DOUTOR JIVAGO (1965)

(Doctor Zhivago)

4 Estrelas 

Videoteca do Beto #156

Dirigido por David Lean.

Elenco: Omar Sharif, Julie Christie, Alec Guinness, Geraldine Chaplin, Rod Steiger, Tom Courtenay, Siobhan McKenna e Ralph Richardson.

Roteiro: Robert Bolt, baseado em romance de Boris Pasternak.

Produção: Carlo Ponti.

Doutor Jivago[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Especialista na arte de conduzir narrativas grandiosas e dono de um talento ímpar na composição de planos memoráveis, David Lean notabilizou-se por dirigir grandes épicos que, mesmo com longas durações, jamais pareciam capazes de entediar o espectador. Infelizmente, este não é o caso de “Doutor Jivago”. Ainda que exiba a abordagem clássica do diretor e conte com inúmeras sequências plasticamente encantadoras, o longa apresenta um desgaste provocado por excessos que resultam num filme visualmente belíssimo, mas cansativo.

Ambientado antes e durante a Revolução Bolchevique na Rússia, o roteiro escrito por Robert Bolt com base em romance de Boris Pasternak nos apresenta a história do “Doutor Jivago” do título (Omar Sharif) através de um longo flashback narrado pelo irmão dele, o general Yevgraf Zhivago (Alec Guinness), que tenta descobrir se a jovem Anna (Siobhan McKenna) é a filha desaparecida de seu irmão e da bela Lara Antipova (Julie Christie), mulher por quem o doutor se apaixonou durante a guerra, mesmo sendo casado com Tonya Gromeko (Geraldine Chaplin) e ela sendo a esposa de Pasha Strelnikoff (Tom Courtenay), um dos homens importantes da Revolução.

Investindo na pretensiosa missão de contar uma marcante história de amor e narrar em detalhes como ocorreu a Revolução Bolchevique, Lean nos transporta do presente para o passado através da misteriosa conversa inicial entre o general Yevgraf e a jovem Anna, nos apresentando lentamente aos personagens centrais da narrativa: o doutor Yuri Zhivago e Lara. A partir daí, compreendemos a origem sofrida do protagonista e a juventude difícil da garota que supostamente será seu par romântico, mas a evolução do romance não acontece da forma como imaginamos. Sofrendo com o assédio do homem que ajudou a criá-la, Lara evidencia muito cedo que está longe de ser apenas uma mocinha indefesa, mostrando-se forte o bastante para enfrentar os tempos de guerra. Sendo assim, a presença imponente de Julie Christie revela-se vital para o sucesso da personagem e, por contraste, ratifica o quanto Omar Sharif parece desinteressado em alguns instantes, empalidecendo diante da presença da atriz.

Misteriosa conversaOrigem sofridaLonge de ser apenas uma mocinha indefesaAinda assim, o ator consegue demonstrar o dilema do médico quando a paixão por Lara ganha força, o que só ocorre após Lean investir grande parte da narrativa nos acontecimentos que levaram a Revolução a estourar no país. Mais do que dividido entre duas mulheres, Jivago se torna um homem dividido entre duas famílias – como fica claro quando a filha de Lara questiona se ele não acompanha o filho na escola – e o ator ilustra este sofrimento muito bem com seu olhar distante e pensativo. Aliás, o destino trágico daquela atração é indicado desde quando Jivago corteja Lara pela primeira vez com seu rosto encoberto pelas sombras, num dos inúmeros instantes em que Lean abusa de simbolismos elegantes que só enriquecem a narrativa. Observe, por exemplo, como quando ela vai embora após passar um longo tempo como ajudante dele, as flores murcham e indicam seu sentimento de perda – e Lean encerra a cena com um plano que destaca justamente o vaso, já que serão justamente as flores que simbolizarão o renascimento de sua paixão futuramente.

