COP LAND (1997)

(Cop Land)

4 Estrelas 

Videoteca do Beto #172

Dirigido por James Mangold.

Elenco: Sylvester Stallone, Harvey Keitel, Ray Liotta, Robert De Niro, Peter Berg, Janeane Garofalo, Robert Patrick, Michael Rapaport, Annabella Sciorra, Noah Emmerich, Cathy Moriarty, John Spencer, Frank Vincent, Malik Yoba e Arthur J. Nascarella.

Roteiro: James Mangold.

Produção: Cathy Konrad, Ezra Swerdlow e Cary Woods.

Cop Land[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Durante mais de uma década, Sylvester Stallone tornou-se mundialmente famoso por seus papéis em filmes de ação que exalavam testosterona e nos quais os personagens só conheciam um meio de resolver seus problemas. Assim, quando o astro aceitou participar deste ótimo “Cop Land”, pela primeira vez em muitos anos seus fãs tiveram a oportunidade de vê-lo num papel diferente do usual, num desafio interessante que se tornaria ainda mais complexo graças aos excepcionais atores que contracenariam com ele. O curioso é que o responsável pelo roteiro que cativou atores do calibre de Stallone, De Niro e Keitel foi o estreante James Mangold, responsável também pela direção deste eficiente thriller policial, injustamente ignorado pela crítica em seu lançamento.

A narrativa se passa na pequena cidade de Garrison, habitada majoritariamente por policiais que trabalham na vizinha Nova York durante o dia e voltam para suas famílias à noite. Tudo corre aparentemente bem até que o jovem Superboy (Michael Rapaport) se envolve num tiroteio e acaba assassinando dois criminosos, colocando em xeque a reputação da família, encabeçada por seu tio Ray (Harvey Keitel). Uma discussão entre policiais e paramédicos quanto às provas do crime leva o Tenente Moe Tilden (Robert De Niro) a investigar o local, até então administrado pelo pacato xerife Freddy (Sylvester Stallone).

Sob a aparente tranquilidade que paira na pequena Garrison, existe uma complexa rede de intrigas e corrupção que lentamente é revelada pelo bom roteiro de Mangold, repleto de personagens ambíguos que se tornam ainda mais interessantes graças ao bom desempenho do elenco em geral. Esta aura de mistério é reforçada já nos segundos iniciais de “Cop Land”, quando a câmera do diretor passeia pela cidade enquanto a narração sombria de Robert De Niro nos apresenta ao local e aos personagens. Conduzindo com paciência a narrativa, Mangold explora o potencial de seu elenco com inteligência, aplicando zooms que nos aproximam lentamente dos personagens e closes que buscam realçar suas expressões e reações nas calorosas discussões que permeiam a narrativa. Além disso, o diretor mostra talento na composição visual de algumas cenas, como no lindo plano em que Freddy contempla a bela ponte que liga Garrison à Nova York na noite do suposto suicídio de Superboy e na espetacular sequência do tiroteio final.

Passeia pela cidadeCalorosas discussõesEspetacular sequência do tiroteioÉ evidente que o ótimo trabalho do diretor de fotografia Eric Edwards é essencial neste aspecto, abusando de cores frias como o azul e explorando muito bem o visual predominantemente noturno de “Cop Land”, mergulhando os personagens nas sombras em diversos momentos para ilustrar o caráter nebuloso daquele grupo de pessoas misteriosas. Quem também tenta colaborar na criação desta atmosfera é Howard Shore, mas sua trilha sonora acaba exagerando no tom em alguns momentos, como na cena em que policiais discutem com paramédicos na ponte após o sumiço de Superboy, mas por outro lado Shore acerta em cheio na escolha das músicas que tocam no velho toca-discos de Freddy, refletindo muito bem seu estado de espírito melancólico em cenas belíssimas como aquela em que Liz (Annabella Sciorra) vai até sua casa para conversar com ele.

Cores frias como o azulPersonagens nas sombrasLiz vai até sua casaSurgindo barrigudo e movimentando-se lentamente, Stallone compõe um personagem muito interessante e bem distante dos vigorosos personagens de seus filmes de ação, numa atuação contida que confirma seu talento já demonstrado em “Rocky, um Lutador”. Observe como o ator fala sempre num tom de voz baixo, evita olhar diretamente para as pessoas e sempre parece acuado diante da presença marcante dos outros policiais, numa postura claramente defensiva e totalmente coerente com o personagem. Discreto como seu uniforme (figurinos de Ellen Lutter), Freddy parece perambular pela cidade, fechando os olhos para possíveis conflitos e evitando chamar a atenção; e até mesmo seu escritório bagunçado (design de produção de Lester Cohen) evidencia o quanto a frustração por não conseguir ser policial em Nova York afetou sua vida. Ele pouco se importa com o que acontece ao seu redor.

Barrigudo e movimentando-se lentamenteSempre parece acuadoDiscreto como seu uniformePor tudo isso, Freddy configura-se o xerife ideal para que Ray continue comandando a cidade e, com suas expressões marcantes, Keitel compõe um antagonista assustador, que parece capaz de fazer qualquer coisa para manter o controle do local idealizado e fundado por ele, criando um personagem corrupto e detestável, é verdade, mas que jamais soa caricato ou unidimensional graças ao desempenho do ator. Assim, por mais que aos nossos olhos suas atitudes soem absurdas, Ray acredita que está agindo corretamente – e, o que é mais importante, nós acreditamos nele, ainda que não concordemos com suas ações.

Antagonista assustadorCorrupto e detestávelAcredita que está agindo corretamenteQuem também merece destaque é Ray Liotta na pele de Figgsy, um dos poucos policiais em quem Freddy consegue confiar e que surge sempre agitado, num indício claro do quanto seu envolvimento naquele ambiente hostil o incomoda. Servindo como apoio para o xerife, Liotta destaca-se em dois momentos especiais. O primeiro no diálogo expositivo no bar que explica a origem da surdez de Freddy, a razão de seus traumas e sua ligação com a bela Liz, e o segundo após a morte de Mônica (Mel Gorham), quando surge devastado ao constatar que sua amada estava morta – e saberíamos depois que sua dor intensa tinha mais motivos do que poderíamos imaginar naquele instante. Finalmente, Robert De Niro impõe respeito logo em sua primeira participação (fisicamente falando, já que é dele o prólogo), com seu tom de voz firme e expressões marcantes dominando completamente uma discussão, tornando todos os outros frequentadores da sala em meros coadjuvantes. A escolha de De Niro é acertada, pois somente um ator com sua capacidade poderia tornar a importância do Tenente Moe na narrativa em algo crível com tão pouco tempo na tela, já que ele é vital na mudança de comportamento de Freddy que culminará na resolução da narrativa.

Origem da surdez de FreddySurge devastadoImportância do Tenente MoeAos poucos, vai tornando-se óbvio que Superboy não morreu naquela noite e, de maneira inteligente, o roteiro jamais tenta criar um desnecessário mistério envolvendo seu desaparecimento. Assim, o foco da narrativa vai mesmo para a mudança de Freddy, que lentamente desperta de seu sono profundo e passa a enxergar tudo que ocorre ao seu redor (ou a se importar com ele), nos levando ao sensacional acerto de contas que Mangold conduz em câmera lenta, nos permitindo acompanhar cada detalhe do feroz tiroteio como se estivéssemos ali, ao lado de Freddy – e o ótimo design de som também é muito importante neste momento, distorcendo nossa percepção sonora do ambiente e nos forçando a compartilhar o que o personagem, agora ferido na outra orelha, provavelmente ouve. Após a solução do caso, Freddy surge novamente na margem do rio diante da bela ponte, mas agora numa cena diurna, bem iluminada e que ilustra a limpeza promovida por ele no local.

