CORINGA

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Esse é um filme que precisa ser visto e discutido. Entendo o medo e a paranoia ao seu redor. Sinceramente, eu tive medo de ir assistir no cinema. Medo de acontecer alguma tragédia na sala. Nunca tive essa sensação. Talvez seja a paternidade, mas não podemos negar que vivemos em um mundo louco.

Um mundo tão louco, que descontrói as pessoas, as quebra, e depois que elas cometem suas loucuras, a sociedade se isenta da culpa. Afinal, era só mais um louco. Acho que esse é o mote do Coringa, e é por isso que ressalto que precisa ser visto.

Vamos ao filme. Esqueçam a ideia de filme de herói, ou baseado em HQ’s. A própria Warner não quer isso. No começo do filme, num fato inédito, não aparece o logo da DC. Sim, é a história de um vilão icônico, mas poderia ser a história de qualquer um.

Talvez, Coringa seja para nossa década, o que Taxi Driver e Clube da Luta foram para as suas (guardadas as devidas proporções). O filme é um estudo sobre doenças mentais e a sociedade em que vivemos. A forma como os que não se enquadram são deixados de lado. Não só devido a doenças mentais, mas também a classe, cor, gênero etc. Se passa no final dos anos 70, mas é extremamente atual.

Não tenho a intenção de relativizar o personagem do filme, ou os personagens da vida real, e transformá-los em mártires. Mas é importante aprender com os erros para que estes não se repitam.

Joaquin Phoenix é a alma do filme. Que atuação monstruosa. A melhor que vi nesse ano sem dúvida. O filme é dele. É perturbador vê-lo em cena. Sua risada ainda ecoa na minha cabeça. E não é apenas um tipo de risada. Para cada ocasião, ele entrega uma risada diferente, quase que como um diálogo. É angustiante. É um Coringa caótico e imprevisível. E muito disso vem da atuação. É impossível ler seu rosto e tentar adivinhar o que ele vai fazer.

Essa imprevisibilidade atinge seu auge assim que as cortinas se abrem, no momento em que ele se apresenta ao mundo e todos passam a vê-lo.

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A cena no banheiro entra no rol das maiores improvisações do cinema. E é nessa cena que os três pilares do filme, atuação, trilha sonora e fotografia, pra mim, chegam ao ápice. Se Rami Malek ganhou o Oscar fazendo playback, é justo um Oscar coroar a interpretação de Joaquin Phoenix.

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A fotografia é sensacional. Uma Gotham suja, quase sem cores, como se fosse um purgatório para o personagem. E quando ele se descobre, quando somem as amarras que o prendiam à sanidade, o filme fica mais colorido, seja pelas roupas ou no palco em que faz sua apresentação ao mundo, ou na noite em chamas de Gotham. Até as escadas, que ele subia sempre de cabeça baixa, como se caminhasse em direção a um sacrifício, após sua “transformação”, fica mais viva.

A trilha sonora, que depois descobri ser do mesmo compositor de Chernobyl é angustiante. Ela te martela a todo o momento, refletindo a mente do personagem, quase que desafinando. Chega a ser claustrofóbica.

Apesar de deixar claro que não está inserida no mesmo universo, Coringa tem algumas rimas visuais com O Cavaleiro das Trevas. Principalmente em uma cena que considero icônica, com Heath Ledger dentro do carro da polícia. É possível enxergar no Coringa de Phoenix, referências aos outros Coringas do cinema. A anarquia do Coringa de Ledger. A violência e deboche do Coringa de Nicholson. A comédia do Coringa de Cesar Romero (Jared Leto eu desconsidero). E apesar de esse Coringa ter um nome, o filme não crava sua origem. Na realidade, brinca com ela, a ponto de não saber o que é certo ou o que é loucura (ou o que foi corrompido).

Não vou entrar em mais detalhes para não dar spoiler, mas o plot no meio do filme é totalmente inesperado, assim como o final que nos deixa com a pulga atrás da orelha. Será que era tudo uma piada?

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JACKIE BROWN (1997)

(Jackie Brown)

4 Estrelas 

Videoteca do Beto #175

Dirigido por Quentin Tarantino.

Elenco: Pam Grier, Samuel L. Jackson, Robert Forster, Bridget Fonda, Michael Keaton, Robert De Niro, Michael Bowen, Chris Tucker e Lisa Gay Hamilton.

Roteiro: Quentin Tarantino, baseado em romance de Elmore Leonard.

Produção: Lawrence Bender.

Jackie Brown[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Após surgir como um sopro de criatividade numa indústria carente de novidades com “Cães de Aluguel” e consolidar-se como um grande roteirista e diretor em “Pulp Fiction” – hoje reconhecido como um dos filmes mais importantes dos anos 90 -, Quentin Tarantino viu crescer consideravelmente a expectativa por seu próximo trabalho. Assim, não foram poucos os fãs que se decepcionaram, pois apesar de trazer muitos dos elementos marcantes do diretor e de contar com boas atuações, o consenso geral era de que Tarantino parecia ser menos Tarantino em “Jackie Brown”. Não é pra tanto, mas o fato é que ainda que a expectativa seja algo sempre prejudicial, o longa realmente não está no mesmo nível de seu antecessor. Nem por isso, deixa de ser um grande trabalho de um diretor amadurecido, é verdade, mas ainda completamente apaixonado pelo cinema.

Pela primeira vez baseando-se em material de outra pessoa (no caso, um romance de Elmore Leonard), Tarantino nos apresenta a personagem título “Jackie Brown” (Pam Grier), uma comissária de uma companhia aérea mexicana de segunda linha que tenta compensar o baixo salário ajudando o perigoso traficante Ordell Robbie (Samuel L. Jackson) a trazer dinheiro do exterior, mas é pega por policiais (Michael Bowen e Michael Keaton) no aeroporto e, em troca de sua liberdade, concorda em ajudá-los a desmontar o esquema internacional de tráfico de armas. No processo, ela contará com a ajuda de Max (Robert Forster), um fiador conhecido pelo traficante, por seu comparsa Louis (Robert De Niro) e pelos policiais – e que, por sua vez, acaba se apaixonando por ela.

Ainda que superficialmente “Jackie Brown” pareça seguir a mesma linha dos filmes anteriores de Tarantino, sua narrativa mais linear (com exceção do ato final), menos intrincada e recheada por um tom mais realista foge bastante do hiper-realismo marcante de “Pulp Fiction”, responsável por situações tão surreais que amenizavam os efeitos da violência gráfica das cenas. E se a violência também era marcante em “Cães de Aluguel”, aqui ela não surge com tanta força, assim como o humor negro aparece apenas em raras ocasiões. No entanto, se por um lado Tarantino desta vez prefere conduzir a narrativa de uma maneira, digamos, um pouco mais sóbria, por outro nós temos alguns personagens mais bem desenvolvidos dramaticamente que o de costume, como é o caso da protagonista e, especialmente, do fiador Max.

Nem por isso, podemos dizer que Tarantino abandona completamente seu estilo. Explorando novamente o submundo do crime, seu roteiro muito bem estruturado entrelaça aquele grupo de pessoas interessadas no paradeiro daquela enorme quantia de dinheiro sempre de maneira atraente. Além disso, o diretor não abandona seus diálogos inteligentes sobre coisas prosaicas, como na primeira cena na casa de Ordell onde o traficante e seu amigo Louis são apresentados ao espectador enquanto discutem sobre armas, assim como marcam presença as músicas sempre divertidas, o fetiche por pés femininos e as referências à cultura pop, como quando os personagens comentam cenas do filme “O Matador”, de John Woo, ou quando mencionam Demi Moore, a banda The Delfonics e as lojas de conveniências 7-Eleven. Tarantino também aposta novamente na divisão em capítulos, trazendo ainda elementos não diegéticos como o mapa que indica o trajeto do voo da cidade mexicana até Los Angeles.

Discutem sobre armasPés femininosMapa indica o trajeto do vooNa direção de atores, Tarantino acerta ao permitir composições mais humanas, o que não evita que Samuel L. Jackson atue da maneira histriônica de sempre, mas que cai bem na pele de Ordell, com seu jeito engraçado e pausado de pronunciar os palavrões e as frases cuidadosamente elaboradas pelo diretor/roteirista. Criando uma espécie de vilão carismático, Jackson se destaca especialmente na discussão com Louis, num instante carregado de tensão por sabermos que Ordell pode atirar a qualquer instante – e isto de fato acontece, num dos raros momentos em que a violência gráfica típica de Tarantino surge em “Jackie Brown”, seguida pelo humor negro característico do diretor quando acompanhamos o criminoso saindo andando tranquilamente pelas ruas como se nada tivesse acontecido.

No entanto, dois personagens conseguem algo raro na curta filmografia de Tarantino até então e chegam e emocionar o espectador. Escolhida por ser uma das grandes musas do gênero homenageado em “Jackie Brown” (o blaxploitation), Pam Grier é a primeira a realizar tal feito quando Jackie fala sobre o futuro e externa sua preocupação com a velhice, com um zoom lento realçando sua forte atuação da mesma forma em que a câmera que fica em seu rosto o tempo inteiro destaca sua expressão apavorada quando ela sai da loja de roupas logo após a entrega do “dinheiro” para Melanie (Bridget Fonda) – observe também como a trilha sonora amplia a tensão nesta cena. Compondo uma personagem ambígua que conquista a empatia da plateia mesmo cometendo os crimes que comete, Grier confere humanidade à protagonista através de pequenos momentos, como quando ensaia como pegar a arma na gaveta antes da chegada de Ordell ao escritório de Max.

Vilão carismáticoJackie fala sobre o futuroApavoradaMax que é certamente o personagem mais interessante e complexo de “Jackie Brown”. Demonstrando inteligência e coragem logo nas primeiras negociações com Ordell, o personagem interpretado com competência e sensibilidade por Robert Forster parece incapaz de abandonar a rotina ao qual se submeteu por tantos anos – e que certamente é a responsável por sua expressão sempre cansada e abatida. No entanto, ao ver Jackie ele não apenas se apaixona por ela, como também parece finalmente refletir a respeito de sua vida, mas isto não é suficiente para que tenha a coragem de largar tudo e ir com ela para a Espanha na tocante cena final, captada com precisão pela câmera de Tarantino que, deixando o personagem fora de foco em seu momento de arrependimento, parece respeitar sua dor diante da plateia. Se o crime é o fator que move a narrativa, o romance entre eles é o alicerce, só que enquanto Jackie é pura determinação, ele é apenas resignação – e esta diferença é crucial para que eles não fiquem juntos.

Fechando o elenco, temos um Robert De Niro contido, que passa quase despercebido na maior parte do filme, já que seu Louis nada mais é do que um criminoso velho e ultrapassado, que tenta sobreviver mesmo sem a agilidade e velocidade de raciocínio do passado. Quase sempre carrancudo e calado, ele chama a atenção da bela Melanie, mas curiosamente o ato sexual rápido e seco entre eles acaba afastando-os ao ponto de Louis finalmente mostrar o quanto é perigoso ao atirar na garota após ela irritá-lo no estacionamento do Shopping, numa rara cena em que o absurdo da situação nos faz rir ao invés de chocar, algo também típico de Tarantino.

