CONTATO (1997)

(Contact)

5 Estrelas 

Obra-Prima 

Videoteca do Beto #171

Dirigido por Robert Zemeckis.

Elenco: Jodie Foster, Matthew McConaughey, Jena Malone, David Morse, Tom Skerritt, James Woods, John Hurt, Angela Bassett, Rob Lowe, Jake Busey, William Fichtner, Sami Chester e Geoffrey Blake.

Roteiro: James V. Hart e Michael Goldenberg, baseado em romance de Carl Sagan e argumento de Ann Druyan.

Produção: Steve Starkey e Robert Zemeckis.

Contato[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Completamente esquecida com o passar dos anos, a obra-prima “Contato” é um dos pontos altos da excepcional carreira de Robert Zemeckis, abordando em sua narrativa envolvente temas complexos que podem render debates acalorados entre cientistas e religiosos. Sem jamais pender claramente para um lado ou para o outro, o longa estrelado por Jodie Foster tampouco foge de polêmicas e, apoiando-se no raciocínio lógico, espalha frases de efeito capazes de provocar reflexão nos dois lados, justamente por tratar o assunto com a seriedade e, o que é mais importante, a serenidade que ele merece. Como se não bastasse, ainda nos oferece uma protagonista tão complexa e fascinante quanto às próprias questões que levanta.

Baseado no livro homônimo de Carl Sagan e roteirizado com extrema competência por James V. Hart e Michael Goldenberg, “Contato” narra a história de Eleanor Arroway (Jodie Foster), uma astrônoma que descobre um sinal vindo do espaço com instruções para a construção de uma enorme máquina, que poderia possibilitar o contato com vida inteligente fora do planeta Terra. Disputando espaço com o também cientista David Drumlin (Tom Skerritt) e despertando o interesse amoroso do pastor Palmer Joss (Matthew McConaughey), Eleanor (ou Ellie) terá ainda que superar diversas barreiras políticas para conseguir realizar seu sonho e ser enviada na arriscada missão.

Introduzindo seus costumeiros movimentos de câmera estilizados desde a interessante abertura do filme, quando acompanhamos o som viajando pelo espaço (e pela história) através de um lento zoom out que dá a exata noção da nossa insignificância diante da magnitude do universo e ainda insere um conceito essencial para a compreensão de um momento chave da narrativa, Robert Zemeckis encontra em “Contato” a oportunidade ideal para comprovar sua habilidade não apenas na condução de narrativas envolventes, mas também na construção de uma atmosfera fascinante e na composição de cenas plasticamente belíssimas. Assim, não são raros os momentos capazes de encher nossos olhos, seja pela beleza da imagem, seja pelo apuro técnico, como no plano-sequência que acompanha Ellie chegando ao centro de controle após ouvir os sinais captados no espaço – que reflete com precisão a excitação dela e a urgência do momento – ou na triste sequência da morte do pai dela, captada com grande sensibilidade pela câmera lenta e pelos movimentos suaves do diretor, demonstrando respeito pela dor da personagem ao mesmo tempo em que frisa na mente do espectador uma passagem impactante que terá reflexos diretos no comportamento dela no futuro.

Som viajando pelo espaçoEllie chegando ao centro de controleMorte do pai delaObviamente, Zemeckis conta com sua equipe técnica neste processo, a começar pelo notável trabalho do diretor de fotografia Don Burgess, que investe num visual mais “clean”, quase asséptico em alguns momentos, mas que nem por isso deixa de abusar das luzes e cores quando necessário, como na psicodélica sequência da viagem da protagonista (voltaremos a ela em instantes). Da mesma forma, a montagem de Arthur Schmidt é crucial para que “Contato” mantenha um ritmo fluído, estabelecendo uma atmosfera tensa capaz de manter-nos interessados o tempo todo. Por sua vez, os aparatos científicos criativos e realistas concebidos pelo design de produção de Ed Verreaux e as roupas espaciais desenvolvidas pela figurinista Joanna Johnston ajudam na imersão do espectador na narrativa, enquanto a trilha sonora econômica de Alan Silvestri surge apenas em momentos especiais, como quando amplia a tensão no primeiro teste da máquina construída com base nas mensagens vindas do espaço.

Visual cleanPsicodélica sequência da viagemAparatos científicosE se o trabalho técnico é formidável, o elenco de “Contato” não fica atrás, apresentando um desempenho homogêneo e muito competente desde os primeiros minutos, quando acompanhamos o relacionamento da pequena Ellie vivida por Jena Malone com seu afável pai interpretado por David Morse. Na fase adulta, é Jodie Foster quem assume o papel da obstinada Ellie, comportando-se de maneira sempre racional, é verdade, mas sem ofuscar sua natureza agitada e questionadora, demonstrando em seu olhar a determinação da personagem na busca por evidências da existência de vida em outro planeta. Além de sua curiosidade natural como cientista, este comportamento encontra base também na trágica infância dela, já que é natural que alguém que perdeu a mãe no próprio parto e o pai aos nove anos de idade não queira estar só, ainda mais se considerarmos sua descrença na existência de um ser superior, um caminho sempre mais fácil e reconfortante para o ser humano.