Acerto de contasFeroz tiroteioFerido na outra orelhaRecheado com boas atuações e apostando numa trama envolvente, “Cop Land” é um thriller interessante, surpreendentemente conduzido por um diretor estreante, mas que já demonstrava talento desde seu trabalho inicial. E se já estávamos acostumados a ver De Niro e Keitel oferecendo atuações dramáticas de impacto, Stallone só comprovou o quanto sua carreira poderia ter sido ainda mais marcante caso suas escolhas fossem um pouco mais ousadas.

Cop Land foto 2Texto publicado em 20 de Agosto de 2013 por Roberto Siqueira

PULP FICTION – TEMPO DE VIOLÊNCIA (1994)

(Pulp Fiction)

 

Videoteca do Beto #105

Dirigido por Quentin Tarantino.

Elenco: John Travolta, Samuel L. Jackson, Uma Thurman, Bruce Willis, Harvey Keitel, Tim Roth, Ving Rhames, Eric Stoltz, Rosanna Arquette, Christopher Walken, Maria de Medeiros, Steve Buscemi, Quentin Tarantino, Amanda Plummer e Joseph “Joe” Pilato.

Roteiro: Quentin Tarantino, baseado em história de Roger Avary e Quentin Tarantino.

Produção: Lawrence Bender.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Goste ou não de Quentin Tarantino, todo cinéfilo concorda: seu estilo de fazer cinema é bastante original. Profundo conhecedor e amante da sétima arte, o diretor investe na subversão de gêneros (ao mesmo tempo em que os homenageia), revelando a influência de grandes diretores do passado em seu trabalho. Além disto, Tarantino trouxe a tona o culto ao popular, ousando misturar elementos narrativos clássicos com referências à cultura pop, sempre com uma abordagem que varia entre o realista e o hiper-realista, recheada por diálogos deliciosos e espontâneos. E esta nova forma de fazer cinema chegou ao auge logo em seu segundo longa-metragem, o excelente “Pulp Fiction”, que ainda resgatou o astro John Travolta após anos de ostracismo.

Os criminosos profissionais Jules (Samuel L. Jackson) e Vicent Vega (John Travolta) saem para fazer uma cobrança em nome do traficante Marcellus (Ving Rhames). Vicent está preocupado, porque a noite deverá acompanhar a esposa do chefe, Mia (Uma Thurman). Enquanto isso, o boxeador Butch (Bruce Willis) deverá perder uma luta, para cumprir um acordo com Marcellus e sair rico da cidade.

“Pulp Fiction” começa num pequeno restaurante, com um casal conversando sobre a vida criminosa que pretende abandonar. Em instantes, eles anunciam um assalto, e a trilha sonora indica o começo do filme. Este interessante prólogo é então deixado de lado, e voltará à tona somente nos instantes finais da narrativa. Misturando com perfeição os elementos narrativos que já utilizara em seu filme de estréia (“Cães de Aluguel”), Quentin Tarantino alcança o ápice neste “Pulp Fiction”, com seus costumeiros diálogos ágeis e deliciosos sobre coisas do cotidiano, que nem sempre colaboram para o andamento da trama, mas sempre chamam a atenção do espectador, como na conversa entre Vicent e Jules sobre as diferenças entre EUA e Europa e sobre o McDonald’s. Tarantino também aborda a vida criminosa de maneira diferente do usual, auxiliado pela trilha sonora pop e empolgante, pela montagem não cronológica e dividida em capítulos – que prende a atenção da platéia – e pela narrativa que foge da tradicional causa e efeito que normalmente motiva os personagens, mantendo o foco na situação em que os eles estão envolvidos em detrimento dos objetivos de cada um. Em “Pulp Fiction”, a força do acaso em nossas vidas também ganha destaque, através de situações inesperadas que alteram o destino de todos envolvidos, como o fato de Marcellus cruzar o farol bem na frente do carro de Butch, que levará os dois a serem seqüestrados por estupradores e à redenção de Butch diante do traficante.

Obviamente, Tarantino conta muito com o excelente trabalho da montadora Sally Menke, que divide a narrativa em capítulos bem definidos, em ordem não cronológica, ajudando a criar a atmosfera mais realista pretendida pelo diretor através de cenas extensas, com poucos cortes, que confirmam a preferência dele já indicada no filme anterior. Além disso, Menke e Tarantino mostram inteligência ao esticar as histórias que envolvem Vicent e Jules, encurtando a trama que envolve Butch, claramente a menos atraente do roteiro. Escrito pelo próprio Tarantino (baseado em história dele com Roger Avary), o roteiro de “Pulp Fiction” usa artifícios interessantes, como o “macguffin” representado pela maleta de Marcellus, que, seguindo o mais puro sentido do termo popularizado por Hitchcock, não tem função narrativa alguma a não ser guiar os personagens na trama. Personagens, aliás, que falam a linguagem das ruas, cheia de palavrões e até mesmo preconceito contra estrangeiros, confirmando a abordagem realista que aproxima o espectador. E não posso deixar de citar os maravilhosos diálogos que se espalham pela narrativa, confirmando a criatividade de Tarantino, que cria situações muito interessantes, por exemplo, ao discutir algo banal como uma massagem no pé.

O longa ainda aborda com naturalidade o uso de drogas, mostrando os personagens usando cocaína e heroína, sem aliviar também nos efeitos deste uso, como quando Vicent vai buscar Mia, com os olhos praticamente fechados e um largo sorriso no rosto, claramente transformado (a trilha e a câmera lenta ilustram a sensação de relaxamento do personagem). Tudo isto, somado à fotografia natural de Andrzej Sekula, reforça a abordagem realista e ambienta o espectador ao mundo do crime. Sekula até chega a criar um visual estilizado, por exemplo, quando Butch visita Marcellus no bar, indicando através do tom vermelho a violência que predomina naquele meio, mas, em geral, a fotografia é mais crua e próxima da realidade. Realidade que nem sempre está presente, pois Tarantino também foge da abordagem realista, por exemplo, quando Mia faz um quadrado no ar e um efeito visual representa o quadrado na tela.

Além do excelente roteiro, Tarantino também mostra talento na condução da narrativa, conferindo um visual rico ao longa, além de constantemente fazer referências ao passado, seja dele próprio (o plano de dentro do porta-malas quando Vicent e Jules pegam as armas remete ao plano de “Cães de Aluguel” em que o policial é retirado do carro), seja do cinema em geral (na fuga de Butch, Tarantino homenageia uma velha técnica, o back projection, com o carro parado e as imagens movendo ao fundo). Além disso, o plano-seqüência que acompanha Vicent pelo “Jackrabbit Slim’s” serve como homenagem às estrelas do cinema dos anos 50, revelando os cartazes e as próprias atendentes locais, em outro momento de imersão na cultura pop, reforçado pela trilha sonora diegética com clássicos do período. Em outros momentos, Tarantino usa a handycam para conferir realismo às cenas, como quando Marcellus atira em Butch em plena luz do dia e quando Butch se dirige ao apartamento onde matará Vicent. Aliás, impressiona também a ausência de policiais e a predominância de cenas diurnas, o que confirma a subversão do cinema de gênero pretendida pelo diretor (nos filmes de crime, normalmente o visual é mais obscuro e os policiais estão no encalço dos criminosos). Finalmente, Tarantino não desvia a câmera nos momentos violentos e nem mesmo quando Mia confunde heroína com cocaína, mostrando o resultado trágico da droga na moça. O desespero toma conta da tela, Vicent sai em disparada para tentar salvá-la e o hiper-realismo novamente entra em cena. Neste momento, o espectador sente um misto de euforia e angústia, provocado pela mistura de humor negro e realismo, reforçado pela handycam utilizada na casa de Lance (Eric Stoltz). Quando Mia levanta gritando após a injeção de adrenalina, o hiper-realismo volta e o espectador ri. Este é o cinema de Tarantino. Por outro lado, este estilo cinematográfico dificilmente envolve a platéia emocionalmente, pois os personagens são praticamente caricaturas, o que é um ponto negativo em sua filmografia, mas que em “Pulp Fiction” funciona bem, dada a abordagem afastada da realidade em diversos momentos, como a citada “ressurreição” de Mia.