Expressão cansada e abatidaCriminoso velho e ultrapassadoBela MelanieCom a câmera nas mãos, o diretor até utiliza o plano-sequência algumas vezes, insere seu clássico plano de dentro do porta-malas de um veículo e emprega um travelling cheio de estilo para nos revelar o carro de Ordell virando a esquina e parando a poucos metros da casa de Beaumont Livingston (Chris Tucker) na noite de seu assassinato, num momento em que a música diegética é essencial para nos indicar que se trata do mesmo carro. Entretanto, de maneira geral sua direção é mais discreta, o que não quer dizer que ele não nos presenteie com cenas marcantes, como quando Ordell visita Jackie na casa dela, apagando as luzes seguidamente e tornando aquela conversa já naturalmente tensa em algo ainda mais eletrizante. Auxiliado por sua montadora e amiga Sally Menke, Tarantino utiliza muito bem a tela dividida nesta cena, fazendo com que o espectador perceba no mesmo instante que Ordell a presença de uma arma salvadora nas mãos de Jackie. No entanto, Menke não consegue evitar que o filme perca um pouco o ritmo em determinados momentos do segundo ato, mas comprova seu talento e importância na sensacional sequência da entrega “pra valer” do dinheiro (voltaremos a ela em instantes).

Carro de Ordell virando a esquinaOrdell visita JackieArma salvadoraA escuridão que amplia a tensão na casa de Jackie surge em diversas outras ocasiões, já que o diretor de fotografia Guillermo Navarro aposta no predomínio de cenas noturnas, escondendo os personagens nas sombras em muitos momentos – uma estratégia reforçada pelo uso constante de fades que escurecem a tela completamente por alguns segundos. Já as cenas diurnas confirmam a opção de Tarantino por não tentar glamourizar a vida em Los Angeles como na maioria dos filmes. Ainda que o sol predomine, a imagem que temos é de uma cidade normal, ocupada por pessoas quase sempre a margem da sociedade.

Confirmando seu talento para construir cenas de impacto desde o teste da entrega do dinheiro, Tarantino nos brinda com uma sequência espetacular na entrega “pra valer”, que finalmente se divide sob três perspectivas diferentes (outra marca do diretor) e nos permite acompanhar como cada integrante se comportou no momento chave da narrativa, levando-nos ao confronto final no qual Ordell é surpreendido por Ray (Keaton, em atuação divertida na pele de um personagem que ele repetiria um ano depois em “Irresistível Paixão”, de Steven Soderbergh) no escritório totalmente escuro de Max.

Entrega pra valerTrês perspectivas diferentesOrdell é surpreendido por RayUtilizando o relacionamento afetivo entre Jackie e Max como fio condutor de sua narrativa mais sóbria, “Jackie Brown” é talvez o filme que mais destoa em tom e abordagem na filmografia de Tarantino, o que não significa necessariamente que seja um filme menor. Na verdade, Tarantino tentou criar algo diferente e, ainda que tropece aqui ou ali, conseguiu um excelente resultado.

Jackie Brown foto 2Texto publicado em 30 de Setembro de 2013 por Roberto Siqueira

COP LAND (1997)

(Cop Land)

4 Estrelas 

Videoteca do Beto #172

Dirigido por James Mangold.

Elenco: Sylvester Stallone, Harvey Keitel, Ray Liotta, Robert De Niro, Peter Berg, Janeane Garofalo, Robert Patrick, Michael Rapaport, Annabella Sciorra, Noah Emmerich, Cathy Moriarty, John Spencer, Frank Vincent, Malik Yoba e Arthur J. Nascarella.

Roteiro: James Mangold.

Produção: Cathy Konrad, Ezra Swerdlow e Cary Woods.

Cop Land[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Durante mais de uma década, Sylvester Stallone tornou-se mundialmente famoso por seus papéis em filmes de ação que exalavam testosterona e nos quais os personagens só conheciam um meio de resolver seus problemas. Assim, quando o astro aceitou participar deste ótimo “Cop Land”, pela primeira vez em muitos anos seus fãs tiveram a oportunidade de vê-lo num papel diferente do usual, num desafio interessante que se tornaria ainda mais complexo graças aos excepcionais atores que contracenariam com ele. O curioso é que o responsável pelo roteiro que cativou atores do calibre de Stallone, De Niro e Keitel foi o estreante James Mangold, responsável também pela direção deste eficiente thriller policial, injustamente ignorado pela crítica em seu lançamento.

A narrativa se passa na pequena cidade de Garrison, habitada majoritariamente por policiais que trabalham na vizinha Nova York durante o dia e voltam para suas famílias à noite. Tudo corre aparentemente bem até que o jovem Superboy (Michael Rapaport) se envolve num tiroteio e acaba assassinando dois criminosos, colocando em xeque a reputação da família, encabeçada por seu tio Ray (Harvey Keitel). Uma discussão entre policiais e paramédicos quanto às provas do crime leva o Tenente Moe Tilden (Robert De Niro) a investigar o local, até então administrado pelo pacato xerife Freddy (Sylvester Stallone).

Sob a aparente tranquilidade que paira na pequena Garrison, existe uma complexa rede de intrigas e corrupção que lentamente é revelada pelo bom roteiro de Mangold, repleto de personagens ambíguos que se tornam ainda mais interessantes graças ao bom desempenho do elenco em geral. Esta aura de mistério é reforçada já nos segundos iniciais de “Cop Land”, quando a câmera do diretor passeia pela cidade enquanto a narração sombria de Robert De Niro nos apresenta ao local e aos personagens. Conduzindo com paciência a narrativa, Mangold explora o potencial de seu elenco com inteligência, aplicando zooms que nos aproximam lentamente dos personagens e closes que buscam realçar suas expressões e reações nas calorosas discussões que permeiam a narrativa. Além disso, o diretor mostra talento na composição visual de algumas cenas, como no lindo plano em que Freddy contempla a bela ponte que liga Garrison à Nova York na noite do suposto suicídio de Superboy e na espetacular sequência do tiroteio final.

Passeia pela cidadeCalorosas discussõesEspetacular sequência do tiroteioÉ evidente que o ótimo trabalho do diretor de fotografia Eric Edwards é essencial neste aspecto, abusando de cores frias como o azul e explorando muito bem o visual predominantemente noturno de “Cop Land”, mergulhando os personagens nas sombras em diversos momentos para ilustrar o caráter nebuloso daquele grupo de pessoas misteriosas. Quem também tenta colaborar na criação desta atmosfera é Howard Shore, mas sua trilha sonora acaba exagerando no tom em alguns momentos, como na cena em que policiais discutem com paramédicos na ponte após o sumiço de Superboy, mas por outro lado Shore acerta em cheio na escolha das músicas que tocam no velho toca-discos de Freddy, refletindo muito bem seu estado de espírito melancólico em cenas belíssimas como aquela em que Liz (Annabella Sciorra) vai até sua casa para conversar com ele.

Cores frias como o azulPersonagens nas sombrasLiz vai até sua casaSurgindo barrigudo e movimentando-se lentamente, Stallone compõe um personagem muito interessante e bem distante dos vigorosos personagens de seus filmes de ação, numa atuação contida que confirma seu talento já demonstrado em “Rocky, um Lutador”. Observe como o ator fala sempre num tom de voz baixo, evita olhar diretamente para as pessoas e sempre parece acuado diante da presença marcante dos outros policiais, numa postura claramente defensiva e totalmente coerente com o personagem. Discreto como seu uniforme (figurinos de Ellen Lutter), Freddy parece perambular pela cidade, fechando os olhos para possíveis conflitos e evitando chamar a atenção; e até mesmo seu escritório bagunçado (design de produção de Lester Cohen) evidencia o quanto a frustração por não conseguir ser policial em Nova York afetou sua vida. Ele pouco se importa com o que acontece ao seu redor.

Barrigudo e movimentando-se lentamenteSempre parece acuadoDiscreto como seu uniformePor tudo isso, Freddy configura-se o xerife ideal para que Ray continue comandando a cidade e, com suas expressões marcantes, Keitel compõe um antagonista assustador, que parece capaz de fazer qualquer coisa para manter o controle do local idealizado e fundado por ele, criando um personagem corrupto e detestável, é verdade, mas que jamais soa caricato ou unidimensional graças ao desempenho do ator. Assim, por mais que aos nossos olhos suas atitudes soem absurdas, Ray acredita que está agindo corretamente – e, o que é mais importante, nós acreditamos nele, ainda que não concordemos com suas ações.

Antagonista assustadorCorrupto e detestávelAcredita que está agindo corretamenteQuem também merece destaque é Ray Liotta na pele de Figgsy, um dos poucos policiais em quem Freddy consegue confiar e que surge sempre agitado, num indício claro do quanto seu envolvimento naquele ambiente hostil o incomoda. Servindo como apoio para o xerife, Liotta destaca-se em dois momentos especiais. O primeiro no diálogo expositivo no bar que explica a origem da surdez de Freddy, a razão de seus traumas e sua ligação com a bela Liz, e o segundo após a morte de Mônica (Mel Gorham), quando surge devastado ao constatar que sua amada estava morta – e saberíamos depois que sua dor intensa tinha mais motivos do que poderíamos imaginar naquele instante. Finalmente, Robert De Niro impõe respeito logo em sua primeira participação (fisicamente falando, já que é dele o prólogo), com seu tom de voz firme e expressões marcantes dominando completamente uma discussão, tornando todos os outros frequentadores da sala em meros coadjuvantes. A escolha de De Niro é acertada, pois somente um ator com sua capacidade poderia tornar a importância do Tenente Moe na narrativa em algo crível com tão pouco tempo na tela, já que ele é vital na mudança de comportamento de Freddy que culminará na resolução da narrativa.

Origem da surdez de FreddySurge devastadoImportância do Tenente MoeAos poucos, vai tornando-se óbvio que Superboy não morreu naquela noite e, de maneira inteligente, o roteiro jamais tenta criar um desnecessário mistério envolvendo seu desaparecimento. Assim, o foco da narrativa vai mesmo para a mudança de Freddy, que lentamente desperta de seu sono profundo e passa a enxergar tudo que ocorre ao seu redor (ou a se importar com ele), nos levando ao sensacional acerto de contas que Mangold conduz em câmera lenta, nos permitindo acompanhar cada detalhe do feroz tiroteio como se estivéssemos ali, ao lado de Freddy – e o ótimo design de som também é muito importante neste momento, distorcendo nossa percepção sonora do ambiente e nos forçando a compartilhar o que o personagem, agora ferido na outra orelha, provavelmente ouve. Após a solução do caso, Freddy surge novamente na margem do rio diante da bela ponte, mas agora numa cena diurna, bem iluminada e que ilustra a limpeza promovida por ele no local.

Acerto de contasFeroz tiroteioFerido na outra orelhaRecheado com boas atuações e apostando numa trama envolvente, “Cop Land” é um thriller interessante, surpreendentemente conduzido por um diretor estreante, mas que já demonstrava talento desde seu trabalho inicial. E se já estávamos acostumados a ver De Niro e Keitel oferecendo atuações dramáticas de impacto, Stallone só comprovou o quanto sua carreira poderia ter sido ainda mais marcante caso suas escolhas fossem um pouco mais ousadas.

Cop Land foto 2Texto publicado em 20 de Agosto de 2013 por Roberto Siqueira

O FRANCO-ATIRADOR (1978)

(The Deer Hunter)

2 Estrelas 

Filmes em Geral #102

Vencedores do Oscar #1978

Dirigido por Michael Cimino.

Elenco: Robert De Niro, Christopher Walken, Meryl Streep, John Cazale, John Savage, Chuck Aspegren, Pierre Segui, George Dzundza, Shirley Stoler e Rutanya Alda.

Roteiro: Deric Washburn, baseado em argumento dele próprio ao lado de Michael Cimino, Louis Garfinkle e Quinn K. Redeker.

Produção: Michael Cimino, Michael Deeley, John Peverall e Barry Spikings.