Homem dividido entre duas famíliasRosto encoberto pelas sombrasO vasoDa mesma forma, repare como ele se lembra de Lara ao ver a esposa passando roupa, já que foi justamente quando ela passava roupa que ele tentou beijá-la. Em seguida, as flores surgem em seu quintal e confirmam que ele voltou a se interessar por ela. Após consumar a traição, Lean evita mostrar Jivago, preferindo sugerir o sexo ao compor um plano em que precisamos nos esforçar para encontrar o casal deitado do lado esquerdo da tela, como se evitasse mostrar o resultado daquele ato. E serão novamente as flores ao redor da casa que atormentarão Jivago após um beijo de Tonya e farão com que ele decida dizer a Lara que nunca mais quer vê-la.

Esposa passando roupaEla passava roupaFlores surgem em seu quintalConduzindo “Doutor Jivago” com sua costumeira abordagem contemplativa e elegante, Lean abusa da criação de planos belíssimos, auxiliado pela direção de fotografia de Freddie Young, que oscila entre os tons sombrios e as cenas noturnas que predominam boa parte do primeiro e do segundo ato e as sequências branquíssimas que realçam a beleza da gélida Rússia. Repare, por exemplo, como quando Viktor Komarovsky (Rod Steiger) corteja Lara num jantar, o jogo de luz e sombras, as cortinas roxas e o vestido vermelho da garota criam uma atmosfera pesada e sugerem a natureza pecaminosa do ato. Além disso, o diretor acerta nas cenas mais importantes, como o estupro de Lara e a sua violenta vingança. E fugindo um pouco do classicismo, Lean investe até mesmo em virtuosismos interessantes, como quando a câmera acompanha do lado de fora das janelas o desespero de Viktor ao encontrar a mãe de Lara doente na cama até o instante em que ele sai da casa e entrega o bilhete ao mensageiro. Da mesma forma, ele evita mostrar o corpo nu dela na cama até o último instante no atendimento médico, mantendo um suspense sobre o estado em que ela se encontrava. E finalmente, o diretor faz outro movimento marcante quando a câmera sai de Lara, passa por uma vela, atravessa a janela e mostra Jivago passando na rua, indicando a conexão entre eles.

Sequências branquíssimasNatureza pecaminosa do atoDesespero de ViktorMais uma vez confirmando seu talento para comandar centenas de figurantes, Lean cria sequências memoráveis nas cenas que envolvem numerosos exércitos se movimentando pelos gelados terrenos russos, como na volta dos desertores para casa, em que eles encontram outros soldados pelo caminho e assassinam seus líderes, que marca também o reencontro entre Lara e Jivago. E ainda entre os muitos méritos de sua direção, destaca-se a forma sutil com que ele transmite inúmeras sensações sem necessitar de palavras, como quando a expressão no rosto de Jivago indica a intensidade de um massacre.

Volta dos desertoresReencontro entre Lara e JivagoIntensidade de um massacreEste ambiente político opressor é evidente em “Doutor Jivago” e, ironicamente, acaba ganhando tanto espaço na narrativa que chega a deixar o romance em segundo plano. “Homens felizes não se voluntariam”, afirma um personagem em certo momento, e de fato aquelas pessoas raramente parecem felizes naquele cenário. Entretanto, para ambientar o espectador à Moscou do início do século, Lean conta com mais do que o ambiente político, apoiando-se no excelente design de produção de John Box e nos figurinos de Phyllis Dalton, que recriam os uniformes dos soldados e os vestidos das mulheres, caprichando nas casas e ruas que reconstituem Moscou (o longa foi filmado na Espanha, Finlândia e Canadá) e terminando com objetos menores como os talheres que decoram o suntuoso jantar da alta classe que acontece simultaneamente ao protesto pacífico na rua, onde as vestimentas também surgem impecáveis. E se nos sentimos na Rússia ao ver as ruas cobertas de neve, praticamente podemos sentir o incômodo dos personagens e o frio do rigoroso inverno russo durante uma longa viagem de trem para o interior.