Pequena EllieAfável paiObstinada EllieParadoxalmente, esta luta para provar que não estamos sozinhos no universo (“Seria um grande desperdício de espaço”, diz o pai dela) não significa, por exemplo, que ela queira constituir família – e o fato de não ter filhos nem marido só facilita sua decisão de largar tudo e correr atrás de seu sonho, o que não impede que ela se sinta apreensiva momentos antes de embarcar na jornada. Personagem intrigante e ambígua, Ellie destaca-se dos demais até mesmo nas roupas que veste, surgindo muitas vezes vestida de vermelho num ambiente dominado por cores sóbrias como azul e cinza. Inteligente e dona de um raciocínio lógico inabalável, ela mantém-se fiel (com o perdão do trocadilho) às suas convicções mesmo quando isto pode atrapalhar a realização de seu maior sonho.

ApreensivaMuitas vezes vestida de vermelhoRaciocínio lógico inabalávelQuem destoa do tom sério da maioria dos personagens é o religioso Joss, que surge como alguém mais relaxado e tranquilo na pele de Matthew McConaughey, mas que nem por isso deixa de se posicionar com firmeza quando necessário, como quando questiona David logo no primeiro contato numa festa. Ao contrário de Ellie, ele acredita em Deus, mas diferentemente de alguns fanáticos religiosos que cruzam a narrativa, mantém uma postura equilibrada na maioria das vezes, mostrando que é possível conviver pacificamente, mesmo com visões distintas de um tema tão misterioso. Inteligente, Joss tenta proteger Ellie dos riscos da missão, mas respeita a decisão dela por boa parte do tempo; e o fato de eles ficarem juntos logo de cara revela-se um grande acerto do roteiro, por permitir que o lado mais interessante da narrativa seja desenvolvido com tranquilidade ao invés de investir muito tempo no desenvolvimento do romance deles.

Religioso JossQuestiona David logo no primeiro contatoJuntos logo de caraFuncionando como um rival direto na luta de Ellie pela realização do sonho de ir para o espaço, o antagonista David Drumlin interpretado com sarcasmo por Tom Skerritt chega a nos irritar em certos instantes, como quando fala no lugar dela numa importante conferência para a imprensa – e a decepção no rosto de Foster neste instante é impactante, assim como chama à atenção a inteligência de Zemeckis na composição do plano que contrapõe os dois cientistas. No entanto, David revela alguma humanidade quando demonstra ter ciência do quanto sua escolha havia sido injusta, ainda que isto não amenize sua desgastada imagem diante dela. Quem também oferece um desempenho enérgico que cumpre seu papel mesmo distanciando o personagem da plateia é James Woods, que cria um Kitz ameaçador ao ponto de levar a protagonista as lágrimas no interrogatório final.

Antagonista DavidDecepção no rostoKitz ameaçadorMas nem só de inimigos vive Ellie e, entre seus amigos cientistas, vale destacar o simpático Kent de William Fichtner, que ilustra muito bem as dificuldades provocadas pela cegueira e, curiosamente, o quanto sua deficiência permitiu que ele desenvolvesse uma audição aguçada que, por sua vez, o auxilia muito no trabalho. E finalmente, vale mencionar a presença marcante de John Hurt como o excêntrico bilionário S.R.Hadden, que tem participação fundamental na narrativa e, como de costume, rouba a cena sempre que surge para salvar a protagonista (numa curiosa representação física do artifício narrativo conhecido como deus-ex-machina).

Sem se limitar ao aspecto visual e ao desenvolvimento dos personagens, Zemeckis extrai todo o potencial do excelente roteiro de “Contato”, narrando uma história fascinante tanto estruturalmente quanto tematicamente. Abusando da criatividade (o método empregado para decifrar a mensagem é sensacional), “Contato” traz ainda interessantes elementos para discussão. Observe, por exemplo, como os militares só pensam na possibilidade de conflito com os extraterrestres, assim como os políticos só pensam nas consequências que o vazamento de informações pode provocar em seus governos, esquecendo-se da importância daquelas descobertas na vida das pessoas em geral. No entanto, o debate central está no embate entre ciência e religião, notável ao longo de toda a narrativa.

Simpático KentExcêntrico bilionário S.R.HaddenMétodo empregado para decifrar a mensagemApós a descoberta de um sinal que poderia mudar os rumos da humanidade, multidões se dirigem ao local para explorar a descoberta de todas as formas, demonstrando o impacto daquela descoberta na sociedade e levantando diversos pontos interessantes para discussão e reflexão. Até que ponto nós queremos realmente saber a verdade? Caso seja religioso, você gostaria de saber, repentinamente, que tudo que ouviu desde a infância não passa de uma invenção? Não surpreende, portanto, o comportamento irracional de alguns fanáticos religiosos, assim como é compreensível (ainda que imperdoável) a atitude trágica de um líder religioso (Jake Busey) que quer impedir o progresso daquele experimento cientifico apenas para manter o controle de sua igreja sobre a sociedade.

Sociedade esta que, num país dominado pelo cristianismo como os EUA, demonstra um preconceito escancarado contra o ateísmo (o Brasil católico também), como fica evidente na avaliação de Ellie pela comissão, num dos raros momentos em que Joss deixa sua fé falar mais alto que a razão – e, na verdade, podemos interpretar a desprezível pergunta dele como uma tentativa, ainda que desesperada, de segurá-la, jogando-a contra a comissão e frustrando seu sonho, mas é mais provável que ele de fato quisesse se certificar da falta de fé dela no Divino, já que para os religiosos, não acreditar em Deus é praticamente um crime e não apenas uma questão de cunho pessoal.

