(Lawrence of Arabia)
Videoteca do Beto #111
Vencedores do Oscar #1962
Dirigido por David Lean.
Elenco: Peter O’Toole, Alec Guinness, Anthony Quinn, Omar Sharif, Jack Hawkins, José Ferrer, Anthony Quayle, Claude Rains e Arthur Kennedy.
Roteiro: Robert Bolt e Michael Wilson, baseado nos textos de T.E. Lawrence.
Produção: Sam Spiegel.
[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].
Entre a segunda metade da década de 50 e o início dos anos 60, o cinema viveu um período repleto de produções grandiosas como “Os Dez Mandamentos”, “Ben-Hur”, “Spartacus” e “A Queda do Império Romano”, que utilizavam uma quantidade enorme de figurantes para narrar momentos históricos, recriados caprichosamente sob a condução competente de diretores como William Wyler, Cecil B. DeMille, Stanley Kubrick e Anthony Mann. Em 1962, David Lean se juntou ao grupo com este “Lawrence da Arábia”, que narra com riqueza de detalhes como um tenente inglês liderou os árabes na luta contra os turcos durante a primeira guerra mundial.
Escrito por Robert Bolt e Michael Wilson (baseado nos textos do próprio Lawrence), “Lawrence da Arábia” inicia em 1935 com a morte de T.E. Lawrence (Peter O’Toole) num acidente de motocicleta. Em seu funeral, um longo flashback surge para narrar sua trajetória e explicar a razão de sua fama, revelando como ele passou de um tenente infeliz para um respeitado (e improvável) líder, responsável pela união das tribos árabes na guerra contra os turcos. No caminho, o roteiro aproveita para expor os conflitos entre as diversas tribos árabes, abordando também os interesses políticos da Inglaterra na região, além de explicar, através da figura do repórter, como a fama de Lawrence se espalhou pelo mundo.
Auxiliado pela montagem clássica de Anne V. Coates, David Lean emprega um ritmo lento, que nos permite contemplar a beleza do deserto e desfrutar cada etapa da transformação do protagonista. Afinal de contas, em “Lawrence da Arábia” as sensações têm papel fundamental, fazendo o espectador se sentir parte daquele universo. Observe, por exemplo, como o diretor prepara cuidadosamente a invasão de Aqaba, prolongando a expectativa no espectador e nos fazendo compartilhar o minucioso planejamento estratégico do protagonista. E apesar de soar lenta para os padrões atuais, a montagem funciona bem e consegue evitar que o longa se torne cansativo. Além disso, Coates cria elegantes raccords, como quando o fogo de uma vela é substituído pelo plano do céu avermelhado no deserto ou quando ele salta das pernas dos camelos para as pernas dos soldados durante uma batalha.
Sem se preocupar em comprimir a narrativa nas tradicionais duas horas de duração, David Lean toma o tempo que julga necessário para explorar o deserto, criando lindos planos que aproveitam o nascer do sol e a exuberância daquele mar de areia. Contando ainda com a deslumbrante fotografia de Freddie Young, o diretor cria um visual arrebatador, que se confirma até mesmo nas cenas noturnas, iluminadas com destreza por Young e que servem para criar um contraste com a luz poderosa das cenas diurnas. O diretor é competente ainda na condução das cenas de forte impacto, como as guerras (que voltaremos a abordar em instantes), e nos momentos intimistas, como as lentas caminhadas de Lawrence pelo deserto. Observe ainda como o silêncio aumenta nossa expectativa segundos antes do beduíno Sherif Ali (Omar Sharif) surgir no horizonte longínquo. Já quando Lawrence resgata Gasim (I.S. Johar) no deserto, a trilha triunfal indica com antecedência que ele salvou o rapaz – Gasim ainda protagoniza outro momento marcante, quando descobrimos que ele é o assassino que deve ser executado por Lawrence, pouco tempo depois de ser salvo por ele. Estes dois instantes nos quais alguém surge no horizonte demonstram como Lean trabalha com as nossas sensações, nos fazendo compartilhar a angustiante experiência de caminhar no deserto escaldante como se estivéssemos ali, olhando para o horizonte sem saber se o que estamos vendo é real ou apenas uma miragem. Em outras palavras, “Lawrence da Arábia” é uma experiência cinematografia sensorial, que merece ser vivida na tela grande (ou algo que se assemelhe).
