DE OLHOS BEM FECHADOS (1999)

(Eyes Wide Shut)

5 Estrelas 

 

Videoteca do Beto #226

Dirigido por Stanley Kubrick.

Elenco: Tom Cruise, Nicole Kidman, Sydney Pollack, Todd Field, Leelee Sobieski, Madison Eginton, Alan Cumming, Jackie Sawiris, Vinessa Shaw, Christiane Kubrick e Leon Vitali.

Roteiro: Stanley Kubrick e Frederic Raphael, com base em livro de Arthur Schnitzler.

Produção: Stanley Kubrick.

De olhos bem fechados[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Último filme do genial Stanley Kubrick, “De olhos bem fechados” dividiu público e crítica na época do seu lançamento. Com uma atmosfera perturbadora, narrativa lenta e, como de costume na filmografia do diretor, abrindo diversas possibilidades de interpretação, o longa parece um tanto difícil, especialmente por abordar temas polêmicos e, principalmente, por sugerir uma sensualidade e erotismo que jamais chegam a se concretizar. Por isso, a sensação provocada no espectador que cria expectativa é de frustração, mas o fato é que mais uma vez Kubrick entregou uma obra complexa, instigante e repleta de simbolismos, que permite debates acalorados sobre os temas levantados em suas duas horas e meia de projeção.

Baseado no livro de Arthur Schnitzler, Kubrick desenvolveu o roteiro ao lado de Frederic Raphael, acumulando ainda a produção e, obviamente, a direção do longa. Como de costume, ele aproveita o material de origem para levantar questões complexas através de decisões sutis que nem sempre são perceptíveis ao grande público. Assim, cabe ao espectador interpretar algumas cenas para desenvolver sua linha de raciocínio – o que é sempre ótimo. Basicamente, “De olhos bem fechados” nos apresenta ao casal formado pela curadora de arte Alice (Nicole Kidman) e pelo médico Bill Harford (Tom Cruise) momentos antes de uma festa de gala promovida pelo milionário Victor Ziegler (Sydney Pollack). Durante a festa, ambos flertam com pessoas desconhecidas, o que leva a uma discussão acalorada no dia seguinte, na qual ela confessa ter sentido atração por outro homem no passado. À partir daí, Bill parte numa jornada por um mundo desconhecido e simultaneamente fascinante e assustador.

Logo na primeira cena, vemos a bela Alice se despindo de costas para a câmera até que, logo após ela ficar completamente nua, a tela escureça completamente, num enquadramento que simula um olhar curioso e, justamente por isso, coloca o espectador na posição de voyeur – o que, além de indicar um dos temas do filme, ainda funciona como o primeiro momento em que o erotismo é interrompido. Somada a olhada rápida dela para o espelho na única cena em que troca carícias com o marido, esta sequência inicial é essencial para compreender uma das chaves da narrativa – ou ao menos explicar uma linha de raciocínio possível. Mais pra frente, a revelação do sonho envolvendo pessoas a observando numa orgia reforça a ideia do voyeurismo e de quebra levanta a probabilidade dela ao menos ter curiosidade pelo tema, ainda que possa ser apenas um desejo sexual e nada mais. Esta complexa relação entre sonho e realidade, entre desejo e rotina, será o ponto central de “De olhos bem fechados”.

O tema dos desejos frustrados surge já na festa inicial, regada a champanhe e frequentada pela alta sociedade, na qual Alice e Bill flertam com pretendentes, chegam ao limite, mas jamais concretizam a traição. Os tons dourados que dominam a festa e as roupas elegantes escolhidas pela figurinista Marit Allen criam um cenário repleto de pompa que surge como o contraponto ideal para a sequência vindoura que Bill viveria, numa espécie de transposição do desejo carnal não realizado para o local onde ele poderia se concretizar, também numa festa da alta sociedade, mas agora distante das formalidades daquela que abre o filme. Secretamente, a elite podia se despir (sem trocadilhos) das convenções sociais e mergulhar nos mais primitivos desejos. Enquanto na festa inicial as pessoas falam, falam e quase nunca concretizam seus desejos, no ritual secreto as palavras mal são pronunciadas, deixando espaço apenas para o corpo agir em busca de seu prazer.

Alice se despindoAlice e Bill flertam com pretendentesCenário repleto de pompa

Adotando uma estrutura narrativa quase investigativa, Kubrick mantem o espectador grudado na tela enquanto acompanha Bill sendo sugado por aquele mundo misterioso, nos deixando tão curiosos, fascinados e assustados quanto ele. Assim, se no primeiro dia temos a sensação de estarmos descobrindo um universo novo através dos olhos dele, no dia seguinte, quando ele passa pelos mesmos lugares, acompanhamos seu acerto de contas com a surreal noite anterior compartilhando os mesmos questionamentos do personagem. Empregando movimentos de câmera suaves e elegantes, Kubrick cria uma atmosfera de pesadelo, reforçada pelos diálogos lentos e pela montagem de Nigel Galt, que cria uma narrativa episódica, conduzida sem pressa alguma pelo diretor. Ainda assim, as principais características da carreira de Kubrick estão presentes. Os enquadramentos perfeitos, as imagens impactantes e até mesmo o uso do plano-sequência, que aqui surge rapidamente antes da entrada de Bill no apartamento de um paciente falecido no qual será beijado pela filha dele e, com maior duração, no passeio pela orgia secreta que abordaremos em mais detalhes em instantes.

Sempre exigente na direção de atores, Kubrick extrai mais uma vez atuações marcantes, com destaque entre o elenco secundário para a jovem Leelee Sobieski na surreal cena dentro de uma loja de fantasias, na qual sua presença quase hipnótica como a filha do dono rouba nossa atenção sem que ela precise dizer quase nenhuma palavra. Sydney Pollack também convence como o rico amigo de Bill que o convida para a festa e Todd Field tem importante participação como o pianista que introduz Bill aquele mundo secreto.

Demonstrando coragem para surgir nua muitas vezes, Nicole Kidman tem uma boa atuação como Alice, ganhando destaque especialmente nas discussões com o marido e até mesmo na cena em que eles dois surgem drogados (criticada por alguns) que, apesar de algum exagero, convence. No diálogo mais importante do filme, Kidman demonstra muito bem o ressentimento de Alice com a visão de mundo do marido, questionando tabus e convenções sociais extremamente machistas ao afirmar que a mulher tem tantos desejos quanto o homem, escancarando que às vezes elas são mais comedidas apenas em função das limitações impostas pela sociedade. E aqui, vale observar como o tom azulado atrás dela já indica a melancolia que tomará conta da personagem após a revelação, enquanto o vermelho que domina o cenário atrás de Bill indica o caminho da paixão carnal e do “pecado” que ele irá seguir a partir dali. Após fumar maconha e abordar um assunto delicado que traz à tona segredos bem guardados, a tensão toma conta da narrativa enquanto Alice revela seus pensamentos eróticos, especialmente pela boa performance dos atores e pelos closes de Kubrick que ampliam esta tensão.

Presença quase hipnóticaTom azulado atrás delaVermelho atrás de Bill

No entanto, a boa performance de Kidman é superada pela atuação memorável de Cruise. Com mais tempo de tela e a responsabilidade de carregar a narrativa, o ator demonstra bem os conflitos de Bill e a aflição dele ao caminhar por um terreno desconhecido e lidar com o misto de curiosidade e medo diante daquilo tudo. Atormentado sempre que pensa na esposa com outro, algo reforçado pelo uso do preto e branco que simboliza sua angústia, ele decide partir em busca dos próprios desejos sufocados pela rotina da vida conjugal, mas sempre hesitante diante da culpa que, talvez inconscientemente, não deixa ele concretizar a traição – ao menos não sexualmente, já que ele tem um beijo roubado em certo momento. Curioso também é notar como ele não hesita em usar o fato de ser médico para conseguir o que quer, numa falta de ética que, por outro lado, reforça a necessidade de lembrar sua verdadeira identidade diante daquele universo que estava descobrindo.

Após a revelação da esposa, o predomínio de tons escuros, a roupa preta de Bill e a noite conferem um clima mais pesado à narrativa, reforçado pelo uso da música clássica – outra marca da carreira de Kubrick, aliás. E então, após a conversa com seu amigo pianista num bar, somos levados a sequência mais misteriosa de “De olhos bem fechados”, repleta de simbolismos e cercada de mistério. Trabalhando em riqueza de detalhes como só um perfeccionista como Kubrick poderia fazer, o diretor cria uma atmosfera incrivelmente misteriosa nos instantes prévios à festa secreta, nos levando para dentro do ambiente com a mesma sensação de aflição e ansiedade do protagonista. A extraordinária trilha sonora de Jocelyn Pook começa a martelar em nossa cabeça (especialmente a música “Backwards Priest”, executada no sentido inverso como nos rituais de magia negra) enquanto vemos Bill descobrindo aqueles corpos cobertos de roupas pretas, as máscaras venezianas e o líder vestido de vermelho no centro daquele ritual ocultista ocorrido dentro do antigo palácio Mentmore Towers – que, não por acaso, ficou marcado justamente pelas orgias em festas mascaradas da elite na vida real. Enfeitado com adereços que criam o clima perfeito para o ritual (design de produção de Les Tomkins e Roy Walker), o ambiente se torna ainda mais impactante pela iluminação magistral do diretor de fotografia Larry Smith, que realça o círculo central onde as belas jovens serão despidas antes de seguirem com seus parceiros para os outros cômodos do local.

Pensa na esposa com outroPredomínio de tons escuros, a roupa preta de Bill e a noiteRitual

As palavras da música pronunciadas ao contrário confirmam a intenção de soar como algo profano e o som das batidas do cajado no chão, reforçado pelo silêncio das pessoas, aumentam a sensação de aflição no espectador, criando a atmosfera de pesadelo defendida por algumas linhas de interpretação do filme. Para completar, a trilha sonora exótica que acompanha os travellings pelo salão repleto de pessoas transando e o mistério reforçado pelo uso das máscaras provocam um estranhamento que se mistura a curiosidade tanto do protagonista quanto do espectador. Da mesma forma, seu julgamento após ser descoberto provoca a mesma agonia na plateia, numa cena em que a tensão palpável quase salta da tela, tamanha a competência da direção de Kubrick.