O Franco-Atirador[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Criar expectativas é algo sempre negativo quando falamos de cinema. Quanto maior a expectativa criada, maiores são as chances de nos decepcionarmos com um filme, ainda que este apresente um resultado agradável. Mas como não se empolgar quando os créditos iniciais anunciam nomes como os de Robert De Niro, Meryl Streep e John Cazale, além do menos badalado, mas também competente Christopher Walken? No entanto, ainda que seja tecnicamente bem realizado e tente apostar numa interessante abordagem intimista, “O Franco-Atirador” se perde completamente em seus aspectos políticos e éticos, chegando a soar ofensivo e racista pela maneira desprezível que o diretor Michael Cimino retrata os rivais norte-americanos na guerra do Vietnã.

Escrito por Deric Washburn a partir de argumento dele próprio ao lado de Michael Cimino, Louis Garfinkle e Quinn K. Redeker, “O Franco-Atirador” narra a trajetória dos amigos Michael (De Niro), Nick (Walken) e Steven (John Savage), que são convocados para a Guerra do Vietnã e se veem obrigados a deixarem a família e os amigos para trás. Após viverem experiências traumáticas no conflito, dois deles conseguem regressar ao país, mas a vida de todos os envolvidos nunca mais será a mesma após eles terem experimentado os horrores da guerra.

Partindo da interessante premissa de nos apresentar as graves consequências psicológicas provocadas pela guerra naquele grupo de trabalhadores de uma pequena cidade no interior dos EUA, “O Franco-Atirador” se apoia ainda em seu excepcional elenco, repleto de nomes capazes de carregar qualquer narrativa com facilidade. Portanto, é uma pena que Cimino utilize um elenco de primeira qualidade num filme tão maniqueísta, que beira o jingoísmo pela forma como retrata os vietnamitas (voltarei ao tema em instantes).

Ainda assim, o longa apresenta um resultado agradável quando observamos somente os aspectos técnicos da produção. Observe, por exemplo, como a fotografia de Vilmos Zsigmond realça o clima melancólico daquela cidade industrial, apostando em cores frias que casam bem com a sujeira das ruas e os galhos secos das árvores, assim como fazem os figurinos sem vida de Eric Seelig e os ambientes poucos iluminados concebidos pelo design de produção de Ron Hobbs e Kim Swados. Da mesma forma, os tristes acordes da canção tema reforçam esta atmosfera, assim como as boas músicas escolhidas para a trilha sonora de Stanley Myers, com exceção apenas da trilha erudita que confere um tom épico à caçada dos cervos nas montanhas.

Montanhas que são captadas com elegância pelos belos enquadramentos de Cimino, que ainda apresenta um bom repertório de planos e movimentos de câmera interessantes. Por isso, mais uma vez é lamentável que o diretor utilize este talento para enviar mensagens nada sutis, como quando faz questão de focar por um longo tempo a bandeira dos Estados Unidos e a faixa com os dizeres “Servimos a Deus e a pátria com orgulho”. Além disso, em certo momento um homem pergunta para Michael se “nós ganhamos a guerra” e fica sem resposta, escancarando a grande fantasia norte-americana de ter vencido no Vietnã, que ficaria ainda mais evidente nas produções vindouras do país durante a “era Reagan”.

Apostando numa abordagem mais intimista na primeira metade do filme, Cimino investe um longo tempo no desenvolvimento das relações entre os personagens, mostrando o grupo bebendo no bar e se divertindo, o que ajuda a criar empatia com a plateia. No entanto, o pretensioso diretor se empolga e estende demais a sequência do casamento e da festa, que claramente poderia ser enxugada pelo montador Peter Zinner para melhorar o ritmo da narrativa. Ainda assim, esta longa sequência serve para nos aproximar daquelas pessoas, especialmente de Michael e Nick, que evidenciam suas fortes personalidades durante a caçada que precede o embarque para o Vietnã. Assim, quando este momento se aproxima, já nos sentimos mais íntimos daqueles jovens, o que confere um tom ainda mais melancólico à cena da despedida no bar, com as expressões tristes dos personagens, a música tocada no piano e o próprio travelling lento de Cimino que é abruptamente cortado pelas explosões das bombas já no Vietnã.

Clima melancólicoServimos a Deus e a pátria com orgulhoPovo do VietnãDemonstrando um maniqueísmo nojento desde o primeiro minuto no Vietnã em que um soldado local surge explodindo mulheres e crianças, Cimino não se envergonha de retratar a guerra como um conflito claramente dividido entre os norte-americanos bonzinhos que vieram pregar a paz e os cruéis vietnamitas que se aglomeram e pagam para ver pessoas explodindo as próprias cabeças, esquecendo-se das motivações políticas desprezíveis que levaram os EUA a intervir naquela guerra. Aliás, o povo do Vietnã é retratado como um bando de idiotas, numa coleção de seres da pior estirpe, como assassinos, jogadores sedentos por sangue e prostitutas que vendem o corpo diante dos próprios filhos. Além disso, as manifestações em massa sempre buscam deteriorar a imagem daquelas pessoas, como no primeiro plano da volta de Michael ao Vietnã que mostra o povo tentando desesperadamente invadir a embaixada norte-americana.

Ciente de que suas cenas de combate não impressionam, Cimino rapidamente salta do momento da chegada ao Vietnã para a sequência em que Michael, Nick e Steven estão presos. Assim, se num instante acompanhamos o grupo sofrendo um bombardeio, na cena seguinte eles já surgem enjaulados, em outro corte abrupto que desta vez depõe contra o trabalho dele e de seu montador. Ao menos, aqui Cimino consegue criar momentos de alta tensão, extraindo ainda excelentes atuações de seu elenco. Observe, por exemplo, como John Savage demonstra com precisão o desespero e a angústia de Steven enquanto aguarda para ser chamado pelos cruéis vietnamitas, ao passo em que De Niro transmite tranquilidade ao parceiro e ao espectador com seu tom de voz baixo e controlado. Durante o jogo da roleta russa, De Niro novamente se destaca, demonstrando muito bem sua ira e, ao mesmo tempo, sua compaixão pelo sofrimento do amigo.

Aliás, Christopher Walken também apresenta um desempenho excepcional nesta sequência eletrizante, com seu riso tenso e o olhar assustado demonstrando que Nick não sabe o que esperar diante daquela angustiante situação, segundos antes de Michael atirar nos vietnamitas e conseguir escapar. E se repito por diversas vezes a expressão “vietnamitas”, é porque Cimino faz questão de sequer dar nome aos habitantes locais, na mais perfeita confirmação de sua visão ufanista do conflito. Deste ponto em diante, o solitário Nick começa a se desapegar do passado e a perder o sentido na vida, perambulando pelo Vietnã até se reencontrar nos perigosos jogos de roleta russa promovidos por um grupo clandestino local. Após as torturas sofridas na guerra, viver ou morrer era indiferente, apenas uma questão de sorte que ele estava disposto a encarar.

Entre os que ficaram nos Estados Unidos, John Cazale encarna Stoch como alguém que parece sempre irritado e desconfiado, ao ponto de andar com uma arma na cintura e transmitir a constante sensação de que está sempre pronto para uma briga, ao passo em que George Dzundza pouco pode fazer com o tempo que tem com seu John. E finalmente, a grande Meryl Streep já demonstrava seu talento neste que é apenas o seu segundo papel na carreira. Mesmo com uma participação relativamente pequena, ela consegue conferir humanidade a Linda, equilibrando-se entre a felicidade ao ver Michael de volta e a tristeza por não reencontrar Nick.

Angústia de StevenNick não sabe o que esperarHumanidade a LindaSentindo-se deslocado nesta volta ao país, Michael sequer consegue caçar e chega ao ponto de fazer a tal roleta russa com Stoch, num momento de pura insanidade que poderia tirar a vida do amigo. Demonstrando este incômodo com precisão, De Niro mais uma vez comprova sua enorme qualidade como ator, compondo outro personagem impactante através de suas expressões viscerais durante as torturas na guerra que se contrapõem diretamente aos olhares contidos em sua volta; que, por sua vez, refletem as graves consequências de tudo que ele sofreu.

Infelizmente, esta sequência da volta de Michael também é mais extensa do que deveria e quebra novamente o ritmo da narrativa, que só retoma o fôlego quando ele decide voltar ao Vietnã para resgatar o amigo perdido, nos levando a outra cena eletrizante envolvendo os jogos de roleta russa que culmina na impressionante morte de Nick – e aqui vale reparar como a fotografia se torna mais sombria, apostando na falta da luz para criar uma atmosfera sufocante. Após ver Steven ficar paralítico, Michael estava agora diante de um novo trauma, testemunhando a morte do amigo de maneira tão idiota.

Só que, aparentemente, nem mesmo os trágicos resultados da guerra fazem com que aquele grupo de pessoas questione as motivações de seu país, o que nos leva à deprimente cena que encerra “O Franco-Atirador”, com todos cantando “Deus abençoe a América” e confirmando a visão míope de Cimino. Assim, a longa extensão e o maniqueísmo exacerbado da narrativa acabam ofuscando a boa intenção de mostrar os trágicos resultados psicológicos e físicos da guerra.

O Franco-Atirador foto 2Texto publicado em 21 de Fevereiro de 2013 por Roberto Siqueira

ERA UMA VEZ NA AMÉRICA (1984)

(Once Upon a Time in America)

5 Estrelas 

Videoteca do Beto #159

Dirigido por Sergio Leone.

Elenco: Robert De Niro, James Woods, Elizabeth McGovern, Tuesday Weld, Treat Williams, Burt Young, Danny Aiello, Jennifer Connelly, Joe Pesci, James Hayden, William Forsythe, Larry Rapp, Amy Ryder, Scott Tiler, Rusty Jacobs, Brian Bloom, Adrian Curran, Mike Monetti, Noah Moazezi, James Russo, Julie Cohen e Sergio Leone.

Roteiro: Leonardo Benvenuti, Piero De Bernardi, Enrico Medioli, Franco Arcalli, Franco Ferrini e Sergio Leone, baseado em novela de Harry Grey.

Produção: Arnon Milchan.

Era uma vez na América[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Hoje reconhecido como um dos grandes mestres da história do cinema, Sergio Leone notabilizou-se na direção dos chamados western spaghetti, realizando obras de grande destaque e importância como a famosa “Trilogia dos Dólares” e “Era uma vez no Oeste”. No entanto, talvez o maior desafio de toda a carreira do diretor italiano tenha sido este ambicioso “Era uma vez na América”, justamente por representar sua incursão num ambiente diferente daquele em que estava habituado. Massacrado por público e crítica na época de seu lançamento devido à decisão do estúdio de lançar uma versão extremamente reduzida nos cinemas, o projeto da vida de Leone levou anos para ser realizado e só foi reconhecido quando a versão imaginada pelo diretor foi lançada tempos depois. E justiça seja feita, o verdadeiro “Era uma vez na América” é um filme belíssimo que justifica em cada momento a ambição de seu diretor.

Escrito por seis pessoas (inclusive o próprio Leone), “Era uma vez na América” narra à trajetória de ascensão e queda de um grupo de gângsteres de descendência judaica durante o período da lei seca em Nova York. A partir das memórias de Noodles (Robert De Niro), que resolve voltar ao local 35 anos após sua saída, conhecemos a história dele e de seus amigos Max (James Woods), Pasty (James Hayden) e Cockeye (William Forsythe), percorrendo desde a infância sofrida nas ruas do Lower East Side até o incidente trágico que destruiu o grupo.

