PERDIDOS NA NOITE (1969)

(Midnight Cowboy)

 

Filmes em Geral #25

Vencedores do Oscar #1969

Dirigido por John Schlesinger.

Elenco: Dustin Hoffman, Jon Voight, Sylvia Miles, John McGiver, Brenda Vaccaro, Barnard Hughes, Ruth White, Jennifer Salt, Gary Owes e T. Tom Marlow.

Roteiro: Waldo Salt, baseado em livro de James Leo Herlihy.

Produção: Jerome Hellman.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Primeiro filme da chamada “nova Hollywood” a vencer o Oscar de melhor filme, “Perdidos na Noite” é um bom (não o melhor) representante do movimento, que mostra de maneira realista a dificuldade de adaptação de um jovem interiorano ao clima hostil e agitado da cidade grande. Dirigido por John Schlesinger, o longa estrelado por Jon Voight traz ainda em seu elenco a grande estrela da época, o talentoso Dustin Hoffman, se afirmando como um dos filmes icônicos daquele celebrado período.

Jovem texano inocente e caipira, Joe Buck (Jon Voight) larga o emprego e parte, com seu estilo cowboy, para tentar ganhar a vida na cidade de Nova York, trabalhando como garoto de programa de mulheres mais velhas e ricas. Ao chegar ao local, faz amizade com um marginal plenamente adaptado à cidade chamado Ratso Rizzo (Dustin Hoffman) e descobre o lado nada hospitaleiro e cruel da vida nas grandes metrópoles.

Escrito por Waldo Salt, baseado em livro de James Leo Herlihy, o roteiro de “Perdidos na Noite” acerta o tom ao mostrar, sem floreios e exageros, a dificuldade de se adaptar à cidade grande, um sentimento comum à maioria das pessoas que não nasceram nestes locais. Somente quem já viveu a sensação de chegar a uma cidade grande pela primeira vez sabe como é, ao mesmo tempo, empolgante e assustador. A ousadia temática da narrativa (jovem larga o interior para ser garoto de programa em Nova York) era uma das características da chamada “nova Hollywood” e o longa de Schlesinger não foge a regra. Mas apesar do tema sombrio, existe espaço para pequenos alívios cômicos, como na cena em que Rasto finge ser engraxate (repare como a posição da câmera colabora sutilmente, mostrando a chegada dos sapatos do terceiro homem e provocando o riso no espectador). O filme aborda o tema do choque cultural já na viagem até Nova York, quando Joe tenta puxar assunto no ônibus com o motorista e com uma moça e ambos não correspondem. Até mesmo a luz do ônibus que lhe incomoda ele não pode apagar, pois a senhora sentada ao seu lado não deixa. A viagem é nostálgica, repleta de flashbacks que lembram a todo instante tudo que ele está deixando pra trás (a avó, a casa em que cresceu, a namorada), e é pontuada pela trilha sonora deliciosa de John Barry (um country, condizente com à história do cowboy que sai da cidade pequena e parte para a cidade grande). Esta trilha inicialmente alegre faz um contraponto interessante com o tom melancólico da chegada à Miami, combinando perfeitamente com o sentimento de Joe, já completamente transformado pela vida.

Na direção, Schlesinger mostra criatividade, por exemplo, na cena em que ilustra a primeira relação sexual de Joe através da velocidade na troca de canais e da imagem das moedas na televisão, revelando também o bom trabalho de montagem de Hugh A. Robertson. A montagem de Robertson, aliás, também demonstra como a infância tem peso na fase adulta de Joe, intercalando imagens dele ainda criança com imagens atuais enquanto assiste televisão, além de auxiliar na indicação da passagem do tempo com elegância, por exemplo, inserindo um plano com água congelada numa torneira que simboliza a chegada do inverno. Já quando Joe e Ratso são expulsos do hotel, Schlesinger utiliza a câmera para demonstrar a tristeza de ambos, diminuindo-os na tela e mostrando como eles estão impotentes diante daquela situação. Ainda na parte técnica, a direção de fotografia de Adam Holender progressivamente muda do tom claro e alegre do início para o obscuro e sombrio visual que domina a tela na metade da projeção, refletindo a mudança no estado de espírito de Joe – repare que até mesmo as cenas noturnas passam a dominar o longa na medida em que a narrativa avança. Além disso, a fotografia demonstra o sentimento de Joe, por exemplo, na cena em que ele sai desesperado à procura de Ratso, com imagens em preto e branco embaladas pela trilha sonora alucinada, ou em seu pesadelo, repleto de imagens surreais, ilustrando o quanto ele está atormentado naquele ambiente. Já quando os dois se imaginam na praia, as cores quentes e a forte luz do sol refletem a alegria daquele pensamento (e neste momento, vale destacar o sorriso sutil, no canto da boca, do ótimo Dustin Hoffman). Vale destacar ainda a típica festa dos anos 60 que determina o destino de Ratso e Joe, repleta de imagens surreais, alucinações e pessoas de estilos diferentes. E aqui novamente a fotografia é importante, pois no momento em que eles conversam com uma determinada mulher, o predomínio do tom vermelho indica o destino infernal da dupla. Em seguida, Ratso sofreria uma queda violenta na escada e Joe teria dificuldades numa relação sexual, o que para um “garoto de programa” pode ser considerado algo grave. Finalmente, também merece destaque a maquiagem em Hoffman, que reflete através de sua sujeira o quanto Ratso foi maltratado pela vida.