Mas se tecnicamente “De olhos bem fechados” é perfeito, tematicamente o longa é ainda mais complexo, especialmente pelos simbolismos espalhados por Kubrick por toda a narrativa. Enquanto os espelhos funcionam como uma válvula para Alice enxergar quem ela verdadeiramente é, o arco-íris, que surge primeiro nas palavras das belas jovens que cortejam Bill e depois na fachada da loja de fantasias, representa a passagem da terra para o céu, a caminhada de Bill do lado de cá para o lado de lá, onde, segundo as jovens, seus desejos se realizariam. Some a isso todos os símbolos ocultos que permeiam o ritual da elite e temos um prato cheio para diversas interpretações.

No entanto, o fato é que o prazer sempre é interrompido na narrativa, evidenciando um dos temas centrais de “De olhos bem fechados”, que é o citado conflito entre a realidade e o sonho, o desejo carnal e as fantasias eróticas em contraposição à rotina da vida conjugal. Seria possível viver uma relação sem dar vazão às próprias fantasias ou este sufocamento leva as pessoas a imaginarem e sentirem desejos incontroláveis fora dali? Tudo que ocorre naquela noite é envolto em um ar de mistério. Por isso, até o diálogo revelador com o amigo Victor que parece solucionar o enigma na realidade também permite diversas leituras. Apesar de fazer todo sentido, não necessariamente precisamos acreditar naquela versão. Kubrick não quer entregar uma solução fácil e nos permite diversas interpretações, dentre elas aquela que afirma que tudo não passa de um sonho do médico – e que não descarto, apesar de não concordar totalmente com ela.

Os espelhosO arco-írisDiálogo revelador com o amigo Victor

Apesar da crise provocada pela revelação de Alice e da noite nada comum de Bill, a verdade é que nenhum deles chega de fato a transar com outra pessoa, ainda que as marcas da intenção de ambos de trair fiquem. Por isso, a conclusão da narrativa é perfeita e, curiosamente, constata um dos fatores que levou muitos dos fãs a se decepcionarem – especialmente aqueles que esperavam cenas tórridas do casal do momento na época. Após conversarem muito sobre tudo que viveram naquelas lúdicas 48 horas, Alice diz para Bill que eles precisavam urgentemente transar. Depois de tantas tentativas sem sucesso de ter algum prazer carnal, estava na hora deles resolverem este problema.

Escolhendo um casal extremamente famoso para protagonizar uma narrativa que envolve mistério, temas polêmicos e ainda questiona a rotina das relações conjugais, Kubrick não seguiu pelo caminho mais fácil e, mais uma vez, entregou uma obra capaz de levantar inúmeros questionamentos e reflexões. Assim, “De olhos bem fechados” acaba sendo a conclusão perfeita de uma carreira genial, ainda que soe melancólico justamente por marcar o fim da linha para um diretor extremamente talentoso e corajoso. Uma pena que o cinema tenha perdido Kubrick tão cedo.

De olhos bem fechados foto 2Texto publicado em 11 de Abril de 2016 por Roberto Siqueira

O GRANDE GOLPE (1956)

(The Killing)

 

Filmes em Geral #37

Dirigido por Stanley Kubrick.

Elenco: Sterling Hayden, Coleen Gray, Vince Edwards, Jay F. Clippen, Ted de Corsia, Marie Windsor, Elisha Cook Jr., Joe Sawyer e James Edwards.

Roteiro: Stanley Kubrick e Jim Thompson, baseado em livro de Lionel White.

Produção: James B. Harris.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Durante uma hora e vinte minutos, “O Grande Golpe”, segundo filme da bem sucedida carreira de Stanley Kubrick, é praticamente um filme perfeito. Infelizmente, seus últimos minutos deixam uma sensação de frustração não apenas em seu personagem principal, mas também no espectador, por perceber que, talvez pela pressão do estúdio na época por um final politicamente correto, a lição do “crime não compensa” entra em cena de maneira pouco orgânica e prejudica uma narrativa até então intrigante.

Após cumprir pena de 5 anos na cadeia, Johnny Clay (Sterling Hayden) resolve planejar um grandioso assalto a um hipódromo, que resolverá definitivamente os seus problemas e trará a desejada independência financeira para ele e para todos os integrantes do grupo. Mas para que tudo dê certo, ele terá que contar com o apoio do funcionário do hipódromo George (Elisha Cook Jr.), que simplesmente idolatra sua esposa Sherry (Marie Windsor). Só que Sherry tinha outras idéias, que poderão atrapalhar a execução do plano.

Escrito por Stanley Kubrick e Jim Thompson, baseado em livro de Lionel White, “O Grande Golpe” aborda temas ousados para sua época, a começar pelo próprio assalto, passando por traição e chegando até mesmo a incluir um suborno de um guarda num estacionamento. Esta cena, aliás, também aborda o preconceito racial, quando o atirador agride verbalmente o guarda local, rejeitando um presente que, ironicamente, provocaria a sua morte. E é interessante notar como em todos os casos citados a punição acontece. O grupo é punido pelo roubo e fica sem o dinheiro (muitos sem a vida), Sherry é punida por trair o marido com um tiro e o atirador também morre após agredir verbalmente o guarda. Ainda no inicio da carreira, Stanley Kubrick adota enquadramentos e movimentos de câmera convencionais, como durante uma conversa num bar, que alterna o tradicional plano médio entre os atores enquanto estes conversam. Mas o diretor se destaca especialmente na enérgica condução da narrativa, evitando nos deixar confusos ao mesmo tempo em que nos envolve completamente na trama – apesar da curiosa (e deslocada) voz do narrador -, apresentando todos os aspectos do intrigante plano com cuidado, mostrando cada etapa sendo executada separadamente e sempre parando em algum momento do assalto para voltar no tempo e mostrar como foi o dia de outro integrante do grupo. Obviamente, a excelente montagem de Betty Steinberg é fundamental para o sucesso desta estrutura narrativa pouco convencional na época, saltando no tempo e mostrando diversas ações paralelas que culminam no momento do assalto ao hipódromo.

Ainda assim, existem pequenos problemas, como a luta pouco realista que distrai os seguranças, que, por outro lado, mostra o ótimo trabalho de som, bastante convincente ao destacar os golpes e o barulho dos objetos quebrados no bar. Vale citar também os figurinos de Beaumelle, que adota o terno e gravata, conferindo profissionalismo ao grupo de ladrões, além da trilha sonora de Gerald Fried, que auxilia no ritmo empolgante da narrativa com suas batidas firmes, especialmente durante a execução do plano. Além disso, a direção de fotografia de Lucien Ballard utiliza muitas cenas noturnas para ilustrar o mundo obscuro daqueles ladrões profissionais através do constante uso das sombras.

Entre as atuações, vale destacar Sterling Hayden, que transforma o perigoso Johnny num personagem carismático e cria empatia com a platéia. Sempre convicto e com falas rápidas, ele se impõe naturalmente sobre o restante do grupo (“Pago muito para que não façam perguntas”, diz ele), e o ator tem grande mérito nisto. Também merece destaque o casal George e Sherry, cuja relação é fundamental para compreender a conclusão da narrativa, já que o excesso de confiança na esposa prejudicará não somente George, mas todo o grupo. Enquanto George é o verdadeiro marido “capacho”, Sherry é extremamente manipuladora, e Marie Windsor, abusando do cinismo, convence ao controlar o fraco George, interpretado por Elisha Cook Jr, que faz bem o papel de “homem dominado”. Observe, por exemplo, as trocas de olhares entre o casal, sempre com Sherry olhando com firmeza e George submisso, evitando o olhar e com o semblante apreensivo. Agora compare estas seqüências com o excelente momento em que Sherry sugere que foi assediada, quando George arregala os olhos ilustrando toda sua preocupação com a amada esposa. Esta devoção será fundamental na narrativa, pois permitirá que Sherry saiba do plano e resultará na matança geral do terceiro ato.

Após a meticulosa reconstituição do dia de cada integrante do grupo, chegamos então à conclusão do plano. Para sorte de todos, e também por mérito do excepcional trabalho em conjunto, o golpe é executado exatamente como planejado – e a cena em que Johnny invade o caixa com a máscara de palhaço é marcante, revelando também o bom trabalho de direção de arte de Ruth Subotka. O grupo só não contava com a traição de Sherry e a aparição de seu amante Val (Vince Edwards), que provoca um tiroteio e resulta na morte de praticamente todo o grupo. Nem mesmo Sherry escapa, pois George, furioso, volta para casa e, inconformado com a traição, atira na amada esposa. Após toda esta confusão, Johnny, o mais esperto de todos, conta com a sorte e sai ileso e com o dinheiro. Ele coloca toda a fortuna numa mala e parte com a esposa para o aeroporto, de onde pretende fugir para outra cidade. E este seria um final sensacional, mas, infelizmente, um cachorro (que funciona como um “deus ex machina”) termina com “o grande golpe” e nos deixa com a sensação de que tudo foi em vão – ou pior, de que aquela solução foi encontrada de qualquer maneira para evitar que o criminoso saísse como vencedor na história. Mas tudo bem, este final moralista é até compreensível pela época em que o filme foi realizado e o trabalho feito até então não pode ser desmerecido por causa desta falha.

Provavelmente sob forte supervisão do estúdio e com pouca liberdade, Stanley Kubrick mostra seu talento neste “O Grande Golpe”, prendendo nossa atenção com sua narrativa ágil e envolvente, mas se rende ao moralismo e entrega um final decepcionante. Felizmente, alguns anos depois o genial diretor teria total liberdade para nos brindar com inúmeras obras marcantes. Em todo caso, seu segundo filme tem o mérito de lançá-lo definitivamente na indústria do cinema, além de ser um dos precursores do delicioso subgênero dos filmes de roubo.

Texto publicado em 24 de Janeiro de 2011 por Roberto Siqueira

NASCIDO PARA MATAR (1987)

(Full Metal Jacket)

 

Videoteca do Beto #58

Dirigido por Stanley Kubrick.

Elenco: Matthew Modine, Adam Baldwin, Vincent D’Onofrio, R. Lee Ermey, Dorian Harewood, Arliss Howard, Kevyn Major Howard, Ed O’Ross, John Terry, Kieron Kecchinis, Kirk Taylor, Jon Stafford, Ian Tyler, Papillon Soo e Bruce Boa.