Com seu visual sensacional (figurinos de Betsy Heimann), que faz alusão aos anos 50, Vicent Vega – e suas roupas descoladas – e Jules – com seu cabelo “black power” – são personagens fascinantes, interpretados com grande carisma por John Travolta e Samuel L. Jackson. Apresentando um impressionante entrosamento, eles formam uma adorável dupla de criminosos, que tem um curioso código moral, revelado no diálogo que antecede a invasão de um apartamento. Para eles, é vital seguir o horário combinado, como se um ou dois minutos fossem extremamente importantes. Para Vicent, uma simples massagem no pé soaria como desrespeito ao chefe. Mas, para ambos, matar um inimigo de Marcellus a queima roupa é simplesmente normal. Travolta também demonstra com competência a aflição de Vicent por ter que sair a noite com Mia, aflição que só aumenta ao ouvir as risadas dos amigos quando ele pergunta se ela é bonita. As risadas se justificam quando surge a sensual e divertida Mia, interpretada pela ótima Uma Thurman. Demonstrando empatia com Travolta, Thurman está bem solta no papel. Na memorável cena em que eles dançam twist, além do desempenho marcante da dupla e da música empolgante (“Never can tell”, de Chuck Berry), o espectador que conhece um pouco da história do cinema sente uma ponta de nostalgia ao ver novamente John Travolta dançando, num momento que extrapola o filme e deixa a platéia em êxtase. Recheada de músicas marcantes, a trilha sonora ainda apresenta a bela “Girl, you’ll be a woman soon”, de Bruce Springsteen, numa cena em que Thurman novamente se destaca, dançando solta e cantarolando a música desafinada, ao mesmo tempo em que Travolta também dá um show, olhando para o espelho e treinando o autocontrole para evitar se envolver com a mulher do chefe.

Citar todos os nomes do elenco é até desnecessário diante de tantos bons atores que aparecem no longa. Mas alguns merecem destaque especial, como Christopher Walken, que tem uma pequena e estupenda participação ao contar a história do “Relógio de Ouro”. Já Bruce Willis, com seu jeito bruto e ameaçador, se sai muito bem como o boxeador Butch, se destacando em alguns momentos especiais, como a revolta de Butch ao saber que Fabienne (Maria de Medeiros) esqueceu o relógio de ouro, o olhar frio antes de matar Vicent, seu espanto ao ver Marcellus cruzar o farol e, principalmente, o momento surreal em que ele escolhe a arma antes de salvar Marcellus. Butch ainda é o autor de uma das frases marcantes do excelente roteiro – só que o seu “Zack is dead, baby” soa bem em inglês, mas perde a graça em português. E apesar de curtas, as participações de Tarantino, como Jimmy, e principalmente de Harvey Keitel, como Wolf, são excelentes, com o segundo exibindo a costumeira segurança e uma expressão ameaçadora, que confere credibilidade e respeito ao personagem.

Keitel e Tarantino surgem no último capitulo da narrativa. Repleto de humor negro e diálogos sarcásticos, “A situação de Bonne” conta com a cena mais violenta e engraçada do longa, que é o tiro acidental de Vicent em Marvin, mas é também o capitulo em que Jules escapa milagrosamente da morte, o que promove uma transformação no criminoso, que passa a acreditar na “intervenção divina” em sua vida. Esta interessante visão contrasta com a de seu colega Vicent, que vê no acaso a explicação para o que aconteceu. Bastante polêmica, esta discussão ideológica deixa a cargo de cada espectador tirar alguma conclusão. Após acompanhar todas estas histórias paralelas, o espectador se vê novamente no mesmo restaurante do início. Novamente, o grito de Honey Bunny (Amanda Plummer) ecoa em todo local e Pumpkin (Tim Roth) começa a recolher as carteiras, aterrorizando quase todas as pessoas presentes. “Quase” todas, porque o agora regenerado Jules está lá, sentado, com a arma na mão e a misteriosa maleta de Marcellus Wallace na mesa, enquanto Vicent está no banheiro, lendo uma revista tranqüilamente. E apesar de exagerar em alguns momentos anteriormente, Samuel L. Jackson está perfeito na cena final, demonstrando segurança e autoridade enquanto conversa com os assaltantes e explica a razão de sua regeneração. E assim como Leone fazia com maestria no western spaghetti, Tarantino conduz a cena com a costumeira habilidade, mantendo a tensão simplesmente ao prorrogar ao máximo o confronto (que, neste caso, sequer acontece), com os personagens mantendo as armas apontadas uns para os outros, como ele também fizera em “Cães de Aluguel”. Nada acontece de fato, mas a tensão que domina a cena é suficiente para nos deixar em transe.

Com seu visual estilizado, diálogos inesquecíveis, narrativa envolvente e cenas marcantes, “Pulp Fiction” marcou época e confirmou que Tarantino era o sopro de criatividade que faltava em Hollywood. Embalado por uma trilha sonora empolgante e por atuações inspiradas de um elenco excepcional, o longa revigorou o cinema dos anos 90, inspirando muitos trabalhos que surgiriam a seguir. Não foi apenas Jules que saiu regenerado, a própria Hollywood parece ter escapado milagrosamente de alguns tiros a queima roupa.

Texto publicado em 15 de Julho de 2011 por Roberto Siqueira

OS DUELISTAS (1977)

(The Duellists)

 

Filmes em Geral #38

Dirigido por Ridley Scott.

Elenco: Keith Carradine, Harvey Keitel, Albert Finney, Edward Fox, Cristina Raines, Robert Stephens, Tom Conti, John McEnery e Diana Quick.

Roteiro: Gerald Vaughan-Hughes, baseado em conto de Joseph Conrad.

Produção: David Puttnam.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Com um orçamento modesto e um bom elenco, Ridley Scott colocou o seu nome no mapa com este “Os Duelistas”, filme que marca a estréia do diretor e que já apresenta muitas de suas principais características, como o visual deslumbrante (que seria aprimorado em “Alien, o oitavo passageiro” e, especialmente, em “Blade Runner”) e os elegantes movimentos de câmera. Além disso, apresenta a envolvente história de dois rivais que simplesmente não conseguiam viver sem a presença do outro e, principalmente, sem os duelos que fizeram a fama deles.

Após ferir o sobrinho do prefeito de Strasburgo, o oficial Gabriel Feraud (Harvey Keitel) é condenado e cabe ao também oficial do exército Armand D’Hubert (Keith Carradine) informá-lo da decisão. Mas Feraud não aceita sua condenação e se revolta contra D’Hubert, principalmente pela forma como foi comunicado, diante de seus colegas de exército. Ofendido, ele desafia o rival para um duelo pela honra que, inacabado, marcaria o inicio de uma inimizade que duraria muitos anos.

