(Russkij Kovcheg / Russian Ark)
Filmes em Geral #46
Dirigido por Aleksandr Sokurov.
Elenco: Sergei Dontsov, Mariya Kuznetsova, Leonid Mozgovoy, David Giorgobiani, Aleksandr Chaban, Maksim Sergeyev, Anna Aleksakhina, Konstantin Anisimov, Aleksei Barabash, Vladimir Baranov, Valentin Bukin, Kirill Dateshidze, Yuli Zhurin e Natalya Nikulenko.
Roteiro: Boris Khaimsky, Anatoli Nikiforov, Svetlana Proskurina e Aleksandr Sokurov.
Produção: Andrei Deryabin, Jens Meuer, Jens Meurer e Karsten Stöter.
[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].
Aleksandr Sokurov nos leva numa viagem espetacular por trezentos anos da história russa neste impressionante “Arca Russa”, o primeiro filme da história do cinema a ser feito em um único plano-seqüência de 97 minutos, ou seja, sem um único corte, mas que apresenta muito mais do que um trabalho técnico excepcional ao propor reflexões a respeito da própria linguagem cinematográfica e também sobre a própria existência humana.
Um homem é misteriosamente enviado ao museu Hermitage, em São Petersburgo, no ano de 1700 e passa a percorrer o local, acompanhado de um diplomata europeu (Sergei Dontsov), fazendo uma verdadeira viagem através da história russa entre os séculos XVIII e XXI.
Tomadas longas não são novidade no cinema. Scorsese, Figgis, Altman, Welles, Hitchcock e, mais recentemente, Paul Thomas Anderson e Alejandro Cuarón já utilizaram com maestria o plano-seqüência em diversos filmes, normalmente com muita eficiência e em cenas de grande impacto. Mas o que o diretor Aleksandr Sokurov conseguiu realizar em “Arca Russa” é algo sem precedentes na história da sétima arte. Filmado no dia 23 de Dezembro de 2001 numa única tomada, “Arca Russa” poderia entrar para a história do cinema simplesmente pelo seu apuro e inovação técnica. Felizmente, o longa dirigido por Sokurov vai além, propondo também uma reflexão filosófica a respeito da própria existência humana (“estamos mesmo destinados a navegar pra sempre?”) e outra reflexão a respeito da linguagem cinematográfica (“Era mesmo necessário filmar o longa em um único plano-seqüência?”). O diretor mantém a câmera no nível dos ombros do personagem, nos colocando sob o ponto de vista do narrador e literalmente flutuando pelos ambientes (o que reforça a teoria de que todos são fantasmas, mas falaremos dela depois). Os movimentos de câmera impressionam, passando por escadas em caracol e por cima de uma orquestra, por exemplo, além de evitar os reflexos, o que é notável num ambiente propício como o Hermitage, revelando o excepcional trabalho de direção de fotografia de Tilman Büttner (que é também o operador da steadicam). Sokurov caminha com sua câmera pelo museu, mantendo sempre o mesmo ritmo, que jamais é apressado ou demasiadamente lento, e nós viajamos junto com ele.
“Arca Russa” tem uma atmosfera de sonho, reforçada pelas vozes que se misturam ao som diegético logo no inicio do longa, pelas pequenas distorções nos cantos da tela em alguns momentos e pelos personagens fascinantes que cruzam o caminho da dupla de protagonistas. O som, aliás, é excepcional, captando desde passos no chão até os pensamentos, cochichos, risadas e palavras do narrador e de seu companheiro de viagem, além de permitir escutar nitidamente, por exemplo, o som de rodas de madeira girando, de uma orquestra tocando e das diversas conversas paralelas que cruzam nosso caminho durante a jornada. Todo o trabalho técnico é impressionante, a começar pela direção de fotografia do citado Büttner que acerta a iluminação em todos os 35 ambientes filmados, alternando entre locais iluminados à luz de velas e salões amplamente iluminados, evitando reflexos e excessos de luz, o que poderia atrapalhar a composição do plano. Vale destacar também os belíssimos figurinos que garantem um ar pomposo ao longa, além do próprio cenário, o museu Hermitage, que nos brinda com imagens arrebatadoras.
