A DAMA E O VAGABUNDO (1955)

(Lady and the Tramp)

5 Estrelas 

Videoteca do Beto #154

Dirigido por Clyde Geronimi, Wilfred Jackson e Hamilton Luske.

Elenco: Barbara Luddy, Larry Roberts, Verna Felton, Bill Thompson, Alan Reed, Peggy Lee, Bill Baucom e Stan Freberg.

Roteiro: Ward Greene, Erdman Penner, Joe Rinaldi, Ralph Wright e Don DaGradi.

Produção: Walt Disney (não creditado).

A Dama e o Vagabundo[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Após o início arrasador em que emplacou cinco filmes simplesmente encantadores na chamada era de ouro da Disney, Walt Disney teve que aguardar por longos oito anos até seu próximo projeto, quebrando o hiato somente com “Cinderela”, em 1950. Entretanto, os três primeiros filmes desta nova era apresentavam um preocupante desgaste da fórmula de sucesso do estúdio, que só seria corrigido em 1955 com este impecável “A Dama e o Vagabundo”. Trazendo os elementos clássicos da Disney de maneira renovada e nada enfadonha, o longa acerta em cheio ao narrar com dinamismo a encantadora história de amor entre dois cachorros, contando com um visual marcante e incrivelmente realista que fez deste um dos grandes clássicos da história da animação.

Pela primeira vez narrando uma história original, os cinco roteiristas da Disney trazem em “A Dama e o Vagabundo” a história da cachorra Lili (voz de Barbara Luddy), que se sente abandonada por seus donos quando eles têm um bebê e acaba se envolvendo com um vira-lata conhecido como Vagabundo (voz de Larry Roberts), para a tristeza de seus cães vizinhos e amigos Fiel (voz de Bill Baucom) e Jock (voz de Bill Thompson).

Apresentando uma notável evolução na qualidade da animação quando comparado aos filmes anteriores, “A Dama e o Vagabundo” tem início num plano belíssimo que se torna ainda mais interessante com o zoom que nos aproxima da pequena vila coberta pela neve e nos leva a casa de Lili, sob o embalo da linda música tema “Bella Notte”. Desde então, fica evidente o capricho dos animadores e a preocupação dos diretores com pequenos detalhes que fazem a diferença, conferindo maior verossimilhança a narrativa através de decisões simples como recriar os maneirismos dos cães com fidelidade (eles se coçam, se espreguiçam, lambem feridas, etc.) e ilustrar a empatia comum entre as pessoas e seus animais de estimação, como quando Lili tenta desesperadamente avisar que um rato invadiu a casa e é compreendida somente por seu dono.

Pequena vila coberta pela neveSe espreguiçamCompreendida somente por seu donoTrazendo ainda divertidas gags, como quando o Vagabundo diz que os macacos são parecidos demais com o ser humano e provoca o riso descontrolado das hienas ou a sequência em que eles negociam com um castor (voz de Stan Freberg), “A Dama e o Vagabundo” acerta também ao reduzir consideravelmente o número de canções ao longo da narrativa, numa quebra interessante de conceito do estúdio que funciona muito bem e confere mais dinamismo ao filme, especialmente porque quando estas surgem são sempre interessantes, como atestam a engraçada música que acompanha os maldosos gatos siameses e a divertida canção interpretada pela charmosa cadela Peg (voz de Peggy Lee).

Negociam com um castorMaldosos gatos siamesesCharmosa cadela PegObviamente, nada disto funcionaria tão bem se “A Dama e o Vagabundo” não contasse com protagonistas tão interessantes. Raramente nos permitindo ver os rostos dos adultos, os diretores Clyde Geronimi, Wilfred Jackson e Hamilton Luske nos colocam na mesma posição dos cachorros praticamente o tempo inteiro, numa inteligente estratégia que colabora com nossa identificação. No entanto, é mesmo o espírito livre do Vagabundo e o charme de Lili que nos conquista. Escancarando as diferenças de realidade do casal logo na introdução dos personagens, o amor proibido entre o Vagabundo e a Dama traz consigo a velha temática das diferenças entre classes sociais, que aqui é trabalhada de maneira encantadora e ousada para a época. Aliás, a introdução do vira-lata serve também para nos apresentar à temida carrocinha, que será vital no clímax da narrativa.

Mesma posição dos cachorrosEspírito livreCharme de LiliDa mesma forma, não bastasse o fato de ser um animal de estimação, a pequena Lili ainda nos conquista quase que imediatamente através de seu jeito divertido e gracioso de convencer seus donos a deixá-la dormir com eles. Até mesmo o ciúme que ela sente do bebê a aproxima da plateia justamente por atribuir à cachorrinha um sentimento tão humano, chegando a nos emocionar na belíssima cena em que ela vê o bebê no berço pela primeira vez. Antes disso, acompanhamos o sofrimento dela diante do desconhecido, o que também é um sentimento bem conhecido por todos nós. Utilizando as folhas do calendário e a mudança climática como referência, a dinâmica montagem de Don Halliday passa rapidamente pela gravidez e nos leva ao dia do nascimento do menino que, acompanhado por uma forte chuva, ilustra visualmente a aflição da cachorrinha diante daquela situação inesperada, assim como visual cinza e sem vida reflete como Lili se sente deslocada fora de casa quando ela foge.