Ratso, aliás, que é a síntese da dificuldade que muitos encontram para sobreviver nas grandes cidades. Interpretado de maneira brilhante por Hoffman, o personagem literalmente rasteja por Nova York, sugando tudo que está ao seu alcance para conseguir sobreviver. Hoffman confirma o grande ator que é numa atuação convincente, compondo detalhadamente o personagem, através da voz anasalada, da fala rápida, da forma de caminhar, que progressivamente se torna mais lenta devido à evolução de sua doença, misturando a tosse que lhe castiga com o sorriso de quem já se adaptou a realidade daquela vida. Ratso, com o perdão do trocadilho, é um verdadeiro rato de cidade grande, que não tem vergonha de fazer tudo que pode para sobreviver, chegando a roubar e enganar outras pessoas. E até mesmo seu apartamento no hotel demonstra o estado em que ele sobrevive naquele mundo, mostrando-se um local sujo e escuro, que freqüentemente o esconde sob as sombras. Não por acaso, suas cenas são predominantemente obscuras e as ruas que percorre são sujas e feias, o que reflete a vida difícil que ele leva e reforça o bom trabalho de direção de arte e fotografia. Pra completar, sua atuação ainda tem a célebre frase “Estou andando aqui!”, quando Ratso atravessa uma rua e quase é atropelado, que marcou o cinema para sempre. Já Joe Buck é o típico jovem do interior. Joe chega à cidade de peito aberto, destemido, caçando mulheres como um verdadeiro predador, achando que as oportunidades aparecerão facilmente, algo ilustrado também pela câmera de Schlesinger, que filma Joe em ângulo baixo, refletindo seu sentimento de grandeza em sua chegada. Mas o tempo mostrará que a vida nas grandes cidades não é tão acolhedora assim, como ele pode perceber logo em seus primeiros minutos em Nova York, vendo um homem caído e as pessoas, arredias, seguindo seu caminho, sem sequer dar atenção ao pobre coitado. John Voight compõe o personagem de maneira durona, algo coerente com sua origem, e vive seu grande momento na bela cena em que Joe e Ratso gargalham no ônibus a caminho de Miami. Quando Joe chega ao fundo do poço, se relacionando com um homem por dinheiro (o que lhe traz a imediata lembrança da namorada que ele deixou pra trás em busca da vida na cidade grande), o ator convence ao transmitir com exatidão a aflição do personagem. E existe ainda um momento sutil, porém marcante, que demonstra quando ele começa a perceber que nem todos têm oportunidade naquela terra, quando Joe, assustado, contempla a imagem de mendigos e prostitutas vagando pelas ruas de Nova York.

“Perdidos na Noite” representa bem a nova forma de se fazer cinema que tomou conta de Hollywood no final dos anos 60, ousando tematicamente e quebrando as regras convencionais do cinema norte-americano até então. O plano final, com Ratso morto no vidro ao lado do assustado Joe, enquanto este olha para as praias de Miami, demonstra bem a mensagem principal do filme. A vida na cidade grande não é um mar de rosas.