Roteiro: Michael Herr e Stanley Kubrick, baseado em livro de Gustav Hasford.

Produção: Stanley Kubrick.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido o filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Após dirigir uma seqüência incrível de grandes filmes entre 1960 e 1980, o genial Stanley Kubrick fez uma pausa de sete anos, voltando em grande estilo com este “Nascido para Matar”, visão peculiar do diretor sobre a guerra do Vietnã, conflito que inspirou tantas obras sensacionais na história recente do cinema. Apesar do ótimo resultado alcançado, o longa de Kubrick é claramente inferior aos excepcionais “Platoon”, lançado um ano antes, e à obra-prima “Apocalypse Now”, de 1979. Ainda assim, consegue ser um filme acima da média, que foca boa parte de sua narrativa em outro aspecto pouco explorado nos filmes do gênero, que é o treinamento que transforma jovens em verdadeiras máquinas de matar.

O rígido sargento Hartman (R. Lee Ermey) é o responsável pelo treinamento cruel, e por vezes até mesmo sádico, de jovens soldados norte-americanos que serão enviados para a guerra do Vietnã. Os métodos nada suaves do sargento transformarão aqueles jovens em combatentes impiedosos, mas nem todos eles têm estrutura psicológica para agüentar a pressão, o que leva a um resultado trágico. Após chegar ao Vietnã, os soldados terminarão seu processo de transformação total ao se deparar com os horrores da guerra. E aqueles que conseguirem voltar pra casa, já estarão mudados para sempre.

Se o espectador busca em “Nascido para Matar” um filme repleto de ação, com explosões e tiroteios ensandecidos, vai se decepcionar. O roteiro de Michael Herr e Stanley Kubrick, baseado em livro de Gustav Hasford, desenvolve os personagens com calma, permitindo ao espectador conhecer muitas de suas características durante o treinamento e acompanhar a completa transformação deles. Além disso, divide claramente a narrativa em duas partes: o treinamento e a guerra. Portanto, durante metade da projeção somos apresentados aos métodos cruéis utilizados para formar jovens soldados e somente na segunda metade é que os conflitos realmente entram em cena. Curiosamente, é na primeira metade que está a melhor parte da narrativa. É extremamente cativante acompanhar personagens fascinantes como o sargento Hartman e os soldados Pyle (Vincent D’Onofrio) e Hilário (Matthew Modine) durante a fase de treinamento. Ironicamente, o maior problema de “Nascido para Matar” acontece no ponto de virada entre o treinamento e a guerra, quando os dois melhores personagens do longa saem tragicamente de cena, o que claramente enfraquece a segunda metade do filme. Este problema poderia ser amenizado pela montagem de Martin Hunter, caso as duas histórias fossem contadas simultaneamente. Desta forma, o impacto da narrativa seria muito maior no espectador, que tentaria descobrir porque Pyle não seguiu com os outros para a guerra. “Teria ele desistido?” poderíamos pensar, e a surpresa viria no final com o impactante desfecho do treinamento. Infelizmente, este chocante final do treinamento é apresentado ainda na primeira metade do filme e deixa o espectador “órfão” dos melhores personagens até então. Apesar disto, a montagem trabalha muito bem durante toda a empolgante seqüência do treinamento, que segue num ritmo intenso e agradável, e também é competente nas seqüências no Vietnã, cheias de energia e realismo.

Mais uma vez, Kubrick extrai de sua equipe um trabalho técnico impecável que resulta no belíssimo visual do longa, como podemos notar através dos figurinos de Keith Denny e da direção de arte de Keith Pain, Nigel Phelps, Rod Stratfold e Leslie Tomkins, que ambientam com competência o espectador ao clima do filme tanto nos treinamentos quanto no combate, através dos uniformes de guerra e, principalmente, do excepcional visual dos destroços da cidade, já no terceiro ato. Vale ressaltar também a boa direção de fotografia de Douglas Milsome, que destaca o verde, cada vez menos vivo – assim como a esperança dentro daqueles corações endurecidos – misturado ao cinza, que simboliza a tristeza daqueles jovens soldados. Finalmente, vale destacar a boa trilha sonora de Vivian Kubrick, composta por excelentes canções.

Entre o elenco, vale destacar o citado trio de personagens, muito bem interpretados por Ermey, D’Onofrio e Modine. Kubrick costumava ser extremamente exigente com seus atores, repetindo tomadas inúmeras vezes até alcançar o resultado que desejava. Aqui, novamente o resultado é bastante competente. O close durante o corte de cabelo dos soldados, seguido por outro close, agora no tenente Hartman, serve como apresentação dos personagens e permite ao espectador se familiarizar com todos eles. E entre tantos interessantes personagens, o maior destaque vai mesmo para o sargento Hartman. A incrível capacidade de criar frases repletas de diversos palavrões deixam claro logo de cara o estilo durão do sargento, interpretado magnificamente por R. Lee Ermey, que utilizou seu conhecimento (ele era sargento de verdade) para improvisar todas aquelas frases. Firme e determinado a transformar aqueles jovens em soldados completos, o sargento não dá trégua para ninguém e busca enrijecer o coração de cada um deles. Hartman alcança seu objetivo, mas o resultado é trágico, principalmente pra ele. Outro interessante personagem é o recruta Hilário (Joker em inglês), que mostra sua capacidade de liderança durante o treinamento, conseguindo extrair melhores resultados do engraçado Pyle. Hilário, interpretado por Matthew Modine, será o fio condutor da narrativa e, apesar da boa atuação de Modine, claramente é um personagem sem a mesma força de Pyle e Hartman. Ainda sim, consegue a empatia do espectador. Finalmente, vale destacar a grande atuação de Vincent D’Onofrio na pele do gordinho Pyle (D’Onofrio teve que engordar muitos quilos para viver o personagem). Inicialmente tranqüilo e até mesmo inocente, o recruta vai lentamente sendo degradado pelo ambiente hostil e sua transformação se consuma quando é atacado de madrugada pelos companheiros, revoltados com as punições sofridas por sua culpa – observe como durante a surra dos soldados em Pyle, a fotografia azulada reflete a frieza de todos eles naquele momento. A partir deste instante, ele para de falar, muda o olhar e demonstra claramente sua revolta, numa atuação inspirada de Vincent D’Onofrio, acentuada ainda mais pela câmera de Kubrick, como no zoom em seu olhar raivoso, que simboliza sua completa transformação. O resultado daquele treinamento pesado foi trágico para Pyle, que enlouqueceu, e ainda mais trágico para Hartman.

Stanley Kubrick mantém em “Nascido para Matar” o seu costumeiro preciosismo na direção, com enquadramentos milimétricos e planos perfeitos. Mas o diretor também mostra competência nas cenas de combate, como podemos observar, por exemplo, durante uma invasão no Vietnã em que a câmera acompanha os soldados, conferindo bastante realismo à cena. Kubrick também estiliza o visual durante a morte de “Bola 8” (Dorian Harewood), utilizando a câmera lenta para aumentar o impacto do ataque enquanto o sangue jorra do corpo do soldado. O diretor cria ainda um belo plano, sob o ponto de vista de um atirador escondido num prédio, seguido por um zoom que nos aproxima da vítima segundos antes do tiro fatal. Além disso, demonstra sua competência também na condução das duas melhores seqüências do longa. A primeira delas, a sensacional seqüência dentro do banheiro (“7,62 milímetros, full metal jacket!”), é a melhor do filme, resultando na impactante morte de Hartman seguida pelo suicídio de Pyle. Infelizmente, acontece muito cedo e de certa forma esvazia o restante da narrativa. Mas o último ato reserva para o espectador outra grande seqüência, durante a tensa invasão do prédio em meio às chamas, que culmina com a execução da atiradora vietnamita em câmera lenta, num balé muito bem dirigido por Kubrick. Neste momento, Hilário encara sua hora da verdade e consuma sua completa transformação, assassinando a sangue frio a vítima indefesa. E seu pensamento final só confirma sua mudança, ratificando o único interesse de qualquer pessoa que se envolva desta maneira na guerra (“Estou num mundo de merda, mas estou vivo”), num contraponto excelente a frase dita por Pyle momentos antes de se suicidar (“Estou num mundo de merda!”) – o que reforça a tese de que se a montagem alternasse as duas histórias de forma paralela, o final seria ainda mais marcante.

Kubrick, assim como outros importantes cineastas ao longo da história do cinema, também fez seu estudo da guerra e dos efeitos que ela provoca na mente do ser humano. A insanidade da guerra levou, por exemplo, um fuzileiro a atirar em crianças e mulheres nos campos do Vietnã, em outra cena chocante do longa. Na visão do diretor, a distância entre a paz e a extrema violência é pequena na mente do ser humano. Basta que ele seja provocado e preparado para se transformar numa máquina assassina. Este pensamento é ilustrado no principal personagem do filme, através do broche da paz no peito e do capacete escrito “Nascido para Matar”, que simboliza perfeitamente a dualidade do homem, como o próprio Hilário diz em certo momento. Kubrick aborda também, de maneira mais sutil, a visão norte-americana do conflito, através da interessante entrevista dos soldados para uma televisão (“Estamos morrendo por eles…”).

“Nascido para Matar” mostra como o exército transforma jovens em verdadeiras máquinas de matar, assim como a guerra endurece seus corações, alterando sua visão do mundo para sempre. Dirigido e interpretado com competência, não deixa de ser um ótimo filme, mas poderia ser ainda melhor com alguns pequenos ajustes. De qualquer forma, deixa sua mensagem, ainda que não seja tão contundente como outras obras do excepcional diretor.

Texto publicado em 15 de Maio de 2010 por Roberto Siqueira

BARRY LYNDON (1975)

(Barry Lyndon)

 

Videoteca do Beto #43

Dirigido por Stanley Kubrick.

Elenco: Ryan O’Neal, Marisa Berenson, Patrick Magee, Hardy Kruger, Steven Berkoff, Leon Vitali, Gay Hamilton, Leonard Rossiter, Marie Kean, Murray Melvin, Frank Middlemass, André Morell, David Morley e Diana Koerner.

Roteiro: Stanley Kubrick, baseado em livro de William Makepeace Thackeray.