Já em seu primeiro filme, Ridley Scott demonstra todo seu cuidado extremo com o visual ao apresentar belíssimos planos e enquadramentos milimétricos que exploram ao máximo as esplêndidas paisagens na França, como podemos notar no lindo plano geral que precede o terceiro duelo entre Feraud e D’Hubert. Utilizando com freqüência o zoom in e o zoom out, repetindo o que Kubrick fez em seu belíssimo “Barry Lyndon”, ele valoriza a beleza das paisagens, como se fossem quadros vivos na tela. Aliás, também sob influência de “Barry Lyndon”, a fotografia de Frank Tidy consegue criar um visual admirável nas inúmeras cenas noturnas, filmadas em ambientes fechados e iluminadas apenas por velas, além de utilizar uma paleta dessaturada que confere um visual mais cru e realista às seqüências que se passam durante o dia, sem jamais deixar de explorar o já citado potencial do belo interior francês. Scott também demonstra bom humor quando D’Hubert pede Adele em casamento e os cavalos se tocam, simulando um beijo. E apesar de estar em plena decadência, a nova Hollywood ainda exerce influência sobre o filme, por exemplo, quando Feraud e D’Hubert começam um diálogo na casa de Madame Lionne e continuam a conversa na rua, numa típica quebra de continuidade dos filmes do período, claramente influenciada pela nouvelle vague francesa. Finalmente, Scott conduz com segurança as seqüências dos duelos, seguramente as mais empolgantes do longa, dentre as quais merece destaque o sensacional duelo a cavalo, onde o visual sombrio, coberto por uma névoa, confere uma atmosfera única ao combate, engrandecida pelas lembranças de D’Hubert que saltam na tela, aumentando a tensão e confirmando o excelente trabalho da montadora Pamela Power. O diretor também faz questão de mostrar os violentos resultados de cada duelo, algo notável já no primeiro combate entre Feraud e um importante cidadão, e, especialmente do segundo duelo em diante, nos joga pra dentro das lutas através de sua câmera inquieta.

O roteiro de Gerald Vaughan-Hughes, baseado em conto de Joseph Conrad, explora a curiosa relação entre D’Hubert e Feraud durante o período napoleônico (a narrativa inicia em 1800), cobrindo muitos anos da vida destes dois rivais que se detestam, mas que, como todo rival, não sabem viver sem a presença do outro. Eles precisam dos duelos para continuar vivendo, ou seja, é como se os duelos fizessem parte da essência deles. Até por isso, D’Hubert, o mais sensato da dupla, não mata o rival no duelo final – algo que, confesso, não tenho certeza de que Feraud faria, até porque é alguém que age muito mais com a emoção do que com a razão. O longa aborda muito bem este conflito interno vivido por D’Hubert, mostrando como ele, sempre que pode, recoloca seu inimigo em seu caminho, chegando ao ponto de solicitar que ele seja retirado de uma lista de traidores do rei, evitando sua prisão, justamente por saber que sem Feraud seus duelos estariam condenados ao fim. Por outro lado, em diversos momentos o complexo D’Hubert questiona a finalidade daqueles duelos, o que o leva a decretar o fim deles quando tem a oportunidade (mas sem matar Feraud, o que lhe permite voltar a duelar caso queira). Os duelos eram, basicamente, como um vício que ameaçava a vida promissora de D’Hubert. Para Feraud, eram a motivação de sua vida. Mas nem só de acertos vive “Os Duelistas”. É inegável, por exemplo, que o narrador soa pouco orgânico e a narrativa, com seus grandes saltos no tempo, é claramente episódica, além da subtrama que envolve o casamento de D’Hubert e Adele representar uma quebra no ritmo da narrativa. Mas nada que comprometa a boa avaliação do longa.

Para conceber as belíssimas imagens que vemos em “Os Duelistas”, Scott conta com um trabalho técnico de alto nível, a começar pela direção de arte de Bryan Graves e pelos figurinos de Tom Rand, que reconstituem muito bem a época em que se passa a narrativa, através da decoração interna das casas (com espelhos imponentes, lustres, talheres e taças) e dos impecáveis vestidos das mulheres e uniformes dos soldados. Colabora nesta ambientação a trilha sonora de Howard Blake, que utiliza flautas em boa parte do tempo, mas também pontua os momentos de tensão com acordes mais intensos ou através de batidas firmes, como nos momentos que precedem o duelo a cavalo. Aliás, os duelos demonstram também o bom trabalho de som, através do barulho das espadas cortando o vento ou se chocando. E apesar do som abafado de um tiro na neve, o som do vento na seqüência que se passa na Rússia só reforça o bom trabalho neste quesito.

Entre o elenco, vale destacar a dupla principal, formada pelo explosivo Harvey Keitel e pelo contido Keith Carradine. Vivendo o raivoso Feraud, Keitel demonstra bem a raiva que seu personagem carrega ao longo dos anos, além de expor com competência a ansiedade de Feraud para duelar com seu inimigo, algo notável quando, após atingir D’Hubert no terceiro duelo, ele salta e se movimenta para os lados com a espada, como quem mal espera para continuar aquele combate. Mas apesar de toda sua raiva, é curioso notar como Feraud espera o adversário espirrar e se recompor para começar o duelo, reforçando a ética destes confrontos. Além disso, ele claramente não sabe o que fazer quando é impedido de lutar com D’Hubert, o que fica evidente no plano final do longa, quando Feraud apenas observa a bela paisagem como se tudo aquilo nada significasse pra ele, repetindo um gesto de Napoleão Bonaparte, outro personagem que vivia dos conflitos. Já Keith Carradine confere carisma e nos faz acreditar em seu Armand D’Hubert, que, como já citado, vive sob o conflito entre se livrar de seu inimigo e continuar mantendo seus famosos duelos. Finalmente, a dupla se sai muito bem no sanguinário duelo em um estábulo, demonstrando bem o cansaço dos personagens, já incapazes de segurar as espadas por muito tempo no ar. Nesta cena, aliás, é notável também o nível de realismo empregado por Scott através dos graves ferimentos provocados nos duelistas, num combate muito bem orquestrado pelo diretor.

O tenso e esperado duelo final acontece após uma interessante rima narrativa, quando os mensageiros de Feraud dizem para D’Hubert que o confronto será com “pistolas”, lembrando o momento em que ele, na Rússia, disse para seu rival que o próximo duelo seria desta forma. E apesar de sua bela concepção visual e da alta carga de tensão, o duelo final não supera o sensacional duelo a cavalo, mas, ainda assim, consegue prender a atenção do espectador (neste momento, já ávido por aquele confronto final) e funciona como clímax de uma narrativa muito bem conduzida, mostrando o momento em que D’Hubert decreta o fim de seu “vício” e o início do sofrimento de Feraud, agora sem sua principal razão de viver.

Ainda que não tenha o impressionante visual de “Blade Runner” ou a eletrizante atmosfera de “Alien, o oitavo passageiro”, “Os Duelistas” é um bom filme, que serviu para colocar no mapa um diretor talentoso como Ridley Scott. Além disso, faz um interessante estudo sobre dois homens incapazes de se ver livres de seu pior inimigo, por causa de uma estranha obsessão: os duelos entre eles.

Texto publicado em 25 de Janeiro de 2011 por Roberto Siqueira

CÃES DE ALUGUEL (1992)

(Reservoir Dogs)

 

Videoteca do Beto #82

Dirigido por Quentin Tarantino.

Elenco: Harvey Keitel, Tim Roth, Michael Madsen, Steve Buscemi, Chris Penn, Lawrence Tierney, Kirk Baltz, Edward Bunker e Quentin Tarantino.

Roteiro: Quentin Tarantino.

