UM DIA DE FÚRIA (1993)

(Falling Down)

 

Videoteca do Beto #96

Dirigido por Joel Schumacher.

Elenco: Michael Douglas, Robert Duvall, Barbara Hershey, Tuesday Weld, Rachel Ticotin, Frederic Forrest, Lois Smith, Joey Hope Singer, Raymond J. Barry, D.W. Moffet, Steve Park, Kimberly Scott e James Keane.

Roteiro: Ebbe Roe Smith.

Produção: Timothy Harris, Arnold Kopelson e Herschel Weingrod.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

A vida moderna, especialmente nas grandes cidades, propicia muitos momentos desgastantes, graças ao seu ritmo de vida alucinante e estafante, que a cada dia procura ser mais dinâmico, privilegiando a velocidade da informação e das atividades que realizamos diariamente. O grande problema, entretanto, é que esta busca gananciosa por um estilo de vida cada vez mais “dinâmico” acaba prejudicando o que de melhor nossa vida pode oferecer, aqueles momentos em que nos esquecemos de tudo, apenas para relaxar e deixar o tempo passar. Exatamente por isso, este ritmo acelerado é responsável pela proliferação de pessoas cada vez mais estressadas, que, diante de tantas situações irritantes, podem acabar explodindo de uma maneira ou outra. E é justamente o momento de explosão de uma pessoa comum que este interessante “Um Dia de Fúria” retrata com precisão, aproveitando ainda para criticar as inúmeras situações que a vida nas grandes cidades apresenta e que colaboram para que isto aconteça.

Após perder seu emprego, William Foster (Michael Douglas) decide ir ao encontro de sua ex-mulher Beth (Barbara Hershey) e sua filha (que faz aniversário), apesar de estar impedido legalmente de fazer isto. No caminho, ele é obrigado a enfrentar o transito congestionado da cidade de Los Angeles, debaixo de um sol escaldante e em meio à grande poluição. Irritado, William decide largar o carro e seguir a pé. Mas, ao parar para tentar fazer uma ligação, ele acaba discutindo com um comerciante e explodindo, dando início a uma série de situações que complicam cada vez mais o seu dia. Quando a situação sai totalmente de controle, o veterano policial Prendergast (Robert Duvall), prestes a se aposentar, decide tentar impedir que uma tragédia ainda maior aconteça.

Escrito por Ebbe Roe Smith, “Um Dia de Fúria” aborda a paranóia urbana, um tema contemporâneo que assola a grande maioria das pessoas que vivem nas principais cidades do planeta, refletindo os enormes problemas que a grande concentração de pessoas num mesmo local traz para o nosso cotidiano, como o trânsito carregado ou o atendimento padronizado em restaurantes (os chamados fastfoods, que visam somente à velocidade no atendimento, como numa linha de produção), entre tantas outras coisas. Dirigido por Joel Schumacher, o longa se concentra na vida do conturbado William Foster, recentemente demitido e obrigado pela justiça a se manter longe da ex-mulher e da filha por causa de seu temperamento agressivo, que é apresentado ao espectador logo na primeira cena do filme, quando um close em detalhes de seu rosto suado e angustiado dá inicio a seqüência que levará aquele homem a largar tudo pra trás. Aliás, a direção de Schumacher é competente na transmissão deste sentimento crescente de angústia, através do silencio que lentamente se transforma num barulho irritante, do travelling que passa pelas outras pessoas presentes nos carros parados no congestionamento, e do calor infernal daquele dia, refletido nas cores quentes da fotografia de Andrzej Bartkowiak. Quando William larga o carro parado na rua e sai andando, dizendo “Vou pra casa!”, sabemos que ele chegou ao limite.