Texto publicado em 11 de Novembro de 2010 por Roberto Siqueira

10 comentários sobre “PERDIDOS NA NOITE (1969)

  1. Rosa Maria Cerri 10 outubro, 2017 / 10:07 am

    Filme maravilhoso, trilha sonora belissima , Dustin Hoffmam/ Jon Voight, interpretaçao fantastica ,analise desse filme ! foi ESPETACULAR”, PARABENS

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  2. Luisinho 29 julho, 2017 / 4:07 pm

    Grandioso filme e grande interpretação de Hoffman como “ratzo”, o rato de Nova York, assim devia ser o título em português. Esse filme é a antítese do chamado “Sonho Americano” que todo mundo ouve. Uma falácia! Na realidade a grande maioria que segue para a Big Apple sofre isso que Ratzo é doutor para transpor, mas não chega nem perto da realização de um sonho, está mais para um “Pesadelo Americano”. Joe, muito bem interpretado também, é um meninão que não sabe diferenciar um traveco de uma verdadeira mulher. No seu primeiro encontro de “garoto de programa” ele é quem paga a “cliente”, uma clara prostituta enganadora. Talvez essa inocência de Joe tenha tocado o coração do Ratzo que oferece a ele o que tem de melhor, sua moradia ou sua “toca”. O filme mostra a sangrenta sobrevivência do mais apto, Joe acaba aprendendo isso quando tem que matar para roubar e viver, enquanto Ratzo se mostra enfraquecendo aos poucos, até ser derrotado no final, falecendo antes mesmo de realizar o seu grande sonho de ir à quente e gloriosa Flórida. Filmaço, sem dúvida. Uma realidade sofrida e bem apresentada na tela.

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  3. eliasclira 10 junho, 2016 / 12:54 pm

    Vale destacar além da atuação maravilhosa da dupla, a trilha sonora belíssima!

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  4. ronaldo 10 fevereiro, 2015 / 10:11 pm

    Esse filme é grandioso, eu considero que isto é cinema, existe uma história e ela é contada belamente durante cerca de 2 horas.
    Quando a gente vê o Ratso pela primeira vez acha que ele é um grande golpista, mas depois ficamos comovidos com a extrema pobreza que ele vive, lutando todo dia para sobreviver. Quando a gente revê o filme percebe como o apartamento imundo dele é decorado com pôsteres da Flórida, sua Meca sagrada onde o sol brilha o ano todo e todos são felizes.
    E depois é comovente o Joe tendo que se rebaixar e fazer o que mais ele odeia para poder cuidar do Ratso doente.
    A cena do cemitério também é tocante, enfim é um grande filme, não é a toa que é lembrado até hoje.

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    • Roberto Siqueira 11 fevereiro, 2015 / 1:11 pm

      É verdade Ronaldo, trata-se de um grande filme.
      Parabéns pela observação quanto à decoração do apartamento dele.
      Abraço.

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  5. Janerson 24 junho, 2012 / 4:00 pm

    Olá, Roberto. Um filme que significou muito para mim. A busca pela (nem sempre fácil) sobrevivência na cidade grande. A amizade ou simples troca entre pessoas para atingir esse objetivo (no caso a beleza e imponência física de Joe Buck e a malandragem e vivência de Ratso e fica a pergunta: quem usou quem?) e a dura realidade do dia seguinte ao se depararem com a realidade: a busca por novos clientes, a doença de Ratso, e um plano vago de recomeço de vida, vislumbrando um futuro mais digno: “acho que não dou certo para essa coisa de michê” o que certamente ocorreria com a morte do pobre Enrico Salvatore Rizzo e uma certeza indelével. Na selva das cidades de pedra, somente os predadores mais fortes sobrevivem.

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    • Roberto Siqueira 10 julho, 2012 / 9:52 pm

      Que belo comentário sobre este belo filme Janerson. Parabéns!
      Abraço.

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  6. francisco 3 agosto, 2011 / 12:52 am

    Gostei muito desta análise, prezado Roberto. Este filme, (como “Easy Rider” e “Woodstock”) tem um significado especial e emblemático na memória de minha geração, por tudo que ele significou em nossa adolescência vivida naquele período de transição cultural. A sequência inicial que mostra Joe todo animado (ao som de “Everybody Is Talking”) partindo de sua cidadezinha e chegando em Nova York com a mala cheia de sonhos, naquele ônibus, representou muito o ideal da grande maioria dos jovens interioranos daquela época. E no final, em uma outra viagem de ônibus a melancolia substitui a animação do início. Um belo filme ! Grande abraço.

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    • Roberto Siqueira 8 agosto, 2011 / 10:30 pm

      É verdade Francisco, filme importante e que marcou uma geração.
      Grande abraço.

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