Casas e ruas que reconstituem MoscouSuntuoso jantarFrio do rigoroso inverno russoAliás, o clima tem importante função narrativa, indicando a passagem do tempo em diversos momentos de maneira elegante, como quando a casa amanhece coberta de neve no interior da Rússia, revelando o bom trabalho do montador Norman Savage, que cobre vários anos sem jamais tornar a narrativa episódica. Por outro lado, montador e diretor falham ao estender demais algumas subtramas (especialmente envolvendo a revolução), tirando o foco da linha narrativa mais atraente, que é a relação entre Jivago, Tonya e Lara, e tornando o ritmo de “Doutor Jivago” arrastado demais a partir do segundo ato. Mesmo um verdadeiro mestre na condução de filmes contemplativos como David Lean é capaz de perder a mão.

Quem também merece destaque na parte técnica de “Doutor Jivago” é o excepcional design de som. Observe, por exemplo, como o barulho das batidas nos pregos e da terra sendo jogada no caixão é potencializado no enterro da mãe de Yuri, realçando o impacto dramático daquele momento na vida do garoto. Além disso, o som também tem importante função narrativa em outros instantes, como quando o aumento do volume indica a chegada dos manifestantes ao local onde se encontra a polícia russa. Da mesma forma, é através do som e não das imagens que sabemos de antemão que Lara atirou em Viktor na festa, graças à maneira como Lean conduz a sequência e nos prepara para o ataque dela. Já a trilha sonora composta pelo ótimo Maurice Jarre torna-se um pouco repetitiva ao longo das mais de três horas de duração e acaba perdendo o impacto em certos momentos, mas ainda assim confirma-se como um dos pontos altos de “Doutor Jivago” graças à linda melodia do tema de Lara, imortalizada ao longo dos anos.

Casa amanhece coberta de neveTerra sendo jogada no caixãoLara atirou em ViktorAbordando o nascimento do comunismo de maneira maniqueísta, “Doutor Jivago” também se perde em sua conotação política tendenciosa, mostrando os comunistas como meros selvagens sem coração que destroem vilas e assassinam mulheres e crianças pelo “bem maior”. Assim, acompanhamos pessoas invadindo a casa de Jivago para tomar seus objetos pessoais, sua família sendo obrigada a amontoar-se num cômodo da própria casa e seus filhos passando fome, num retrato cruel daquele momento histórico e que talvez tenha uma dose considerável de exagero. E um último pecado cometido por David Lean é justamente não aproveitar melhor o talento de seu costumeiro colaborador Alec Guinness, que, além de participar pouco da narrativa, ainda é responsável pela desnecessária narração nas memórias de seu reencontro com o irmão, em que o voice-over apenas substitui as falas de seu próprio personagem.

Meros selvagens que destroem vilasPessoas invadindo a casa de JivagoMemórias de seu reencontro com o irmãoMesmo após acompanharmos horas de belas imagens e uma história interessante, a sensação que fica ao final de “Doutor Jivago” é que Lean perdeu um pouco o foco e estendeu demais à narrativa. Ainda assim, o resultado foi bom o bastante para arrastar uma legião de fãs ao longo dos anos. Afinal, um filme de David Lean com problemas ainda é melhor do que a maioria dos filmes voltados para o grande público que vemos por aí.

Doutor Jivago foto 2Texto publicado em 28 de Janeiro de 2013 por Roberto Siqueira

13 comentários sobre “DOUTOR JIVAGO (1965)

  1. Marcos Jorge Braga Medina 1 janeiro, 2018 / 9:59 pm

    Assisti o filme quando tinha 15 anos em 1965. Chorei pois a estória e muito bonita e triste. Gostei muito do filme. Me comovi muito. Um dos melhores filme que já assisti. Muito bom.!!!

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  2. JOAO CARLOS JANUARIO 18 fevereiro, 2017 / 4:16 pm

    Devia ter uns 12 anos quando assisti o filme pela primeira vez. E, nessa idade ainda não tinha senso crítico, mas me marcou pela grandiosidade da obra, pelas cenas. Somente depois, já com senso crítico, que percebi quão grandioso é o filme, pena que acaba daquela maneira. Creio que a grandiosidade da obra, supera em muito alguns pequenos defeitos. Com certeza, ficará entre as grandes obras do cinema.

