A IGUALDADE É BRANCA (1994)

(Trois Couleurs: Blanc)

 

Videoteca do Beto #98

Dirigido por Krzysztof Kieslowski.

Elenco: Zbigniew Zamachowski, Julie Delpy, Janusz Gajos, Jerzy Stuhr, Aleksander Bardini, Jerzy Trela, Jerzy Nowak, Cezary Harasimowicz, Michel Lisowski e Juliette Binoche.

Roteiro: Krzysztof Kieslowski e Krzysztof Piesiewicz.

Produção: Marin Karmitz.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Após associar a sensação de liberdade à perda no belo “A Liberdade é Azul”, Krzysztof Kieslowski resolveu abordar o segundo tema do lema da revolução francesa, através da história de um casal em separação, formado por uma jovem francesa e por um polonês. Mas, ao apostar numa narrativa mais leve e bem humorada, o diretor faz deste “A Igualdade é Branca” o filme mais fraco da trilogia, o que não significa dizer que o longa não tenha muitas qualidades.

O polonês Karol (Zbigniew Zamachowski) decide voltar à Polônia após se divorciar de sua esposa Dominique (Julie Delpy), com quem vivia em Paris. Apósvoltar à terra natal, Karol consegue ganhar muito dinheiro e decide se vingar da esposa de uma maneira bastante diferente e criativa.

Ao contrário do triste filme inicial da trilogia das cores, este “A Igualdade é Branca” apresenta uma história mais leve, apesar de também conter muitos momentos intimistas, que demonstram a dor de seu personagem principal, um homem completamente apaixonado por sua esposa, mas que não consegue consumar esta paixão sexualmente. Claramente investindo num tom mais cômico, o roteiro escrito pela dupla Krzysztof Kieslowski e Krzysztof Piesiewicz, responsável por toda a trilogia, aborda sutilmente a dificuldade que cidadãos estrangeiros enfrentam tanto em Paris como em Varsóvia (e na maioria das grandes cidades do mundo), como fica evidente na dificuldade tanto de Karol quanto de Dominique quando são interrogados fora de seu país. Quando Karol questiona se o fato de não falar francês é motivo para não ouvir seus argumentos, na realidade o longa está questionando onde está a igualdade pregada pelo lema da revolução francesa. A igualdade existe para aqueles que são iguais, não para os que são diferentes. Só que o lado crítico não tem grande destaque na narrativa, que pende mais para o bom humor que nos outros dois filmes, com muitos momentos de alivio cômico, como quando Karol diz para Mikolaj (Janusz Gajos) sobre sua esposa apontando para um prédio ao sair do metrô e Mikolaj pergunta se sua ex-esposa é “Brigitte Bardot”, por causa do cartaz de “O Desprezo” ao lado do apartamento dela. Além deste momento, podemos citar muitos outros em que o riso contido é inevitável no espectador, como quando Mikolaj diz que havia um amigo dentro da mala extraviada no aeroporto e quando Karol diz que está em casa, após apanhar muito dos homens que roubaram sua mala e o encontraram lá dentro.

Também fugindo um pouco do padrão estabelecido no longa anterior, Kieslowski apresenta uma direção convencional, com poucos movimentos de câmera estilizados, apresentando planos mais discretos e menos inspirados que nos outros dois filmes. Ainda assim, o longa inicia com um curioso plano subjetivo, que acompanha uma mala pelas esteiras de um aeroporto, intercalando com imagens do polonês Karol, que se dirige a um tribunal de Paris, onde será confirmado o seu divórcio, para sua tristeza e dor. Mas nem tudo é tão diferente em “A Igualdade é Branca” e novamente Kieslowski abusa de closes e planos mais fechados, que realçam as reações dos personagens e nos aproximam deles, além de novamente utilizar o close para destacar objetos, como um copo de vodka e uma lista telefônica. Também estão presentes os momentos que remetem aos outros filmes da trilogia, como a rápida aparição de Julie (Juliette Binoche) no tribunal e a velinha que tenta colocar uma garrafa de vidro no lixo, observada atentamente pelo triste Karol, que tinha acabado de se separar e ouvir o banco dizer que seu cartão de crédito expirou. Assim como Julie, ele não tinha forças para ajudar aquela senhora (o que não aconteceria com a protagonista do terceiro filme da trilogia), mas pelo menos Karol notou sua presença, algo que Julie não fez. Auxiliado pela montagem de Urszula Lesiak, o diretor procura manter o foco da narrativa na vida de Karol, deixando Dominique de lado na maior parte do tempo, mas faz questão de ressaltar a importância que ela ainda tem na vida dele através de pequenos momentos simbólicos, como quando Karol beija uma estátua, evidenciando sua solidão numa cena silenciosa e tocante. Aliás, o silêncio predomina grande parte da narrativa graças à ausência da trilha sonora de Zbigniew Preisner, que, por outro lado, sempre que aparece, procura ilustrar os sentimentos dos personagens, como quando embala os felizes amigos poloneses na neve, após a tocante cena em que um tiro de festim tirou a idéia de suicídio da cabeça de Mikolaj. Após o tiro de Karol, ambos estavam aliviados e prontos para seguir em frente, algo reforçado pela fotografia clara de Edward Klosinski, que destaca o branco através da neve. Aliás, mantendo o rigor estético da trilogia, a cor branca tem destaque na maior parte da narrativa, numa óbvia referência ao nome do filme (o que também contribui para o citado clima leve do longa). Ainda assim, Klosinski sabe variar do tom leve para momentos sombrios, como quando Karol caminha sozinho na beira de um rio após chegar à Polônia ou quando ele compra um cadáver para simular a própria morte. E curiosamente, ainda que priorize a cor branca, o visual pouco colorido e os figurinos tristes e sem vida, que normalmente usam cores escuras, mantém uma atmosfera melancólica sob aquela superfície bem humorada, que ilustra bem o personagem principal, feliz e bem sucedido em sua volta à Polônia, mas ainda sofrendo por sua amada esposa.