Lili vê o bebê no berço pela primeira vezDia do nascimento do meninoLili se sente deslocada fora de casaConcentrando boa parte da primeira metade da projeção em Lili, a narrativa nos prepara para o grande encontro do casal, que acontece de maneira casual e nos leva ao lindo passeio noturno deles, repleto de planos memoráveis como aquele em que eles passam por uma ponte e aquele em que vemos toda a cidade iluminada ao fundo. A atmosfera romântica de toda sequência é perfeita e, acompanhada pela linda canção tema (trilha sonora de Oliver Wallace), torna ainda mais especial a icônica cena do jantar em que a Dama e o Vagabundo se beijam. E assim como a divertida transição que indica o crescimento de Lili quando ela dorme na cama dos donos, outra elegante elipse acontece após o jantar e transforma as roupas penduradas no varal nos galhos das árvores durante o passeio. Em seguida, acompanhamos os dois cachorros acordando lado a lado, num instante que sugere sutilmente a conotação sexual do encontro, numa ousadia temática grandiosa para a época, se considerarmos que a “mocinha” criada numa casa de família acabara de dormir na rua com um cachorro sem dono.

Passam por uma ponteCidade iluminada ao fundoDois cachorros acordando lado a ladoCriando ainda um canil opressor através das paredes velhas e descascadas, que ganha eco no canto melancólico dos cachorros presos, os diretores não hesitam em nos apresentar o trágico destino de um dos prisioneiros, confirmando a ousadia temática que só engrandece o filme ao permitir que o espectador sinta o perigo real que aquele local triste representa. Este visual contrasta diretamente com a primeira metade da projeção, claramente mais viva e colorida, e nos introduz ao ameaçador ato final, carregado pela atmosfera sombria e sufocante após a briga entre a Dama e o Vagabundo que ilustra a apreensão dos personagens com precisão através da chuva e da noite. Este visual requintado chama ainda mais a atenção na batalha entre o Vagabundo e o rato, especialmente no temível plano em que o roedor sobe no berço e é iluminado por um raio, e continua impressionante até o desfecho da empolgante sequência da perseguição à carrocinha, quando o velho Fiel (voz de Bill Baucom) salva o Vagabundo e garante o final feliz. Mas o detalhe mais interessante vem na cena seguinte, quando Lili surge com quatro filhotes e confirma a ousada conotação sexual da noite romântica do casal de maneira sutil.

Paredes velhas e descascadasTrágico destino de um dos prisioneirosBatalha entre o Vagabundo e o ratoApresentando alguma inovação técnica e uma adorável ousadia temática, “A Dama e o Vagabundo” encanta mesmo por sua bela história de amor, contada à moda antiga e com toda a magia que a Disney costumava ter. Por isso, a trajetória dos dois cachorrinhos apaixonados se firmou como a melhor animação da segunda era dourada do estúdio. 

A Dama e o Vagabundo foto 2Texto publicado em 18 de Janeiro de 2013 por Roberto Siqueira

ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS (1951)

(Alice in Wonderland)

3 Estrelas 

Videoteca do Beto #153

Dirigido por Clyde Geronimi, Wilfred Jackson e Hamilton Luske.

Elenco: Vozes de Kathryn Beaumont, Richard Haydn, Ed Wynn, Sterling Holloway, Jerry Colonna, Verna Felton e Bill Thompson.

Roteiro: Winston Hibler, Ted Sears, Bill Peet, Erdman Penner, Joe Rinaldi, Milt Banta, Bill Cottrell, Dick Kelsey, Joe Grant, Dick Huemer, Del Connell, Tom Oreb e John Walbridge, baseado nos livros Alice no País das Maravilhas e Alice Através do Espelho de Lewis Carroll.

Produção: Walt Disney (não creditado).

Alice no país das maravilhas[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Adaptada diversas vezes para o cinema ao longo de décadas, “Alice no país das maravilhas” pertence a um grupo de obras literárias complexas e fascinantes que permitem as mais distintas interpretações, o que, consequentemente, transforma o livro de Lewis Carroll numa ótima oportunidade para cineastas mais ousados imprimirem sua visão particular daquele mundo onírico e repleto de simbolismos. Por isso, era de se esperar que o visionário Walt Disney quisesse aproveitar a excelente equipe técnica que possuía para dar vida aos personagens excêntricos daquele universo. O resultado é uma animação que, se não tem o encanto e a magia dos filmes da primeira era de ouro do estúdio, ao menos consegue nos divertir.

Baseado na obra de Carroll publicada em 1865, o roteiro de “Alice no país das maravilhas” (creditado para treze pessoas nesta versão da Disney) nos apresenta Alice (voz de Kathryn Beaumont), uma garota que, após seguir um misterioso e apressado coelho branco (voz de Bill Thompson), acaba se aventurando por um mundo fantástico, recheado de figuras inusitadas.

Apresentando pouco avanço tecnológico em relação aos filmes anteriores, “Alice” segue com fidelidade algumas das convenções narrativas das animações Disney, com seu visual multicolorido, a interação entre humanos e animais e, especialmente, as diversas músicas espalhadas pela narrativa que, aliadas a trilha sonora quase incessante de Oliver Wallace, fazem com que o som diegético quase não tenha espaço sozinho no filme. Entretanto, isto não seria um problema se o longa apresentasse o mesmo encanto dos primeiros filmes do estúdio, mas isto não acontece na mesma intensidade, o que apenas reforça o desgaste da fórmula de Walt Disney, tão evidente nesta irregular segunda era de animações na qual os únicos filmes realmente memoráveis são o impecável “A Dama e o Vagabundo” e “A Bela Adormecida”.