Multidões se dirigem ao localAtitude trágica de um líder religiosoAvaliação de Ellie pela comissãoAssim, chegamos ao tenso momento em que o citado líder religioso tenta impedir a evolução dos testes, provocando a impressionante explosão da primeira máquina, na qual ficam evidentes os espetaculares trabalhos de design de som e efeitos visuais. Essencial no trabalho de Ellie e no filme em geral, o som destaca-se também em outros instantes, como quando a máquina começa a funcionar e podemos ouvir claramente cada parte daquela enorme estrutura se movimentando. Mas o grande momento de “Contato” é mesmo a espetacular viagem de Ellie pelo tempo/espaço, repleta de planos belíssimos que se apoiam nos efeitos visuais de tirar o fôlego para encantar a protagonista e a plateia (“Eles deveriam ter enviado um poeta”, diz ela). Nesta longa sequência, o olhar encantado dela reflete o nosso próprio olhar diante da magnitude do que vemos – e se Foster transmite muito bem a emoção da personagem em sua expressão tocante, Zemeckis confirma novamente sua capacidade de conduzir sequências visualmente complexas com uma facilidade assustadora.

Impressionante explosão da primeira máquinaViagem de Ellie pelo tempo espaçoPlanos belíssimosApós seu retorno, “Contato” traz ainda uma genial inversão de papéis, com a cientista tendo que provar algo sem ter nenhuma evidencia e a comissão formada majoritariamente por pessoas religiosas (ou, ao menos, que afirmam crer em Deus) assumindo o papel dos céticos, tão ligado aos cientistas. E com exceção de um único instante em que uma integrante do governo afirma que as gravações estáticas duraram 18 horas (talvez o único pecadilho do impecável roteiro), na maior parte do tempo o próprio espectador se questiona se ela realmente passou por aquela experiência ou se ela imaginou tudo aquilo. A resposta, como em quase tudo na vida, está dentro de cada um de nós. E justamente por isso é que não devemos assumir as nossas crenças como verdades universais.

Empolgante em todos os aspectos – narrativa, temática e visualmente -, “Contato” é competente tanto como entretenimento quanto pela capacidade de provocar profundas reflexões filosóficas e existenciais. No fim das contas, esta obra-prima de Robert Zemeckis mostra que é possível conviver pacificamente mesmo com visões tão distintas sobre o mesmo tema; e que cada um, à sua maneira, continuará buscando a verdade sobre os mistérios do universo.

Contato foto 2Texto publicado em 14 de Agosto de 2013 por Roberto Siqueira

MAVERICK (1994)

(Maverick)

 

Videoteca do Beto #104

Dirigido por Richard Donner.

Elenco: Mel Gibson, Jodie Foster, James Garner, Alfred Molina, James Coburn, Corey Feldman, Danny Glover, Graham Greene, Geoffrey Lewis, Paul L. Smith, Dan Hedaya, Max Perlich, Jean Da Baer, Jack Garner, Dub Taylor e Margot Kidder.

Roteiro: William Goldman, baseado na série de TV “Maverick”, escrita por Roy Huggins.

Produção: Bruce Davey e Richard Donner.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Os anos 90 marcaram a ressurreição do mais americano dos gêneros, o western, através de excelentes filmes como “Dança com Lobos” e “Os Imperdoáveis”. Graças a eles, as produtoras voltaram a ter confiança no gênero e filmes como este despretensioso “Maverick” puderam ser lançados. Quem saiu ganhando foi o cinéfilo, que viu ressurgir um gênero delicioso. Com muito bom humor e uma narrativa leve, o longa dirigido por Richard Donner cumpre muito bem o que se propõe a fazer, divertindo o espectador enquanto acompanha a trajetória do esperto protagonista interpretado com carisma por Mel Gibson.

Bret (e não Bert!) Maverick (Mel Gibson) é um hábil jogador de pôquer que precisa desesperadamente arrumar três mil dólares para poder participar de um milionário campeonato num rio do Mississipi. No caminho, ele cruza com a bela Annabelle Bransford (Jodie Foster) e com o durão Zane Cooper (James Garner), que acompanharão o protagonista em sua atrapalhada jornada.

Escrito por William Goldman (baseado na série de TV homônima, escrita por Roy Huggins), “Maverick” acompanha a trajetória de seu personagem principal pelo velho oeste com bom humor. Buscando participar de um importante campeonato de pôquer que poderá lhe render nada menos que meio milhão de dólares, tudo que Bret Maverick deseja é ganhar os seus dólares sem morrer no caminho. O que os outros enxergam como covardia, para ele é apenas questão de sobrevivência. Repleto de sátiras que constantemente provocam o riso no espectador, o roteiro Goldman apresenta uma série de diálogos divertidos e ágeis, especialmente quando envolvem o trio Maverick, Cooper e Annabelle, além de inserir boas tiradas, que surgem ainda melhores graças à condução de Donner (repare como ele demora a revelar o “puro sangue” de Maverick, o que é essencial nesta piada, por exemplo). Além das excelentes piadas, o diretor consegue criar boas seqüências de ação, como quando Maverick tenta controlar uma diligência desgovernada em alta velocidade, pulando de um cavalo para outro até conseguir frear os animais (uma referência ao clássico de John Ford “No Tempo das Diligências”). Repleta de referências a momentos típicos dos westerns clássicos, a narrativa apresenta até mesmo a habitual cena em que os bandidos dormem bêbados ao redor da fogueira, sendo surpreendidos pelo protagonista, em outro momento divertido, que se encerra num emocionante e tradicional tiroteio.