Produção: Lawrence Bender.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Violência gráfica, narrativa não-linear, diálogos triviais e repletos de referências a cultura pop, trilha sonora de extremo bom gosto e atuações de grande nível. Todas as marcas registradas do cinema diferente e criativo de Quentin Tarantino podem ser percebidas em “Cães de Aluguel”, excelente filme que marcou a estréia de um dos diretores mais influentes da década de 90.

Seis criminosos profissionais são reunidos por Joe Cabot (Lawrence Tierney) para assaltar uma loja de joalherias que receberia uma valiosa carga de diamantes. Inesperadamente, algo dá errado e dois deles morrem quando os policiais cercam o local, mas todos os outros conseguem fugir. Mr. Orange (Tim Roth), ferido, é levado por Mr. White (Harvey Keitel), e em seguida Mr. Pink (Steve Buscemi) chega ao galpão onde todos combinaram de se encontrar, revoltado com a possibilidade de alguém ter traído o grupo. O último a chegar é Mr. Blonde (Michael Madsen), que provocou a ira dos parceiros ao começar a atirar durante o assalto por que algum funcionário da loja disparou o alarme. Caberá a Eddie (Chris Penn) tentar apaziguar a situação, mas o clima de desconfiança aumenta a cada minuto que passa.

Quentin Tarantino é certamente um dos diretores mais influentes dos últimos anos, imprimindo sua marca registrada em todos os seus filmes e conquistando fãs em cada canto do planeta. Reconhecidamente um grande diretor, Tarantino demonstra, no entanto, ainda mais talento como roteirista, algo notável desde este trabalho de estréia. Repleto de diálogos ágeis sobre coisas do cotidiano, humor negro e até mesmo piadas racistas, o roteiro de “Cães de Aluguel” chama a atenção justamente por conferir um realismo singular à narrativa, que definiu os padrões do cinema contemporâneo ao misturar elementos narrativos clássicos com diversas referências à cultura pop, a começar pelo divertido diálogo sobre as músicas da Madonna, passando pela constante menção ao programa de rádio “K-Billy, o som dos anos 70” e chegando até mesmo a citar “o quarteto fantástico”. Além disso, o fato dos personagens falarem de maneira informal, com muitos palavrões e piadas de humor negro, os torna ainda mais reais, aproximando-os do espectador, que se identifica com aqueles diálogos corriqueiros, afinal de contas, nós também passamos o dia comentando coisas banais. Só que em determinados momentos, a face criminosa de todos eles vem à tona (o que os diferencia da maioria dos espectadores), como no curioso diálogo entre Mr. White e Mr. Pink (“Matou alguém?”; “Tiras”; “Não matou pessoas de verdade?”; “Não, só tiras”), que revela também o lado ético daqueles “profissionais” do crime, revoltados com a morte de uma jovem de 20 anos. E os próprios codinomes dos personagens demonstram a criatividade de Tarantino, utilizando cores para evitar que eles se identifiquem e corram o risco de entregar os colegas numa eventual prisão.

Outra característica marcante do cinema de Tarantino que também surge pela primeira vez em “Cães de Aluguel” é a narrativa não-linear, sempre dividida em capítulos, que abusa dos flashbacks, neste caso para mostrar como cada integrante foi contratado por Joe. E se a estrutura narrativa não-linear normalmente prende a atenção do espectador, o vigor com que Tarantino conduz a trama desde o primeiro momento, quando sua câmera inquieta gira em torno da mesa e nos aproxima daquele grupo de criminosos, torna o longa ainda mais interessante. Os movimentos de câmera, aliás, confirmam o talento do diretor, como podemos notar no plano que se inicia num chão de banheiro, mostrando o lixo e a sujeira do local, seguido por um travelling que nos leva ao final do corredor onde Mr. White e Mr. Pink conversam, diminuindo os personagens na tela e ilustrando o quanto eles estavam perdidos naquele momento. Em outro momento, quando Joe diz para ninguém revelar o nome, Tarantino dá um close no rosto de Mr. White, indicando que aquele personagem quebraria esta sagrada regra. E finalmente, durante a briga entre Mr. White e Mr. Pink no galpão, Tarantino emprega um zoom out que lentamente revela a presença de Mr. Blonde escorado numa parede, apenas observando toda aquela confusão. Além disso, o diretor não hesita em nos apresentar cenas extremamente violentas, mantendo o espectador sempre atento a narrativa na expectativa de que algo surpreendente possa acontecer a qualquer momento, alcançando um nível de realismo bastante ousado para a época.

Profundo conhecedor (e amante) de cinema, Tarantino sabe também que não é preciso utilizar uma montagem acelerada para manter a atenção do espectador. Desta forma, a montagem de Sally Menke utiliza poucos cortes, prolongando bastante as cenas, o que serve também para mostrar o resultado nada agradável daquele ambiente violento, como quando a câmera passeia pelos corpos caídos após a troca de tiros entre Joe, Eddie e Mr. White. O trabalho de Menke se destaca ainda na interessante seqüência em que vemos Mr. Orange decorando a história do encontro com os policiais no banheiro, quando em poucos minutos ele passa do treinamento com seu amigo policial para o momento em que fala diante de Joe, Eddie e Mr. White – e aqui vale observar a inserção de um flashback de algo que nem existiu, conferindo legitimidade a história inventada pelo personagem. E o próprio local escolhido para acolher os criminosos confere ainda mais realismo ao que se passa na tela, com as paredes descascadas e os tijolos à mostra dentro do abandonado galpão, reforçado pela fotografia crua de Andrzej Sekula, que adota um visual granulado e cores sem vida que aproximam a imagem da realidade. Por outro lado, Sekula dá vida aos tons de vermelho, aumentando o choque das cenas de violência, sempre banhadas com muito sangue. E é curioso notar como a trilha sonora diegética, recheada com excelentes músicas dos anos 70, cria um paradoxo ao associar um som agradável à violência extremamente gráfica, deixando o espectador com um sentimento misto de prazer e repulsa.

As atuações, de forma geral, são bastante convincentes e mantém o clima constante de tensão de “Cães de Aluguel”, conseguindo criar personagens ameaçadores graças à firmeza de todo elenco. Observe, por exemplo, como Keitel e Roth soam extremamente convincentes no caminho do galpão, quando Mr. Orange grita de dor e Mr. White tenta acalmá-lo. Já no galpão, Roth convence Keitel e o espectador de que ele não sabe de nada sobre o traidor, o que aumenta o choque no momento em que ele revela a verdade. Keitel, por sua vez, se sai bem nas intensas discussões com os outros integrantes do grupo, como quando parte pra cima de Mr. Blonde logo após sua chegada ao galpão ou quando defende Mr. Orange diante das insinuações de Mr. Pink, interpretado com competência por Steve Buscemi. Já Michael Madsen está assustador como Mr. Blonde, com sua voz tranqüila e um olhar calmo que personificam o verdadeiro psicopata, capaz de provocar a ira em qualquer um – repare sua expressão de cinismo ao provocar Mr. White com a frase “Vai latir o dia inteiro, cachorrinho?”. Sua insanidade vem à tona na impressionante cena da tortura do policial Marvin Nash (Kirk Baltz), onde Tarantino evita mostrar a barbárie desviando a câmera no último instante, mas faz questão de mostrar as conseqüências daquele ato insano, através do rosto desfigurado de Nash, agora sem uma das orelhas, que pode ser vista na mão de Mr. Blonde – e aqui o diretor não resiste ao seu característico humor negro, personificado na brincadeira de Mr. Blonde com a orelha do rapaz. Observe ainda como a cena é pontuada pela deliciosa música tocada no rádio, dando uma estranha sensação de prazer ao espectador enquanto este assiste aquela repugnante cena de tortura. Através de um plano-seqüência, Tarantino ainda acompanha Mr. Blonde enquanto ele caminha tranquilamente pra buscar gasolina no carro, voltando ao galpão em seguida para incendiar o policial. Mas em outro momento surpreendente, Mr. Orange salva Marvin com tiros repentinos e revela que ele é o policial infiltrado no grupo. E fechando os destaques do elenco, Chris Penn e Lawrence Tierney também estão ótimos como Eddie e Joe, demonstrando entrosamento com Mr. Blonde na cena do escritório, mas mostrando-se firmes quando necessário, principalmente após tudo dar errado no assalto. Tierney se destaca ainda quando Joe passa as instruções para o grupo, em outro momento inspirado pelos afiados diálogos de Tarantino, que resultam na engraçada discussão a respeito dos codinomes de cada um. Já Penn se destaca quando Eddie fica furioso após Mr. Orange matar Mr. Blonde, expondo com competência a fúria do personagem.