Interpretada pela bela Julie Delpy, Dominique é a mulher responsável por todo este sofrimento de Karol, que só acontece porque, após o casamento, ele não consegue consumar a relação sexualmente, fazendo com que a jovem exija a separação. Após conseguir o divórcio na justiça, ela se vê livre para buscar outra pessoa, mas ainda tem um último encontro com Karol quando volta pra casa, numa tentativa desesperada daquele homem de manter a mulher que ama – o que não acontece porque ele novamente não consegue transar com ela. Demonstrando bem o quanto Dominique ainda deseja Karol através de seu olhar, sofrendo por não tê-lo como gostaria, Delpy mistura este olhar fatal com um ar de crueldade, evidenciando que ela certamente ama Karol, mas não se conforma com a falta de sexo e por isso decide deixá-lo. Esta crueldade vem à tona quando Dominique geme enquanto conversa com o ex-marido por telefone, deixando clara a razão pela qual o deixou pra trás. Triste e deprimido, Karol acaba pedindo esmola no metrô de Paris e, ironicamente, esta atitude mudaria novamente o seu destino e o de sua mulher, pois será ali que ele conhecerá o amigo Mikolaj. Após retornar à Polônia, Karol decide recomeçar a vida e, mostrando esperteza para lidar com o mundo dos negócios, acaba comprando um terreno antes dos interessados e revendendo por um valor dez vezes maior (“Só preciso de dinheiro”, responde ao ser acusado de ser desonesto), o que lhe permite abrir uma empresa e convidar o amigo Mikolaj, cedendo 30% do negócio pra ele. Momentos antes, ele havia acabado de salvar o amigo, que estava decidido a suicidar-se e desiste da idéia após um disparo com bala de festim, numa bela cena, conduzida em câmera lenta e sem trilha sonora por Kieslowski, que, desta forma, mantém uma atmosfera fria e realista e evita o melodrama. Aliás, a amizade entre Karol e Mikolaj é vital para o sucesso da narrativa é a dupla Zbigniew Zamachowski e Janusz Gajos se sai muito bem na tarefa. Aqueles dois homens sofrem por razões diferentes, e encontram nesta amizade uma força extra para sobreviver (“Todos nós sofremos”, diz Karol, e Mikolaj responde: “Eu sei, mas quero sofrer menos”).

Só que mesmo bem sucedido, Karol ainda pensa em Dominique e sofre por ela, como atesta o momento em que liga somente para escutar sua voz – e Zamachowski demonstra bem a emoção do personagem neste momento, especialmente quando ela desliga e o deixa novamente sozinho. Sem alternativa e desesperado para chamar a atenção dela, Karol decide simular a própria morte e deixar toda sua herança para Dominique, num momento de puro humor negro que novamente atesta o tom leve de “A Igualdade é Branca”. Para isto, conta com a ajuda de Mikolaj, que retribui a ajuda de Karol na hora de sua “morte” (repare que ambos colaboram com a suposta morte do outro, mas nos dois casos eles continuam vivos). Mas quando Karol observa a tristeza de Dominique no enterro, ao invés de se sentir bem (como provavelmente imaginou que aconteceria) ele fica triste, ao constatar que ela realmente o amava e não veio apenas por causa da herança. Por isso, decide aparecer para ela no quarto, provocando um susto enorme na moça, numa cena em que vale destacar a reação verossímil de Delpy ao vê-lo, bastante assustada e confusa com o que está acontecendo. Após o susto, eles se beijam e finalmente fazem amor, num momento em que as sombras tomam conta da tela, chegando a escurecê-la completamente, mas ficando totalmente clara quando Dominique chega ao tão sonhado orgasmo, somente para voltar à escuridãoem seguida. Umplano então destaca as mãos dadas do casal, indicando uma volta da relação que não acontece, porque Karol ainda tinha o desejo de vingança dentro dele. Após o sexo, Dominique dorme em lençóis vermelhos que simbolizam a volta da paixão, mas Karol já havia sumido e armado a prisão da ex-mulher, agora suspeita de participar de sua “morte”, consumando sua vingança (que teve um sabor ainda mais especial porque ela confessou ao amigo Mikolaj que o ama no telefone).