Explorando com competência as belas paisagens, Donner ambienta perfeitamente o espectador ao velho oeste, auxiliado também pela direção de arte de Daniel T. Dorrance, que cria uma bela cidade no início, assim como capricha na aldeia indígena e no barco que receberá o campeonato de pôquer. Também vale citar os figurinos de April Ferry, essenciais na ambientação do espectador, com os vestidos charmosos das mulheres e os ternos elegantes dos homens, especialmente nos jogos. E por falar nos jogos, Donner também consegue deixar as partidas sempre interessantes, graças à montagem eficiente de Stuart Baird e Michael Kelly, como no primeiro jogo em que Maverick perde por uma hora, onde a rápida seqüência de imagens e a trilha divertida de Randy Newman tornam a cena empolgante – e vale registrar o olhar cínico de Gibson quando Maverick olha para o relógio e confirma que passou uma hora, guardando-o rapidamente para que os outros jogadores não percebam que agora ele poderá vencer. Finalmente, o tom leve e bem humorado da narrativa é reforçado pela fotografia de Vilmos Zsigmond, que emprega cores quentes, valorizando o visual árido do oeste.

Leve e espontâneo em diversos momentos, Mel Gibson confirma seu talento para cenas cômicas, já indicado na série “Máquina Mortífera”, arrancando o riso da platéia com facilidade, por exemplo, ao oscilar entre a fúria e o bom humor numa discussão com um rival de jogo ou nas constantes brincadeiras que faz com Annabelle. Além disso, momentos como aquele em que brinca com uma arma com grande habilidade servem para conquistar a simpatia do espectador, o que é essencial na trama, transformando o protagonista num personagem carismático, ainda que politicamente incorreto. Da mesma forma, o talento e o carisma de Jodie Foster se encaixam perfeitamente na charmosa e atrapalhada Annabelle, uma personagem igualmente adorável. Demonstrando excelente química com Gibson, a atriz surge leve e divertida, destacando-se em diversos momentos, como quando tenta seduzir e roubar Maverick eu seu apartamento. E apesar de exagerar nas caretas em alguns instantes, Alfred Molina cria um vilão respeitável como Angel, coerente com o tom leve da narrativa, mas impondo-se quando necessário, como quando surra quatro homens num bar.

A inteligência de Richard Donner fica evidente ainda na genial ponta de Danny Glover, que surge como um ladrão de bancos que “está velho demais pra isso”. Num fascinante exercício metalingüístico, Donner cria uma cena sensacional ao permitir que Gibson e Glover troquem olhares com um ar de “te conheço de algum lugar”, numa referência clara a parceria da dupla em “Máquina Mortífera”, confirmada até mesmo pelo toque da trilha sonora quando o rosto de Glover é revelado e pela frase do bandido, dita após sair do banco. Também inteligente é a escolha de James Garner para viver Cooper, o pai de Maverick, já que o ator interpretou Bret Maverick na série de TV que inspirou o filme, ainda no final dos anos 50. Garner está seguro no papel, demonstrando firmeza como um policial respeitável e coroando sua atuação na cena final, quando demonstra grande afinidade com Gibson. Outra escolha acertada é a de Graham Greene para viver Joseph, o líder indígena, numa referência ao seu papel em “Dança com Lobos”, também confirmada por um rápido acorde da trilha sonora. Leve e despojada, a atuação de Greene é uma síntese de todo o elenco. Eles estavam leves e realmente se divertindo ao fazer o filme – o que reforça o mérito do trabalho de Donner.

Imprimindo o ritmo correto ao longa, Donner e a dupla de montadores dividem muito bem a narrativa, balanceando momentos de ação e bom humor até chegar ao esperado campeonato de pôquer, onde o trabalho dos montadores novamente se destaca, transformando o campeonato em outra seqüência agradável, novamente embalada pela excelente trilha sonora. Apesar disto tudo, o longa não é perfeito, e o pequeno drama que surge quando Maverick é trancado em sua cabine serve apenas para que o herói (?) chegue ao jogo no último minuto, num clichê que, desta vez, soa descartável. Por outro lado, toda a partida final é empolgante e tensa, com exceção do divertido momento em que Maverick elimina Annabelle da mesa. E na última jogada, o silêncio que predomina por alguns instantes amplia a tensão até que a carta mágica de Maverick seja revelada, numa interessante rima narrativa com outra cena, ainda no início, em que ele fala sobre a crença de infância desacreditada pelo pai. Infelizmente, logo após este momento de êxtase, a desnecessária fuga de Cooper com o dinheiro da aposta “brocha” o espectador. Nem mesmo a explicação de seu plano junto ao Comodoro (James Coburn) justifica a ação, já que o problema está no pouco tempo que a platéia tem para curtir a vitória de Maverick. A cena final revela que Cooper é o pai de Maverick e, somada à aparição de Annabelle e aos deliciosos diálogos sobre as semelhanças entre pai e filho, encerra o filme no tom correto, jogando o espectador pra fora com aquela deliciosa sensação de satisfação.

Com cenas memoráveis e muitos momentos capazes de fazer a platéia sorrir, “Maverick” é destes filmes leves, que alegram nosso dia, ainda que não deixem grandes reflexões. Nem deveriam. Com muito bom humor, o versátil Richard Donner tira mais uma carta da manga e, graças também ao ótimo elenco, entrega uma narrativa despretensiosa, envolvente e, acima de tudo, suficiente para nos divertir.

Texto publicado em 13 de Julho de 2011 por Roberto Siqueira

O SILÊNCIO DOS INOCENTES (1991)

(The Silence of the Lambs)

 

Videoteca do Beto #79

Vencedores do Oscar #1991

Dirigido por Jonathan Demme.

