BELEZA AMERICANA (1999)

(American Beauty)

5 Estrelas 

 

Videoteca do Beto #224

Vencedores do Oscar #1999

Dirigido por Sam Mendes.

Elenco: Kevin Spacey, Annette Bening, Thora Birch, Wes Bentley, Mena Suvari, Chris Cooper, Peter Gallagher, Allison Janney, Scott Bakula, Sam Robards e Barry Del Sherman.

Roteiro: Alan Ball.

Produção: Bruce Cohen e Dan Jinks.

Beleza Americana[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Casas enormes e bonitas, carros modernos, verdadeiros lares de comercial de margarina. Quem não conhece algum local assim, seja nos subúrbios de classe média e alta dos EUA ou aqui mesmo no Brasil? Bom, se você imaginou que a resposta é “qualquer um”, provavelmente está distante da realidade de muitas pessoas do país. Só que, ao contrário do que os sorrisos tentam nos dizer nestes comerciais, estas famílias são compostas por seres humanos que, como qualquer outro, são repletos de problemas, com suas angústias, dúvidas e anseios e, o que é pior, muitas vezes sonhos reprimidos num estilo de vida maçante e padronizado pelo consumo exacerbado e a preocupação com as aparências. Desde o primeiro plano deste excepcional “Beleza Americana”, Sam Mendes nos faz mergulhar num destes bairros, nos convidando a olhar mais de perto tudo que ocorre ali.

Escrito por Alan Ball, “Beleza Americana” nos mostra o cotidiano da família tradicional de classe média norte-americana formada por Lester Burnham (Kevin Spacey), sua esposa Carolyn (Annette Bening) e sua filha Jane (Thora Birch), que vivem uma crise familiar oculta sob a aparência de família perfeita e que vem à tona quando o novo vizinho Ricky (Wes Bentley) e a jovem Angela (Mena Suvari) entram no convívio deles.

Quebrando uma regra narrativa logo de cara ao anunciar a morte do protagonista, “Beleza Americana” já deixa claro que veio para quebrar os padrões estabelecidos e questionar tudo que estiver ao seu alcance. No caso, seu alcance se resume a um típico bairro de classe média nos EUA, do qual nos aproximamos através de um lento zoom empregado pelo diretor Sam Mendes, numa estratégia que se repetirá ao longo da narrativa alternada com o uso do zoom out, reforçando sua intenção de nos colocar como meros observadores daquele cotidiano. Neste aspecto, Ricky assume um papel muito importante ao observar tudo através de sua câmera, numa representação interessante do nosso papel enquanto espectadores. Vivido de maneira centrada e coerente com o personagem por Wes Bentley, Ricky é o canal que o diretor utiliza para nos mostrar aquele mundo de aparências, tendo tanto no lar dos vizinhos como dentro de sua própria casa exemplos de como – com o perdão do clichê – estas aparências enganam.

Até por isso é compreensível que Ricky e Jane tenham empatia, já que ambos dividem as mesmas frustações por saberem as máscaras que escondem os problemas de suas famílias. Ainda assim, Jane resiste à sua aproximação até o momento em que ele diz, novamente escancarando a função de seu personagem: “Não estou obcecado, apenas curioso”. Interpretada como uma pessoa reclusa e até certo ponto revoltada com tudo aquilo, a Jane de Thora Birch faz uma parceria perfeita com o centrado Ricky, o que os torna o ponto de equilíbrio de um filme repleto de personagens emocionalmente instáveis.

Assumindo uma abordagem quase investigativa, Sam Mendes aproveita para criar uma atmosfera de suspense em diversos momentos, com a trilha sonora de Thomas Newman evocando este tom de mistério, alternando muito bem com a composição exótica que acompanha os pensamentos de Lester e complementando momentos muito interessantes como quando Ricky se emociona ao ver uma sacola plástica dançando no ar, demonstrando sua sensibilidade. E se os figurinos de Julie Weiss são importantes para demonstrar tanto o bom poder aquisitivo daquelas pessoas como as diferenças entre as personalidades delas (a mãe sempre com roupas de grife e a filha com seu visual dark, por exemplo), o design de produção de Naomi Shohan também é essencial para dar vida àquele ambiente, com casas muito bem decoradas e simetricamente organizadas, ilustrando a enorme preocupação com as aparências.