Não é difícil imaginar o trabalho logístico gigantesco de Sokurov para coordenar a atuação dos mais de 2000 figurantes e atores, que não poderiam errar em nenhum momento sob a pena de comprometer toda a filmagem (e aqui, vale o registro de que foram necessárias apenas três tentativas para que o resultado final saísse corretamente), em 35 ambientes diferentes, tendo que caminhar através da complexa estrutura do museu Hermitage. De maneira surpreendente, graças ao citado excepcional trabalho técnico de toda equipe e, obviamente, às atuações de todo o elenco, o resultado final parece real e nos leva numa viagem que oscila entre o sonho e a realidade, passando por trezentos anos da história russa, com destaque para a época dos czares, passando por Pedro o Grande, Catarina a Grande, Catarina II e o casal Nicholas e Alexandra Romanov. Entretanto, é importante ressaltar que não é necessário conhecer a história do país para apreciar o longa, mas certamente é ainda mais agradável a experiência para aqueles que entendem e, de certa forma, já conhecem àqueles personagens que cruzam o caminho do narrador.
E então chegamos às duas discussões centrais de “Arca Russa”. A primeira delas, que interessa principalmente aos cinéfilos, tem como base a grande inovação técnica do longa. Será que se o filme fosse filmado de maneira convencional, com cortes e planos distintos, o resultado seria inferior ao que Sokurov apresenta? Será que a utilização de um único plano-seqüência, por mais fascinante que seja (e realmente é impressionante) altera o resultado final da obra? Pra não ficar em cima do muro, afirmo que, em minha opinião, a ousadia de Sokurov engrandece ainda mais o filme, por nos inserir de maneira singular na narrativa, fazendo com que o espectador se sinta totalmente imergido na história. Já a outra discussão, que fala a respeito da natureza da existência humana, interessa ao público em geral (e agora, voltamos à teoria dos fantasmas). Estaria o narrador simplesmente vagando pelo museu ao lado de diversos espíritos que habitam naquele lugar ou simplesmente estamos fazendo uma viagem no tempo sem qualquer explicação lógica a respeito? Um indício de que todos são fantasmas aparece logo no inicio do longa, quando o europeu diz que nunca falou russo antes, reforçado pela pergunta do narrador (“É um sonho?”) respondida com um “talvez” pelo europeu. Em todo caso, esta é uma resposta pouco relevante, diante da comovente reação do mesmo europeu ao final do último baile dos nobres russos, simbolizando o fim daquela era e indicando o caminho tortuoso que estaria por vir (algo simbolizado também pela longa escadaria que leva os figurantes à saída do museu, numa passagem apertada e sombria). O ator que interpreta o europeu com discrição e eficiência, Sergei Donstov, demonstra com competência a aflição do personagem, que sabe perfeitamente o destino que se aproxima (o que, por outro lado, enfraquece a teoria dos fantasmas e fortalece a viagem no tempo). O final dá um toque especial com a mensagem indicando o destino do narrador e de todos ali presentes. Frases como “O mar cerca tudo” e “estamos destinados a navegar/viver para sempre” abrem espaço para profundas reflexões a respeito da existência humana, tais como “para onde vamos e de onde viemos?”. Existe ainda uma interessante teoria de que a “Arca Russa” é uma alusão à arca bíblica (a arca de Noé), sendo responsável por salvar a cultura russa do período negro de sua história que estava por vir. É inegavelmente uma visão coerente, ainda mais com o plano que encerra o longa mostrando o mar em volta do museu.
Sokurov, “cansado da montagem”, segue um caminho oposto ao do mestre do cinema russo Eisenstein e faz cinema sem a justaposição de planos, criando um filme belíssimo e marcante. Mas se “Arca Russa” é pura arte, também propõe reflexões, o que o torna um verdadeiro presente para cinéfilos. É uma pena, portanto, que o resultado certamente não agrade espectadores que buscam a repetição de fórmulas de sucesso e evitam caminhar por novos caminhos. As próprias imagens do museu Hermitage comprovam que a arte é um valoroso bem da humanidade, que merece sempre sobreviver a qualquer dilúvio. E felizmente, o filme dirigido por Sokurov, assim como as obras do museu, resistirá ao tempo.
Texto publicado em 18 de Fevereiro de 2011 por Roberto Siqueira