Elenco: Anthony Hopkins, Jodie Foster, Lawrence A. Bonney, Kasi Lemmons, Lawrence T. Wrentz, Scott Glenn, Anthony Heald, Frankie Faison, Stuart Rudin, Leib Lensky, Brooke Smith, Ted Levine, Pat McNamara, Kenneth Utt, Diane Baker, Don Butlen e Masha Skorobogatov.

Roteiro: Ted Tally, baseado em livro de Thomas Harris.

Produção: Kristi Zea.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Na cerimônia do Oscar de 1992, um filme surpreendeu a todos e levou os cinco principais prêmios da noite. Era “O Silêncio dos Inocentes”, excelente terror psicológico dirigido pelo versátil Jonathan Demme e estrelado com brilhantismo por Jodie Foster e Anthony Hopkins, que com sua atmosfera tensa, suga o espectador de maneira intensa e entrega uma narrativa maravilhosa, capaz de provocar frio na espinha de qualquer um, sem jamais apelar para imagens chocantes ou altos acordes da trilha sonora. É a história e, principalmente, os personagens que constroem o clima perfeito de suspense.

Clarice Starling (Jodie Foster) é escolhida para investigar uma série de assassinatos cometidos por um criminoso conhecido como “Buffalo Bill” (Ted Levine), que costuma arrancar a pele de suas vítimas – normalmente, mulheres acima do peso. Para entender sua conturbada mente, Clarice procura conversar com um perigoso psicopata conhecido como Hannibal Lecter (Anthony Hopkins), que está preso sob a acusação de canibalismo.

Um dos aspectos marcantes de “O Silêncio dos Inocentes” é, sem dúvida alguma, a sua atmosfera sombria, repleta de tensão em cada minuto de projeção. Na maior parte do tempo o espectador se sente aflito, ameaçado e incomodado, como se algo de ruim estivesse sempre prestes a acontecer. Mas ao contrário da maioria dos suspenses, o longa não apela para sustos artificiais, conseguindo criar seu clima aterrorizante somente através da excelente narrativa, recheada de grandes atuações, além é claro do bom trabalho técnico. A começar pela fotografia sombria de Colleen Atwood, que utiliza cores frias e pouca iluminação em diversos ambientes para criar, com o auxilio da igualmente sombria trilha sonora de Howard Shore, toda esta atmosfera carregada. Obviamente, o intrigante roteiro escrito por Ted Tally, baseado em livro de Thomas Harris, é o principal responsável pela construção deste clima, fazendo com que o espectador se sinta completamente envolvido pela investigação comandada por Clarice. Além disso, Tally foge de clichês básicos dos filmes de “serial killer”, por exemplo, ao revelar o assassino com apenas 30 minutos de filme, mostrando que a narrativa não se concentrará na descoberta do criminoso. É a dinâmica entre Clarice e Lecter que conduzirá a trama, muito mais do que a própria caçada ao assassino. Outro segredo do excelente roteiro é a simplicidade aliada à eficiência, ou seja, a ausência de explicações mirabolantes para os assassinatos. Bill age naturalmente, começando sua coleção de vítimas com uma vizinha – nas palavras de Clarice, “alguém que ele conhecia”. Finalmente, a narrativa apresenta ainda uma série de simbolismos interessantes, como a inteligente explicação para o nome do filme, revelando o trauma de infância de Clarice ao fugir do local onde os cordeiros (“lambs”, em inglês) eram sacrificados – ela mal podia dormir com os gritos dos cordeiros. Outro simbolismo evidente e interessante é a utilização das mariposas, que representam a tão desejada transformação de Bill numa mulher. Note como este pequeno detalhe é vital para a narrativa, pois será justamente uma mariposa voando pela casa que confirmará para Clarice que ele é o assassino, até porque aquelas mariposas não existem nos Estados Unidos (elas eram importadas).

Além das notáveis qualidades do roteiro, “O Silêncio dos Inocentes” conta também com excelentes atuações. Na realidade, o longa é um legítimo “filme de atores”, praticamente carregado pelo magnetismo da performance de sua dupla principal. Como citado, a dinâmica entre Clarice e Lecter é o fio condutor da narrativa, e felizmente, Foster e Hopkins oferecem atuações espetaculares. A atriz, sempre expressiva e com olhar penetrante, transmite segurança nos momentos necessários, como quando se mostra durona ao abrir uma porta emperrada sozinha e entrar num galpão abandonado, mostrando que era capacitada para conduzir aquela perigosa investigação. Mas é nas conversas com Lecter que Foster se destaca, estabelecendo uma conexão impressionante com Hopkins, algo reforçado até mesmo pelos constantes closes de Jonathan Demme. A atriz é competente ainda ao demonstrar com sensibilidade o trauma que perturba Clarice quando fala sobre a morte de seu pai, num diálogo eletrizante que lhe garante algumas dicas a respeito de Buffalo Bill. Finalmente, Foster demonstra bem o choque e o incômodo de Clarice ao ver o estrago na moça encontrada no rio, transmitindo também angústia e pena através do olhar. Criando o contraponto ideal para a excelente atuação de Foster, Anthony Hopkins está sensacional como Hannibal Lecter, praticamente hipnotizando o espectador com seu olhar penetrante, sua voz calma e sua inteligência. Lecter é praticamente um “gentleman”, mostrando-se educado e gentil, por exemplo, quando oferece uma toalha para Clarice se secar após chegar molhada pela chuva e, em seguida, ao perguntar sobre a ferida dela. Quando Miggs (Stuart Rudin) diz algo ofensivo para a agente, ele se mostra claramente incomodado, o que servirá para que Lecter revele sua faceta extremamente letal, ao provocar a morte do presidiário somente através de palavras sussurradas durante a noite. Personagem fantástico e fascinante, Lecter consegue conquistar a platéia, ainda que seja um assassino cruel, muito por causa da excepcional atuação de Hopkins. Entretanto, por mais educado e polido que seja, é inegável que a imagem de Hannibal com a focinheira é simplesmente aterrorizante. Aterrorizante também está Ted Levine como Buffalo Bill, compondo um homem imprevisível e assustador, capaz de “cuidar” durante semanas de suas vítimas, até que elas percam peso suficiente para que ele lhes retire a pele. Sua personalidade conturbada é ilustrada através de sua casa, repleta de objetos espalhados por todas as partes. Por outro lado, sua natureza meticulosa fica evidente somente pelo fato de criar mariposas, certamente uma atividade que exige paciência e tempo. Assassino frio e calculista, Bill era capaz de esperar o tempo que fosse necessário para conseguir o que queria de suas vítimas. Finalmente, Scott Glenn tem uma atuação discreta como o chefe de Clarice, Jack Crawford, e Brooke Smith está ótima como Catherine, a filha da senadora seqüestrada por Bill, com destaque para a cena em que vê as marcas de unhas e sangue na parede do poço e se desespera.