Mas os problemas de William estavam apenas começando, pois a cidade grande ainda reservaria muitas situações desagradáveis, capazes de tirar a paciência de qualquer um. Momentos depois de deixar seu carro pra trás, ele entra numa loja, com a única intenção de comprar uma ficha telefônica. Mas, ao descobrir que teria que consumir algo e, pior do que isso, os preços abusivos praticados no local, ele explode. Obviamente, não se trata apenas da questão dos preços, que é apenas a chamada “gota d’água”. Aquela reação é apenas o resultado de todos os problemas que ele havia acumulado e que o levaram a destruir a loja e sair com o taco de beisebol que o dono dela iria usar para agredi-lo. Aliás, é interessante notar também como William jamais procura a violência, mas ela sempre acaba chegando até ele – e até mesmo as armas que carrega durante a narrativa surgem primeiramente nas mãos de seus agressores. A partir daí, o que vemos é um festival de situações que parecem corriqueiras, mas que são suficientes para tirar alguém do sério – o que, no caso de William, era algo mais fácil de acontecer, dadas as circunstâncias. Paralelamente, acompanhamos o trabalho de investigação da policia, que, inicialmente, não dá muita atenção ao caso, com exceção do praticamente aposentado Prendergast, que parece preocupado com as noticias que recebe. Graças à boa montagem de Paul Hirsch, a narrativa alterna com muita fluência entre o dia conturbado de William, a espera angustiada da ex-mulher dele em casa, as investigações da polícia e o drama da aposentadoria de Prendergast, demonstrando inteligência ao priorizar a linha narrativa mais interessante do longa, focando nos diversos problemas que cruzam o caminho de William. Também colabora com o clima de tensão a boa trilha sonora de James Newton Howard, que alterna entre momentos sombrios e agitados, como quando William invade a casa, enquanto Beth foge pela porta dos fundos.

No caminho de William, “Um Dia de Fúria” aproveita para criticar diversas situações normais do cotidiano nos grandes centros urbanos, como, por exemplo, a miscelânea cultural que se tornou a cidade de Los Angeles (e a maioria das grandes cidades do mundo hoje em dia), graças ao enorme número de imigrantes no país, representada pela gangue latina agredida com o taco de beisebol e pelos personagens chineses, japoneses e coreanos (interessante notar também como o filme critica o irritante vicio ocidental de confundir os povos destes países através dos comentários dos policiais). Além dos imigrantes, outra característica comum às grandes cidades, que também é reflexo do excesso de pessoas e da falta de oportunidades, é a grande quantidade de pedintes e mendigos que vagam pelas ruas, como aquele que irrita William (“Vá procurar emprego!”, diz ele, após ouvir o homem gritar “Me dá alguma coisa!”) e que ganha de presente, pra sua irritação, uma mala com duas frutas. Em outro momento, o longa faz uma excelente crítica aos fastfoods, através dos irritantes sorrisos forçados das atendentes, do tamanho e do aspecto do lanche (muito diferente da foto da propaganda) e da falta de tato das pessoas que ali trabalham para lidar com o cliente. Além disso, critica os bancos, mostrando o tratamento diferente dado aos “não economicamente viáveis”. Mas nem só de críticas vive “Um Dia de Fúria” e o clima tenso que predomina a narrativa faz a violência parecer um resultado inevitável diante de tudo que vemos. E por mais que a violência jamais se justifique, a reação maluca de William acaba se tornando compreensível, o que não quer dizer que devemos perdoá-lo (e confesso: entendo que a maioria das pessoas já viveu alguma situação em que ao menos pensou em fazer alguma loucura como esta). Felizmente, Joel Schumacher mostra qualidade na condução das ótimas cenas de violência do filme, como a briga com a gangue, o tiroteio em plena luz do dia, a bazuca disparada nas ruas que eram consertadas sem necessidade e o infarto de um jogador de golfe que se irritou com a invasão de seu terreno particular. Já a interessante seqüência que se passa na loja de um admirador do nazismo aproveita para pregar a ideologia americana da “liberdade de expressão”, além de fazer referência ao nome do filme, quando William diz que vai cair (“I’m falling down!”).

Evidentemente, a ótima atuação de Michael Douglas é essencial para que o espectador se envolva com a narrativa, transmitindo muito bem em seu semblante a fúria crescente do personagem, que enfrenta problemas com a esposa e a filha, provocados por seu temperamento explosivo. Vale destacar, entre tantos bons momentos do ator, sua expressão de surpresa ao constatar que, no mundo de hoje, um cirurgião plástico tem mais sucesso do que muitas outras profissões (o que reflete a crescente preocupação das pessoas com a aparência). Além disso, o ator emociona no tocante momento em que William se desespera ao ver sangue na mão da filha do criado da mansão, se esquecendo que era sangue dele mesmo e mostrando que ele tem seu lado bom, mas não consegue conter o temperamento explosivo, o que o levou a estourar diante de tantas situações estressantes em sua vida. Após este momento, a reflexão de William a respeito de tudo que perdeu também comove (e Douglas tem mérito nisso também), algo que os vídeos que assiste após invadir sua ex-casa comprovam, mostrando uma vida estável ao mesmo tempo em que já indicavam seu temperamento explosivo. E apesar de toda confusão que provoca, William demora a chamar a atenção da policia, com exceção do veterano policial Prendergast, interpretado pelo ótimo Robert Duvall, que será o responsável pela investigação que irá deter a fúria dele. Prestes a se aposentar, mas ainda trabalhando duro (apesar das criticas do chefe), o tranqüilo policial acompanha atentamente os acontecimentos do dia, ao mesmo tempo em que tenta convencer a esposa a deixá-lo resolver o caso ao invés de ir embora mais cedo pra casa, como ela queria. Aliás, Duvall retrata muito bem o trauma que a perda da filha causou no policial (o que explica a preocupação e a carência afetiva da esposa), tratando sua mulher com muito carinho e cuidado, até o momento em que não agüenta mais e explode também (talvez por reflexo da tensão crescente daquele dia). É interessante notar ainda o momento em que Prendergast fala para o capitão sobre a perda da menina, provocando o espanto de seu líder e evidenciando a falta de preocupação dele pela vida pessoal do funcionário, algo também comum nos dias de hoje. Mas este terrível trauma não tiraria a coragem dele. Determinado, o policial não descansaria enquanto não descobrisse o paradeiro do responsável por toda aquela confusão.