“Cães de Aluguel” apresenta ainda duas seqüências marcantes, daquelas capazes de tirar o fôlego do espectador. A primeira delas é o flashback dos momentos anteriores e seguintes ao crime (o assalto em si nunca é mostrado), revelando como Mr. Orange foi atingido por uma civil e apresentando o momento em que ele chama Mr. White de Larry, num minuto de fraqueza que impediria o parceiro de levá-lo ao hospital posteriormente. Já o outro momento de extrema tensão acontece quando Eddie, Joe e Mr. White apontam as armas entre eles, resultando na morte de Eddie e Joe, na revelação da traição de Mr. Orange e na morte dos dois últimos integrantes do grupo. Estas duas cenas simbolizam a atmosfera de tensão que domina praticamente toda a narrativa.

Quentin Tarantino chamou a atenção da indústria cinematográfica ao introduzir elementos da cultura pop, misturados à violência extrema e realista, num roteiro coeso e inventivo que resultou neste intrigante “Cães de Aluguel”, um verdadeiro sopro de criatividade no cinema dos anos 90, que influenciou muito do que aconteceu nos anos seguintes.

Texto publicado em 09 de Janeiro de 2011 por Roberto Siqueira

CAMINHOS PERIGOSOS (1973)

(Mean Streets)

 

Filmes em Geral #30

Dirigido por Martin Scorsese.

Elenco: Harvey Keitel, Robert De Niro, David Proval, Amy Robinson, Richard Romanus, Cesare Danova, Victor Argo e George Memmoli.

Roteiro: Martin Scorsese.

Produção: E. Lee Perry e Jonathan T. Taplin.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Antes mesmo das primeiras imagens aparecerem na tela, “Caminhos Perigosos” deixa claro o tema principal de sua narrativa através das palavras ditas por determinado personagem: “Você não paga os pecados na igreja, paga na rua”. A culpa católica e o eterno conflito entre seguir os ensinamentos da igreja e sobreviver naquele mundo extremamente perigoso é o fio condutor deste ótimo filme dirigido por Martin Scorsese e estrelado por Harvey Keitel e Robert De Niro.

Charlie (Harvey Keitel) trabalha para crescer no submundo de Nova York sob a tutela de seu tio Giovanni (Cesare Danova), ao mesmo tempo em que mantém um caso com Teresa (Amy Robinson) e a indesejada amizade de Johnny Boy (Robert De Niro), um jovem agressivo que vive devendo para todo mundo. Entre os credores está Michael (Richard Romanus), um homem tranqüilo que evita confrontar Johnny por conta da amizade que tem com Charlie.

Não por acaso, a trama de “Caminhos Perigosos” se passa no bairro de Little Italy, o local onde o diretor Martin Scorsese passou boa parte de sua infância e juventude, e que claramente influenciou sua carreira em muitos aspectos (o linguajar de seus filmes, o tema do submundo, etc.). E ainda que este seja um dos seus primeiros trabalhos como diretor, Scorsese já apresenta seu estilo marcante em diversos momentos, como no travelling em câmera lenta que nos leva pela boate ao som de clássicos do rock n’ roll ou quando a câmera presa em Charlie durante uma bebedeira transmite a exata sensação de desorientação que o personagem sentia naquele momento. O diretor emprega freqüentemente o plano-seqüência, os travellings e a câmera lenta, balanceando estes movimentos estilizados com o uso da câmera agitada, buscando empregar realismo em diversas cenas. Observe, por exemplo, a briga que acontece num bar, ao som de “Mr. Postman”, quando Charlie e seus amigos vão cobrar um pagamento. A câmera agitada acompanha os personagens sem fazer muitos cortes, tornando a cena extremamente realista e nos jogando pra dentro da confusão – vale notar também a interessante crítica à corrupção da polícia no final do conflito. O diretor repete a alta dose de tensão e realismo na cena do assassinato dentro do bar de Tony (David Proval), com a vítima tentando estrangular seu assassino enquanto todos saem correndo desesperados pelas ruas tentando escapar da polícia, que já estava a caminho. Obviamente, a montagem de Sid Levin colabora sensivelmente na construção destas cenas, que contrastam diretamente com o ritmo mais lento do restante do longa. Sempre com cenas longas e com poucos cortes, Levin balanceia muito bem o ritmo da narrativa, além de ousar em alguns momentos, como quando Charlie e Johnny caminham pela noite conversando sobre a avó de Charlie. Repare como repentinamente a noite se transforma em dia durante a conversa, numa quebra deliberada de continuidade por parte de Scorsese e Levin. Em outro momento, numa conversa entre Charlie e Teresa dentro do apartamento, o som se inicia antes das imagens aparecerem na tela – imagens estas que remetem a conversa entre Patricia e Michael em “Acossado” e que ainda apresentam uma cena de nu frontal de Teresa. Estas duas cenas exemplificam a clara influência da nouvelle vague (Godard, em especial) sobre Martin Scorsese naquele momento de sua carreira. Scorsese faz ainda sua homenagem ao cinema clássico ao exibir uma cena de “Rastros de Ódio”, revelando sua paixão pela sétima arte.

Scorsese conta ainda com a direção de fotografia de Kent Wakeford, que emprega um visual cru, obscuro e com muitas cenas noturnas, refletindo a escuridão na vida daquelas pessoas à margem da sociedade, contrastando com a fotografia vermelha das cenas que acontecem dentro do bar, repleto de drogas e bebidas, conferindo um ar infernal ao local, afinal de contas, é ali que Charlie comete os seus “pecados”. As ruas sujas e repletas de mendigos, traficantes e prostitutas atestam o bom trabalho de direção de arte de Bill Bates, reforçado pelos figurinos de Norman Salling, que seguem o padrão “O Poderoso Chefão”, com os tradicionais ternos e gravatas. E finalmente, a trilha sonora é certamente um dos grandes destaques do longa, intercalando clássicos do rock n’ roll com óperas,  representando o conflito entre a vida agitada de Charlie no gueto e seu apego às tradições italianas, em especial a religiosidade e a busca pela salvação.