Produção: Stanley Kubrick.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido o filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

“Barry Lyndon” é acima de tudo um deleite visual. A recriação perfeita de época nos faz ter a exata sensação de que estamos realmente testemunhando aquele período da história da humanidade. Não bastasse isso, o filme ainda traz um belo estudo de personagem, mostrando em detalhes e sem pressa a trajetória de um simples jovem irlandês que alcança o topo da sociedade inglesa. Novamente o gênio Stanley Kubrick brinda o espectador com uma obra maravilhosa, que retrata como poucas o período em que se passa a narrativa e cria imagens que poderiam tranquilamente ser vendidas como quadros valiosos.

Barry (Ryan O’Neal) é um jovem irlandês aventureiro que é obrigado a deixar seu país após vencer um duelo armado, em pleno século XVIII. Nesta trajetória, passa por diversos obstáculos até alcançar a alta sociedade inglesa e tornar-se, através de um casamento com uma viúva local, um dos nobres da região. Mas seu destino não será feito apenas de glórias.

O visual magnífico de “Barry Lyndon” é resultado de um trabalho técnico impecável, comandado com firmeza por Stanley Kubrick, que utilizou quadros daquele período como inspiração. Os figurinos detalhados e idênticos aos utilizados no século XVIII (mérito de Milena Canonero e Ulla-Britt Söderlund), a detalhada e precisa direção de arte de Roy Walker, que recria desde o interior dos castelos aos pequenos detalhes como a arma utilizada nos duelos, e a fotografia deslumbrante de John Alcott, que explora as lindas paisagens e capta com precisão os ambientes internos iluminados somente à luz de velas (graças a uma lente especial feita para a Nasa) são os responsáveis diretos pelo deslumbrante visual do longa. É claro que os enquadramentos milimétricos de Kubrick e seu habitual perfeccionismo estão diretamente ligados ao esplendor visual que deleita os olhos dos espectadores. Até mesmo o zoom utilizado exaustivamente pelo diretor em “Barry Lyndon” é importante, pois nos entrega lentamente aos belíssimos planos, como se fossem verdadeiros quadros renascentistas. Estas obras de arte em movimento parecem praticamente vivas e precisam ser apreciadas lentamente e o zoom nos permite contemplar cada detalhe, como se estivéssemos realmente vendo uma pintura. Pra completar, a maquiagem retrata exatamente os costumes dos homens e mulheres da época, como podemos notar, por exemplo, durante os jogos de cartas ou nos encontros da alta sociedade inglesa, e a bela trilha sonora de Leonardo Rosenman e The Chieftains utiliza flautas e piano para compor melodias clássicas que nos ambientam ainda mais ao período medieval.

Mas “Barry Lyndon” não vive apenas das belíssimas imagens que possui. O roteiro cheio de estilo do próprio Kubrick (baseado em livro de William Makepeace Thackeray) é ácido – quando na voz do narrador – e repleto de diálogos maravilhosos – quando nas vozes dos personagens. Além disso, mostra com competência como era o jogo de interesses na época para aumentar o nível social e as posses da família, como podemos perceber logo no inicio através do casamento arranjado de Nora (Gay Hamilton) e John Quin (Leonard Rossiter) e, posteriormente, com o casamento de Barry e Lady Lyndon (Marisa Berenson). Outra curiosa característica do roteiro é não fazer questão de surpreender o espectador, revelando detalhes importantes com considerável antecedência através do misterioso narrador, que avisa, por exemplo, a futura morte de Bryan (David Morley) e, desta forma, prepara o espectador para o que virá a acontecer, evitando o melodrama. Observe que até mesmo os capítulos revelam o destino de Barry nas duas vezes em que aparecem. A narração, aliás, é um dos destaques do longa, repleta de frases irônicas e satíricas, como quando o narrador explica que o casal Lyndon passa a viver separado para que a mãe cuide das crianças enquanto Barry se encarrega dos prazeres do mundo. O bom humor também se mostra presente nas criativas formas em que Barry encontra para escapar das diversas situações em que se envolve, como quando acidentalmente se depara com os uniformes de dois líderes homossexuais do exército britânico ou quando se passa pelo Chevalier (Patrick Magee) para fugir de Berlim e do exército da Prússia.

Além do humor refinado, Kubrick também faz em “Barry Lyndon” um minucioso estudo de personagem. A transição de um jovem idealista e correto para um homem interesseiro e grosseiro é extremamente lenta e quase imperceptível, graças ao ritmo empregado à narrativa. Desta forma, mal percebemos que Barry sofre tamanha transformação, até porque o personagem jamais é retratado como uma pessoa boa ou má, como a mensagem final faz questão de reforçar. Mesmo quando se mostra um péssimo marido e um homem violento, especialmente contra seu enteado, Barry também demonstra qualidades que o aproximam do espectador, como o fato de ser um excelente pai. A montagem de Tony Lawson é diretamente responsável por manter este ritmo lento e contemplativo do filme, que apropriadamente permite ao espectador se deliciar com as belíssimas imagens que vê. Nem por isso deixa de conduzir a narrativa por muitos anos sem jamais soar episódica (a não ser pela divisão em capítulos), como podemos notar no salto sutil de oito anos da infância de Lorde Bullingdon (Leon Vitali) para a infância de Bryan Lyndon.

A tensa seqüência da saída de Barry da Irlanda, que inicia quando ele atira vinho em John e termina com o tenso duelo armado, é também o inicio da caminhada do jovem irlandês rumo à alta sociedade inglesa. Nesta trajetória, vamos lutar junto com ele e viver cada aventura ao lado do jovem Barry. Observe como Kubrick nos joga dentro da luta quando ele enfrenta um soldado no exército. A câmera agitada, o som dos socos e o barulho das pessoas em volta criam um clima muito real na cena. Interessante notar também como a acidez já citada é ainda mais perceptível nesta fase da vida de Barry, como quando o narrador diz que as razões da guerra não precisam ser explicadas, a não ser por filósofos ou historiadores. Na realidade, este trecho é uma crítica a insanidade da guerra. (“É bom sonhar com uma guerra gloriosa em uma poltrona em casa. Outra coisa é participar dela.”). E se o espectador se sente dentro da narrativa é também por causa do bom nível das atuações. Ryan O’Neal vive Barry Lyndon com sutileza, mantendo um ar misterioso e compenetrado em sua obsessão por alcançar a alta sociedade. Barry é esperto, jamais deixando de tomar o caminho que lhe seja vantajoso, mesmo que tenha que se rebaixar para isso, como quando aceita ser voluntário no exército da Prússia. O’Neal consegue transmitir emoção também nas cenas dramáticas, como em seu choro emotivo ao perder seu padrinho, e principalmente quando perde o filho Bryan. E os destaques não param por aí. Desde o momento em que a troca de olhares entre Barry e Lady Lyndon indica o interesse da moça, Marisa Berenson mostra sua qualidade como atriz, ampliada posteriormente com o crescente sofrimento que a personagem terá de enfrentar, e alcançando seu ponto alto na perda de Bryan e em sua tentativa de suicídio. No restante do eficiente elenco, destacam-se Leon Vitali como Lorde Bullingdon e Frank Middlemass como Sir Charles Lyndon.

O ataque furioso de Barry Lyndon ao jovem Lorde Bullingdon, captado com precisão por Kubrick, desencadeia todas as desgraças que se abatem sobre a vida dele. O eminente título inglês que conseguiria se perde, assim como a estabilidade da família. Pra piorar as coisas de vez, ao presentear seu amado filho, Barry acaba sofrendo a maior perda de sua vida. A tocante cena da despedida de Bryan inicia a seqüência final onde a vida de Barry Lyndon tomará seu destino trágico e deprimente. O reencontro com Bullingdon só fechará este ciclo cruel na vida do irlandês. E seu final, sozinho, pobre e debilitado, não condiz com a interessante vida que ele teve.

Não contente em criar uma visão assustadora do futuro em “Laranja Mecânica” e em possibilitar inúmeras interpretações para o destino da humanidade em “2001, uma odisséia no Espaço”, Stanley Kubrick decidiu também olhar para o passado e fazer um retrato minucioso e absolutamente deslumbrante do século XVIII neste magnífico “Barry Lyndon”. Repleto de planos capazes de tirar o fôlego de qualquer um, este grande trabalho do genial diretor também brinda o espectador com uma intrigante estória, que acompanha a trajetória de um jovem sonhador até sua completa transformação naquilo que mais odiava. E nem por isso podemos dizer que ele era uma má pessoa, pois era apenas um ser humano, com defeitos e virtudes. Exatamente como o diretor de “Barry Lyndon”, chato, perfeccionista, mas dono de um talento assombroso, capaz de deixar na historia do cinema tantas obras marcantes. E Barry Lyndon é mais uma delas.

Texto publicado em 04 de Fevereiro de 2010 por Roberto Siqueira

SPARTACUS (1960)

(Spartacus)

 

Videoteca do Beto #40

Dirigido por Stanley Kubrick.

Elenco: Kirk Douglas, Laurence Olivier, Peter Ustinov, Jean Simmons, Charles Laughton, Tony Curtis, John Gavin, Nina Foch, John Ireland, Herbert Lom, John Dall, Charles McGraw, Joanna Barnes, Harold Stone, Woody Strode e Peter Brocco.

Roteiro: Dalton Trumbo, baseado em livro de Howard Fast.

Produção: Edward Lewis.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido o filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Extremamente atraente visualmente, o épico de Stanley Kubrick “Spartacus” é também um drama bastante humano sobre a luta de um escravo contra a opressão do imponente império Romano. Mesmo sem a costumeira liberdade artística que conseguiria alguns anos depois, Kubrick consegue realizar um excelente trabalho, construindo seqüências maravilhosas e narrando uma história extremamente cativante com a habitual competência.

Um escravo chamado Spartacus (Kirk Douglas), condenado à morte por morder um guarda, é comprado por um agente de gladiadores e levado para ser treinado como tal. Ao ser colocado na arena para servir de espetáculo para dois casais romanos e ser poupado por seu oponente, Spartacus vê crescer dentro de si a fúria contra o império romano, que explode de vez quando sua amada Varinia (Jean Simmons) é vendida e levada para Roma. Sua revolta rapidamente se transforma numa verdadeira rebelião contra Roma, que tomará proporções épicas e terminará de forma trágica para a maioria dos envolvidos.