Extraindo o melhor do elenco afinado que tinha nas mãos, Jonathan Demme é competente também na composição de planos simbólicos, como o primeiro plano do longa, quando Clarice surge pequena em meio às árvores e se agiganta na tela, numa alusão interessante à própria história que será narrada, em que a estagiária se agigantará durante a investigação. Em seguida, o diretor emprega um plano-seqüência que acompanha desde o treinamento de Clarice até sua entrada na sala de Crawford, nos levando junto com a agente e começando a estabelecer empatia entre ela e o espectador. E apesar de evitar abusar de imagens chocantes, o diretor apresenta o resultado nada agradável dos ataques de Bill através de fotos coladas nas paredes com as vítimas de “Bill Skin”, estabelecendo desde então o perigo daquela investigação. Mas é na chegada de Clarice ao local onde Lecter está preso que o excelente trabalho do diretor fica evidente. Após nos levar por um extenso e intimidante caminho, repleto de grades que impedem o acesso ao local, finalmente chegamos ao corredor onde os piores criminosos imagináveis se encontram. Mas para nossa surpresa, Demme contraria todas as nossas expectativas ao apresentar um verdadeiro “gentleman” ao invés do animal que estávamos esperando. Auxiliado pela excepcional direção de arte de Tim Galvin, o diretor cria o contraste perfeito entre as celas asquerosas dos outros presos e o ambiente limpo do “doutor” Lecter. Por outro lado, o vidro que garante este visual mais “requintado” também serve para demonstrar o perigo que aquele homem representa, num sistema de proteção ainda mais eficiente que as tradicionais grades. Durante a primeira conversa da dupla, Demme utiliza constantemente o close nos olhos de Foster e Hopkins, criando uma conexão entre eles, que será vital para o futuro da narrativa. O close voltaria a ser utilizado com freqüência posteriormente, fazendo com que o espectador se sinta próximos dos personagens e praticamente entre em seus pensamentos.

Como em todo bom suspense, “O Silêncio dos Inocentes” tem uma coleção de cenas arrepiantes. Mas a principal delas certamente é a extraordinária revelação do truque de Hannibal Lecter, após a tensa seqüência em que os policiais aguardam a descida de um elevador. Quando o psicopata se levanta e tira a pele do rosto, atacando o enfermeiro que o acompanhava na ambulância, o choque é inevitável. Demme conduz a cena com perfeição, auxiliado pela montagem de Craig McKay, que alterna entre o tenso momento em que os policiais cercam o elevador por todos os lados e a surpreendente seqüência na ambulância. A montagem de McKay, aliás, é outro aspecto relevante do longa, destacando-se especialmente na invasão da casa de Bill, quando somos completamente enganados somente por causa da decupagem da cena. Observe como a alternância entre os planos que mostram a preparação dos policiais e aquele com a campainha tocando nos dá a sensação de que o FBI estava invadindo a casa correta, quando na realidade era Clarice quem estava certa. Momentos antes, Demme indica sutilmente que isto irá acontecer através de um travelling que vai do rio até a casa de “Bill”, indicando o local onde a primeira vítima (encontrada por último, por causa dos pesos que ele amarrou nela) foi jogada, bem perto da casa dele. Novamente a simplicidade é a chave do sucesso da narrativa. O tenso final é a cereja do bolo, em outra cena bem conduzida pelo diretor, que utiliza uma câmera subjetiva para nos colocar sob a visão de Clarice e depois, já no escuro, nos coloca sob o ponto de vista de Buffalo Bill, com seu aparelho de visão noturna. O som do gatilho salva a agente do FBI e finalmente silencia os cordeiros, respondendo a brilhante pergunta de Hannibal Lecter, feita por telefone nos segundos finais do filme.

Com um roteiro sensacional, um elenco competente e muita habilidade na condução da narrativa, “O Silêncio dos Inocentes” se estabelece como um suspense acima de média, intenso e eletrizante. Além disso, apresentou ao mundo um dos mais icônicos personagens do cinema, o psicopata brilhantemente interpretado por Anthony Hopkins, que inspirou novos filmes e marcou toda uma geração. Se os cordeiros de Clarice silenciaram, os nossos estavam apenas começando a gritar.