Assim, para desfrutar o encanto de “Alice no país das maravilhas” é preciso olhar com olhos de criança – algo que não é tão simples no mundo mais cínico em que vivemos atualmente, mas que na época talvez fosse mais plausível, mesmo tão pouco tempo depois do fim da Segunda Guerra. Isto ocorre porque os diretores Clyde Geronimi, Wilfred Jackson e Hamilton Luske transportam para a tela o espírito da obra que serviu de inspiração para o filme, criando uma sequência ininterrupta de momentos que não apresentam lógica alguma, seguindo apenas a fértil imaginação da protagonista. Curto e dinâmico como a maioria das animações do estúdio, “Alice” se beneficia da montagem ágil de Lloyd Richardson, que transita de um cenário ao outro de maneira orgânica, nos levando a lugares surreais como a casa rosa do Coelho Branco e a personagens igualmente surreais como as flores cantoras e a Lagarta fumante (voz de Richard Haydn), que hoje certamente seria criticada pelos chatos do politicamente correto.

Casa rosaFlores cantoras Lagarta fumanteTambém devido à natureza onírica da história, muitos diálogos não fazem muito sentido, o que realça ainda mais momentos marcantes como a famosa conversa entre o Gato Risonho (voz de Sterling Holloway) e Alice: “Aonde você quer ir?”, pergunta o gato; “Tanto faz”, responde Alice; “Então tanto faz o caminho que deve seguir”, finaliza ele. Esta abordagem surreal chega ao auge na conversa sem pé nem cabeça entre Alice e os divertidos Chapeleiro Louco (voz de Ed Wynn) e Lebre Maluca (voz de Jerry Colonna), que levam tanto a protagonista quanto o espectador a loucura durante um chá da tarde. Também existe espaço para histórias mais lineares, como a triste passagem em que as ostras são convidadas para um jantar, mas este universo fantasioso fará sentido de fato somente quando tivermos a confirmação de que Alice estava sonhando. Até lá, somos levados pela narrativa através do olhar da garota.

Conversa entre o Gato Risonho e AliceConversa sem pé nem cabeçaOstras são convidadas para um jantarRepleto de personagens criativos, “Alice” representava ainda uma oportunidade única para os talentosos animadores da Disney, que capricham na caracterização até mesmo de figuras secundárias que passam rapidamente pela narrativa, como os sapos instrumentos e o cavalo vassoura. Além disso, eles criam cenários impactantes e sequências belíssimas visualmente, dentre as quais vale destacar a chegada da temida Rainha de Copas (voz de Verna Felton) ao castelo, acompanhada de seu numeroso exército de cartas. E apesar das cores vivas que dominam grande parte do filme, a fotografia não se furta de carregar no tom pesado e sombrio quando Alice se perde na floresta, transmitindo para a plateia a mesma sensação melancólica da garota.

Sapos instrumentosCavalo vassouraAlice se perde na florestaQuanto aos simbolismos da narrativa, cabe dizer que, assim como no livro, é possível fazer diversas leituras diferentes de cada situação vivida por Alice. Dentre todas elas, existe uma vertente que me agrada mais, que acredita numa alusão a passagem da infância para a adolescência, onde cada transformação vivida pela garota ilustraria, numa escala exagerada e caricatural, as mudanças radicais que sofremos nesta fase. Por isso, temos as constantes mudanças de tamanho, os enigmáticos desafios, as dúvidas sobre qual caminho seguir e a introdução a novas sensações, que esboçariam nossa desorientação diante das decisões que precisamos tomar quando nos aproximamos da fase adulta da vida. No entanto, uma obra tão rica e subjetiva como esta permite inúmeras leituras aceitáveis.

Aventura surreal e repleta de simbolismos, “Alice no país das maravilhas” está longe de ser uma obra-prima, mas ao menos nos diverte enquanto somos apresentados aos cenários e personagens descritos no clássico livro de Lewis Carroll. Ou seja, trata-se de uma animação típica da Disney daquele período, com tudo de bom e de ruim que isto possa significar.

Alice no país das maravilhas foto 2Texto publicado em 13 de Janeiro de 2013 por Roberto Siqueira

PETER PAN (1953)

(Peter Pan)

 

Filmes em Geral #51

Dirigido por Clyde Geronimi, Wilfred Jackson e Hamilton Luske.

Elenco: Vozes de Bobby Driscoll, Kathryn Beaumont, Hans Conried, Bill Thompson, Heather Angel, Paul Collins, Tommy Luske, Candy Candido, Tom Conway, Tony Butala, Robert Ellis, Johnny McGovern, Jeffrey, Stuffy Singer, June Foray, Connie Hilton e Margaret Kerry.

Roteiro: Milt Banta, William Cottrell, Winston Hibler, Bill Peet, Erdman Penner, Joe Rinaldi, Ted Sears e Ralph Wright, baseado em peça teatral de J.M. Barrie.

Produção: Walt Disney.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Sob a capa de aventura jovial e alegre da peça escrita por J.M. Barrie, “Peter Pan” esconde aspectos sombrios que abordam questões universais como a passagem do tempo, a perda da inocência e o mundo mais triste e cruel que todos nós somos obrigados a enfrentar quando deixamos a deliciosa fase da infância para trás. Infelizmente, esta essência da obra do dramaturgo escocês não foi captada com perfeição pelos estúdios Disney, que demonstravam através desta adaptação da obra para o cinema os primeiros sinais de desgaste na tradicional e outrora infalível fórmula de sucesso do estúdio.