Scorsese acerta também ao apresentar, logo na introdução, as características marcantes de cada personagem, com Charlie buscando orientação na igreja, Johnny fazendo arruaça na rua, Tony cuidando do bar e Michael pacientemente indo cobrar um pagamento, nos preparando para o que aconteceria depois. Escrito pelo próprio Scorsese, o roteiro não tem uma estrutura convencional, nos permitindo acompanhar o cotidiano daquele grupo sem ter um objetivo claro, mas sempre evidenciando o tema da culpa católica, como, por exemplo, através da história que Charlie escuta sobre o casal de jovens que sai para transar e morre. Ainda assim, o foco da narrativa está sempre em Charlie e em sua constante luta por redenção diante da vida que leva. Ele não se importa com os problemas da igreja (“A igreja é uma organização, um negócio”, diz Tony em certo momento), exatamente por não conseguir encontrar outro caminho para aliviar seu conflito interno e buscar a salvação. É como se Charlie quisesse compensar a “vida pecaminosa” que leva freqüentando a igreja e confessando os pecados. Keitel transmite muito bem os conflitos do personagem, que consegue ser ao mesmo tempo durão e paternal, principalmente nos momentos em que passa ao lado de Johnny. Observe, por exemplo, sua reação ao ver uma moça negra dançando, lutando contra seus pensamentos e evidenciando seu racismo – o que se confirma quando ele desiste de um encontro por medo de ser visto com ela. O roteiro, aliás, volta a abordar o preconceito quando um homem diz que “as mulheres judias saem com todo tipo de cara”. Charlie convive ainda com outro dilema, tendo que decidir entre ficar com Teresa e Johnny e herdar o restaurante que seu tio Giovanni lhe prometeu. Neste caso, sua difícil decisão é também inteligente, o que o encoraja a contar pra Teresa a sua escolha, deixando a garota em segundo plano por um tempo, pelo menos até herdar o restaurante – e é apropriado que o plano anterior a esta revelação apresente Charlie colocando o dedo no fogo, pois certamente ele estava brincando com algo extremamente perigoso ao tentar enganar o tio.

Mas não é apenas Keitel que se destaca no elenco. Logo na primeira conversa entre Charlie e Johnny nos fundos do bar, podemos perceber a qualidade da atuação de Robert De Niro. O ator demonstra com competência o jeito desleixado de Johnny através da expressão corporal relaxada e da fala arrastada, que deixam claro o quanto ele pode ser dissimulado e pouco confiável. Durante uma discussão com Tony, Johnny ajeita as calças e arregala os olhos como quem está pronto para brigar, mostrando que ele era capaz de qualquer coisa para se defender. Sua loucura é tão evidente que o espectador não se surpreende quando Johnny resolve atirar no Empire State e na janela de uma mulher, somente para logo em seguida pedir desculpas para a senhora. Aliás, este sentimento de que algo ruim pode acontecer é constante em “Caminhos Perigosos”, muito por causa do elenco formado por atores com cara de “mau”, que dão a sensação de que poderão sair na porrada a qualquer momento. A exceção é Michael, interpretado por Richard Romanus, que exibe uma tranqüilidade atípica para o mundo em que vive, muitas vezes parecendo até mesmo inofensivo. Mas na medida em que o espectador passa a ter certeza de que Johnny não vai pagar a dívida, a eminente explosão de Michael se torna evidente – e o ator transmite esta sensação muito bem, principalmente na tensa seqüência em que Johnny aponta uma arma pra ele no bar. Fechando o elenco, Amy Robinson se sai bem como Teresa, especialmente quando sofre um ataque epilético diante de Charlie. Todos estes personagens sombrios e ambíguos criam um clima tenso sem a necessidade de recorrer à trilha sonora ou a situações inusitadas, somente através da composição dos personagens e da vida que eles levam. Por outro lado, estes mesmos personagens são capazes de citar diversas passagens bíblicas dentro do bar, mostrando a influencia da igreja sobre eles, ainda que não acreditassem nos ensinamentos que memorizaram (ou talvez não aceitassem). Neste dilema está a discussão central do filme.

Quando Michael emparelha o carro e seu parceiro começa a atirar em Johnny, o espectador pode até se sentir surpreso e chocado, mas no fundo todos sabiam que ao agir daquela maneira naquele mundo Johnny estava pedindo por isso. Scorsese encerra o longa com uma interessante rima narrativa, mostrando novamente os diversos personagens em diversos locais diferentes, assim como no início do filme. De diferentes maneiras, todos tentam sobreviver naquele violento ambiente, mas nem todos conseguem sair ilesos.

Texto publicado em 18 de Novembro de 2010 por Roberto Siqueira

TAXI DRIVER (1976)

(Taxi Driver) 

 

 

Videoteca do Beto #16

Dirigido por Martin Scorsese.

Elenco: Robert De Niro, Jodie Foster, Cybill Sheperd, Harvey Keitel, Albert Brooks, Leonard Harris, Peter Boyle, Norman Matlock, Diahnne Abbott e Martin Scorsese. 

Roteiro: Paul Schrader. 

Produção: Julia Phillips e Michael Phillips.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido o filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

O homem solitário de Deus. A solidão nas grandes metrópoles, por mais paradoxal que possa parecer, é mesmo um mal comum. Mesmo com tantas pessoas em volta, por muitas vezes podemos nos sentir deslocados e sozinhos nestas enormes selvas de pedra, como é o caso de Nova York, São Paulo e tantas outras cidades. Em 1975, ano de produção deste maravilhoso “Taxi Driver”, esta sensação já existia, ainda mais em uma Nova York suja e repleta de viciados, criminosos e prostitutas. Logo no primeiro plano – um close no olhar do solitário taxista, seguido por imagens das ruas de Nova York – a obra-prima dirigida por Martin Scorsese mostra de forma sutil que o efeito daquele ambiente na mente desta pessoa será o fio condutor da narrativa.

O veterano de guerra do Vietnã Travis Bickle (Robert De Niro) decide se tornar taxista para ocupar seu tempo, já que não consegue dormir. Após se apaixonar pela bela Betsy (Cybill Sheperd), que trabalha na campanha política de um senador candidato à presidência, conhece a jovem Iris (Jodie Foster) a quem aconselha largar a prostituição e o cafetão Sport (Harvey Keitel) e retornar para a casa de seus pais. O problema é que durante este processo, Travis lentamente se revolta com o que vê à sua volta.

Scorsese gravou seu nome na história do cinema com esta direção impecável. O diretor abusa de planos criativos (a frente, o capô e o retrovisor do taxi, as ruas molhadas) sem medo de arriscar, conseguindo sucesso absoluto na firme condução da narrativa e utilizando os movimentos de câmera para traduzir sentimentos dos personagens. Repare, por exemplo, como o interessante plano do copo borbulhando pode ser considerado uma metáfora para o momento em que começam a borbulhar também idéias na cabeça de Travis. Outro exemplo é a seqüência de foras que Betsy dá no taxista por telefone, nos deixando em uma situação desconfortável. O movimento da câmera, que faz um travelling para a direita e mostra o corredor vazio enquanto ouvimos Travis, demonstra visualmente nosso embaraço com a situação. O diretor simboliza o que o espectador pensa no momento, como se dissemos: “Não quero mais ver isso…”.

O bom roteiro de Paul Schrader trabalha nos detalhes para demonstrar o sentimento crescente de revolta em Travis (“Só se é saudável quando se sente saudável”), além de fornecer a base para as ótimas atuações do elenco. A montagem de Thelma Schoonmaker abusa do estilo, como na caminhada de Travis após conseguir o emprego ou quando repete três vezes seguidas um semáforo verde, demonstrando a rotina que o sufoca e atenua sua solidão (os mesmos lugares, os mesmos problemas). Finalmente, temos transições que significam muito, como o salto do plano de Iris e Sport dançando para Travis treinando tiro ao alvo, demonstrando visualmente o embate que ocorreria depois entre os dois homens. A trilha sonora clássica de Bernard Herrmann tem muito da cara de Nova York e funciona bem como tema do solitário taxista. Na cena da chacina, por exemplo, o tema de Travis é corretamente alterado para um tom mais sombrio. O apartamento bagunçado, com a parede suja e decorado com panfletos de Palantine, diz muito sobre a personalidade atormentada de Travis, mostrando o bom trabalho de Direção de Arte de Charles Rosen. Finalmente, a fotografia granulada (Direção de Michael Chapman) reflete a mente conturbada dele, destacando o festival de cores e luzes da noite de Nova York. Chapman é sábio também ao destacar, por exemplo, a cor vermelha na dança entre Iris e Sport, refletindo a vida infernal da garota ali dentro.