Depois de muitas tentativas frustradas de encontrar o “homem de gravata”, um simples outdoor pichado será a chave para que Prendergast se lembre de William e finalmente consiga encontrá-lo (num recurso interessante da narrativa, chamado “dica e recompensa”, que sempre agrada ao espectador). E após uma frustrada tentativa de reconciliação com a família, William se vê num verdadeiro duelo com Prendergast, que o leva a questionar espantado: “Eu sou o bandido? Como isto aconteceu?”. Só que infelizmente ele não teria tempo de descobrir como se transformou no vilão, e o duelo que segue culmina em sua morte, transformando-o em mais uma vítima do acelerado ritmo da vida moderna. O travelling final nos leva aos alegres vídeos de sua família, agora destruída, entre tantos outros fatores, por sua própria personalidade explosiva.

No transcurso de um dia, “Um Dia de Fúria” nos mostra os inúmeros problemas provocados pela vida moderna nas grandes cidades, através do drama enfrentado por seu personagem principal, alguém com tendência à violência e que encontrou, no acelerado ritmo contemporâneo, diversas situações capazes de provocar suas piores reações. Acertando ainda ao não justificar as ações de seu “vilão” com explicações mirabolantes, o longa deixa claro que, nas condições atuais, as chances de aparecer um maluco qualquer revoltado com o mundo a sua volta são consideravelmente maiores. E se levarmos em conta que o filme é de 1993, e que nossa vida ficou ainda mais estressante de lá pra cá, com certeza chagaremos a conclusão de que é bom abrirmos os olhos enquanto estamos parados no trânsito, pois qualquer pessoa em volta pode, de uma hora pra outra, resolver largar tudo pra trás.

Texto publicado em 11 de Maio de 2011 por Roberto Siqueira

20 comentários sobre “UM DIA DE FÚRIA (1993)

  1. ucastrobr 2 agosto, 2017 / 12:09 am

    Até a última ação do personagem do Michael Douglas foi boa. Em uma conclusão final, resignada, Foster reconhece que seu único valor reside em sua própria morte. Através de sua apólice de seguro de vida, ele pode oferecer a sua esposa e filho a viabilidade econômica que ele não poderia fornecer na vida. Ele não tem nada a oferecer, então ele se sacrifica forçando Prendergast a matá-lo.

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  2. Ana 2 julho, 2017 / 5:37 pm

    Pois é, “Um Dia de Fúria ” data de 1993, porém é mais atual do que nunca. Vivemos em epoca de stress, transtorno de ansiedade generalizada, etc., etc., culpa do ritmo de vida acelerado que o sistema impõe. É bem verdadeiro o filme, nada exagerado, apenas corajoso ao narrar em que pode ter consequencia a bagunça generalizada ( e enervante), em que vivemos.

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  3. Raimundo Gomes 21 abril, 2015 / 11:26 pm

    Ótima análise. Muito detalhista. Baseado na sua exposição, poderia resumir as cenas e alguns problemas urbanos em:

    1) Transito dos infernos: vida agitada, barulho, estresse;

    2) Bairro dos latinos: imigração, assalto, gangues;

    3) Loja do coreano e restaurante: preços abusivos, propaganda enganosa;

    4) Campo de golfe: pessoas insensíveis e arrogantes;

    5) Conserto de ruas sem necessidade: corrupção, desvios de verbas públicas;

    6) Loja de armas: preconceito, nazismo;

    7) Lotação em coletivo (não citado na análise): muito comum no Brasil, principalmente em São Paulo e Rio de Janeiro, falta de planejamento para atender o “inchaço urbano”;

    8) Mansão do cirurgião plástico: valorização da estética das pessoas.