A jovem e sonhadora Wendy Darling (voz de Kathryn Beaumont) espera ansiosamente pela visita de Peter Pan (voz de Bobby Driscoll), ao lado de seus irmãos João (voz de Paul Collins) e Miguel (voz de Tommy Luske). Após seus pais saírem de casa para passear, o “garoto que se recusa a crescer” aparece, levando Wendy e seus dois irmãos para a Terra do Nunca (uma ilha encantada onde ninguém cresce), para viver deliciosas aventuras ao lado da fada Sininho e dos garotos perdidos, que lutam contra o Capitão Gancho (voz de Hans Conried), um pirata cruel que jurou vingança quando, após uma briga com Peter, teve sua mão comida por um crocodilo – que, por sua vez, engoliu um despertador.

“Peter Pan” é uma fábula maravilhosa sobre a perda da inocência, sobre o momento em que a criança passa a perceber os desafios que enfrentará na vida e começa a deixar para trás o mundo mágico da infância, algo inevitável e que aconteceu (ou acontecerá) com todos nós. De maneira inteligente, o texto de J.M. Barrie cria um universo fantástico, repleto de personagens interessantes, que ilustram diversos aspectos desta fase da vida, como podemos perceber, por exemplo, no principal vilão da trama, que simboliza os terríveis adultos, responsáveis por destruir as fantasias das crianças (algo que, no longa da Disney, é inteligentemente representado na voz de Hans Conried, que faz ao mesmo tempo o capitão Gancho e George, o pai de Wendy). Outro exemplo notável dos simbolismos da fábula é o crocodilo que engoliu um despertador, que funciona como uma metáfora para o monstro implacável chamado “tempo”, cruel inimigo da infância. Afinal de contas, é justamente por causa da passagem do tempo que pessoas como George deixam de acreditar na existência de personagens como Peter Pan, como fica evidente nas primeiras cenas do longa, na casa da família Darling em Londres.

Após a bela introdução do narrador, vemos o pai irritado (e atrapalhado) separando as crianças e o cachorro e preparando a pequena Wendy para um momento de mudança. Ao sair do quarto dos irmãos, Wendy estava encarando uma nova fase e o fim de uma era de sonhos, um período mágico onde nossa imaginação nos leva a lugares fantásticos, sem que nada possa nos impedir. Mas ela ainda tinha direito a uma última aventura, e assim que seus pais saem de casa, uma sombra no telhado indica a presença do aguardado Peter Pan, o menino que não queria crescer e que levaria Wendy e seus irmãos para a Terra do Nunca, a ilha onde ninguém cresce. Os simbolismos são mais que evidentes. Só que esta não é uma crítica do texto de J.M. Barrie e, infelizmente, o longa da Disney não consegue captar sua essência, criando um filme leve e descontraído, mas que jamais alcança o impacto da obra que o inspirou. Talvez o grande problema do longa dirigido pelo trio Clyde Geronimi, Wilfred Jackson e Hamilton Luske seja exatamente sua leveza exagerada, que não consegue criar, por exemplo, um capitão Gancho temível e acaba tornando-se uma aventura leve e despretensiosa que minimiza os aspectos mais sombrios da obra original.

Talvez por isso, o longa apresenta um visual alegre, através das coloridas animações e dos criativos movimentos de câmera empregados, por exemplo, durante o vôo para a ilha. Este visual repleto de cores quentes e dias ensolarados ajuda a manter a atmosfera leve na ilha, criando um interessante contraste com as seqüências que se passam em Londres, sempre à noite e com cores mais frias. Ainda assim, existe espaço para pequenos momentos de tensão, como quando a sombra do capitão aparece na parede antes dele atacar Peter, seguindo a tradição Disney (inspirada no expressionismo alemão) de utilizar as sombras para provocar suspense. Em outro momento, quando Sininho desaparece, o visual obscuro que toma conta da tela indica o momento tenso. Mas nada que interfira no clima quase permanente de descontração da narrativa, embalado pelo bom ritmo da montagem de Donald Halliday, que alterna entre as cenas de Peter e as crianças e as cenas do Capitão Gancho e seus planos supostamente cruéis.

Outra tradição Disney que “Peter Pan” segue à risca é a presença constante da trilha sonora de Oliver Wallace e as canções espalhadas pela narrativa, como a triste e melancólica “Mamãe”, cantada momentos antes de o Capitão Gancho capturar Peter Pan. E até mesmo o som do despertador do crocodilo, que serve para indicar sua presença, é sempre embalado por uma trilha sonora leve e descontraída. Felizmente, a qualidade das animações também mantém o padrão do estúdio, criando cenários interessantes – como a árvore que abriga Peter e as crianças – e movimentos perfeitos para os personagens – como quando Sininho voa pela floresta. E talvez seja justamente por seguir a fórmula da maioria dos filmes anteriores que “Peter Pan” apresente um resultado apenas razoável, evitando o tom melancólico e não compreendendo todos os aspectos da obra que o inspirou. Por outro lado, o tom leve da narrativa apresenta momentos divertidos, especialmente quando Peter engana o Capitão – e que, ainda que sejam engraçados, servem também para enfraquecer ainda mais o vilão diante do espectador.

