos de nascença” dos brancos (“Aryan Rights”). E após uma sangrenta batalha, eles “salvam” o sul e restabelecem a paz, sendo ovacionados numa marcha triunfal pela cidade.

É triste, portanto, que um dos filmes mais importantes da história do cinema seja tão repugnante. Não posso deixar de reconhecer seu valor, mas não sou obrigado a aceitar sua mensagem repulsiva (e espero que ninguém concorde com ela). Em todo caso, vale como registro de um pensamento menor, que já dominou grande parte das pessoas não só nos Estados Unidos, mas em grande parte do planeta, e que, infelizmente, ainda aparece arraigado na mente de pessoas insignificantes. Não é a cor, nem a crença, nem a orientação sexual que definirá quem é capacitado ou não, quem é respeitável ou não, quem é digno de ser chamado ser humano ou não. O importante é o que vem de dentro do homem, de dentro do seu coração e da sua mente. E o pior é que às vezes a mesma mente é responsável por idéias tão distintas. Por tudo isto, “O Nascimento de uma Nação” é um filme indispensável para qualquer cinéfilo sob o ponto de vista técnico. E só.

Texto publicado em 14 de Fevereiro de 2011 por Roberto Siqueira

12 comentários sobre “O NASCIMENTO DE UMA NAÇÃO (1915)

  1. Erick C. 31 outubro, 2016 / 12:24 pm

    Não Entendo uma glorificação a parte técnica onde o conteúdo é tao medíocre, recheado de mensagens racistas, com apelo ao ódio e glorificação de tudo que é ruim e medíocre no ser humano. Um filme com tais mensagens não merece nem ser visto ou revisto. Seria como glorificar algo demoníaco, por sua beleza e charme. Sansão caiu nesta armadinha…

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    • Roberto Siqueira 13 dezembro, 2016 / 1:26 pm

      Olá Erick,

      Analisar um filme não é tão simples e superficial como parece e, portanto, é preciso separar a parte técnica da temática. Óbvio que a mensagem do filme é odiável e isto deixei bem claro no texto. Quanto ao “demoníaco”, não me envolvo em questões religiosas quando analiso filmes, a não ser que faça parte da proposta do mesmo. Cada um que siga a sua religião e respeite os demais.

      Abraço.

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  2. bruno knott 15 abril, 2012 / 3:49 pm

    D.W. Griffith demonstra uma lamentável visão da História dos EUA, mas merece aplausos por ter criado um épico em 1915, com tão poucos recursos.

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    • Roberto Siqueira 20 abril, 2012 / 11:32 pm

      É verdade Bruno.
      Abraço.

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  3. Anônimo 27 dezembro, 2011 / 5:45 pm

    Roberto, gostaria de saber o que voce acha do filme A outra historia americana, e’ um filme que eu gosto muito e combate o preconceito de uma forma clara. Tomara que algum dia voce publique uma critica a este filme. Abracao
    Vinicius

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    • Roberto Siqueira 28 dezembro, 2011 / 12:31 am

      Olá Vinicius,
      Já está na minha lista e espero divulgar a crítica de “A outra história americana” no próximo ano.
      Abraço!

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  4. Diego Novaro 23 anos, Ananindeua Pa 18 outubro, 2011 / 8:12 pm

    Como disse Alejandro Jodorowsky: “o mundo é doente”; entao o proprio ser humano da margem pra arte em niveis extratosfericos, falar de suas mazelas tem um poder curativo pra certos expectadores e pra outros não, muitos pessoas nao gostao de laranja mecanica por causa da violencia aparentemente gratuita, isso é de certa forma das tagentes da arte. Deixo claro que nao sou racista de forma alguma, talvez no meu comentario anterior eu tenha sido infeliz, e nao me viz entender totalmente. De certa forma rastros de odio existe ukm posicionamento repulsivo em relaçao aos nativos americanos, mas cinema nao e politica nem propaganda eleitoral, e sim uma arte q expressa naturalmente.

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    • Roberto Siqueira 11 novembro, 2011 / 8:49 pm

      OK Diego, agora entendi seu raciocínio.
      Neste caso, podemos reconhecer o valor do filme enquanto registro de uma época, o que não nos impede de discordar de sua ideologia doentia.
      Um abraço.

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  5. Diego Novaro 23 anos, Ananindeua Pa 14 outubro, 2011 / 9:38 pm

    Pelo pouco que conheço de historia como um entusiasta, o filme tem o valor de mostrar atraves do nascimento da linguagem cinematografica, uma epoca racista e todos os istas possiveis, confesso que quase nao consigo assistir ate o final pela duraçao,e penso o contrario de vc, na estreia do cinema eu gosto fato do Grifith ter feito um filme com essa conotaçao.

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    • Roberto Siqueira 14 outubro, 2011 / 10:19 pm

      Olá Diego,
      Obrigado pelo comentário. Gostaria de entender porque você gostou da conotação racista do filme.
      Abraço.

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