Interpretado pelo carismático Peter O’Toole, Lawrence surge inicialmente como um homem misterioso, capaz de cativar muitas pessoas que mal o conheceram, como descobriremos no final, quando uma interessante rima narrativa nos revela o homem que introduziu o flashback apertando a mão de Lawrence “somente para dizer que fez isto”. Mas uma conversa na tenda do príncipe Feisal (Alec Guinness) estabelece os objetivos da guerra e escancara alguns dos traços da forte personalidade do protagonista, um improvável herói de guerra, que foge dos padrões estereótipos do tipo. Magro e levemente afeminado, o Lawrence de O’Toole é um personagem repleto de nuances, que, contrariando sua aparência frágil, lentamente descobre sentir prazer ao matar seus inimigos. Apesar de se assustar num primeiro momento, Lawrence confirma este sentimento numa das batalhas, algo que O’Toole transmite muito bem com seu semblante insano durante o conflito. Durante seu processo de transformação, Lawrence conhece ainda o líder dos Howeitat, Auda Abu Tayi, vivido de maneira divertida por Anthony Quinn, e também o príncipe Feisal de Alec Guinness, que demonstra sabedoria nas decisões e sabe jogar o jogo político dos ingleses. Fechando o talentoso elenco, Claude Rains vive o político Sr. Dryden, Omar Sharif interpreta muito bem Sherif Ali e Jack Hawkins marca presença como o general Allenby.
David Lean conta ainda com a trilha sonora triunfal do ótimo Maurice Jarre na construção da atmosfera épica do longa, além de nos ambientar com perfeição naquele universo através do ótimo trabalho técnico de sua equipe, a começar pelo design de som, que realça o barulho do vento no deserto, as explosões e gritos durante as batalhas e os aviões que rasgam o céu. Quem também colabora bastante são os figurinos de Phyllis Dalton e a direção de arte de John Stoll que, somadas a enorme quantidade de figurantes utilizada nas batalhas, conferem realismo a narrativa – além de realçarem a magnitude da produção quando destacados pelos planos gerais de Lean. Finalmente, os figurinos têm ainda função narrativa, já que a mudança de roupa de Lawrence ilustra também sua mudança de comportamento e o respeito que ele passa a ter diante dos árabes.
Entre as grandes cenas de “Lawrence da Arábia”, vale destacar a invasão de Aqaba, uma seqüência de tirar o fôlego, captada num lindo plano geral de Lean que, no final, revela através de um elegante travelling o canhão apontado para o mar (e que belo mar!), exatamente como Lawrence tinha previsto. Outra batalha sensacional acontece antes da chegada a Damasco, numa seqüência que ilustra bem a grande quantidade de figurantes utilizada, exigindo muita habilidade do diretor na condução da mise-en-scène – vale lembrar que, ao contrário do que acontece atualmente, as batalhas não utilizavam efeitos digitais. E além das cenas marcantes de guerra, merece destaque a melancólica morte de um garoto na areia movediça, que parece servir para endurecer ainda mais o coração de Lawrence.
“Lawrence da Arábia” é um épico grandioso que retrata a vida de um personagem complexo, repleto de qualidades e defeitos como qualquer ser humano. Seu espírito de liderança e seu carisma uniram os povos árabes na luta contra os turcos, mas ele também sofreu profundas transformações nesta trajetória, captada com habilidade pela câmera de David Lean – um especialista em produções de grande escala e notável beleza plástica. O resultado é um filme empolgante, repleto de cenas marcantes e que, mesmo com quase quatro horas de duração, consegue cativar o espectador sem se tornar cansativo.
PS: Para quem tiver curiosidade, Rodrigo Carreiro explica em detalhes as dificuldades enfrentadas durante as filmagens de “Lawrence da Arábia” nesta crítica.