Texto publicado em 21 de Dezembro de 2010 por Roberto Siqueira

TAXI DRIVER (1976)

(Taxi Driver) 

 

 

Videoteca do Beto #16

Dirigido por Martin Scorsese.

Elenco: Robert De Niro, Jodie Foster, Cybill Sheperd, Harvey Keitel, Albert Brooks, Leonard Harris, Peter Boyle, Norman Matlock, Diahnne Abbott e Martin Scorsese. 

Roteiro: Paul Schrader. 

Produção: Julia Phillips e Michael Phillips.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido o filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

O homem solitário de Deus. A solidão nas grandes metrópoles, por mais paradoxal que possa parecer, é mesmo um mal comum. Mesmo com tantas pessoas em volta, por muitas vezes podemos nos sentir deslocados e sozinhos nestas enormes selvas de pedra, como é o caso de Nova York, São Paulo e tantas outras cidades. Em 1975, ano de produção deste maravilhoso “Taxi Driver”, esta sensação já existia, ainda mais em uma Nova York suja e repleta de viciados, criminosos e prostitutas. Logo no primeiro plano – um close no olhar do solitário taxista, seguido por imagens das ruas de Nova York – a obra-prima dirigida por Martin Scorsese mostra de forma sutil que o efeito daquele ambiente na mente desta pessoa será o fio condutor da narrativa.

O veterano de guerra do Vietnã Travis Bickle (Robert De Niro) decide se tornar taxista para ocupar seu tempo, já que não consegue dormir. Após se apaixonar pela bela Betsy (Cybill Sheperd), que trabalha na campanha política de um senador candidato à presidência, conhece a jovem Iris (Jodie Foster) a quem aconselha largar a prostituição e o cafetão Sport (Harvey Keitel) e retornar para a casa de seus pais. O problema é que durante este processo, Travis lentamente se revolta com o que vê à sua volta.

Scorsese gravou seu nome na história do cinema com esta direção impecável. O diretor abusa de planos criativos (a frente, o capô e o retrovisor do taxi, as ruas molhadas) sem medo de arriscar, conseguindo sucesso absoluto na firme condução da narrativa e utilizando os movimentos de câmera para traduzir sentimentos dos personagens. Repare, por exemplo, como o interessante plano do copo borbulhando pode ser considerado uma metáfora para o momento em que começam a borbulhar também idéias na cabeça de Travis. Outro exemplo é a seqüência de foras que Betsy dá no taxista por telefone, nos deixando em uma situação desconfortável. O movimento da câmera, que faz um travelling para a direita e mostra o corredor vazio enquanto ouvimos Travis, demonstra visualmente nosso embaraço com a situação. O diretor simboliza o que o espectador pensa no momento, como se dissemos: “Não quero mais ver isso…”.

O bom roteiro de Paul Schrader trabalha nos detalhes para demonstrar o sentimento crescente de revolta em Travis (“Só se é saudável quando se sente saudável”), além de fornecer a base para as ótimas atuações do elenco. A montagem de Thelma Schoonmaker abusa do estilo, como na caminhada de Travis após conseguir o emprego ou quando repete três vezes seguidas um semáforo verde, demonstrando a rotina que o sufoca e atenua sua solidão (os mesmos lugares, os mesmos problemas). Finalmente, temos transições que significam muito, como o salto do plano de Iris e Sport dançando para Travis treinando tiro ao alvo, demonstrando visualmente o embate que ocorreria depois entre os dois homens. A trilha sonora clássica de Bernard Herrmann tem muito da cara de Nova York e funciona bem como tema do solitário taxista. Na cena da chacina, por exemplo, o tema de Travis é corretamente alterado para um tom mais sombrio. O apartamento bagunçado, com a parede suja e decorado com panfletos de Palantine, diz muito sobre a personalidade atormentada de Travis, mostrando o bom trabalho de Direção de Arte de Charles Rosen. Finalmente, a fotografia granulada (Direção de Michael Chapman) reflete a mente conturbada dele, destacando o festival de cores e luzes da noite de Nova York. Chapman é sábio também ao destacar, por exemplo, a cor vermelha na dança entre Iris e Sport, refletindo a vida infernal da garota ali dentro.