    É um filme clássico de várias cenas clássicas.

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    • Roberto Siqueira 13 julho, 2015 / 9:45 pm

      Obrigado Raimundo.

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  4. Rauny Moreira 5 fevereiro, 2014 / 12:35 pm

    Esse filme é demais,a cena em que Michael Douglas entra em discussão no McDonalds por causa do tamanho do lanche é muito boa,o detalhe é que ao entrar e pedir o lanche era hora do almoço por alguns minutos,o gerente poderia “quebrar o galho dele”mas nem imaginava o dia que o personagem de Douglas passava,um abraço e saúde e sucesso para você e sua família

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  5. laranjamecanica6 5 fevereiro, 2014 / 12:39 am

    Você citou sobre a humanidade da personagem do Michael Douglas várias vezes. Interessante relatar. Muitas partes além da descrita por você: O soco que ele deu no homem dentro do carro que agrediu verbalmente uma velhinha no transito, afastando o menino da bazuca e a pergunta para o garoto da lanchonete se está gostando, a expressão de compreensão quando o cidadão vai preso pela viatura…
    O figurino dele vai se modificando como ele. Vai “entrando em guerra”.

    Bjus!

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  6. laranjamecanica6 5 fevereiro, 2014 / 12:20 am

    Excelente crítica e texto. Bem desenvolvido. Parabéns!

    Esse filme é muito perfeito, tudo se encaixa e é original demais.
    Bjus!

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  7. Felipe R. 7 setembro, 2012 / 10:14 pm

    ótima crítica e belíssimo filme.

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    • Roberto Siqueira 13 setembro, 2012 / 10:36 pm

      Obrigado Felipe.
      Abraço.

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  8. Guilherme Barreta 12 julho, 2012 / 2:13 pm

    é verdade , eu estava errado…
    eo me empolguei qndo ele disse “qndo foi que eo me tornei vilão ?”,axei demais essa fala…

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    • Roberto Siqueira 28 julho, 2012 / 3:48 pm

      Muito boa mesmo Guilherme.
      Abraço.

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  9. Guilherme Barreta 11 julho, 2012 / 1:14 am

    olá,gostei muito do seu blog e assim como vc tbm sou cinefilo.
    ficou mto bom essa sua análise acerca desse filme mas eo discordo em um ponto…
    ql foi o crime de Willian?Ele se utilizou de violência ,mas uma violência necessária ? gostaria mto de conversar com vc a respeito disso…

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    • Roberto Siqueira 11 julho, 2012 / 7:18 pm

      Olá Guilherme,
      Que bom que gostou do blog, fico muito feliz.
      Sobre o William, ele cometeu alguns crimes sim, ameaçou pessoas no McDonalds, se aproximou da mulher quando estava impedido pela lei, etc.
      Abraço.

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  10. francisco 18 fevereiro, 2012 / 5:04 pm

    Olá roberto, revi este filme logo após ter lido esse seu inteligente comentário o que me confirmou ser um dos melhores dramas urbanos ja feitos para o cinema, quase ao nível de um “taxi driver” pela sua profundidade psicológica e a ausência total de clichês. Observei também que o personagem de Duvall propõe um drama paralelo ao de d-fens, muito interessante. E como gosto de fazer citações e comparações, foi inevitável não lembrar do final muito parecido de “Ultimo Por do Sol” (1962) western dirigido por Robert Aldrich 30 anos antes de “Furia” , onde o pai de Michael, Kirk Douglas (seria mera conincidência?) duela com Rock Hudson utilizando uma arma descarregada (perdoe o spoiler, se você não viu ainda o filme). Um abraço e Obrigado.

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    • Roberto Siqueira 18 fevereiro, 2012 / 8:46 pm

      Olá Francisco, muito boa sua lembrança.
      E obrigado pelo elogio ao meu texto.
      Sem dúvida, “Um Dia de Fúria” é um filme marcante sobre a paranóia provocada pelo ambiente urbano, especialmente nas grandes metrópoles.
      Abraço.

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    • Roberto Siqueira 15 maio, 2011 / 9:21 pm

      Olá Tamara,
      Muito interessante o seu blog, gostei. Por favor envie um e-mail no cinemaedebate@hotmail.com para acertarmos a parceria.
      Abraço.

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