Os gladiadores em “Spartacus” eram homens treinados somente para matar. Seus corpos esculpidos eram capazes de impressionar as mulheres romanas, arrancando sorrisos e olhares nada discretos por parte delas. Por outro lado, estes homens intuitivamente não estabeleciam relações de amizade entre si, pois sabiam que um dia poderiam ter que se enfrentar na arena. Exatamente quando descobre esta particularidade, Spartacus acaba mudando o conceito, e o gladiador que o contestou numa conversa sobre o assunto é justamente aquele que não consegue matá-lo na arena, mesmo com o oponente completamente dominado, justamente por causa da pequena conexão criada entre eles. Esta conexão se transforma então num sentimento muito maior, existente entre todos os gladiadores e escravos, quando Spartacus, ao ver sua amada ser vendida e levada para Roma, inicia sua rebelião.

Como podemos perceber, o bom roteiro de Dalton Trumbo (baseado em livro de Howard Fast) é repleto de momentos extremamente marcantes, como a emocionante frase repetida por todos os prisioneiros (“Eu sou Spartacus!”), após a sangrenta batalha entre romanos e escravos. Além disso, é dono de uma coragem ímpar para sua época, como podemos notar no diálogo entre Crassus (Laurence Olivier) e Antoninus (Tony Curtis) sobre ostras e caracóis, claramente contendo um subtexto homossexual (lembre-se, o filme é de 1960). O jogo de interesses pelo poder também é muito bem retratado no longa, reforçando a qualidade do roteiro de Trumbo. Notável também é o resultado alcançado pela direção de fotografia de Russell Metty (supervisionada tão de perto por Kubrick que Metty pediu para não ser creditado), que destaca cores áridas na primeira parte do filme (marrom, amarelo e bege) refletindo o clima quente e seco em que os escravos viviam, e posteriormente, alterna de cores fortes nas belas planícies para o mergulho nas sombras dentro dos ambientes pouco iluminados da época. O bom trabalho de montagem de Robert Lawrence alterna com consistência entre as seqüências de ação (treinamento, guerra), romance (Spartacus e Varinia) e até mesmo as sutilezas políticas nos bastidores do senado romano. Além disso, a montagem cria um grande momento quando os dois líderes (Spartacus e Crassus) estão discursando para os seus seguidores. A perfeita ambientação à época do império romano se consolida através da boa direção de arte de Eric Orbom e dos belos figurinos da dupla Valles e Bill Thomas, tornando aquele universo bastante crível. A bela trilha sonora de Alex North completa o ótimo trabalho técnico, alternando entre momentos leves e sentimentalistas (quando a cena envolve Varinia) e acordes rápidos e fortes (durante o treinamento), alcançando seu ápice durante a batalha final, em tom triunfal.

Mas Spartacus não é apenas um esplendor técnico. As atuações mantém o bom nível do longa, a começar por Kirk Douglas, que encarna Spartacus, o escravo que virou líder da rebelião, com grande vigor. Sua firmeza na condução de milhares de pessoas demonstra seu extinto nato de liderança, e Douglas é competente ao transmitir a firmeza necessária ao personagem. O ator também se mostra competente nos momentos sutis, como quando diz que Antoninus tem grande valor e que ele tem sede de saber (“Um animal aprende a lutar, mas recitar coisas bonitas… Sou livre e não sei ler, quero aprender tudo. Quero saber de onde vem o vento…”). Nas palavras de Varinia, Spartacus era forte o suficiente para ser fraco, demonstrando sentimentos e se mostrando alguém bastante humano, como fica claro quando tem a oportunidade de salvar sua pele e da sua família, mas ao invés disso, manda embora quem fez a oferta, extremamente ofendido pela idéia de deixar os outros escravos para trás. Além disso, o romance entre Spartacus e Varinia só é verossímil devido à excelente química do casal. O interesse de Spartacus por Varinia era verdadeiro (“Eles a machucaram?”), e ela sente isto. A paixão nasce quando ele a trata como uma pessoa, uma mulher de verdade, e não uma escrava sexual que está ali para servi-lo. Esta paixão será o estopim da revolta de Spartacus, que iniciará sua luta contra Roma no momento em que ver Varinia deixar os portões da cidade. Jean Simmons é a parceira ideal para Douglas, vivendo Varinia com sensualidade e sensibilidade. Seus grandes momentos acontecem justamente quando contracena com o escravo, criando empatia com o espectador, como em seu reencontro com Spartacus após ser levada para Roma, o momento em que conta que está grávida e a triste despedida do casal.

Completando o elenco, Charles McGraw é bem firme como Marcellus, o ex-gladiador que agora é treinador (“Teria o visual de Maximus, de Gladiador, sido inspirado nele?”). Peter Ustinov também está muito bem como o esperto agente de escravos Lentulus Batiatus. Repare como ao pressentir que o local estava em ebulição, ele foge sem pestanejar, largando tudo para trás, momentos antes da rebelião se consumar. Charles Laughton tem uma grande atuação como o senador Gracchus, que faz questão de deixar bem claro qual é o único meio de se manter vivo no sujo universo do senado romano (“Em Roma, a dignidade encurta a vida mais que a doença”). E finalmente, Laurence Olivier cria um Marcus Crassus absolutamente temível, alternando repentinamente seu senso de humor, por exemplo, quando está com Varinia. Sua crueldade fica evidente quando finalmente chega ao poder. Sua sede não era apenas por capturar Spartacus, ele queria “matar a lenda”. Mas suas atitudes tiveram um efeito contrário. Interessante notar como o cruel Crassus se rende ao poder de sedução da mulher quando vê Varinia, levando-a para viver com ele. Por mais cruel que seja, um homem jamais resiste aos encantos femininos.

E finalmente, não podemos deixar de destacar o homem responsável por este grande épico. Stanley Kubrick dirige “Spartacus” com a firmeza costumeira, trabalhando nos pequenos detalhes para criar cenas absolutamente inesquecíveis. Repare, por exemplo, o plano deslumbrante da caminhada dos escravos, já livres, filmado de cima de um monte, ou o curioso ponto de vista de Spartacus enquanto aguarda ansioso para lutar na arena, olhando pela fresta da madeira. Kubrick ainda comanda duas seqüências absolutamente sensacionais. A primeira delas é a rebelião dos gladiadores e a conseqüente fuga do local onde eram treinados, filmada com muito vigor e realismo. Ainda mais impressionante é a espetacular seqüência da batalha final, com movimentos orquestrados de mais de oito mil figurantes, movimentos de câmera extremamente ágeis e um ritmo alucinante completamente coerente com o momento, tornando a cena bastante realista. Um exemplo de grande direção. Destaca-se nesta seqüência o excelente trabalho de som que trabalha em pequenos detalhes, como o barulho das espadas, e em grande escala, através dos gritos da multidão.

A bela e triste cena final emociona, quando Spartacus, à beira da morte, conhece seu filho, que viverá livre como ele sonhou. O triste desfecho resume bem o fio condutor da trama. A luta de um homem para conseguir ser livre, viver normalmente e ter uma família. E exatamente por retratar esta batalha focando o drama de um homem só que “Spartacus” se torna bastante humano. O espectador se identifica com o drama que vê na tela, o que não aconteceria se apenas acompanhasse milhares de homens lutando em campo aberto, sem saber as motivações de cada um. As razões do conflito ficam claras e o espectador sabe o que está em jogo.

“Spartacus” não é o grande trabalho da vida de Stanley Kubrick, que faria depois pelo menos duas obras-primas da história do cinema. Mas nem por isso deixa de ser um grande filme, lindamente fotografado, com uma estória apaixonante e envolvente e, pra variar, extremamente bem dirigido. Contando ainda com excelentes atuações, o longa garante a diversão e prova que as grandes produções podem sim oferecer bom entretenimento, sem ofender a inteligência do espectador.

Texto publicado em 29 de Janeiro de 2010 por Roberto Siqueira

O ILUMINADO (1980)

(The Shining)

 

Videoteca do Beto #21

Dirigido por Stanley Kubrick.

Elenco: Jack Nicholson, Shelley Duvall, Danny Lloyd, Scatman Crothers, Barry Nelson, Philip Stone, Joe Turkel, Anne Jackson, Tony Burton e Barry Dennen.

Roteiro: Diane Johnson e Stanley Kubrick, baseado em livro de Stephen King.

Produção: Robert Fryer e Stanley Kubrick.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido o filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Mais uma vez o diretor de clássicos como “2001 – Uma Odisséia no Espaço” e “Laranja Mecânica” deixa o espectador repleto de questionamentos ao misturar o estudo dos efeitos causados pelo isolamento sobre a mente humana com visões sobrenaturais que podem ter múltiplas interpretações. O constante clima de um eletrizante suspense, recheado com ingredientes assustadores capazes de provocar frio na espinha da mais incrédula das pessoas, faz deste “O Iluminado” o clássico fantasmagórico de Stanley Kubrick, reafirmando o incrível talento deste gênio da sétima arte.

Durante o inverno, Jack Torrance (Jack Nicholson) é contratado para cuidar de um hotel no Colorado, para onde vai com sua mulher Wendy (Shelley Duvall) e seu filho Danny (Danny Lloyd). O problema é que o isolamento começa a afetar sua mente e ele se torna cada vez mais perigoso, ao mesmo tempo em que seu filho descobre pertencer a um seleto grupo de pessoas conhecidas como os “iluminados” e começa a ter visões de acontecimentos ocorridos no passado.

O travelling inicial pelos montes, acompanhando o carro na estrada ao som da assustadora trilha sonora, nos ambienta perfeitamente ao clima de “O Iluminado”. Kubrick nos introduz lentamente aos assustadores elementos da narrativa, como o amigo imaginário de Danny e a história do hotel Overlook contada para Jack, utilizando uma angustiante divisão em capítulos que cria um clima crescente de suspense, atenuado pela conversa sobre canibalismo da família a caminho do Hotel, onde as falas parecem ser mais lentas, tendo pequenas pausas entre elas. Kubrick prova novamente seu talento gigantesco ao abusar de enquadramentos perfeitos, utilizando muitos planos gerais e criando imagens de forte impacto, além de utilizar seu tradicional zoom, por exemplo, quando Dick (Scatman Crothers) está deitado na cama e tem uma visão. Observe também o intimidante plano de Jack brincando com a bola no saguão, mostrando o quanto o hotel Overlook pode ser assustador. O diretor também cria, com a colaboração da excepcional montagem de Ray Lovejoy, uma transição espetacular da maquete admirada por Jack para o belíssimo labirinto de verdade, numa tomada incrivelmente distante e encantadora. Faz ainda um plano de Jack trancado na dispensa que lembra a cena em que Frank, na porta do banheiro, reconhece Alex em “Laranja Mecânica”, numa interessante auto-referência.