Grandiloquente e recheado pelo tom operístico que caracteriza quase toda a filmografia de Sergio Leone, “Era uma vez na América” aposta numa estrutura narrativa complexa, que busca manter a atenção do espectador durante suas quase quatro horas de duração – o que, convenhamos, é um enorme desafio. Para conduzi-la com segurança e evitar que se torne enfadonha, Leone conta com o ótimo trabalho do montador Nino Baragli, que salta no tempo diversas vezes (tanto para o passado como para o futuro), mas sempre de maneira elegante e fluída; e o que é ainda mais interessante, demonstrando enorme confiança na inteligência do espectador ao jamais apelar para letreiros ou diálogos expositivos que indiquem a passagem do tempo – sempre que temos este tipo de informação, ela surge de maneira orgânica. Assim, temos uma verdadeira coleção de transições elegantes, como aquela em que Noodles olha para uma lamparina e a chama se transforma numa lâmpada, já debaixo de chuva e no cenário da morte de seus amigos – e é interessante notar também o excepcional design de som, que mantém o barulho do telefone tocando até que Noodles faça uma ligação, nos levando de volta ao teatro chinês onde toda a sequência se iniciou (voltaremos a este toque de telefone em instantes).

Noodles olha para uma lamparinaChama se transforma numa lâmpadaCenário da morte de seus amigosUtilizar o som diegético para provocar tensão, aliás, é outra característica marcante do diretor que aqui surge com força total, como na cena da descida de um elevador, momentos antes de Noodles surpreender seu perseguidor com um tiro na cabeça, numa cena graficamente impressionante que evidencia a violência que permeará a narrativa. Apesar do sangue exageradamente vermelho que busca ampliar o choque, a violência de “Era uma vez na América” é convincente e perfeitamente justificável naquele ambiente, surgindo em diversos momentos como na entrega dos diamantes ao amigo do mafioso Frankie (Joe Pesci, em participação pequena), na surra de Bugsy (James Russo) em Noodles e Max e na morte do pequeno Dominic (Noah Moazezi), além da violência sexual cometida por Noodles em dois momentos impactantes.

Descida de um elevadorEntrega dos diamantesMorte do pequeno DominicEstabelecendo a natureza violenta dos personagens desde os primeiros minutos de projeção, “Era uma vez na América” nos joga pra dentro daquele ambiente hostil de maneira impressionante, numa imersão que se dá também graças ao excepcional design de produção de Carlo Simi, que nos transporta para os Estados Unidos do início do século XX através dos carros, das casas e até mesmo da decoração do bar de Moe (Larry Rapp), além é claro dos impecáveis figurinos de Gabriella Pescucci, que recriam as roupas dos gângsteres e dos judeus com precisão, seguindo o padrão instituído no imaginário popular por “O Poderoso Chefão”. Nesta mesma linha, a fotografia de Tonino Delli Colli abusa do uso das sombras nos ambientes internos para ilustrar a natureza obscura daquele submundo, mas adota tons pastéis que realçam o tom nostálgico do longa, se destacando também na iluminação de cenas noturnas impressionantes – como aquela que revela a morte dos amigos de Noodles ainda no primeiro ato – e no uso da fumaça para conferir uma atmosfera onírica a certas lembranças do protagonista.

Estados Unidos do início do século XXRoupas dos gângsteres e judeusAtmosfera oníricaEmpregando seus tradicionais closes, zooms e travellings (o superclose surge em raras ocasiões), Leone desfila por estes cenários e personagens com elegância, criando um visual impactante e repleto de cenas belíssimas que, enriquecidas pela trilha sonora sempre marcante do mestre Ennio Morricone, conferem um tom épico ao filme, destacando-se em alguns momentos especiais, como quando Noodles liga para o velho amigo Moe da porta do bar, onde somente a música e as imagens já são suficientes para demonstrar o saudosismo daquele reencontro. Leone não precisa de palavras para nos emocionar, seu cinema é pura magia. E se a trilha sonora de Morricone realça a nostalgia do protagonista, destacando-se especialmente no lindo tema principal e nas composições que envolvem um coral de vozes, as longas sequências em silêncio tão características do diretor surgem como um contraponto interessante, criando cenas extremamente tensas como quando Noodles, após a decepção do encontro com Deborah (Elizabeth McGovern), mexe o café numa xícara por longos segundos antes de se manifestar, exalando uma eletricidade palpável que evidencia sem uma única palavra a possibilidade de uma briga entre ele e o amigo Max.

Noodles liga para o velho amigo MoeXícara de caféPossibilidade de uma brigaLeone mostra talento também na direção dos atores mirins através de pequenos momentos, como aquele em que Dominic volta para conferir se o bagageiro onde eles esconderam a maleta cheia de dinheiro estava mesmo trancado. Cobrindo a vida daqueles amigos desde a infância, quando surgem ateando fogo numa banca de jornal por falta de pagamento do dono, o diretor faz questão de investir muito tempo na construção meticulosa daqueles personagens e da relação entre eles. Assim, toda a fase da infância serve para nos familiarizar com cada um deles, apresentando seus medos, ansiedades e motivações, trazendo ainda cenas belíssimas como aquela em que Noodles observa Deborah dançando, o lindo primeiro beijo deles ou o tocante momento em que Pasty decide entre comer um bolo ou transar com Peggy – e a atuação do jovem Brian Bloom neste instante é primorosa, transmitindo a indecisão do garoto com precisão e ilustrando como ele ainda não estava pronto para aquele salto de maturidade. Ainda na infância, vale citar a curiosa e marcante participação de Jennifer Connelly, ainda criança, como a linda e expressiva Deborah, que rouba o coração de Noodles com seu jeito meigo e insinuante de agir.

Dominic volta para conferirDeborah dançandoComer um bolo ou transarDurante todo este tempo, a amizade genuína daqueles jovens nos convence. Também por isso, é doloroso acompanhar esta relação sendo lentamente destruída na fase adulta por causa da ganância da maioria deles. No entanto, esta mudança já pode ser notada logo após a volta de Noodles da prisão, quando os abraços calorosos não conseguem esconder o distanciamento entre o grupo e o jovem regresso. Compondo Noodles com um ar misterioso que nem por isso esconde sua expressão naturalmente ameaçadora, De Niro transmite com precisão toda a melancolia daquele personagem deslocado, que parece sempre preso às memórias do passado e torna quase palpável seu incômodo por ter provocado a morte dos amigos, o que acaba aproximando um pouco aquele homem sofrido do espectador, por mais cruéis que sejam algumas de suas atitudes.

DistanciamentoPersonagem deslocadoPreso às memórias do passadoÉ interessante notar ainda como Noodles parece seguir um curioso e indecifrável código de ética, irritando-se com certas atitudes dos amigos – como o envolvimento com o perigoso Frankie – ao mesmo tempo em que tolera outras ainda piores. Mas talvez a sequência que melhor sintetize sua instável personalidade seja o jantar romântico com Deborah, onde ele consegue ser ao mesmo tempo encantador (durante o jantar) e repugnante (no chocante estupro no carro). Esta relação dolorosamente conturbada ecoa até na velhice, quando tanto De Niro quanto McGovern demonstram com competência a dor dos personagens ao constatarem a impossibilidade de ficarem juntos – e aqui vale destacar a ótima maquiagem que transforma De Niro de maneira convincente, assim como acontece com Woods e outros nomes importantes do elenco.

Jantar românticoChocante estuproMaquiagemJames Woods também está bem seguro e ameaçador como o adulto Max, demonstrando a evolução da ganância de seu personagem em seu olhar cada vez mais confiante, chegando ao auge na cena em que se orgulha de ter comprado um trono – e a reação de Noodles neste instante é sensacional por dizer muito sem precisar de palavras. Talvez por isso, Noodles não demonstra raiva e não aceita atirar nele quando descobre sua traição, demonstrando em seu semblante apenas um sentimento: decepção. “É o meu jeito de ver as coisas”, diz, antes de afirmar que, de qualquer forma, ele perdeu um grande amigo naquela trágica noite. Chega a doer. E finalmente, a citada Elizabeth McGovern confere charme e mistério à bela Deborah, enquanto Tuesday Weld se destaca especialmente na cena em que Carol tenta convencer Noodles a tirar a ideia do assalto ao banco da cabeça de Max, ciente de que esta atitude poderia levar ao fim do grupo.

Seguro e ameaçadorTronoCarol tenta convencer NoodlesNo fim das contas, “Era uma vez na América” é muito mais do que um filme sobre gângsteres. É um filme sobre memórias, que traz em cada fotograma um retrato perfeito da nostalgia, personificado no rosto sofrido e emblemático do personagem vivido por Robert De Niro. Seu sorriso no plano derradeiro levanta até mesmo a curiosa possibilidade de ele ter sonhado em certas passagens (não à toa ele surge fumando ópio no início), reforçada pela atmosfera onírica de algumas cenas e pelo som do telefone tocando durante toda a cena do crime, que transmite com exatidão sua sensação de desorientação. Amargurado por ter provocado a morte dos amigos de infância, ele teria imaginado certos acontecimentos (como o suposto romance entre Max e Deborah e o misterioso destino do amigo na famosa cena do caminhão de lixo), talvez buscando amenizar sua dor. Mas Leone jamais deixa claro se estas passagens são sonhos ou memórias, o que torna tudo ainda mais interessante.

Sorriso no plano derradeiroFumando ópioCena do caminhão de lixoApresentando as lembranças de um homem consumido pela culpa de maneira tocante, Leone mergulha em sentimentos profundamente humanos ao mesmo tempo em que nos apresenta parte da construção da história norte-americana, que viria a se tornar a nação economicamente mais poderosa do mundo durante o período em que a narrativa se passa. Por isso, a versão completa de “Era uma vez na América” é um filme memorável, repleto de imagens belíssimas e cenas marcantes, que justifica cada minuto investido pelo espectador nesta verdadeira experiência cinematográfica.

Era uma vez na América foto 2Texto publicado em 12 de Fevereiro de 2013 por Roberto Siqueira

FOGO CONTRA FOGO (1995)

(Heat)

 

Videoteca do Beto #130

Dirigido por Michael Mann.

Elenco: Al Pacino, Robert De Niro, Val Kilmer, Jon Voight, Tom Sizemore, Ashley Judd, Natalie Portman, Danny Trejo, Diane Venora, Amy Brenneman, Mykelti Williamson, Wes Studi, Ted Levine, Dennis Haysbert, William Fichtner, Tom Noonan, Hank Azaria, Kevin Gage e Tone Loc.

Roteiro: Michael Mann.

Produção: Art Linson e Michael Mann.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Dois dos maiores atores de sua geração (e, porque não dizer, de todos os tempos), Al Pacino e Robert De Niro se destacaram também pela coragem de escolher projetos audaciosos no auge ao invés de surfar na fama em projetos puramente comerciais. Donos de enorme talento e carisma, eles sempre estiveram entre os atores mais respeitados da indústria, conquistando o respeito de fãs e críticos. Curiosamente, antes de “Fogo contra Fogo” eles jamais tinham dividido um plano sequer, a não ser numa rápida transição de planos em “O Poderoso Chefão – Parte II”. Por isso, você pode imaginar qual era a expectativa para finalmente vê-los atuando juntos no filme dirigido por Michael Mann. E para a alegria geral, o resultado não poderia ser melhor. Ainda que contracenem apenas em duas cenas, eles estrelam um filme de ação não apenas eficiente, mas que apresenta, além de grandes cenas, um excepcional estudo de personagens.

Escrito e dirigido por Michael Mann, “Fogo contra Fogo” começa apresentando rapidamente os personagens centrais da narrativa enquanto acompanhamos a preparação de um assalto. Desta forma, conhecemos em poucos minutos os criminosos Neil (Robert De Niro), Chris (Val Kilmer), Cheritto (Tom Sizemore) e Waingro (Kevin Gage), além do informante do grupo Nate (Jon Voight). Durante a execução do plano, Waingro dispara contra um policial e provoca o assassinato de outros dois, o que força a presença do detetive da Divisão de Homicídios Vincent Hanna (Al Pacino), que assume o caso. Lentamente, ele descobre quem são aqueles criminosos e passa a persegui-los, o que só piora sua relação conturbada com a esposa Justine (Diane Venora) e a enteada Lauren (Natalie Portman).