Pelo menos, os simbolismos continuam presentes e transmitem, ainda que de maneira pouco contundente, a mensagem principal da narrativa. Repare, por exemplo, como Wendy afirma com tristeza que “amanhã irá crescer”, momentos depois de afirmar para sua mãe que não queria crescer. Não à toa, ela se identifica com Peter, que com seu jeito sempre destemido e alegre, é um símbolo perfeito da juventude, chamando a atenção não só de Wendy, como de muitas outras crianças – e é curioso notar que tanto Sininho como as Sereias sentem ciúmes de Peter, o que será essencial para a execução do plano do Capitão Gancho de capturar o herói. Aliás, o carrancudo capitão Gancho, com seu mau humor e planos cruéis, representa os adultos e toda a aura sombria que os cerca. E fechando a gama de personagens da trama, temos ainda os divertidos índios que aparecem rapidamente no segundo ato.

Toda esta aventura juvenil chega ao seu clímax no navio pirata do Capitão Gancho, que nos leva ao esperado duelo entre Peter e o vilão. E, como esperado, Peter vence o duelo com facilidade. Então, a montagem faz um interessante raccord da lua para o Big Bang e dele para o relógio da casa de Wendy, nos levando de volta para Londres e para a conclusão da narrativa. E ao ver o navio de Peter nas nuvens, George afirma ter a sensação de já ter visto este navio antes, ainda quando era criança, reforçando o tema da “perda da inocência” abordado pela narrativa.

Ainda que tenha bons momentos, “Peter Pan” jamais alcança a qualidade de filmes como “Pinóquio” e “Dumbo” e, principalmente, não consegue transmitir em toda sua complexidade a mensagem agridoce da obra que o inspirou. Com seu clima leve e extremamente descontraído, mais parece uma simples aventura juvenil do que uma amarga reflexão a respeito da inexorabilidade do tempo, que nos leva ao triste momento em que perdemos a inocência, nos trazendo para um universo menos alegre, menos fantasioso e muito mais cínico. Se este dia não tivesse chegado para mim, talvez eu gostasse mais do filme. Mas, infelizmente, ele chegou, há muito tempo.

Texto publicado em 08 de Abril de 2011 por Roberto Siqueira

FANTASIA (1940)

(Fantasia)

 

Filmes em Geral #48

Videoteca do Beto #147 (Filme comprado após ter a crítica divulgada no site e transferido para a Videoteca em 06 de Janeiro de 2013)

Dirigido por James Algar, Samuel Armstrong, Ford Beebe, Hamilton Luske, Jim Handley, Norman Ferguson, T. Hee, Wilfred Jackson, Bill Roberts, Paul Sattersfield.

Elenco: Leopold Strokowski, Deems Taylor, James Macdonald, Paul J. Smith, Walt Disney (Mickey Mouse – voz) e Julietta Novis (Soloist – voz).

Roteiro: Joe Grant e Dick Huemer (sequências de orquestra); Lee Blair, Elmer Plummer e Phil Dike (“Toccata and Fugue in D Minor”); Sylvia Moberly-Holland, Norman Wright, Albert Heath, Bianca Majolie e Graham Heid (“The Nutcracker Suite”); Perce Pearce e Carl Fallberg (“The Sorcerer’s Apprentice”); William Martin, Leo Thiele, Robert Sterner e John McLeish (“Rite of Spring”); Otto Englander, Webb Smith, Erdman Penner, Joseph Sabo, Bill Peet e George Stallings (“The Pastoral Symphony”); Campbell Grant, Arthur Heinemann e Phil Dike (“Night on Bald Mountain/Ave Maria”).

Produção: Walt Disney.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Walt Disney gostava de desafios. Não fosse assim, jamais teria lançado o primeiro longa metragem de animação da história, o clássico “Branca de Neve e os Sete Anões”. Felizmente, sua ousadia era acompanhada de uma genialidade ímpar, que lhe permitiu acertar em praticamente todos os projetos seguintes, como a obra-prima “Pinóquio”, “Bambi” e “Dumbo”. Mas em 1940, “Walt” ousou ainda mais, decidindo misturar animação e música clássica neste excelente “Fantasia”, que nos leva numa viagem belíssima e inesquecível.

“Fantasia” apresenta uma série de histórias distintas acompanhadas por grandes obras da música clássica, numa mistura bastante original e até mesmo ousada para a época (poucos anos antes, as pessoas sequer acreditavam que seria possível produzir um longa metragem de animação). Até por isso, “Fantasia” foi mal recebido pela crítica na época, mas acabou sendo merecidamente reconhecido com o passar dos anos, ainda que hoje, mais de 70 anos depois de seu lançamento, seu ritmo soe um pouco irregular. Basicamente, a narrativa apresenta pequenas histórias animadas, separadas pelas intervenções da orquestra da Filadélfia, que toca as seguintes canções: “Toccata and Fugue in D Minor”, de Johann Sebastian Bach, “The Nutcracker Suite”, de Peter Llich Tchaikovsky, “The Sorcerer’s Apprentice”, de Paul Dukas, “Rite of Spring”, de Igor Stravinsky, “Symphony No. 6”, de Ludwing Van Beethoven (na história “The Pastoral Symphony”), “Dance of the Hours”, de Almicare Ponchielli, “A Night on Bald Mountain”, de Modest Mussorgsky e “Ave Maria”, de Franz Schubert.