Como é de costume nos filmes dirigidos por Kubrick, a parte técnica é nada menos que espetacular. A fotografia branca, limpa, quase asséptica de John Alcott reflete a loucura e o vazio de Jack, isolado naquele hotel. Kubrick utilizou muitas luzes nas enormes janelas para criar um visual que aumentasse esta sensação, além das tradicionais lentes que captam com precisão praticamente todo o cenário. Com o passar do tempo e o aumento da loucura de Jack, a fotografia vai escurecendo, se tornando menos nítida, até finalmente se tornar fria, em tons azulados, com a neve atrapalhando completamente a visão, num reflexo do atordoado estado mental dele. Os cenários coloridos e incrivelmente iluminados (tapetes e paredes coloridos, luminárias e janelas enormes e reluzentes) criam um ambiente intimidador e praticamente com vida, graças ao talentoso trabalho de direção de arte de Leslie Tomkins. Repare como o tapete laranja, vermelho e marrom, em Danny brinca com carrinhos antes de ver a porta 237 aberta, tem um efeito hipnótico, nos levando pra dentro do quarto junto com ele quase que inconscientemente. Outro exemplo é o banheiro onde Jack e Grady (Philip Stone) se encontram e tem um diálogo decisivo, que propositalmente é colorido em vermelho e branco, simbolizando o sangrento caminho que Grady influenciaria Jack a seguir. O som também colabora com o clima de tensão através do uivo do vento durante a nevasca ou, por exemplo, quando Danny passeia de triciclo pelo Hotel e alterna entre o alto barulho dos tacos de madeira e o silencio absoluto do tapete. Note como Kubrick deixa a câmera no nível do triciclo, nos colocando na posição do garoto e, portanto, vulneráveis a qualquer perigo que possa aparecer. E finalmente, a assustadora trilha sonora de Wendy Carlos e Rachel Elkind tem um tom muito sombrio, além de pontuar muito bem algumas cenas, como na primeira aparição do Labirinto.

Com todo este trabalho técnico de primeiro nível, o diretor só precisava de atores capazes de extrair do excelente roteiro, escrito por Diane Johnson e pelo próprio Stanley Kubrick, atuações do mesmo nível. E felizmente, o elenco de “O Iluminado” é muito competente. A começar pela sensacional atuação do ótimo Jack Nicholson. Inicialmente uma pessoa tranqüila e de bem com vida, como podemos perceber quando chega ao Hotel e brinca com as garotas que estão saindo, seu Jack vai lentamente sendo tomado pela loucura causada pelo isolamento. Também colabora com sua perturbação o fato dele, pelo menos teoricamente, pertencer ao grupo dos “iluminados”, e por isso ter visões nada convencionais. O excelente roteiro, aliás, tem um mérito inquestionável, que é justamente jamais deixar claro se as visões de Jack, Danny e posteriormente Wendy, são realmente visões fantasmagóricas ou apenas alucinações provocadas pelo isolamento. A transição de Jack, de pessoa tranqüila para completamente enlouquecido, é lenta e consistente. Os sinais vão aparecendo lentamente (outro mérito do roteiro), como na conversa entre Jack e Wendy a respeito de sua dificuldade para escrever com ela ao lado, sua conversa com Danny no quarto, quando diz que jamais o machucaria e gostaria de ficar ali com ele pra sempre (significando mais do que aparenta) ou seu pesadelo em que corta o filho em pedacinhos. Por não saber conviver com as visões que tem ele acaba enlouquecendo. Os sinais de que Jack também pertence aos “iluminados” são sutis, como a frase do barman (“Seu dinheiro não vale aqui”), sua visita assustadora ao quarto 237 e a festa em que ele conhece o garçom Grady. Sua conversa com o barman antes da festa, aliás, é um momento sublime da atuação de Jack, com o movimento dos olhos, a boca, a alteração repentina na voz e o movimento das mãos indicando o estado psicológico dele. Observe o momento em que ele diz que já machucou Danny antes. Segundos antes de falar, ele abre as mãos e suspira, como se estivesse tomando coragem para confessar. Quando volta ao bar, durante a festa, presenciamos o momento arrepiante em o garçom Grady revela seu nome. Observe a tensa reação de Jack, mexendo as mãos e os dedos, ao ouvir o nome dele. A conversa que segue entre os dois, no banheiro, é decisiva. Finalmente, logo após seu assustador texto datilografado ser descoberto por Wendy e Danny aparecer com o pescoço marcado, ela começa a culpá-lo e percebe sua alteração de comportamento. Inicia-se então outro momento antológico de Jack, transtornado, imitando a voz e partindo, alucinado, pra cima dela, que grita de forma estridente. Aliás, a atuação exagerada de Shelley Duvall como Wendy é uma exigência de Kubrick. Ele entendia que este histerismo era coerente com a personagem e, principalmente, com a situação que ela vivia. O rosto angular e incrivelmente branco dela maximiza os choros e gritos.

Um dos grandes segredos da capacidade de aterrorizar que o filme tem reside no fato do personagem chave ser uma criança. A utilização de crianças como elemento chave do suspense é um artifício interessante, provocando ainda mais medo, já que teoricamente elas são inofensivas. E felizmente, Danny Lloyd tem uma excelente atuação como Danny, um menino ao mesmo tempo misterioso e inocente. Repare sua inocência enquanto brinca com os dardos, seguida por um olhar assustado, acompanhando da respiração ofegante, quando vê as duas garotas no Hotel. Quando começa a descobrir seu talento, indicado através do pensamento de Dick (“Quer um pouco de sorvete, Doc?”) e do esclarecedor diálogo que eles têm em seguida, Danny passa a ver imagens assustadoras com mais freqüência (como as meninas mortas e a macabra frase “Venha brincar conosco Danny, para sempre, e sempre, e sempre…”) o que só aumenta seu pânico. Outro momento inspirado do garoto acontece no grande clímax do filme, quando Jack parte para “resolver seus problemas”, enquanto Danny repete a assustadora palavra “Redrum” (Murder ao contrário, em português “assassinato”). Torcemos desesperadamente para Dick chegar a tempo no Hotel, enquanto Wendy vê a palavra no espelho e Jack tenta derrubar a porta à machadadas, dizendo a famosa frase “Here’s Jhonny!”. Os gritos e as caretas exageradas de Wendy aparecem novamente aqui e a barba por fazer de Jack acentua sua loucura. Wendy passa então a ver o mundo que não via, com pessoas no Hotel e imagens assustadoras, culminando na sensacional seqüência dentro do labirinto, onde é impossível desgrudar os olhos da tela.

O plano final com Jack no meio dos formandos de 1921 deixa muitas questões em aberto, como é tradicional nos filmes de Kubrick. Seria ele um fantasma? O que estaria fazendo ali no meio daquela turma? Esta é uma questão que o filme não responderá, deixando a cargo de cada espectador tirar suas próprias conclusões. Quanto às visões, prefiro pensar que eram reais, e não apenas fruto da imaginação, o que teria total coerência com o próprio nome do filme. Em todo caso, existem pessoas que as interpretam como resultado do extremo isolamento da família, pois nesta situação, o ser humano realmente pode ter alucinações e enlouquecer. Mas isto tudo é pra ser discutido em outro local. Mais importante é destacar que Kubrick, mais uma vez, nos brinda com um filme espetacular, tecnicamente perfeito e capaz de arrancar arrepios da mais incrédula das pessoas. Se a intenção era fazer um bom filme de terror e suspense, ele alcançou com louvor.

Reafirmando novamente seu incrível talento, Kubrick conseguiu fazer de “O Iluminado” um filme incrivelmente assustador, contanto com uma atuação antológica de Jack Nicholson. Com o seu apurado conhecimento técnico e narrativo, criou um filme de visual deslumbrante, com uma narrativa tensa e um resultado final absolutamente maravilhoso. Se existem ou não pessoas iluminadas não sou eu quem vai comprovar. O que posso dizer é que Stanley Kubrick era um diretor iluminado, capaz de criar obras marcantes e inesquecíveis como esta.

 

Texto publicado em 30 de Novembro de 2009 por Roberto Siqueira

LARANJA MECÂNICA (1971)

(A Clockwork Orange) 

5 Estrelas

 

Obra-Prima

 

Videoteca do Beto #8

Dirigido por Stanley Kubrick.

Elenco: Malcolm McDowell, Patrick Magee, Michael Bates, Anthony Sharp, Warren Clarke, Carl Duering, Adrienne Corri, Paul Farrell, Clive Francis, Michael Glover, James Marcus, Godfrey Quigley e Aubrey Morris. 

Roteiro: Stanley Kubrick, baseado em livro de Anthony Burgess. 

Produção: Stanley Kubrick.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido o filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Quando terminei de assistir mais este grande filme de Stanley Kubrick, a única palavra que me veio à cabeça foi “gênio”. Incrivelmente atual e polêmico, com imagens que dificilmente sairão de minha memória e uma empolgante jovialidade na tela, Laranja Mecânica se estabelece desde já como uma das mais agradáveis experiências que tive ao ver um filme, tornando-se uma referência obrigatória para mim de agora em diante. Extremamente visual, com muitas cenas violentas e diversas imagens que fazem referencia ao sexo, tornou-se polêmico antes mesmo de seu lançamento, sendo liberado no Brasil somente muitos anos depois de sua estréia, e mesmo assim, com tarjas pretas nos órgãos sexuais que aparecem durante o filme. Cito este fato somente para comentar como é engraçado e intrigante pensar que muita gente se incomoda muito mais com o sexo do que com a violência, o que é certamente motivo para reflexão.