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  3. Davi Cardoso 29 novembro, 2015 / 3:21 am

    Tinha 9 anos quando vi este filme. Não sabia dessas putarias de Revolução, traição, loironas etc, então foi um filme que me marcou. Sem falar na neve e o tons de vermelho que mesmo com 9 anos já me impressionavam.
    Em fim… tenho um carinho muito grande por está obra vista por mim mais de quatro vezes.
    AMO DR JIVAGO (o filme pois o personagem é um cuzao)

    Trate de aumentar as estrelas para está película amigo. Quatro é muito pouco.
    Flw

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  4. ODILON DA SILVA ROCHA 19 julho, 2015 / 2:46 pm

    Num estojo de 3 fitas de video…lançado em 1995, tem um documentário de 60 minutos em que Omar Sharif diz que o diretor pediu que ele “não atuasse”, praticamente. Que a reação dele,
    como poeta, seria mostrada pelo olhar, ele reagindo aos demais
    atores. Por isso pareceu que ele está ‘apático” no papel. Este
    documentário tem legendas em português. Saiu na edição do DVD
    mas com legendas apenas em espanhol. No blu-ray não tem
    este documentário…”Doutor Jivago” ficou meses e meses em
    cartaz no cine METRO, em São Paulo em 1966-1967, antes de ir
    para outras salas. Fez imenso sucesso de público. Não é meu
    filme favorito, mas certamente está entre os maiores épicos do
    cinema.

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    • Roberto Siqueira 26 julho, 2015 / 6:37 pm

      Obrigado pelo comentário Odilon.

      Abraço.

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  5. Alexandre Figueiredo 13 março, 2015 / 5:51 pm

    Belas imagens, porém um pouco cansativo.

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  6. Francisco 8 setembro, 2014 / 11:32 pm

    Caro Roberto, mais uma excepcional resenha, mesmo que eu não concorde que o roteiro é maniqueísta, uma vez que quando se trata de Rússia revolucionária tudo é um tanto complexo e misterioso, mas talvez me falte conhecimento político e histórico para poder discutir esta questão e nem quero mesmo. O importante é a obra em si, que mesmo não estando a altura de A Ponte de Rio Kwai e Lawrence da Arábia ainda é cinema de David Lean e seu maior sucesso de público (na década de 60 só perdeu em bilheteria para A Noviça Rebelde,) graças ao fascínio que a história despertou no público feminino. Eu também confesso que levei muitos anos pra ‘começar’ a gostar de Doutor Jivago (vi a primeira vez em 1970) mas hoje à cada vez que o revisito, vai aumentando minha paixão por esta belíssima e simples história sôbre o gênero humano, tanto que não consigo ver as falhas que você citou e nem quero pensar sôbre elas, mas acredito que existam sim (rrss), infelizmente. Grande abraço e obrigado pela oportunidade!

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  7. Aurélio Medeiros 6 agosto, 2014 / 9:40 pm

    David Lean, será sempre, David Lean. Eu não seria uma apaixonado por cinema, se não tivesse assistido aos nove anos (1964) ao “Lawrence da Arábia”. Interessante, é que, os filmes dele que menos agradou aos críticos, são os que eu mais gostei. ex. ” A filha de Ryan”. Aurélio Medeiros, Pernambuco, Recife.

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  8. leninha 13 julho, 2014 / 12:11 am

    Gostaria de rever este filme que pra mim foi o máximo .

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  9. Janerson 31 janeiro, 2013 / 7:29 pm

    Olá, Roberto. Sua frase final é um primor. Para mim Dr. Jivago é um ótimo filme que tem a Revolução Russa em seu cenário mas que pecou num único detalhe: se tornou um pouco extenso em alguns assuntos relacionados a ela. De qualquer modo, vale assistir esse filmão.
    Grande abraço.

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    • Roberto Siqueira 3 fevereiro, 2013 / 8:08 am

      Obrigado pelo elogio e pelo comentário Janerson.
      Abraço.

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    • Roberto Siqueira 3 fevereiro, 2013 / 7:54 am

      Apesar dos problemas, a direção do Lean sempre é capaz de nos brincar com belas imagens.
      Abraço.

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