Texto publicado em 29 de Agosto de 2011 por Roberto Siqueira
Iai cara ,vou mandar umas perguntas sobre esse filme : É muito violento? É muito grande ? Vale a pena o comprar antes de assistir?
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Vale a pena.
Abraço.
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É muito violento?
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Um pouco, nada demais.
Abraço.
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Olá Roberto, parabéns pelo comentário, no mínimo justo sobre este grande marco do cinema mundial, pois, à exemplo do César eu tb aguardava com ansiedade a sua avaliação, inteligentíssima, diga -se de passagem. E ‘aproveitar’ o momento falar um pouco a parceria fertilíssima do diretor Lean com o produtor Sam Spiegel, autor do projeto, valendo dizer que, sem a coragem e obstinação desta ‘dupla-dinâmica’ a filmagem não seria realizada, pelo menos não com toda aquela perfeição, da mesma maneira como aconteceu anteriormente com A ponte do Rio Kwai. Ainda bem que não faltou reconhecimento para o trabalho destes dois magos do cinema, pois se a gente fosse somar, os prêmios que a academia concedeu para obras envolvendo um ou outro ou os dois juntos num período de pouco mais de dez anos ,passaria dos 30 oscars. O meu objetivo neste comentário talvez seja o de destacar acima de tudo a relevância do trabalho de Spiegel, um produtor visionário que fêz diferença na história do cinema visto que seus projetos estavam muito além das pretensões comerciais, e que legou à sétima arte, além dos clássicos já citados, obras fantásticas como Uma Aventura na àfrica, Sindicato de Ladrões, De repente no Ultimo Verão, Caçada Humana, Nicholas e Alexandra, etc.
Obrigado pela oportunidade e grande abraço!
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Olá Francisco,
Obrigado por mais este comentário engrandecedor.
Abraço.
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Caro Roberto, gostaria de ser o primeiro a comentar sua crítica para Lawrence da Arábia. Como você já sabe, este filme pra mim é o número 1 da história do cinema. É difícil dizer porque determinado filme, e não outro, é capaz de mexer tanto com a gente. Assim acontece comigo, Lawrence da Arábia não encontra equivalência na sétima arte na minha modesta opinião. Vale acrescentar que o Spielberg, toda vez que vai começar a gravar um novo filme, ele assiste a esse filme, pois segundo ele é o mais perfeito da história do cinema. Tudo funciona perfeitamente no filme, desde o roteiro enxuto de Robert Bolt, passando pela fotografia exuberante de Freddie Young, a música magistral de Maurice Jarre e as atuações seguras do novato Peter Otoole, que vinha do teatro inglês, do então só conhecido em seu Egito natal, Omar Shariff. Porém tinha verdadeiras fortalezas nos papéis secundários, como Alec Guinnes(recorrente em seus filmes), Anthony Quinn, Claude Rains e Jack hawkins, entre outros. Nenhum filme da era digital é páreo para Lawrence da Arábia. Segundo especialistas, se o filme fosse feito hoje custaria mais de 300 milhões de dólares. Mesmo que houvesse tanto dinheiro, faltaria o essencial,o diretor David Lean, morto em 1991 e seguramente um dos cinco maiores diretores de todos os tempos, basta ver sua excepcional filmografia. Poucos diretores conferiam tanto cuidado com suas realizações quanto ele. Seus filmes, apesar de grandiosos e épicos, ele conseguia imprimir um escala humana poucos vezes vista no cinema. Já percebeu que não há um único papel feminino neste filme. Emesmo assim ele é o que é. Duas palavras definem para mim o que é esse filme: Orgasmo visual. Parabéns pela crítica sobre o mesmo, muito boa mesmo. Um abraço e até a próxima.
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Olá Cesar,
Desde que divulguei esta crítica, estava aguardando o seu comentário. 😉
Agradeço pelo elogio e fico feliz por ler um comentário tão apaixonado como este. O cinema tem este poder mágico.
É um grande filme realmente, visualmente belíssimo e com um excelente estudo de personagem.
Um grande abraço e fique à vontade para comentar sempre que quiser.
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