Em um futuro indefinido, sombrio e incrivelmente parecido com os dias de hoje, Alex (Malcolm McDowell) é o líder de uma gangue de delinqüentes baderneiros que cometem diversos crimes noturnos pelas ruas. Ao ser pego pela polícia em uma noite de insucesso, ele passa a servir de experimento para uma nova técnica de tratamento de criminosos, antes de retornar para a sociedade.

O primeiro ato de Laranja Mecânica é muito próximo da perfeição. O fascinante ambiente futurista e decadente criado por Kubrick e sua equipe e a extrema segurança com que ele conduz a narrativa exerce uma inevitável atração em quem assiste. As cenas viscerais e extremamente violentas criam um impacto tão grande no espectador que no restante do filme somos praticamente levados pelo magnetismo do que vimos até então. Kubrick se mantém fiel ao seu estilo, com planos e enquadramentos criativos, como o caminhar em câmera lenta dos quatro drugues à beira da água (que claramente influenciou o inicio do filme Cães de Aluguel, de Tarantino). Observe como ele mantém a câmera fixa em determinados lugares mostrando as pessoas distantes na tela, num plano característico de seus filmes. Progressivamente elas vão se aproximando e crescendo, como no inicio da cena da revista das celas, que se passa no corredor. Ele também cria uma coleção de cenas memoráveis, como os quatro ataques da turma de Alex antes de sua prisão, o encontro na loja de discos (aqui Kubrick faz uma auto-referencia com a capa do disco 2001) e sua divertida seqüência embalada pela ótima trilha e finalmente, a tensa e maravilhosa cena que Alex hesita em tomar uma taça de vinho. Além disso, o filme tem muitos momentos de humor negro, como a divertida cena em que o protagonista e uma enfermeira estão gemendo e a forma diferente que ele encontra para ler a Bíblia.

Malcolm McDowell oferece a atuação de sua vida no papel do violento e carismático Alex. Com os olhos sempre arregalados e uma energia contagiante, ele cria uma empatia estranha no espectador que, mesmo discordando da maioria de suas atitudes, acaba sempre torcendo para que ele de alguma forma tenha sucesso. Fã incondicional da nona sinfonia de Bethoween (a quem chama de Ludwig van), ele é alguém cerebral na mesma proporção em que é infernal. Explosivo e visceral, encontra na violência a sua razão de viver, e seu prazer no que faz é impressionante. O ator transmite com extrema habilidade a personalidade doentia de Alex. Observe como ele se mantém sempre em movimento, demonstrando que é uma pessoa inquieta e que jamais para de pensar no que vai fazer. Quando fixa seu olhar, transmite uma sensação de hipnose, de poder absoluto, resultado obtido através da técnica do ator que mantém os olhos arregalados e sem piscar. Ele também capricha nos pequenos detalhes. Na prisão, o guarda exige que ele decore seu numero de inscrição, e ele olha pra cima como quem tenta decorar o que ouve. Ao ouvir a resposta do ministro quando o padre diz que um ser humano tem que poder escolher o que faz, sua reação de satisfação é perfeita, com um sorriso sarcástico no rosto. E o mais impressionante de tudo é a já citada empatia que ele consegue criar no espectador, mesmo sendo uma pessoa desprezível do ponto de visa ético e social. Isto tudo se deve ao talento absurdo de McDowell na criação de um personagem magnético e inesquecível, além da inteligência de Kubrick ao misturar momentos de violência com coisas que normalmente nos agradam, como músicas clássicas, quadros belíssimos e a arquitetura maravilhosa do velho cassino. No restante do elenco, podemos destacar as atuações de Patrick Magee como o velho escritor Frank Alexander (observe seu rosto repleto de raiva no jantar que tem com Alex e mais três pessoas) e Anthony Sharp como o Ministro do Interior, exalando cinismo nos momentos finais do filme, quando seu diálogo com Alex expõe todo o jogo político envolvido no tratamento. Michael Bates, apesar de caricato, está engraçado como o exagerado chefe Barnes, gritando para tentar impor respeito junto aos delinqüentes.

O próprio Kubrick escreveu o roteiro, adaptado do livro homônimo de Anthony Burgess. Os diálogos são sempre atraentes, utilizando inclusive a linguagem criada no livro, uma mistura de inglês e russo que só Alex e seus amigos entendem. A narrativa se divide claramente em três partes que se concentram no tema da violência, que é (na visão do diretor) algo intrínseco ao ser humano e que se espalha na sociedade de diversas formas. Na primeira, vemos a violência social através dos delinqüentes que agem sem motivos, só por diversão. Na segunda, a violência organizada sob a máscara do governo e da policia. E na terceira, a violência reativa daquelas pessoas que sofreram com os ataques de Alex. É como se Kubrick quisesse dizer que a violência é algo que temos que conviver de qualquer forma, algo inevitável. O ritmo sempre interessante da narrativa é mérito também da excelente montagem de Bill Butler, responsável por seqüências alucinantes que grudam nossas retinas na tela, como os ataques dos delinqüentes e o curioso método de tratamento de Alex.

A fotografia de John Alcott propositalmente mistura cores vivas, já que vemos o mundo filtrado através dos olhos do narrador. Observe como as cores da sala de sua casa são divididas entre o vermelho e o azul e como os ambientes que ele freqüenta sempre têm cores fortes em destaque. Por outro lado, quando se isola do mundo ou está ao lado de seus drugues a fotografia destaca a cor branca, já que neste momento Alex está em paz de espírito. As roupas brancas dos delinqüentes revelam também o excelente trabalho de figurino, que busca harmonia visual com a direção de fotografia. Seu disco favorito tem a capa branca e seu quarto é predominantemente branco, incluindo o curioso quadro da moça nua que revela também o cuidadoso e competente trabalho de Direção de Arte. Estes pequenos detalhes, como as pichações na entrada de sua casa e a cobra que ele cria em seu quarto, ajudam a demonstrar a personalidade perturbada de Alex. Finalmente, a excepcional trilha sonora recheada de músicas clássicas dá um tom de fábula ao filme, nos colocando em dúvida sobre a seriedade dos atos que vemos em cena. Kubrick nos obriga a associar músicas que normalmente gostamos a atitudes que normalmente repudiamos, como na excelente cena em que Alex canta “Singing in the Rain” (em outro momento de estupenda atuação de McDowell).

Laranja Mecânica é agressivo e visionário. Antevê diversos problemas sociais e até grupos que surgiriam anos depois do filme, como o movimento punk. Existe também uma sutil crítica ao autoritarismo, quando Alex tenta ler o que está assinando e o guarda da prisão grita pra ele assinar sem ler. Alex demonstra que, apesar de delinqüente, é alguém que pensa, ao contrario do guarda que só cumpre ordens sem questioná-las. Fica evidente também que um delinqüente não é necessariamente alguém sem cultura ou sem condições de ser alguém na vida, o que só agrava o problema, já que dificulta ainda mais a tarefa de mapear a causa da agressividade do jovem. O confronto de métodos fica evidente quando Alex é transferido para se submeter ao novo tratamento. É intencional, Kubrick quer chocar. Por outro lado, a cena final deixa claro que não importa o método utilizado, a pessoa perturbada sempre vai ver as coisas com seu próprio olhar. Em resumo, o que o genial diretor claramente pretende é escancarar uma discussão sobre a violência. O espectador é obrigado a pensar em diversos temas controversos. De onde se origina toda esta violência? Seria a violência das ruas diferente da violência organizada que os órgãos públicos exercem? Não seria a violência algo intrínseco do ser humano, que é um animal? Qual a sensação que sentimos ao ver Alex sendo atacado pelas pessoas que ele agrediu anteriormente? Confesso que, apesar de não concordar com suas atitudes, fiquei mais incomodado quando Alex foi agredido do que quando ele agrediu um grupo de estupradores, por exemplo, exatamente porque ele não tinha como se defender. Já a cena em que ele Alex comete um estupro me causou um grande incomodo, estranhamente aliviado pela canção alegre que ele cantava. Mas por que quando ele atacou um bêbado na rua eu achei graça? Kubrick me fez pensar em como devo olhar para a violência e para mim mesmo. Será que eu não sou tão bom quanto eu imaginava? Independente das respostas, a satisfação pelo questionamento gerado é suficiente para me agradar. É maravilhoso ser incomodado por um filme e ser obrigado a questionar valores desta forma.

Com uma atuação magnética e uma energia capaz de causar inveja a qualquer diretor de filmes de ação, Laranja Mecânica é o filme ideal para quem procura entretenimento inteligente e de qualidade. Abordando de forma audaciosa um tema extremamente complicado e controverso, Kubrick consegue criar um filme antológico, com imagens muito fortes e que dificilmente serão esquecidas. Recheado de humor negro e de seqüências inesquecíveis, propõe uma discussão muito interessante sobre a violência e leva a uma importante auto-reflexão da sociedade como um todo. O resultado final de tudo isto é uma obra-prima incrivelmente polêmica e proporcionalmente genial.

PS: Só espero que nenhum maluco justifique seus atos de violência por influencia deste filme, como era costume na época de seu lançamento. Como é um filme dos anos setenta acho difícil isto acontecer hoje em dia, mas nunca é demais ter cuidado. Vale lembrar que filmes recentes sofreram injustamente com este tipo de acusação, casos de “Clube da Luta” e “Assassinos por Natureza”.

Texto publicado em 22 de Julho de 2009 por Roberto Siqueira

2001 – UMA ODISSÉIA NO ESPAÇO (1968)

(2001: A Space Odissey) 

5 Estrelas

 

Obra-Prima 

Videoteca do Beto #6

Dirigido por Stanley Kubrick.

Elenco: Keir Dullea, Gary Lockwood, William Sylvester, Leonard Rossiter, Margaret Tyrack, Robert Beatty, Sean Sullivan, Daniel Richter e Douglas Rain (voz de HAL 9000). 

Roteiro: Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke. 

Produção: Stanley Kubrick. 