Desde o início, o impecável roteiro entrelaça de maneira consistente os caminhos de seus diversos personagens, criando uma narrativa sempre envolvente e dinâmica, que jamais soa confusa, graças também ao bom trabalho dos montadores Pasquale Buba, William Goldenberg, Dov Hoenig e Tom Rolf, que alternam num ritmo interessante entre a investigação de Vincent e as ações do grupo de Neil, acertando ainda nas cenas de ação, como o sensacional tiroteio em plena luz do dia após o assalto ao banco – que abordarei novamente em instantes. Mann também aborda de maneira interessante o meticuloso trabalho da policia, nos envolvendo no processo ao mesmo tempo em que acompanhamos os criminosos planejando seus próximos passos, num jogo de gato e rato sempre interessante. Entretanto, ainda que desenvolva bem a maioria dos personagens, é no profundo estudo da dupla Neil e Vincent que o roteiro se destaca, apresentando dois homens que, mesmo estando em lados opostos da lei, compartilham diversas características marcantes – que também voltarei a abordar em instantes.

Visualmente, “Fogo contra Fogo” se destaca em diversos momentos, como nos lindos planos em que Neil e Eady (Amy Brenneman) olham a cidade iluminada de uma sacada. Aliás, a competente fotografia de Dante Spinotti auxilia bastante no trabalho excepcional de Michael Mann, com suas cores frias e perfeita iluminação nas cenas noturnas (repare o visual esplêndido no vôo dos helicópteros, por exemplo). Também discretos e eficientes são os figurinos de Deborah Lynn Scott, que mantém a coerência ao priorizar cores que não chamam a atenção na maior parte do tempo, assim como a trilha melancólica de Elliot Goldenthal sublinha suavemente os diálogos entre os casais, subindo o tom apenas em algumas cenas de ação, como no assalto ao carro forte.

Empregando closes que realçam cada personagem e os aproximam do espectador, Mann rapidamente revela informações importantes, como os problemas familiares de Vincent e Chris e a solidão de Neil. Já o primeiro assalto serve para introduzir a violência brutal dos criminosos, nos preparando para o que veremos ao longo da narrativa. Ainda mais interessante é a maneira como Mann explora dramaticamente os personagens, nos aproximando de seus problemas e compartilhando suas angústias e dilemas, num processo inteligente que humaniza até mesmo os criminosos. Mas o mais interessante mesmo é como o diretor conduz a marcante cena do tiroteio nas ruas de Los Angeles, nos colocando no meio da cena como se fizéssemos parte da ação, com a câmera se escondendo entre os carros enquanto os tiros passam raspando. O espetáculo, porém, começa antes, desde quando acompanhamos Neil convidando o ex-presidiário Breedan (Dennis Haysbert) para substituir Trejo (Danny Trejo) no assalto, enquanto Vincent, desesperado, sequer sabe onde eles estão. O assalto segue bem sucedido até o instante em que Vincent descobre o local. E então, a tensão toma conta da tela, especialmente pela forma como Mann transita entre os planos até que Chris perceba a presença da polícia e inicie o tiroteio, onde, além do verdadeiro espetáculo de direção e montagem, vale destacar também o excepcional trabalho de design de som que torna tudo mais realista e, junto com os planos subjetivos, praticamente nos coloca dentro do confronto.

Ainda na direção, Mann também conduz com precisão outras cenas bastante tensas, como quando Neil e Chris invadem um local à noite e são observados pela polícia, onde cada plano complementa o outro perfeitamente, criando um clima crescente e quase insuportável de suspense – e repare como em dois planos idênticos, as sombras cobrem metade do rosto de Vincent e Neil, sugerindo que eles se complementam. Outra cena de grande destaque é aquela em que Vincent descobre que Neil está observando a polícia nos contêineres, numa virada interessante na narrativa. Em outro momento tenso, Charlene (Ashley Judd) desiste de entregar o marido Chris, o que confere ainda mais peso dramático à conturbada relação deles e comprova que os personagens de “Fogo contra Fogo” fogem do estereótipo unidimensional típico dos filmes de ação. Aqui não existe o clichê “o bem contra o mal”. Todos têm qualidades e defeitos e, por isso, compreendemos suas motivações, ainda que discordemos delas.

Apoiado num elenco espetacular, Michael Mann extrai ótimas atuações que tornam “Fogo contra Fogo” ainda mais realista, a começar pelos papéis menores dos ótimos Jon Voight e Tom Sizemore, passando por Ted Levine, Amy Brenneman e Ashley Judd, além da na época adolescente Natalie Portman, que interpreta a enteada de Vincent cheia de problemas com o pai biológico. Num papel de maior destaque, Val Kilmer vive o explosivo Chris, que, assim como Vincent, tem problemas com a esposa, mas, diferente do policial e do parceiro Neil, não consegue evitar que eles interfiram em seu “trabalho”. Fechando o elenco secundário, Diane Venora parece sequer expressar os sentimentos de Justine, numa atuação fria coerente com o sofrimento da personagem, já anestesiada diante de tanto desprezo do marido (“O que eu tenho são sobras”, diz ela).

Homens parecidos mesmo em lados opostos da lei, Vincent e Neil são muito competentes naquilo que gostam de fazer, mas não conseguem ter sucesso na vida social e nos relacionamentos amorosos. Se Vincent já está no terceiro casamento fracassado, Neil evita ter um relacionamento sério e, mesmo gostando de Eady, deixa claro que não hesitará em largá-la se assim for preciso. Atores completos e que impõe respeito naturalmente, De Niro e Pacino jamais dão a sensação de que hesitarão antes de partir pra cima de alguém, ainda que seus personagens demonstrem um impressionante autocontrole e saibam como agir de maneira inteligente em cada situação, como fica claro nas conversas de Neil com Charlene e de Vincent com Albert, o irmão do informante Richard, o que é essencial para o sucesso dos personagens. Assim, sabemos que eles não pensaram duas vezes antes de atirar, ainda que do outro lado esteja um “oponente” de respeito – algo vital para a seqüência final, por exemplo.

Policial inteligente e muito respeitado, o Vincent de Al Pacino sabe que sua dedicação ao trabalho atrapalha o relacionamento com a esposa e a enteada, mas não consegue fazer nada a respeito – e talvez nem queira. Por isso, Justine lentamente vai se afastando do marido até consumar a traição – e repare na fotografia obscura e opressora na cena em que eles discutem a relação num restaurante, momentos antes dela resolver agir. Aliás, nem mesmo após a traição ele consegue demonstrar sentimento por ela, utilizando a televisão para descarregar sua raiva. Mas ao ver a enteada quase morta na banheira, Vincent finalmente demonstra afeto e recebe um doloroso abraço de sua esposa – o que não significa uma reaproximação ou revisão de valores.

Do outro lado da moeda, o Neil de Robert De Niro demonstra sua inteligência desde o início, quando se irrita com o assassinato dos motoristas do carro forte por saber que aquilo chamaria ainda mais a atenção da polícia para o caso. Mas sua energia na execução dos crimes é proporcional à sua inércia na vida particular, representada pelo apartamento sem mobília que simboliza uma vida vazia. Simbólico também é o plano em que ele olha para o mar, numa alusão ao sonho de largar tudo pra trás e viver bem longe, escancarado quando convida Eady para deixar o país (obviamente, já contando com a grana que receberia após o assalto ao banco). Mas, assim como Vincent, ele desperdiça a chance que tem de mudar quando Nate avisa o paradeiro do traidor Waingro – e a expressão dele demonstra claramente seu conflito interior, assim como a fotografia indica seu trágico futuro mudando drasticamente do túnel iluminado para as ruas sombrias da cidade. Ele precisava escolher entre a fuga com Eady e a vingança e, mesmo sabendo que perderia um tempo precioso, não resiste ao impulso e desvia o caminho. Neste momento, o espectador já sabe o que esperar. Ainda assim, a melancólica cena em que ele abandona Eady no carro incomoda, mas é coerente com a personalidade dele. Uma cena visualmente belíssima, aliás, com a câmera lenta destacando o momento em que ele decide abandoná-la, exatamente como avisou que faria se fosse necessário.

Estas duas personalidades tão fortes e tão parecidas se cruzam apenas duas vezes durante a narrativa. Num momento histórico para cinéfilos e fãs, Al Pacino e Robert De Niro contracenam pela primeira vez quando o primeiro para o segundo no trânsito e o convida para tomar um café. A conversa direta e cheia de ameaças sutis é um dos grandes momentos do longa (e da atuação de ambos), servindo também para preparar o clima da seqüência final. O segundo encontro acontece exatamente no esperado confronto final, em que a ausência da trilha sonora, os sons diegéticos e a escuridão do aeroporto reforçam a tensão até que finalmente Vincent acerte Neil. O cumprimento deles apenas comprova o respeito mútuo de dois homens inteligentes e obstinados, que não conseguiam fazer outra coisa a não ser o “trabalho” que amavam. Infelizmente, o trabalho de um era atrapalhar o trabalho do outro, e eles jamais permitiriam que alguém atrapalhasse seus caminhos. Mas se o trabalho de um interferia diretamente no do outro, ironicamente este conflito era necessário para que eles pudessem exercer a profissão com tanta paixão – e, além do respeito, este cumprimento final revela esta assombrosa compreensão de ambos do cenário em que estão inseridos.

Com uma rara profundidade dramática e um complexo estudo de personagens pouco comum no gênero, “Fogo contra Fogo” é um excepcional filme de ação, que traz ainda uma das mais sensacionais cenas de tiroteio já vistas no cinema. Ao estudar personalidades tão parecidas em corpos inimigos, Michael Mann entrega mais do que um ótimo filme de ação, trazendo dois homens obstinados por suas profissões, que, numa melancólica ironia, dependiam um do outro para se sentirem completos, mesmo estando em lados opostos da lei.

Texto publicado em 10 de Junho de 2012 por Roberto Siqueira

CASSINO (1995)

(Casino)

 

Videoteca do Beto #124

Dirigido por Martin Scorsese.

Elenco: Robert De Niro, Sharon Stone, Joe Pesci, James Woods, Kevin Pollak, Don Rickles, Alan King, L.Q. Jones, Dick Smothers, Frank Vincent, John I. Bloom, Pasquale Cajano, Melissa Prophet, Catherine Scorsese e Catherine T. Scorsese.

Roteiro: Nicholas Pileggi e Martin Scorsese, baseado em livro de Nicholas Pileggi.

Produção: Barbara De Fina.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Injustamente ignorado pela crítica no ano de seu lançamento, “Cassino” apresenta muito do que o cinema de Martin Scorsese tem de melhor, com seu visual deslumbrante, cenas memoráveis e atuações inspiradas. Talvez a alta expectativa criada explique a má recepção, afinal, estavam reunidos novamente Scorsese, o roteirista Nicholas Pileggi e os astros De Niro e Joe Pesci, peças fundamentais no sucesso de “Os Bons Companheiros”, lançado cinco anos antes e que também apresentava o ambiente hostil de mafiosos e gângsteres. Mas, ainda que não seja um trabalho tão estupendo quanto “Os Bons Companheiros”, “Cassino” é um belo filme, feito sob medida para agradar aos fãs do gênero.

Escrito por Pileggi, “Cassino” narra a história de Sam “Ace” Rothstein (Robert De Niro), um diretor de cassino em Las Vegas com passado comprometedor que se envolve com Ginger (Sharon Stone), uma prostituta de alta classe que dominava a todos, menos o seu cafetão Lester (James Woods). A combinação explosiva se completa quando o gângster Nicky (Joe Pesci) chega ao local para vigiar Ace, a pedido dos mafiosos que comandavam a cidade.