Além da competente direção, Taxi Driver conta também com uma atuação antológica de Robert De Niro. Encarnando com perfeição o taxista solitário, ele é competente ao transmitir o aumento lento e gradual da revolta no personagem. Em seu primeiro diálogo, quando consegue o emprego de taxista, responde as perguntas com um sorriso debochado no rosto, pois a alegria ainda estava presente em sua vida. Travis, porém, é alguém com enorme dificuldade para conviver em sociedade, como podemos perceber no diálogo com a atendente do cinema pornográfico. Ele não sabe seguir as “regras” criadas para se comportar em público, chegando a ser ingênuo. Mas uma pequena esperança floresce quando conhece a bela Betsy. Seu modo direto de falar encanta a garota, que topa sair com ele (De Niro faz um gesto com o braço quando diz que vai protegê-la). Quando Betsy, por razões óbvias, o abandona na porta do cinema pornô, a desilusão se torna o estopim de sua eminente revolta (“Ei, imundos, aqui tem alguém que não agüenta mais. Sou um revoltado!”), já sinalizada anteriormente. Observe, por exemplo, como ele encara um viciado na rua sem piscar os olhos, mostrando seu desprezo por aquele mundo sujo e sua enorme vontade de tomar uma atitude (quando pôde, não hesitou em matar um assaltante). Também demonstra, em um diálogo com seu amigo taxista, que está se sentindo deprimido, tentando contar seus planos (“Estou tendo algumas idéias ruins”), mas o amigo não entende o que ele quer dizer, até mesmo pela sua enorme dificuldade em se expressar. Quando finalmente decide agir (a queima das flores simboliza sua decisão de eliminar de sua vida tudo que lhe incomoda), seu primeiro alvo é o senador, com quem teve uma conversa em seu taxi, causando espanto pela sua franqueza. É então que Travis compra quatro armas, entre elas a Magnum 44 citada por um passageiro (Scorsese, fazendo uma ponta na cena em que ameaça matar a mulher, em frente ao apartamento do amante), decide fazer musculação e não comer mais comidas “ruins”. Essa virada radical na vida simboliza também que ele está determinado a agir (“O germe de uma idéia está crescendo em mim”). O momento sublime da atuação de De Niro acontece aqui, na sensacional cena em que fala sozinho a famosa frase “Está falando comigo?”. Repare como ele olha pra trás quando fala “estou sozinho aqui”, mudando a feição e dando a sensação de que realmente está falando com alguém. Em seguida, Travis diz que descobriu “o único objetivo de sua vida”, e Scorsese, de forma inteligente, corta para o discurso de Palantine, dando a dica de sua intenção de matar o candidato. Na conversa com o agente do Serviço Secreto, De Niro para de falar enquanto dois rapazes passam, e seu sorriso sarcástico faz o homem se preocupar. A bela cena em que olha fixo para a televisão, com uma música triste ao fundo, simboliza muito bem sua solidão. Ao destruí-la, o taxista sinaliza que está enlouquecendo com aquelas idéias na cabeça. Finalmente, quando fala pela primeira vez com Sport, seu olhar fixo para o cafetão nos faz pressentir qual é sua vontade naquele momento (“É a pior escória do mundo”, diz para Iris). O problema com Betsy, a convivência com Iris e sua vivência nos guetos de Nova York criam um sentimento paranóico, dando um nó na cabeça de Travis.

Completando o elenco, podemos destacar Cybill Sheperd, como a bela Betsy. Repare como ela olha pra baixo quando Travis diz que “é a mulher mais linda que ele conheceu na vida”. Seu sorriso incontido e seu brilho no olhar demonstram sua satisfação ao ouvir aquilo. Betsy, porém, não consegue compreender Travis e, com razão, fica indignada ao sair do cinema, enquanto Travis não entende a ofensa que aquilo significa pra ela. Jodie Foster está muito bem como a garota revoltada que vende o corpo, solta, sorrindo e fazendo brincadeiras, em seu diálogo com Travis no café. Em sua primeira aparição, somos ambientados ao mundo sujo em que vive (repare que Travis guarda os 20 dólares amassados, mostrando a importância que a garota teve pra ele desde aquele momento). Harvey Keitel interpreta o cafetão que explora todas aquelas garotas e que curiosamente demonstra algum carinho por Iris quando dança com ela no quarto. Mesmo assim, não hesita em vender o corpo dela, como podemos observar em sua conversa com Travis.

Quando hesita em aceitar o convite de Iris para tomar café, podemos pensar que é efeito do trauma do último encontro com Betsy, mas na verdade Travis já tinha outro plano para o dia seguinte (matar o presidente). Ele não tinha intenções amorosas com Iris, como fica claro quando vai com a garota para o quarto apenas para conversar. O que Travis queria era tirá-la daquele lugar que ele tanto odiava. De Niro expõe a raiva de Travis ao pagar o homem na porta do quarto, dizendo que “voltará com certeza”. Mas apesar de sua atitude final, a conversa com Iris no café demonstra que Travis era uma boa pessoa.

O grande clímax do filme vai sendo construído lentamente. Observe como Scorsese gasta alguns segundos antes de finalmente mostrar o taxista com cabelo moicano, simbolizando sua mudança de atitude. A tensa seqüência em que tenta assassinar Palantine, sem sucesso, mostra que a diferença entre um herói e um monstro muitas vezes pode ser bem pequena. Se tivesse conseguido seu objetivo, Travis seria retratado perante a sociedade como um assassino cruel e lunático, e não como o herói que se transformou após “salvar” Iris. Quando o vemos em casa agitado e, posteriormente, saindo com o taxi sem parar pra ninguém, sabemos que está decidido a resolver seus “problemas”. Após a impressionante e realista seqüência em que mata Sport e entra atirando no prédio, Scorsese faz um excelente travelling, com a cena congelada, desde o quarto onde Travis termina sua chacina, passando pelos mortos e armas, até chegar à barulhenta rua cheia de pessoas curiosas. Este refinado visual do filme é fantástico e colabora para o impacto causado em nossas mentes.

Scorsese acertou em cheio neste maravilhoso estudo da solidão e do isolamento, nos oferecendo uma direção impecável, recheado com atuações maravilhosas e imagens de grande impacto. Taxi Driver se aprofunda na complicada questão do deslocamento social com sucesso absoluto. Diversas pessoas já se sentiram desta forma na vida (eu inclusive) e ao ver a emocionante história do taxista solitário na tela é inevitável a nossa identificação. O mecanismo da solidão é simples, porém perigoso. Gostamos do que não podemos ter, e não gostamos de nada que temos. Desta forma, a pessoa jamais está satisfeita, e a solidão funciona como um escudo, uma proteção contra tudo aquilo que julga estar errado. Todos nós temos momentos em que chegamos perto do nosso limite. A grande questão é como lidar com este sentimento. Travis escolheu a forma mais perigosa e por sorte saiu-se bem.

 

Texto publicado em 18 de Novembro de 2009 por Roberto Siqueira