Além da competente direção, Taxi Driver conta também com uma atuação antológica de Robert De Niro. Encarnando com perfeição o taxista solitário, ele é competente ao transmitir o aumento lento e gradual da revolta no personagem. Em seu primeiro diálogo, quando consegue o emprego de taxista, responde as perguntas com um sorriso debochado no rosto, pois a alegria ainda estava presente em sua vida. Travis, porém, é alguém com enorme dificuldade para conviver em sociedade, como podemos perceber no diálogo com a atendente do cinema pornográfico. Ele não sabe seguir as “regras” criadas para se comportar em público, chegando a ser ingênuo. Mas uma pequena esperança floresce quando conhece a bela Betsy. Seu modo direto de falar encanta a garota, que topa sair com ele (De Niro faz um gesto com o braço quando diz que vai protegê-la). Quando Betsy, por razões óbvias, o abandona na porta do cinema pornô, a desilusão se torna o estopim de sua eminente revolta (“Ei, imundos, aqui tem alguém que não agüenta mais. Sou um revoltado!”), já sinalizada anteriormente. Observe, por exemplo, como ele encara um viciado na rua sem piscar os olhos, mostrando seu desprezo por aquele mundo sujo e sua enorme vontade de tomar uma atitude (quando pôde, não hesitou em matar um assaltante). Também demonstra, em um diálogo com seu amigo taxista, que está se sentindo deprimido, tentando contar seus planos (“Estou tendo algumas idéias ruins”), mas o amigo não entende o que ele quer dizer, até mesmo pela sua enorme dificuldade em se expressar. Quando finalmente decide agir (a queima das flores simboliza sua decisão de eliminar de sua vida tudo que lhe incomoda), seu primeiro alvo é o senador, com quem teve uma conversa em seu taxi, causando espanto pela sua franqueza. É então que Travis compra quatro armas, entre elas a Magnum 44 citada por um passageiro (Scorsese, fazendo uma ponta na cena em que ameaça matar a mulher, em frente ao apartamento do amante), decide fazer musculação e não comer mais comidas “ruins”. Essa virada radical na vida simboliza também que ele está determinado a agir (“O germe de uma idéia está crescendo em mim”). O momento sublime da atuação de De Niro acontece aqui, na sensacional cena em que fala sozinho a famosa frase “Está falando comigo?”. Repare como ele olha pra trás quando fala “estou sozinho aqui”, mudando a feição e dando a sensação de que realmente está falando com alguém. Em seguida, Travis diz que descobriu “o único objetivo de sua vida”, e Scorsese, de forma inteligente, corta para o discurso de Palantine, dando a dica de sua intenção de matar o candidato. Na conversa com o agente do Serviço Secreto, De Niro para de falar enquanto dois rapazes passam, e seu sorriso sarcástico faz o homem se preocupar. A bela cena em que olha fixo para a televisão, com uma música triste ao fundo, simboliza muito bem sua solidão. Ao destruí-la, o taxista sinaliza que está enlouquecendo com aquelas idéias na cabeça. Finalmente, quando fala pela primeira vez com Sport, seu olhar fixo para o cafetão nos faz pressentir qual é sua vontade naquele momento (“É a pior escória do mundo”, diz para Iris). O problema com Betsy, a convivência com Iris e sua vivência nos guetos de Nova York criam um sentimento paranóico, dando um nó na cabeça de Travis.

Completando o elenco, podemos destacar Cybill Sheperd, como a bela Betsy. Repare como ela olha pra baixo quando Travis diz que “é a mulher mais linda que ele conheceu na vida”. Seu sorriso incontido e seu brilho no olhar demonstram sua satisfação ao ouvir aquilo. Betsy, porém, não consegue compreender Travis e, com razão, fica indignada ao sair do cinema, enquanto Travis não entende a ofensa que aquilo significa pra ela. Jodie Foster está muito bem como a garota revoltada que vende o corpo, solta, sorrindo e fazendo brincadeiras, em seu diálogo com Travis no café. Em sua primeira aparição, somos ambientados ao mundo sujo em que vive (repare que Travis guarda os 20 dólares amassados, mostrando a importância que a garota teve pra ele desde aquele momento). Harvey Keitel interpreta o cafetão que explora todas aquelas garotas e que curiosamente demonstra algum carinho por Iris quando dança com ela no quarto. Mesmo assim, não hesita em vender o corpo dela, como podemos observar em sua conversa com Travis.

Quando hesita em aceitar o convite de Iris para tomar café, podemos pensar que é efeito do trauma do último encontro com Betsy, mas na verdade Travis já tinha outro plano para o dia seguinte (matar o presidente). Ele não tinha intenções amorosas com Iris, como fica claro quando vai com a garota para o quarto apenas para conversar. O que Travis queria era tirá-la daquele lugar que ele tanto odiava. De Niro expõe a raiva de Travis ao pagar o homem na porta do quarto, dizendo que “voltará com certeza”. Mas apesar de sua atitude final, a conversa com Iris no café demonstra que Travis era uma boa pessoa.

O grande clímax do filme vai sendo construído lentamente. Observe como Scorsese gasta alguns segundos antes de finalmente mostrar o taxista com cabelo moicano, simbolizando sua mudança de atitude. A tensa seqüência em que tenta assassinar Palantine, sem sucesso, mostra que a diferença entre um herói e um monstro muitas vezes pode ser bem pequena. Se tivesse conseguido seu objetivo, Travis seria retratado perante a sociedade como um assassino cruel e lunático, e não como o herói que se transformou após “salvar” Iris. Quando o vemos em casa agitado e, posteriormente, saindo com o taxi sem parar pra ninguém, sabemos que está decidido a resolver seus “problemas”. Após a impressionante e realista seqüência em que mata Sport e entra atirando no prédio, Scorsese faz um excelente travelling, com a cena congelada, desde o quarto onde Travis termina sua chacina, passando pelos mortos e armas, até chegar à barulhenta rua cheia de pessoas curiosas. Este refinado visual do filme é fantástico e colabora para o impacto causado em nossas mentes.

Scorsese acertou em cheio neste maravilhoso estudo da solidão e do isolamento, nos oferecendo uma direção impecável, recheado com atuações maravilhosas e imagens de grande impacto. Taxi Driver se aprofunda na complicada questão do deslocamento social com sucesso absoluto. Diversas pessoas já se sentiram desta forma na vida (eu inclusive) e ao ver a emocionante história do taxista solitário na tela é inevitável a nossa identificação. O mecanismo da solidão é simples, porém perigoso. Gostamos do que não podemos ter, e não gostamos de nada que temos. Desta forma, a pessoa jamais está satisfeita, e a solidão funciona como um escudo, uma proteção contra tudo aquilo que julga estar errado. Todos nós temos momentos em que chegamos perto do nosso limite. A grande questão é como lidar com este sentimento. Travis escolheu a forma mais perigosa e por sorte saiu-se bem.

 

Texto publicado em 18 de Novembro de 2009 por Roberto Siqueira