Auxiliado por Scorsese e baseado em seu próprio livro, Pileggi revela em “Cassino” como funcionava o esquema comandado pela máfia em Las Vegas, criando um painel complexo da cidade na época que precedeu o domínio das grandes corporações. Detalhando cada processo, quem e como cada um participava do esquema, ele explica como eles conseguiam se livrar das autoridades e até mesmo recuperar as “perdas” quando alguém ganhava muito dinheiro nas apostas. Além disso, a excelente estrutura narrativa se preocupa em apresentar pacientemente cada personagem, o que é essencial para que o espectador saiba o que esperar de cada um deles nas diversas situações que surgem ao longo da narrativa.

Logo de cara, temos uma revelação literalmente bombástica e vemos a suposta morte do protagonista, deixando claro em poucos minutos que estamos num filme de Scorsese, através da câmera lenta, da música erudita, da explosão, do personagem misturando-se ao vermelho infernal e da narração que nos leva ao longo flashback. Este recurso, aliás, é utilizado com exaustão em “Cassino”, normalmente na voz de Ace, mas também com Nicky e até mesmo Frank (Frank Vincent), que ganha um “voice-over” num momento de puro exercício estilístico, em que a imagem é congelada enquanto acompanhamos seu raciocínio antes dele responder a pergunta de um dos chefões da máfia. E o estilismo continua, por exemplo, através das legendas superiores que decifram o código na conversa telefônica entre Ace e Nicky (recurso já utilizado, por exemplo, por Woody Allen em “Annie Hall”).

Estilo, aliás, é uma palavra que descreve bem Martin Scorsese. Com seu estilo inconfundível, ele desfila seu arsenal de técnicas de direção, nos presenteando com planos memoráveis, travellings e até mesmo a câmera lenta em diversos momentos, como quando os dados caem na mesa ou uma luz se acende. Este visual elegante conta também com a fotografia de Robert Richardson, que abusa das cores e luzes e transforma “Cassino” numa verdadeira festa para os sentidos, além dos extravagantes figurinos de John A. Dunn e Rita Ryack, que tornam este visual ainda mais rico, tendo também função narrativa ao externar o estado de espírito dos personagens – repare como Ace vai mudando do tom sóbrio de seus ternos no inicio para cores mais vivas no final, refletindo sua empolgação com o império que tem nas mãos, assim como Ginger muda dos tons leves para roupas mais sufocantes, que refletem seu desconforto.

Utilizando um cassino de verdade como locação, o diretor de arte Jack G. Taylor Jr. capricha nos pequenos detalhes, desde os dados e cartas que são jogados nas mesas, passando pela imponente decoração da casa dos Rothstein e terminando na construção de sets impressionantes, como o escritório de Ace. Este excelente trabalho técnico praticamente nos coloca dentro de Las Vegas, captando o clima festeiro da cidade e, ao mesmo tempo, criando uma atmosfera tensa através dos locais obscuros em que os mafiosos se reúnem para tomar decisões em meio a jogatinas e bebidas. Completando esta ambientação, a espetacular trilha sonora mistura de tudo, passando por clássicos do rock, blues e até mesmo músicas dançantes dos anos 70, criando uma atmosfera única típica dos filmes dirigidos por Scorsese.

E ele não para por aí. Observe, por exemplo, o belíssimo travelling que sai das nuvens e nos mostra Las Vegas à noite, passando pela cidade e se perdendo na escuridão do deserto – que, aliás, surge em seguida enquanto a narração nos informa o que é feito no local, num raccord elegante e eficiente. Entre os cuidados enquadramentos e movimentos de câmera que caracterizam o diretor, não poderiam faltar os planos-seqüência, como aquele que acompanha um homem entrando no cassino, passeando por todo local, retirando o dinheiro no restrito setor de contagem, saindo e entrando num carro. E até planos estáticos são belos, como aquele que diminui Ace no deserto após uma discussão com Nicky, simbolizando sua perda gradual de poderes.

Além da beleza plástica, a direção de Scorsese é competente também na condução firme da narrativa. Para isto, ele conta com sua parceira de costume, a montadora Thelma Schoonmaker, que imprime um ritmo quase frenético em certos momentos, como quando acompanhamos quem observa quem no cassino, criando ainda elipses marcantes e/ou bem humoradas, como quando vemos um chefe da máfia pedindo que Ace seja discreto e, em seguida, vemos o anúncio de seu programa de televisão. Além disso, a estrutura narrativa coesa e a fluência na transição entre as cenas resultante da ótima decupagem tornam a longa duração quase imperceptível.

Finalmente, o diretor mostra que é completo ao extrair também excelentes atuações de todo o elenco, dentre as quais merece destaque a de Sharon Stone, que nunca foi considerada uma atriz de alto nível (eu, particularmente, adorei seu trabalho em “Instinto Selvagem”). Nas mãos de Scorsese, entretanto, Stone tem a atuação de sua vida – e a própria Sharon admite a importância do diretor neste aspecto -, transformando Ginger, a sensual e perigosa prostituta que conquista o coração de Ace, numa personagem tridimensional e complexa. Carismática, a atriz está solta no papel e cumpre bem a difícil tarefa de duelar com De Niro e Pesci, sobressaindo-se em discussões calorosas (normalmente bêbada, como no restaurante de Nicky) e até mesmo em momentos mais intimistas, como na conversa telefônica com Ace em que praticamente implora para voltar pra casa. Em outro momento, quando Ace expulsa Ginger de casa, a atriz dá um show ao lado de Robert De Niro, explodindo em cena de maneira convincente.

Além dos duelos verbais envolvendo a atriz, as próprias discussões entre Ace e Nicky merecem destaque, mostrando o enorme talento de Pesci e De Niro, por exemplo, no embate na casa dos Rothstein. Atores que naturalmente impõem respeito (cinéfilos ainda trazem na memória marcantes personagens da carreira deles, como os mafiosos de “Os Bons Companheiros”), a dupla demonstra muita afinidade na tela e cria personagens realmente capazes de intimidar. Inteligente e hábil com números, é no coração que reside o ponto fraco de Ace, que se deixa levar por um sentimento que sabia ser perigoso e acaba dando a chave de sua vida (literalmente) para Ginger. Detalhista, ele toca o cassino como se fosse a sua própria casa, se preocupando com pequenos detalhes como o peso dos dados e a quantidade de recheio nos muffins, mas é incapaz de ter o mesmo cuidado em sua vida pessoal e enxergar o risco que corria. Capaz de quase matar um homem com uma caneta (na cena do bar, a primeira em que a violência gráfica típica dos filmes de Scorsese dá as caras), Nicky é um homem agressivo, que não pensa duas vezes antes de partir pra cima de alguém, por maior e mais forte que seja, mas é também inteligente o bastante para saber quando cruzou o limite do aceitável dentro do “código de moral e ética” dos mafiosos – e Pesci está ótimo na cena em que Nicky confessa para Frank que sabe disto.

Além dos golpes com uma caneta que jorram sangue de um pobre homem, marteladas nas mãos de trapaceiros, tiros a queima roupa e até mesmo golpes com taco de beisebol completam o festival de cenas violentas de “Cassino”, que conta ainda com um elenco de apoio muito bom, com James Woods vivendo o malandro Lester Diamond, Frank Vincent como Frank, Don Rickles interpretando um dos capangas de Ace e L. Q. Jones na pele do cidadão local que avisa Ace do risco que ele corria ao demitir determinado funcionário. Como curiosidade, vale dizer ainda que a mãe de Scorsese, a Sra. Catherine, interpreta a Sra. Piscano, a dona de uma venda que reclama dos palavrões de um personagem chave na trama.

Ao contrário do que imaginamos no inicio de “Cassino”, Ace escapa milagrosamente da morte e sobrevive para narrar o triste fim de Nicky, morto violentamente por Frank e uns comparsas no meio de um milharal. A moral da história? A própria máfia destruiu seu império de sonhos na Las Vegas dos anos 70, abrindo espaço para as grandes corporações que dominaram o local nas décadas seguintes e transformaram a cidade no grande parque de diversões que é hoje.

Com a digital de Scorsese impressa em cada fotograma, “Cassino” é um legítimo representante do tipo de filme que fez a fama deste excepcional diretor, capaz de transitar entre diversos gêneros e, ainda assim, retornar ao seu favorito com inventividade suficiente para não se tornar repetitivo. As atuações inspiradas e o visual de encher os olhos complementam a qualidade deste filme esquecido em meio a tantas pérolas de uma das mais respeitáveis filmografias de Hollywood.

Texto publicado em 25 de Janeiro de 2012 por Roberto Siqueira

OS BONS COMPANHEIROS (1990)

(Goodfellas)

 

Videoteca do Beto #75

Dirigido por Martin Scorsese.

Elenco: Ray Liotta, Robert De Niro, Joe Pesci, Lorraine Bracco, Paul Sorvino, Frank Sivero, Tony Darrow, Frank Vincent, Chuck Low, Frank DiLeo, Gina Mastrogiacomo, Catherine Scorsese, Charles Scorsese, Illeana Douglas e Samuel L. Jackson.

Roteiro: Nicholas Pileggi e Martin Scorsese, baseado em livro de Nicholas Pileggi.

Produção: Irwin Winkler.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Scorsese estava em plena forma quando lançou este maravilhoso “Os Bons Companheiros”, apresentando as melhores características de seu diferenciado modo de fazer cinema. O linguajar despojado, o submundo do crime, as cenas de violência extremamente realistas e os personagens fascinantes que enxergam tudo isto com naturalidade estão presentes neste legítimo representante da elogiada filmografia de Marty, que mais uma vez conta com um elenco talentoso e um trabalho técnico de primeira para desfilar sua habilidade atrás das câmeras e acertar em cheio no alvo.

Henry (Ray Liotta) inicia sua carreira na vida do crime aos 11 anos de idade e se torna o protegido do mafioso Paulie (Paul Sorvino), sendo tratado praticamente como um filho por muitos anos. Já na fase adulta, ele se junta a Tommy (Joe Pesci) e Jimmy (Robert De Niro) para roubar caminhões e, posteriormente, se envolver no tráfico de drogas, o que se revelará uma decisão trágica pra todos eles.

“Até onde eu consigo me lembrar, eu sempre quis ser um gângster”. Logo na introdução deste excelente “Os Bons Companheiros” (que precede a famosa frase do personagem de Ray Liotta), o excepcional roteiro escrito por Nicholas Pileggi e Martin Scorsese, baseado em livro de Pileggi, consegue prender a atenção do espectador ao mostrar Tommy, Jimmy e Henry executando um homem, que estava trancado no capô de um carro, com a naturalidade de quem está apenas parando para trocar um pneu. Desta forma, esta espetacular seqüência, além de prender o espectador, tem ainda a função de nos apresentar a personalidade “durona” destes personagens, que pertencem a um mundo completamente diferente do que estamos acostumados, nos preparando adequadamente para o restante da narrativa. Utilizando uma interessante narração em off para nos mostrar aquele mundo através do olhar de Henry, o roteiro (repleto de palavrões, como é marca registrada nos filmes de Scorsese) cobre muitos anos na vida do mafioso, iniciando nos tempos em que ele descobriu que ser um gângster significava ter respeito e poder, ainda quando estacionava os Cadillacs sob os olhares curiosos das garotas. Mas o longa não se resume à trajetória de Henry Hill, abordando também temas interessantes como a culpa católica, simbolizada no tom carregado de vermelho da fotografia de Michael Ballhaus, que remete ao aspecto infernal daquela vida criminosa, e a corrupção da policia, ilustrada quando Jimmy dá cigarros em troca do silêncio dos policiais. Além disso, mostra que para aquelas pessoas, coisas terríveis como ir para a prisão eram até mesmo um motivo de orgulho, algo ilustrado quando Henry é libertado sob aplausos e abraços acalorados dos parceiros de crime – e neste momento, aliás, Jimmy dá um conselho que terá reflexo no futuro da narrativa, ao dizer para Henry “nunca denunciar seus amigos”.