Com seu festival de sons e cores, “Fantasia” é uma verdadeira festa para os sentidos. Desnecessário dizer que a qualidade das animações é excepcional, já que estamos falando de uma produção com o padrão Disney, assim como não precisamos reafirmar a qualidade das músicas que embalam cada seqüência. Ainda assim, o longa não é perfeito, pois as interrupções da orquestra, necessárias na época até para explicar à platéia o que estava acontecendo, claramente quebra o ritmo da narrativa. Mas este pequeno deslize não tira o brilho deste grande filme, que corajosamente enfrentou o desafio de misturar animação e música clássica ainda nos anos 40, como fica evidente logo em seu início, quando as imagens da orquestra (com tonalidades fortes em vermelho, azul e amarelo) se transformam numa série de imagens abstratas sob o som da música “Toccata and Fugue in D Minor” de Sebastian Bach. Lentamente, saímos do concerto e passamos a viajar nos desenhos da turma de “Walt”, numa introdução correta, que funciona como apresentação do que veremos a seguir. Ainda assim, este primeiro número é claramente o mais fraco do longa e não consegue empolgar.

Já no segundo número, “The Nutcracker Suite” (música de Pyotr Ilyich Tchaikovsky), destacam-se a dança dos cogumelos, uma divertida alusão aos chineses, e a dança das flores, um verdadeiro deleite visual. Um pouco melhor que o número de abertura, “The Nutcracker Suite” atinge seu grande momento na valsa das folhas e termina preparando o espectador para os novos e empolgantes “curtas” que ele vai presenciar. Daqui pra frente, cada seqüência é uma verdadeira jóia, com exceção da chata e burocrática apresentação da “trilha sonora”, que serve apenas para separar os quatro primeiros números dos últimos. Antes dela, temos ainda duas seqüências fascinantes. “Aprendiz de Feiticeiro” (“The Sorcerer’s Apprentice”, de Paul Dukas), o terceiro número do longa, apresenta Mickey Mouse num dos papéis mais famosos de sua longa jornada, deixando uma lição sobre os perigos da ambição e trazendo seqüências visuais de tirar o fôlego, como quando as vassouras invadem o local para jogar água ou quando Mickey sonha controlar tudo com o chapéu do feiticeiro. O quadro seguinte é “Rite of Spring” (música de Igor Stravinsky), uma viagem deliciosa pela evolução da terra com imagens belíssimas, ousada tematicamente para um filme infantil (por mostrar a lei da vida sem maquiar a realidade), que apresenta animais se alimentando uns dos outros para sobreviver, como na aterrorizante chegada do T-Rex sob forte chuva (repare o visual sombrio da cena), em que ele mata outro dinossauro. O emblemático plano em que o sol queima as caveiras de dinossauros encerra a seqüência e simboliza o fim de uma era na Terra.

Após a desnecessária apresentação da “trilha sonora”, temos o sensacional “The Pastoral Symphony”, talvez o melhor número de “Fantasia”, que apresenta uma interessante história repleta de personagens da mitologia grega no Monte Olimpo sob o som da “Symphony No. 6”, de Beethoven. Aqui, novamente a ousadia temática aparece durante o “sensual” namoro dos centauros, seguida pela festa do vinho e pelo castigo de Zeus. Os raios que castigam aqueles “pecadores”, simbolizados pelos meninos com chifres que enchem os tanques de vinho, são seguidos por uma forte tempestade, mas a calmaria chega, o arco-íris aparece e a noite recai sobre todos, num número marcante e inesquecível. Vale observar alguns detalhes, como a cor azul dos centauros solitários, que ilustra a tristeza que eles sentiam, e o local onde eles se encontram após a “ajuda” dos anjos (uma referencia ao “Templo do Amor”, em Versalhes), além do coração que fecha a seqüência com toques de romantismo. Repare ainda como durante a chuva, o visual sombrio é reforçado pela parte tensa da música de Beethoven enquanto Zeus castiga a todos com raios.

Chegamos então ao penúltimo número do longa. “Dance of the Hours”, com música de Amilcare Ponchielli, é claramente inferior aos dois anteriores, mas não chega a decepcionar. Vale notar como a cor e até mesmo os animais escolhidos remetem à passagem do dia, iniciando com o inofensivo Avestruz branco, passando pelos hipopótamos marrons, pelos elefantes mais escuros e fechando com os temíveis jacarés. E finalmente, o último número, acompanhado pelas músicas “A Night on Bald Mountain”, de Modest Mussorgsky, e “Ave Maria”, de Franz Schubert, comprova toda a ousadia de Walt Disney, tanto na escolha do projeto quando nos temas abordados, mostrando o confronto entre o demônio e seus seguidores e a igreja. O demônio, aliás, ainda hoje é aterrorizante, com um visual imponente e um olhar penetrante, mas ainda assim cai diante dos sinos que anunciam a chegada dos “religiosos” e nos levam ao final de toda esta bela viagem chamada “Fantasia”.

“Fantasia” é um grande filme, sem dúvida, mas seu ritmo lento, constantemente quebrado pelas interrupções da orquestra para apresentar o próximo número, pode desagradar às platéias mais jovens. Em todo caso, Walt Disney comprovou mais uma vez sua genialidade e sua coragem ao abraçar um projeto tão diferente e entregar um resultado agradável.

Texto publicado em 05 de Abril de 2011 por Roberto Siqueira

PINÓQUIO (1940)

(Pinocchio)

 

 

Videoteca do Beto #66

Dirigido por Hamilton Luske e Ben Sharpsteen.