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido o filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Quando a famosa e poderosa trilha sonora tocou pela última vez e os créditos começaram a aparecer na tela, senti uma enorme sensação de inquietude e perturbação, misturadas a um sentimento de prazer e alegria por ter testemunhado uma obra-prima de um gênio em plena forma. 2001 – Uma Odisséia no Espaço é um filme genial, que caminha lentamente para um final capaz de criar um enorme ponto de interrogação na cabeça daqueles que não querem pensar mais a respeito do que acaram de ver. E, infelizmente, este é o perfil da maioria do público (o que explica bilheterias absurdas para filmes medíocres), que prefere narrativas mais mastigadas e óbvias por pura preguiça de pensar e refletir sobre o que assiste.

Há quatro milhões de anos, um misterioso objeto negro aparece na Terra causando furor naqueles que lá viviam. Já na era moderna, após aparecer misteriosamente no terreno lunar e ser investigado por especialistas, a conclusão é de que o objeto pode ser a chave para a descoberta de uma nova civilização fora do planeta. No século XXI, uma experiente tripulação, liderada por David Bowman (Keir Dullea) e Frank Poole (Gary Lockwood), é enviada ao planeta Júpiter para investigar a origem do misterioso objeto, viajando a bordo da nave espacial Discovery, controlada pelo computador mais perfeito do mundo, o Hall 9000 (voz de Douglas Rain).

No primeiro ato, Kubrick desenvolve lentamente e sem nenhuma palavra a base da narrativa. Com planos distantes que enquadram perfeitamente a linda paisagem (a cena do ataque da Onça é belíssima), alguns cortes secos e a utilização de fades, Kubrick representa visualmente a ascensão do homem sobre os outros animais. A cena do homem batendo com um osso em outros ossos de um animal morto representa visualmente o momento em ele já está ciente deste poder. Toda esta introdução leva a uma cena arrepiante, quando o misterioso objeto aparece no mundo do homem pré-histórico. A reação dos homens e a poderosa trilha com vozes misturadas são capazes de enlouquecer qualquer um. Este objeto será o elo de ligação da história.

Em um trabalho conjunto excepcional de direção e montagem, Kubrick cria uma elipse de milhões de anos e salta da pré-história para os anos de exploração do espaço através da queda de um osso que repentinamente é substituído por uma nave espacial. E a partir daí o filme explora o universo criado por Kubrick em um tempo onde a exploração do espaço era apenas um sonho. Incrível como ele conseguiu imaginar mecanismos tão próximos da realidade há tantos anos atrás. Todo o mundo criado, com portas automáticas, identificadores de voz, chamadas telefônicas através do espaço, movimentos de ponta cabeça entre outras coisas, é genial. O show de direção de Kubrick não para por aí. Observe por exemplo a cena em que dois funcionários revelam dados do objeto que acharam na superfície lunar. A câmera se mantém fixa dentro da nave, num plano sem cortes que torna o diálogo ainda mais interessante, pois nos permite acompanhar todos os movimentos dentro e fora da nave. Em outro momento, um astronauta está treinando dentro da nave e a câmera acompanha seus movimentos em círculos, chegando ao ponto de deixar o homem em posição vertical na tela. A coleção de planos criativos é tão grande que fica até cansativo citar todos eles. Temos momentos em que os personagens estão de ponta cabeça, temos o ponto de vista do computador Hall 9000, um plano que alinha o Sol, a Terra e a Lua, e tudo isto demonstra a genialidade de Kubrick ao nos jogar pra dentro da viagem pelo espaço com extrema elegância.

As atuações de todo o elenco são muito competentes. Com expressões sempre sérias e focadas, eles transmitem com sucesso ao espectador a importância da missão em que estão envolvidos. Keir Dullea é o grande destaque como o inteligente David Bowman. Preste atenção na cena em que ele tenta recuperar um colega perdido no espaço. Seu movimento brusco dos ombros pra cima e pra baixo demonstra a respiração ofegante e a tensão que ele está vivendo naquele momento. Gary Lockwood também tem boa atuação como Frank Poole, o parceiro de David. Observe como os dois conseguem transmitir através do tom de voz a preocupação eminente de ambos com as respostas do computador Hall 9000 às perguntas que eles fazem. Já Douglas Rain consegue dar vida ao computador Hall 9000 através de uma voz serena e ao mesmo tempo firme, que insinua em diversos momentos as intenções obscuras da máquina. Hall passa a sensação em certos momentos de que tem sentimentos próprios, como se fosse um ser humano, ou pelo menos um ser com vida.

Todo o trabalho técnico do filme é espetacular. A começar pelos efeitos visuais que nos dão à sensação de estarmos realmente explorando o espaço, quando na verdade o filme foi feito em estúdios. O trabalho se torna ainda mais espetacular se pensarmos que em 1968 o homem ainda não tinha realizado este feito. Kubrick criou todo aquele universo somente com sua imaginação. Através dos movimentos da nave e das pessoas fora da gravidade e da visão da Terra sob o ponto de vista de uma nave espacial podemos ter a exata noção da precisa visão que ele tinha do espaço. A fotografia destaca cores brancas criando uma atmosfera tranqüila no inicio da missão. Observe como as cores vão aparecendo na medida em que o filme avança para o momento mais tenso, destacando o amarelo primeiramente para gradualmente chegar ao vermelho. E finalmente, quando David está em seu momento de maior raiva, a fotografia destaca o vermelho, numa demonstração visual inteligente do sentimento do personagem. O som também merece destaque, participando decisivamente da narrativa em diversos momentos. Repare como o som da respiração de um astronauta é repentinamente cortado na cena em que ele é atacado, acompanhado de um movimento incomum de uma cápsula espacial, nos antecipando o que estava acontecendo sem a necessidade de palavras. O som da respiração, aliás, é inteligentemente utilizado para nos demonstrar quando os astronautas estão tensos (ofegantes) e quando estão tranqüilos (respiração mais pausada e longa). A estupenda maquiagem em David, demonstrando seu envelhecimento ao viajar pelo espaço, também merece destaque. Assim como toda a direção de arte e figurinos, que criam um mundo totalmente verossímil no espaço sideral, prestando atenção aos mínimos detalhes como a bandeja de alimentação dos astronautas e as roupas especiais que estes utilizam para sair da nave.

O filme aborda ainda temas interessantes como o confronto homem versus máquina e o sigilo máximo adotado pelas pessoas responsáveis quando o assunto é relacionado à vida inteligente fora do planeta, buscando evitar um pânico geral nos habitantes da Terra. Além disso, o festival de imagens belíssimas de naves bailando no espaço, ao som de músicas clássicas de valsa e balé, cria imagens difíceis de serem apagadas de nossa memória. É o cinema em seu estado mais puro, onde as imagens falam por si só. Como se não bastasse, Kubrick ainda criou uma obra enigmática. O final do filme é tão complexo que muitas pessoas sequer se esforçam em tentar interpretar o filme, concluindo precipitadamente que se trata de uma obra falha ou confusa. Muito pelo contrário, a quantidade enorme de possibilidades de interpretação que o filme abre em sua conclusão faz dele uma obra de arte, onde cada espectador tira suas próprias conclusões.

Após uma série de acontecimentos inesperados, o filme caminha para este final tão genial quanto perigoso, onde a minha perturbação citada no inicio do texto se justifica. (e a partir de agora, peço que se você ainda não viu o filme, pule para o último parágrafo). Após sobreviver ao ataque surpresa e assustador do computador Hall 9000, David se aproxima do planeta Júpiter para finalmente revelar o segredo do misterioso monolito. Quando ele finalmente entra no campo espacial de Júpiter, o misterioso objeto aparece repentinamente e um festival de imagens psicodélicas, que mais lembram um clipe do Pink Floyd, começa a aparecer na tela. A sensação de estar delirando é aumentada sensivelmente pelo som que acompanha a cena, que dura um tempo considerável. Quando a viagem (literal e mental) termina, temos uma curiosa imagem, supostamente sob o ponto de vista de David, de um local vazio, claro e limpo. A fotografia destaca o branco, como se estivéssemos em um local intocado, um local puro. Mas na medida em que a cena vai progredindo, David começa a se ver mais velho em outro ponto da casa e logo em seguida, seu ponto de vista se transfere para o que ele estava vendo anteriormente. Sucessivamente, ele vai caminhando até se ver deitado em um leito de morte, muito envelhecido e praticamente imóvel. Quando seu ponto de vista muda para o da cama, ele vê o misterioso monolito à sua frente, e repentinamente se transforma em um bebê dentro de uma bolha azul. A poderosa trilha sonora tema do filme começa a tocar e o bebê aparece pela última vez olhando para o planeta Terra. Este final tão misterioso abre diversas possibilidades de interpretação. A que mais me agrada é a de que Kubrick fez um resumo genial da existência do homem no universo, dividido em quatro etapas. Na primeira delas, o foco é o surgimento do homem na terra e sua ascensão até o domínio completo deste sobre as outras espécies. Na segunda parte, o homem parte para o espaço, chegando à Lua e, portanto, dominando o território mais próximo do planeta. Na terceira etapa, o homem enfrenta sua mais inteligente criação, a máquina, e consegue vencê-la. E na última fase, a mais enigmática, o homem tenta desvendar os mistérios do universo, mas acaba sendo derrotado por ele e sua era chega ao fim. O homem se torna uma estrela, ou apenas uma parte da história, e uma nova era se inicia com outra espécie. Assim como os dinossauros, o homem teve o seu tempo de domínio e um dia deixou de existir. Acredito que o misterioso final seja uma metáfora sobre a queda do homem no universo. Mas muitas outras possibilidades existem. Teria David, ao viajar pelo espaço, acelerado seu processo de envelhecimento e chegado ao fim de sua vida, dando origem a um novo ser que seria encarnado em seguida? Seria uma ilusão ou um estado alucinatório criado em sua mente através do impacto causado no momento em que entrou na atmosfera de Júpiter? Todas estas perguntas certamente são cabíveis, mas o mais importante é que o filme gera uma discussão infinitamente maior do que a existência de vida fora do planeta.

Utilizando a parte técnica como apoio para uma narrativa genial, Kubrick cria uma obra-prima intrigante, inteligente e perturbadora, que exige muito mais do que atenção do espectador e em troca devolve muito mais do que entretenimento. 2001 – Uma Odisséia no Espaço é o cinema puro, a imagem falando no lugar das palavras e o significado delas sendo absorvido por cada espectador de uma forma diferente. Uma obra eterna de um gênio no auge de sua forma.

 

Texto publicado em 13 de Julho de 2009 por Roberto Siqueira