Scorsese utiliza todo o seu arsenal de travellings e panorâmicas, além do tradicional plano-seqüência, para novamente entregar uma direção estilizada, que preza pelo realismo e evita contar a história de maneira convencional. Observe, por exemplo, com em diversos momentos o diretor, auxiliado por seus montadores, utiliza o still (a imagem congelada, acompanhada da voz do narrador, que fez tanto sucesso, por exemplo, em “Cidade de Deus”), como quando o pai de Henry lhe dá uma surra, buscando dar um fôlego na narrativa para enfatizar alguma reflexão do narrador. Já entre os famosos planos-seqüência do diretor, destacam-se a introdução dos mafiosos no bar, quando eles conversam com a câmera enquanto são identificados, novamente sob forte predomínio da cor vermelha, e quando Henry e Karen entram no restaurante pelos fundos, quando o diretor nos leva por dentro da estrutura do local até a mesa colocada especialmente na frente do palco, enquanto no caminho, o respeito das pessoas por Henry fica evidente, através do número de funcionários que o cumprimentam. Scorsese também utiliza bastante o zoom, como quando Henry sai da prisão, e faz uma pequena homenagem a nouvelle vague francesa, quando ouvimos um homem contando piada no palco enquanto vemos a imagem de Tommy e Henry entrando no galpão do aeroporto, numa falta de sincronia entre som e imagem clássica dos filmes de Godard. O diretor conta ainda com a montagem de Thelma Schoonmaker e James Y. Kwei, que emprega um ritmo ágil à narrativa, mas mantém a característica de Scorsese de utilizar poucos cortes, aproveitando ao máximo seus belos enquadramentos e movimentos de câmera, além de fazer uma interessante passagem no tempo da noite para o dia em frente ao prédio da amante de Henry, quando Karen parte para o local para enfrentá-la e, em seguida, tenta assassinar o marido na cama.

Além da montagem, destaca-se também a já citada direção de fotografia de Michael Ballhaus, que adota um tom obscuro e com forte predomínio da cor vermelha em todo o filme, algo notável quando os criminosos matam Batts (Frank Vicent) no capô do carro, quando roubam um caminhão à noite ou nas seqüências dentro do bar. Este tom vermelho claramente remete ao universo violento daqueles gângsteres, onde o sangue é uma presença constante, e também ao citado aspecto infernal daquela vida de crimes. O aspecto infernal também é ilustrado na trilha sonora de Pete Towshend, que utiliza o som clássico de bandas de rock n’ roll como os “Rolling Stones”, o que também colabora com o clima empolgante da narrativa. Vale destacar ainda a maquiagem que envelhece Robert De Niro no terceiro ato e os figurinos de Richard Bruno, que adotam o padrão do gênero, com ternos e gravatas vestindo os respeitados mafiosos.

E já que citei os mafiosos, vale ressaltar que eles são brilhantemente interpretados pelo talentoso elenco de “Os Bons Companheiros”. A começar por Ray Liotta, que tem uma ótima atuação como Henry, apesar das risadas exageradas no bar. Um homem agressivo e explosivo, capaz de agredir brutalmente o vizinho de sua namorada, ele convive em meio aos mafiosos desde pequeno, mas entre todos eles, é o único que está ali mais pelo glamour (até mesmo pela sua origem irlandesa, e não italiana), o que será decisivo quando chegar o momento em que deverá decidir entre voltar para a prisão e entregar todo mundo. Após voltar da prisão pela primeira vez, Liotta demonstra muito bem o desespero de Henry ao procurar as drogas que lhe garantiriam a fuga da cidade e descobrir que Karen jogou tudo fora. Esta busca insana o levaria a ser preso novamente, mas desta vez Henry faria qualquer coisa para salvar a própria pele. Pior para Jimmy. Interpretado brilhantemente por Robert De Niro, Jimmy é um homem sempre prestes a explodir, como podemos notar quando seus amigos entram no bar após o roubo da Lufthansa ostentando objetos de valor, provocando sua imediata irritação por chamar a atenção da policia. E apesar de ter o respeito do grupo, seus conselhos não convencem nem mesmo seu amigo Henry, que gasta imediatamente a grana com presentes para a mulher. De Niro ilustra muito bem o desespero crescente no personagem na medida em que a narrativa avança e ele pressente a traição, resultando numa cena sensacional, quando oferece ajuda para Karen, que recusa por temer o pior e foge em disparada em seu carro. Mas o show mesmo fica por conta de Joe Pesci, que vive um temível Tommy, capaz de provocar calafrios toda vez que aparece em cena, tamanho é o seu poder de intimidação e a sua instabilidade. Logo em sua introdução, na excelente cena em que conversa com os amigos num bar, o espectador tem a exata noção do perigo que aquele homem representa ao observar que nem mesmo o seu melhor amigo demonstra confiar nele. Repare como o silêncio toma conta de todos quando ele finge estar falando sério com Henry, perguntando por que o amigo o achava engraçado. A cena é tensa e serve para transmitir ainda uma série de sensações ao espectador, através da composição visual de Scorsese, que aproxima o grupo na tela (dando um sentido de camaradagem), e do trabalho conjunto de fotografia, de Ballhaus, e direção de arte, de Maher Ahmad, que novamente destaca a cor vermelha através dos objetos na mesa. A cena serve também para dar uma importante dica do que acontecerá no futuro, quando Tommy diz para Henry que “talvez ele se abra num interrogatório”. Finalmente, Tommy demonstra ser capaz de qualquer coisa quando atira no atendente Spider, numa cena chocante que chega até mesmo a surpreender os seus amigos mafiosos (e o espectador também!).

No restante do elenco, temos Paul Sorvino, que se sai muito bem como Paulie, mostrando-se firme, especialmente na cena em que o dono do restaurante pede a morte de Tommy, além de demonstrar sabedoria ao alertar Henry sobre os perigos do envolvimento com as drogas. Assim como Don Corleone em “O Poderoso Chefão”, ele sabia que aquilo poderia significar o começo do fim. Mas Tommy, Jimmy e Henry não lhe deram ouvidos e começaram a fazer fortuna com o tráfico. Só que o tempo se encarregou de dar razão à Paulie. E neste submundo perigoso da máfia, até mesmo Karen, interpretada com competência por Lorraine Bracco, não parece ser uma pessoa normal (repare como ela se empolga ao ver a arma ensangüentada de Henry após este surrar seu vizinho), tendo acessos de loucura repentina, como quando discute com o marido na prisão ou quando a policia finalmente prende Henry por tráfico de drogas. Vale citar ainda a pequena participação de Samuel L. Jackson como Stacks, apenas como curiosidade.

A violenta morte de Billy Batts, um ótimo exemplo do realismo que Scorsese busca empregar em seus filmes, será a razão da queda do trio. Após espancarem o integrante da máfia, eles ainda param para pegar uma pá na casa da mãe de Tommy, comem, batem papo e só depois seguem para enterrar o corpo. Scorsese destaca esta forma corriqueira de lidar com a situação no momento em que a câmera sai da mesa de jantar e vai até o carro, destacando o porta-malas com o som do homem se debatendo lá dentro. Não por acaso, a primeira seqüência do filme se passa nesta etapa da vida deles, pois este momento provocará a morte de Tommy (em outra cena surpreendente e de forte impacto) e a conseqüente queda de todos eles.

Contando com sua costumeira habilidade para contar histórias do submundo do crime, Martin Scorsese nos entrega um filme visceral, empolgante e extremamente competente, que conta com atuações de primeiro nível, um excelente roteiro e cenas de forte impacto para conquistar o espectador. Até onde eu consigo me lembrar, eu sempre quis assistir aos filmes de Scorsese. E posso afirmar que mais uma vez esta experiência foi maravilhosa.

Texto publicado em 10 de Dezembro de 2010 por Roberto Siqueira

CAMINHOS PERIGOSOS (1973)

(Mean Streets)

 

Filmes em Geral #30

Dirigido por Martin Scorsese.

Elenco: Harvey Keitel, Robert De Niro, David Proval, Amy Robinson, Richard Romanus, Cesare Danova, Victor Argo e George Memmoli.

Roteiro: Martin Scorsese.

Produção: E. Lee Perry e Jonathan T. Taplin.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Antes mesmo das primeiras imagens aparecerem na tela, “Caminhos Perigosos” deixa claro o tema principal de sua narrativa através das palavras ditas por determinado personagem: “Você não paga os pecados na igreja, paga na rua”. A culpa católica e o eterno conflito entre seguir os ensinamentos da igreja e sobreviver naquele mundo extremamente perigoso é o fio condutor deste ótimo filme dirigido por Martin Scorsese e estrelado por Harvey Keitel e Robert De Niro.

Charlie (Harvey Keitel) trabalha para crescer no submundo de Nova York sob a tutela de seu tio Giovanni (Cesare Danova), ao mesmo tempo em que mantém um caso com Teresa (Amy Robinson) e a indesejada amizade de Johnny Boy (Robert De Niro), um jovem agressivo que vive devendo para todo mundo. Entre os credores está Michael (Richard Romanus), um homem tranqüilo que evita confrontar Johnny por conta da amizade que tem com Charlie.

Não por acaso, a trama de “Caminhos Perigosos” se passa no bairro de Little Italy, o local onde o diretor Martin Scorsese passou boa parte de sua infância e juventude, e que claramente influenciou sua carreira em muitos aspectos (o linguajar de seus filmes, o tema do submundo, etc.). E ainda que este seja um dos seus primeiros trabalhos como diretor, Scorsese já apresenta seu estilo marcante em diversos momentos, como no travelling em câmera lenta que nos leva pela boate ao som de clássicos do rock n’ roll ou quando a câmera presa em Charlie durante uma bebedeira transmite a exata sensação de desorientação que o personagem sentia naquele momento. O diretor emprega freqüentemente o plano-seqüência, os travellings e a câmera lenta, balanceando estes movimentos estilizados com o uso da câmera agitada, buscando empregar realismo em diversas cenas. Observe, por exemplo, a briga que acontece num bar, ao som de “Mr. Postman”, quando Charlie e seus amigos vão cobrar um pagamento. A câmera agitada acompanha os personagens sem fazer muitos cortes, tornando a cena extremamente realista e nos jogando pra dentro da confusão – vale notar também a interessante crítica à corrupção da polícia no final do conflito. O diretor repete a alta dose de tensão e realismo na cena do assassinato dentro do bar de Tony (David Proval), com a vítima tentando estrangular seu assassino enquanto todos saem correndo desesperados pelas ruas tentando escapar da polícia, que já estava a caminho. Obviamente, a montagem de Sid Levin colabora sensivelmente na construção destas cenas, que contrastam diretamente com o ritmo mais lento do restante do longa. Sempre com cenas longas e com poucos cortes, Levin balanceia muito bem o ritmo da narrativa, além de ousar em alguns momentos, como quando Charlie e Johnny caminham pela noite conversando sobre a avó de Charlie. Repare como repentinamente a noite se transforma em dia durante a conversa, numa quebra deliberada de continuidade por parte de Scorsese e Levin. Em outro momento, numa conversa entre Charlie e Teresa dentro do apartamento, o som se inicia antes das imagens aparecerem na tela – imagens estas que remetem a conversa entre Patricia e Michael em “Acossado” e que ainda apresentam uma cena de nu frontal de Teresa. Estas duas cenas exemplificam a clara influência da nouvelle vague (Godard, em especial) sobre Martin Scorsese naquele momento de sua carreira. Scorsese faz ainda sua homenagem ao cinema clássico ao exibir uma cena de “Rastros de Ódio”, revelando sua paixão pela sétima arte.