Típico bairro de classe média nos EUAObserva tudo através de sua câmeraRicky se emociona ao ver uma sacola plástica dançando no ar

Essencial numa narrativa que salta do cotidiano de uma família para a outra sem nos fazer perder a atenção, a montagem de Tariq Anwar e Christopher Greenbury ainda nos presenteia com momentos muito elegantes, como a sarcástica sequência de abertura em que Lester descreve seu cotidiano e a bela sequência de encerramento em que ele recorda passagens marcantes da vida. No entanto, o grande destaque da parte técnica vai para a direção de fotografia de Conrad L. Hall, que explora as cores e os dias ensolarados da vida naquele subúrbio norte-americano com precisão, mais parecendo em diversos momentos estar filmando casas de bonecas, tamanha a perfeição da simetria entre as casas e a bela iluminação do sol, numa representação da artificialidade daquilo tudo que reforça a abordagem ácida da narrativa quanto aquele estilo de vida muitas vezes vazio. Mas a fotografia não se resume a isso somente. Observe, por exemplo, como quase sempre que Lester está empolgado, temos a presença de algum objeto vermelho em cena (seu carro novo é vermelho, assim como seu carrinho de controle remoto, por exemplo), simbolizando sua excitação ao mesmo tempo que nos faz lembrar da flor que dá nome ao filme. Típica dos subúrbios norte-americanos, a American Beauty é uma flor muito bela quando vista de longe, mas ao chegarmos mais perto descobrimos que ela não tem cheiro e nem espinhos, o que explica o slogan “olhe mais de perto”, pois ao nos aproximarmos dela compreendemos sua artificialidade, assim como ocorre naqueles bairros.

Quando Lester e Angela finalmente se beijam, observe como o zoom (olha ele aí!) realça um vaso de flores vermelhas à frente do casal e, lentamente, exclui as flores do quadro e foca naquele beijo triste entre um homem marcado pela vida sufocante que levou até ali e uma moça que encontrou na superficialidade uma forma de se defender dos constantes assédios que sofria. A chuva ao fundo complementa o tom melancólico que antecede a surpreendente revelação de Angela, que tornará a personagem mais triste, sofrida e muito mais humana do que parecia até então. Aliás, repare como Conrad L. Hall e Sam Mendes abandonam os tons vivos e adotam as sombras no ato final, reforçadas pela chuva e o cair da noite, aumentando a tensão, como quando o coronel Frank (Chris Cooper) ataca o próprio filho após achar que ele era homossexual, nos deixando ainda mais oprimidos pela clausura e pela escuridão que dominam a cena.

Objeto vermelho em cenaLester e Angela finalmente se beijamCoronel ataca o próprio filho

Assim como Mena Suvari, que encarna Angela como a representação da mulher superficial que só pensa na imagem que as pessoas terão dela, o coronel Frank Fitts interpretado por Chris Cooper é o estereótipo do miliar durão que acredita na disciplina e nas regras, mas que esconde muitos segredos exatamente por não ter coragem de enfrentar o autoritarismo e se expor. Realizando exames periódicos para manter o filho “na linha”, Frank é uma figura triste, amargurada e presa a um estilo de vida imposto e no qual ele acredita ser o único meio correto de viver. E novamente como Angela, o coronel reserva uma grande revelação para o ato final, quando tenta beijar Lester e mostra que na verdade luta para sufocar seus desejos homossexuais, numa cena surpreendente, tocante e triste.

Por sua vez, Ricky aprendeu a lidar com o pai desde cedo, evitando o confronto e dizendo exatamente o que ele quer ouvir, o que talvez seja a única forma de sobreviver ao conviver com ignorantes. Já sua mãe Barbara (Allison Janney) escolheu outro caminho para conviver com um homem tão amargurado, apenas vegetando naquele ambiente, possivelmente esgotada após tantos anos tendo que se defender de um homem extremamente autoritário. Enquanto o filho prefere dizer o que o pai quer ouvir, ela simplesmente se calou e preferiu viver reclusa.