Elenco: Vozes de Dickie Jones, Mel Blanc, Walter Catlett, Don Brodie, Christian Rub, Evelyn Venable, Cliff Edwards e Frankie Darro. 

Roteiro: Carlo Collodi (história), Ted Sears (adaptação), Otto Englander (adaptação), Webb Smith (adaptação), William Cottrell (adaptação), Joseph Sabo (adaptação) e Erdman Penner (adaptação).

Produção: Walt Disney (não creditado).

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Após revolucionar o cinema com seu filme de estréia “Branca de Neve e os Sete Anões”, contrariando todas as expectativas e provando ser possível realizar um longa-metragem de animação, Walt Disney conseguiu, já em seu segundo filme, alcançar a perfeição. “Pinóquio” é um triunfo cinematográfico belíssimo, com uma estrutura narrativa perfeita, que se estabeleceu como o padrão a ser seguido pelo gênero animação até os dias de hoje. Além dos triunfos técnicos, o longa consegue ainda ser extremamente emocionante, tocando de maneira uniforme os corações de crianças e adultos.

Um grilo falante (voz de Cliff Edwards) invade uma velha casa numa cidade pequena para se esconder do frio. Lá encontra o velho Gepeto (voz de Christian Rub) e suas únicas companhias, o gato Fígaro e a peixe Cleo (ambos, voz de Mel Blanc). Após Gepeto construir um boneco de madeira e desejar que este se torne um menino de verdade, uma bela fada azul (voz de Evelyn Venable) invade a casa durante a noite e dá vida ao boneco chamado Pinóquio (voz de Dickie Jones), prometendo lhe transformar num menino de verdade se ele demonstrasse coragem e altruísmo.

“Pinóquio” fala para crianças de todas as idades, mas certamente sua mensagem é direcionada diretamente aos meninos. O menino de madeira, como qualquer garoto, é inocente ao ponto de acreditar numa promessa de um estranho (“Vou ser ator famoso”, diz eufórico para o grilo) e curioso o suficiente para colocar o dedo no fogo ou atrapalhar o sono do “pai” com suas perguntas (“Por quê? Por quê? Por quê?”) – repare a divertida irritação de Fígaro neste momento. Por isso, o roteiro (adaptado da história de Carlo Collodi) não perde a oportunidade e deixa diversas lições, como não confiar em estranhos (raposa João Honesto), saber escolher as amizades (Espoleta), não mentir (nariz crescendo) e sempre suspeitar do caminho fácil para o sucesso (Stromboli). Por mais que sejam óbvias, é inegável que são mensagens sempre eficientes e atuais. Além disto, a narrativa flui de maneira muito agradável, graças à estrutura harmoniosa que acompanha todo o arco dramático do menino de madeira, transformado de garoto curioso e inocente em herói corajoso e altruísta. Outra sacada interessante do roteiro, inexistente no conto original de Collodi, é o grilo falante, um personagem chave para o sucesso da narrativa, que funciona como elo entre o espectador e o universo do longa. Além de narrador, o grilo serve também como alivio cômico numa trama repleta de momentos nebulosos, como quando lê a carta entregue por uma pomba ou quando ameaça brigar com Espoleta (voz de Frankie Darro). Inicialmente, ele não confia muito nos conselhos que dá, como quando testemunha o sucesso de Pinóquio e se retira, dizendo que “atores não precisam de consciência”. No entanto, assim como Pinóquio aprende muitas coisas ao longo da narrativa, o grilo também aprende a ser mais incisivo e confiar nos seus princípios.

Mas “Pinóquio” impressiona também pela qualidade da animação em si. Vale lembrar, em tempos de animação digital, que o desenho foi criado a partir de pinturas feitas à mão por dezenas de artistas que trabalhavam para Walt Disney. O lindo visual, repleto de detalhes como as ranhuras na madeira ou o correto deslocamento das sombras quando a fada aparece ou em cenas iluminadas por velas, é resultado do trabalho manual destes grandes artistas, o que engrandece ainda mais a qualidade do que vemos na tela. Observe a riqueza de detalhes, como os olhos imóveis de Pinóquio, quando ainda era um boneco de madeira, contrastando com o vivo e inquieto olhar do mesmo Pinóquio após receber “o dom da vida”. Repare também a qualidade das imagens no fundo do mar, simulando a dificuldade para caminhar no oceano. Este cuidado extremo com cada detalhe, sempre misturando um rico universo de cores e tons, inevitavelmente conquista a empatia de crianças e adultos. Os movimentos de câmera também são extremamente ousados para uma animação de 1940, como quando a câmera simula os pulos do grilo enquanto ele se aproxima da casa de Gepeto ou no impressionante travelling que nos leva por toda a cidade até chegar à porta da casa onde Pinóquio se prepara para o seu primeiro dia de aula. Os diretores Hamilton Luske e Ben Sharpsteen confirmam o conhecimento da linguagem cinematográfica quando empregam um zoom para aumentar o impacto da cena, quando Pinóquio, após salvar Gepeto, aparece caído na água. Além disso, alteram o foco para transmitir sensações, como quando Pinóquio fuma e, em seguida, vê a bola 8 e o grilo completamente distorcidos. Finalmente, os diretores mostram talento até mesmo para situar o espectador em ações que acontecem fora de campo, como na tensa seqüência da perseguição da baleia Monstro, onde mesmo sem ver a baleia no plano, o espectador sente sua aproximação somente através das reações de Pinóquio e Gepeto.