Quando a polícia invade o quarto e prende Dominique por suspeitar de sua participação no “assassinato” do marido, temos também a chave para compreender o tema de “A Igualdade é Branca”. Assim como no julgamento de Karol em Paris, o idioma é uma barreira para Dominique, que escuta as palavras do policial em polonês e é obrigada a aguardar a tradução para o francês, numa situação inversa ao julgamento que determinou a separação do casal. Também sendo discriminada fora de sua terra natal, ela é condenada e vai para a prisão, onde é visitada por Karol a distancia. Só que ao vê-la gesticulando, dizendo que não vai fugir e vai ficar na Polônia com ele, Karol se emociona, comprovando que ainda a ama, assim como ela também o ama. Após a vingança, eles estavam “quites”, estavam “iguais” e livres novamente para amar.

Ligeiramente mais leve que os outros dois filmes da trilogia das cores, “A Igualdade é Branca” mantém as melhores características do cinema de Kieslowski, ao contar com sensibilidade a história de um casal que se ama de verdade, mas que não consegue consumar este amor por diversas situações inusitadas. Novamente, o acaso interfere na vida dos personagens, as imagens falam mais do que as palavras e as sensações transmitidas ao espectador valem mais do que qualquer outra coisa. Novamente, o diretor questiona um dos lemas da revolução francesa, mas não de maneira ácida, preferindo uma forma mais delicada e singela, em outro filme repleto de simbolismos que abre muitas possibilidades de interpretação. E novamente, é o espectador quem sai ganhando. Se Dominique e Karol agora estavam iguais, certamente os cinéfilos têm uma enorme dívida com o grande diretor polonês.

Texto publicado em 26 de Junho de 2011 por Roberto Siqueira

9 comentários sobre “A IGUALDADE É BRANCA (1994)

  1. Anônimo 5 agosto, 2015 / 12:54 am

    Fenomenal tua crítica

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    • Roberto Siqueira 5 agosto, 2015 / 12:57 am

      Muito obrigado.

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  2. Claiton Brezolin 31 janeiro, 2012 / 12:45 am

    Não consegui ver o primeiro filme, portanto não posso disser fielmente se esse é mais fraco ou não, mas particularmente achei o filme sensacional, irônico e cheio de questionamentos, achei uma trama muito interessante e inteligente, preciso ver o primeiro e o terceiro para ter uma visão mais ampla.

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    • Roberto Siqueira 11 fevereiro, 2012 / 10:43 am

      Olá Claiton,
      Independente de ser ou não o mais fraco, este certamente é um ótimo filme. Recomendo que assista toda a trilogia, vale a pena.
      Um abraço e obrigado pelo comentário.

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  3. Anônimo 2 janeiro, 2012 / 2:53 am

    há também referencias aos outros dois filmes quando Karol sai do tribunal, percebe-se que há uma van saindo quando ele está na porta do tribunal, mas depois ela estaciona próxima á passagem; Em sua saída do tribunal há um close em uma van azul, o carro de sua ex-esposa, que é branco, e mais uma van vermelha, que estão estacionadas de acordo com a sequencia das cores da bandeira francesa, não acredito que seja o mais fraco da trilogia, mas sim o menos melancólico em alguns sentidos, a Igualdade é Branca é a demonstração de incompreensão entre os homens, e ao contrário das sinopses encontradas na internet, que dizem que Karol faz vingança à sua mulher, ele é a única personagem do filme que faz â busca da compreensão mesmo que ela não tenha nexo, eis o motivo de perguntar o por que que Mikolaj quer sua morte, o por que que sua mulher quer o divórcio e o por que da desigualdade entre os homens em um tribunal, pelo simples fato de serem de nacionalidades diferentes. O final do filme, ao meu parecer, demonstra que as lágrimas de Karol é a compreensão do incompreensível, de algo subjetivo criado pelos homens, que é o amor.

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    • Roberto Siqueira 8 janeiro, 2012 / 9:04 pm

      Bem interessante sua interpretação.
      Obrigado pelo comentário e um grande abraço.

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    • Erick Costa 6 julho, 2014 / 8:29 am

      Com essa análise o filme ficou muito mais rico. Obrigado!

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    • Anônimo 18 abril, 2015 / 7:34 pm

      Genial…

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