Mas não são somente os Fitts que tem problemas escondidos sob aquelas casas perfeitas. Evidenciando o distanciamento do casal nos planos que acompanham os luxuosos jantares e que colocam marido e mulher em lados opostos da mesa, Sam Mendes quer mesmo é nos mostrar a família Burnham. Verdadeiro símbolo do tipo de pessoa obcecada pelo “sucesso” (como se isso pudesse ser medido pela posição que ocupa numa empresa ou pelo dinheiro que se tem), Carolyn representa uma caricatura da mulher falsa e preocupada com as aparências e, apesar da personagem exigir uma atuação exagerada, Bening até faz um bom trabalho, ainda que soe um pouco over em alguns instantes. Irritante em sua busca pela perfeição no sentido mais pejorativo que esta palavra possa ter, ela sequer é capaz de demonstrar alegria ao ver a apresentação da filha (“Você não fez nada de errado”), tornando-se humana somente diante de seu concorrente num jantar, demonstrando a admiração que sente por ele e, mais do que isso, pelo estilo de vida dele que ela tanto deseja ter.

Figura tristeLuxuosos jantaresCaricatura da mulher falsa

Assim como sua posição na mesa de jantar, Lester se coloca no espectro oposto ao de sua esposa quando falamos de visão de mundo. Infeliz em seu escritório de trabalho cinza e sem vida, Lester – vivido com brilhantismo por Spacey – é o típico homem que se entregou às convenções da sociedade que o cerca, descartando seus sonhos em função das expectativas alheias. Assim, não é surpresa quando constatamos que ele não ouve as músicas que gosta há anos e que jamais cogitou a possibilidade de comprar o carro que amava, mesmo tendo capacidade financeira para tal. Só que a mesma mesa de jantar presenciará o instante em que tudo começa a mudar, após Lester despertar do sono profundo ao ver a amiga da filha dançando na quadra da escola. Na briga durante o jantar, Lester tira das costas todo o peso da vida letárgica que levava até então e decide revolucionar a própria história (“Sou só um cara comum sem nada a perder”), voltando a fazer tudo que sentia vontade sem culpa – observe seu sorriso de pura felicidade e alívio quando briga com a esposa na cama e diz o que estava engasgado há muito tempo, numa das inúmeras cenas que demonstram a qualidade da interpretação de Spacey.

Escritório de trabalho cinza e sem vidaAmiga da filha dançandoPrestes a derramar cerveja no sofá

O casal, aliás, vive cenas simultaneamente divertidas e tristes, daquelas que nos provocam sorrisos no canto da boca e reflexões profundas, algo típico do humor politicamente incorreto da mais pura qualidade, que toca em questões centrais sem ser ofensivo. Entre elas, podemos destacar o instante em que Carolyn descobre que Lester fuma maconha e ele e Ricky não conseguem conter o riso e aquela em que Lester finalmente volta a sentir atração por Carolyn e, mesmo excitada, ela encontra espaço para observar que ele está prestes a derramar cerveja no sofá, colocando os valores materiais acima do próprio relacionamento com o marido. Há espaço também para momentos singelos, como o sorriso genuíno dele ao ouvir que a filha está feliz e o choro desesperado da esposa ao saber que o marido foi assassinado, demonstrando que mesmo com tantos problemas, ainda existia amor ali. A sequência final é coerente, inquietante e elegante, conduzida com calma através dos belos movimentos de câmera de Mendes e com poder suficiente para deixar o espectador bastante reflexivo diante de tudo que viu.

“Beleza Americana” desmonta estereótipos e mitos do american way of life. A trilha melancólica que acompanha o zoom out que nos distancia daquele bairro nos leva a refletir: quantos casos semelhantes temos em nossa sociedade? Quantas vidas baseadas na aparência e preocupadas com o que os outros pensam de nós? Uma tragédia moderna.

Beleza Americana foto 2Texto publicado em 22 de Março de 2016 por Roberto Siqueira

4 comentários sobre “BELEZA AMERICANA (1999)

  1. Michel Martins 22 março, 2016 / 6:40 pm

    Mais um excelente texto, para um filme muito interessante. Durante toda a leitura, eu fiquei com muita ansiedade em mencionar o significado das American Beauty no comentário, mas foi antecipado. Bem, não importa, mais uma ótima resenha. E que venha o Fight Club… 🙂 🙂 🙂

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    • Roberto Siqueira 28 março, 2016 / 11:14 pm

      Que bom que gostou Michel.

      “Clube da Luta” já está no ar. 😉

      Abraço.

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