O festival de sensações provocadas no espectador é ainda mais forte graças à bela trilha sonora, que além de pontuar muito bem as cenas (observe o tom sombrio da música que acompanha a terrível transformação de Espoleta e Pinóquio em burros), ainda contém excelentes canções, algo tradicional nos filmes da Disney e que certamente facilita a comunicação com as crianças. E o mais interessante é que as canções são sempre orgânicas, fazendo a narrativa andar através da mensagem de cada letra, além de utilizar o som diegético como parte da música, como na divertida “Give a little whistle”, cantada pelo grilo falante, onde os pequenos sons produzidos na casa de Gepeto contribuem com a canção. E o que dizer então da belíssima “When you wish upon a star”, composta por Leigh Harline e Ned Washington, que de tão encantadora, ultrapassou os limites do filme e tornou-se a música tema da própria Disney? Além da linda melodia, a letra resume perfeitamente a mensagem do longa. Ainda no aspecto sonoro, o belo trabalho de efeitos sonoros fica evidente através dos relógios, do som da batida na madeira de Pinóquio e da água do mar na perseguição da baleia Monstro.

E se Pinóquio acaba perseguido pela baleia Monstro, é porque quando finalmente volta pra casa, ele a encontra vazia e abandonada, e os tons azulados da imagem refletem sua imensa tristeza. Estes momentos sombrios não faltam no longa, como a cena em que Gepeto procura por Pinóquio sob um clima chuvoso e obscuro, o momento em que Pinóquio é preso, onde a tempestade representa a angústia dele, e a transformação de Espoleta em burro, com a sombra refletida na parede que remete às perturbadoras imagens do expressionismo alemão (repare a engraçada reação de Pinóquio jogando a cerveja e o cigarro fora, num excelente exemplo de alivio cômico eficiente). Além disso, o próprio visual da Ilha dos Prazeres após a prisão dos garotos é capaz de provocar calafrios em qualquer espectador. E por falar na Ilha dos Prazeres, o parque de diversões idealizado pelo cocheiro (que se transforma em demônio ao revelar seus planos para João Honesto), repleto de doces e sorvetes, mas que conta também com tabaco, cerveja, e locais como a “casa da briga” ou a “casa modelo” para ser destruída, revela-se um verdadeiro lugar de sonhos para meninos travessos como Espoleta. E não demora muito para que Pinóquio perceba o fascínio desta vida, o que faz com que diga para seu mais novo amigo que “ser malvado é divertido”. A imagem dos garotos bebendo, fumando e jogando sinuca chega até mesmo a ser chocante, mas consegue perfeitamente transmitir a idéia de rebeldia, resumida na frase de Espoleta citada por Pinóquio (“Só se vive uma vez”). Obviamente, o roteiro se encarrega de pregar outra lição nos meninos teimosos, ensinando o perigo das más companhias, simbolizado na terrível transformação dos meninos em burros. Finalmente, não poderiam faltar cenas marcantes neste verdadeiro clássico da Disney, como a dança de Pinóquio com as marionetes, a perseguição da baleia Monstro e, principalmente, a histórica cena em que seu nariz cresce. Até mesmo quem nunca assistiu ao filme sabe a conseqüência da mentira do garoto.

O boneco Pinóquio representava a chegada da alegria naquele lar. Gepeto, solitário e carente de crianças, investia o tempo em seu hobby favorito, criando diversos e interessantes bonecos de madeira. Mas o menino-marionete era a sua maior criação, e até mesmo o gato Fígaro sabia disto, o que justifica seu ciúme imediato, ao imaginar que o menino substituiria o seu lugar no coração do velho homem. No fundo, “Pinóquio” não trata simplesmente de deixar mensagens educativas para as crianças (algo que faz muito bem). Ilustra também, de forma tocante, a imensa alegria que um homem (e uma mulher) sente quando é presenteado com a chegada de uma criança, enchendo o lar com a mais pura alegria. E Gepeto sabia que esta alegria lhe faltava, tanto que quando tem a oportunidade de fazer um desejo, não hesita em pedir que o seu menino seja um “menino de verdade”. A transformação em sua vida é tão grande que jamais o velho Gepeto culpa Pinóquio pela tragédia que se abateu em sua vida e, mesmo engolido por uma baleia, é capaz de dizer “Pobre Pinóquio, era um garoto tão bom”. E no fundo, Gepeto tinha razão, porque na realidade, Pinóquio sempre foi um menino de verdade, inocente, curioso, às vezes atentado, mas sempre com um coração puro e a alegria encantadora de uma verdadeira criança. Portanto, quando a fada finalmente lhe transforma num menino de carne e osso (provocando uma explosão de alegria nos personagens, incluindo Fígaro, e no espectador), está apenas oficializando algo que na prática, no coração dele, já existia. E então, a bela trilha sonora surge apenas para fechar com chave de ouro esta obra-prima da história do cinema.

“Pinóquio” pode parecer um filme destinado a ensinar valores para as crianças, mas como indica a canção principal, sua verdadeira mensagem atinge mesmo o coração dos adultos, ao ensinar a importância de acreditarmos em nossos sonhos. E o que mais poderia representar o sonho de um adulto do que a chegada de uma criança em seu lar? Walt Disney sabia disto, assim como sabia tocar no coração do espectador, e provou isto mais uma vez nesta verdadeira obra-prima, que ainda hoje soa atual e emociona.

Texto publicado em 29 de Setembro de 2010 por Roberto Siqueira