Scorsese conta ainda com a direção de fotografia de Kent Wakeford, que emprega um visual cru, obscuro e com muitas cenas noturnas, refletindo a escuridão na vida daquelas pessoas à margem da sociedade, contrastando com a fotografia vermelha das cenas que acontecem dentro do bar, repleto de drogas e bebidas, conferindo um ar infernal ao local, afinal de contas, é ali que Charlie comete os seus “pecados”. As ruas sujas e repletas de mendigos, traficantes e prostitutas atestam o bom trabalho de direção de arte de Bill Bates, reforçado pelos figurinos de Norman Salling, que seguem o padrão “O Poderoso Chefão”, com os tradicionais ternos e gravatas. E finalmente, a trilha sonora é certamente um dos grandes destaques do longa, intercalando clássicos do rock n’ roll com óperas,  representando o conflito entre a vida agitada de Charlie no gueto e seu apego às tradições italianas, em especial a religiosidade e a busca pela salvação.

Scorsese acerta também ao apresentar, logo na introdução, as características marcantes de cada personagem, com Charlie buscando orientação na igreja, Johnny fazendo arruaça na rua, Tony cuidando do bar e Michael pacientemente indo cobrar um pagamento, nos preparando para o que aconteceria depois. Escrito pelo próprio Scorsese, o roteiro não tem uma estrutura convencional, nos permitindo acompanhar o cotidiano daquele grupo sem ter um objetivo claro, mas sempre evidenciando o tema da culpa católica, como, por exemplo, através da história que Charlie escuta sobre o casal de jovens que sai para transar e morre. Ainda assim, o foco da narrativa está sempre em Charlie e em sua constante luta por redenção diante da vida que leva. Ele não se importa com os problemas da igreja (“A igreja é uma organização, um negócio”, diz Tony em certo momento), exatamente por não conseguir encontrar outro caminho para aliviar seu conflito interno e buscar a salvação. É como se Charlie quisesse compensar a “vida pecaminosa” que leva freqüentando a igreja e confessando os pecados. Keitel transmite muito bem os conflitos do personagem, que consegue ser ao mesmo tempo durão e paternal, principalmente nos momentos em que passa ao lado de Johnny. Observe, por exemplo, sua reação ao ver uma moça negra dançando, lutando contra seus pensamentos e evidenciando seu racismo – o que se confirma quando ele desiste de um encontro por medo de ser visto com ela. O roteiro, aliás, volta a abordar o preconceito quando um homem diz que “as mulheres judias saem com todo tipo de cara”. Charlie convive ainda com outro dilema, tendo que decidir entre ficar com Teresa e Johnny e herdar o restaurante que seu tio Giovanni lhe prometeu. Neste caso, sua difícil decisão é também inteligente, o que o encoraja a contar pra Teresa a sua escolha, deixando a garota em segundo plano por um tempo, pelo menos até herdar o restaurante – e é apropriado que o plano anterior a esta revelação apresente Charlie colocando o dedo no fogo, pois certamente ele estava brincando com algo extremamente perigoso ao tentar enganar o tio.

Mas não é apenas Keitel que se destaca no elenco. Logo na primeira conversa entre Charlie e Johnny nos fundos do bar, podemos perceber a qualidade da atuação de Robert De Niro. O ator demonstra com competência o jeito desleixado de Johnny através da expressão corporal relaxada e da fala arrastada, que deixam claro o quanto ele pode ser dissimulado e pouco confiável. Durante uma discussão com Tony, Johnny ajeita as calças e arregala os olhos como quem está pronto para brigar, mostrando que ele era capaz de qualquer coisa para se defender. Sua loucura é tão evidente que o espectador não se surpreende quando Johnny resolve atirar no Empire State e na janela de uma mulher, somente para logo em seguida pedir desculpas para a senhora. Aliás, este sentimento de que algo ruim pode acontecer é constante em “Caminhos Perigosos”, muito por causa do elenco formado por atores com cara de “mau”, que dão a sensação de que poderão sair na porrada a qualquer momento. A exceção é Michael, interpretado por Richard Romanus, que exibe uma tranqüilidade atípica para o mundo em que vive, muitas vezes parecendo até mesmo inofensivo. Mas na medida em que o espectador passa a ter certeza de que Johnny não vai pagar a dívida, a eminente explosão de Michael se torna evidente – e o ator transmite esta sensação muito bem, principalmente na tensa seqüência em que Johnny aponta uma arma pra ele no bar. Fechando o elenco, Amy Robinson se sai bem como Teresa, especialmente quando sofre um ataque epilético diante de Charlie. Todos estes personagens sombrios e ambíguos criam um clima tenso sem a necessidade de recorrer à trilha sonora ou a situações inusitadas, somente através da composição dos personagens e da vida que eles levam. Por outro lado, estes mesmos personagens são capazes de citar diversas passagens bíblicas dentro do bar, mostrando a influencia da igreja sobre eles, ainda que não acreditassem nos ensinamentos que memorizaram (ou talvez não aceitassem). Neste dilema está a discussão central do filme.

Quando Michael emparelha o carro e seu parceiro começa a atirar em Johnny, o espectador pode até se sentir surpreso e chocado, mas no fundo todos sabiam que ao agir daquela maneira naquele mundo Johnny estava pedindo por isso. Scorsese encerra o longa com uma interessante rima narrativa, mostrando novamente os diversos personagens em diversos locais diferentes, assim como no início do filme. De diferentes maneiras, todos tentam sobreviver naquele violento ambiente, mas nem todos conseguem sair ilesos.

Texto publicado em 18 de Novembro de 2010 por Roberto Siqueira

OS INTOCÁVEIS (1987)

(The Untouchables)

 

Videoteca do Beto #51

Dirigido por Brian De Palma.

Elenco: Kevin Costner, Robert De Niro, Sean Connery, Charles Martin Smith, Andy Garcia, Richard Bradford, Jack Kehoe, Brad Sullivan, Billy Drago, Patricia Clarkson e Peter Aylward.

Roteiro: David Mamet, baseado em livro de Oscar Fraley, Eliot Ness e Paul Robsky.

Produção: Art Linson.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido o filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

O estilo marcante e o visual refinado de Brian De Palma aparecem com força total neste tradicional confronto entre o bem e o mal, que conta como o agente do tesouro Eliot Ness conseguiu combater e prender o poderoso Al Capone, em pleno período da lei seca, na Chicago dos anos trinta. O ritmo empolgante, o impressionante visual e as marcantes atuações fazem de “Os Intocáveis” um filme muito interessante, que trouxe de volta os bons filmes de gângster ao cenário de Hollywood.

Nos anos trinta, a lei seca impedia o comércio de bebidas alcoólicas em Chicago, o que não quer dizer que este comércio não existia. Com praticamente todos os poderosos no bolso, Al Capone (Robert De Niro) mandava e desmandava na cidade. É quando o jovem agente Eliot Ness (Kevin Costner) é contratado para acabar com o reinado do terror e da corrupção e, ao lado do guarda de rua Jim Malone (Sean Connery), do contador Oscar Wallace (Charles Martin Smith) e do novato policial Giuseppe Petri (Andy Garcia), forma uma equipe de homens corajosos e incorruptíveis, conhecida como “os intocáveis”.

O trabalho técnico merece grande destaque em “Os Intocáveis”, conseguindo ambientar perfeitamente o espectador à época. A começar pela magnífica recriação da Chicago dos anos trinta, resultado do trabalho em conjunto da excelente Direção de Arte de William A. Elliott e dos figurinos de Giorgio Armani e Marilyn Vance. Desde os charmosos carros, passando pelo interior dos ambientes – como o luxuoso hotel Lexington onde Capone se hospeda – até os elegantes ternos, sobretudos e chapéus, a sensação é de estarmos em outra época. O toque final no apurado visual vem da boa direção de fotografia de Stephen H. Burum, que utiliza cores dessaturadas freqüentemente, lembrando em diversos momentos imagens antigas de jornal. Além disso, Burum também utiliza um tom vermelho, que remete ao sangrento destino de Malone, quando sua surpreendente fonte é revelada – Mike (Richard Bradford) – e diz que ele é um homem morto. Pra completar o grande trabalho técnico, ainda nos créditos iniciais que aparecem sob o reflexo da sombra do nome do filme, podemos notar a qualidade da empolgante trilha sonora do ótimo Ennio Morriconne, que apresenta diversas variações interessantes durante o longa. Repare como a trilha indica tensão quando Ness, antes de invadir o primeiro depósito, vê um homem suspeito e se aproxima dele, somente para descobrir que era um repórter. Já após a frustrada batida, quando o desolado agente sai vagando triste pelas ruas até chegar à ponte, a trilha melancólica indica a tristeza dele. Finalmente, quando “os intocáveis” conseguem a primeira batida com sucesso, a trilha triunfal eleva ainda mais o grande momento.

Além do trabalho técnico, De Palma precisou contar também com um elenco afiado, pois a empatia do público com o quarteto principal é essencial para que “Os Intocáveis” funcione. Felizmente, o elenco corresponde. A começar por Sean Connery, numa atuação excepcional, notável desde a primeira aparição na ponte, quando tem seu primeiro contato com Eliot Ness, até sua terrível morte, onde transmite perfeitamente a dor de Malone, massacrado pelos tiros e mal conseguindo falar com Ness antes de seu último suspiro. Quem também está muito bem é Kevin Costner, no papel do correto Eliot Ness. Determinado em prender Al Capone, Ness é um personagem complexo, que tenta cumprir a lei, mas sabe que apesar de não querer, poderá ter que usar métodos que a própria lei proíbe para cumprir seu objetivo. Afinal, Malone foi bem claro com ele no interessante diálogo dentro da Igreja (“Você quer pegar Capone? É assim que se pega Capone: ele puxa uma faca e você, uma arma. Ele manda um dos seus para o hospital, e você manda um dos dele pra cova”). Mas Ness não consegue conviver tranquilamente com este violento ambiente, ficando claramente desconfortável quando mata um dos gângsteres de Capone. Por outro lado, sabe da enorme responsabilidade que tem nas costas, e o peso de sua missão fica evidente quando conversa com a mãe da garota morta na explosão do bar – e Costner é competente ao transmitir a angústia e preocupação do personagem neste momento. O ator também se mostra muito solto no papel, por exemplo, quando questiona ironicamente no meio da rua e com as mãos na cintura o novo amigo Malone (“Porque está me ajudando?”). A química entre os dois amigos, aliás, é essencial para a empatia do público e ambos têm sucesso absoluto. Repare como, após ficar transtornado por matar um homem, Ness rapidamente se reanima com as palavras diretas de Malone. Neste momento, aliás, Malone comprova sua astúcia ao utilizar um homem morto como elemento chave para conseguir a informação que precisava de um gângster capturado.O terceiro integrante da exemplar equipe é muito bem apresentado ao espectador, demonstrando sua habilidade com a arma na mão e sua forte personalidade ao confrontar sem medo o veterano Malone. Mas Andy Garcia, se não compromete, também não consegue grande destaque na pele do exímio atirador Stone (ou Giuseppe Petri). Finalmente, o quarto integrante do grupo é Oscar Wallace, interpretado por Charles Martin Smith, que se sai bem no papel do contador que cai de pára-quedas na missão e acaba tendo papel fundamental, ainda que saia cedo de cena. Seu melhor momento acontece quando, depois de sair atirando em tudo que vê pela frente, encosta num barril onde a bebida jorra e, após olhar para os lados e confirmar que ninguém está vendo, toma uns goles do líquido proibido. Finalmente, a razão da existência desta equipe de homens honestos é justificada pela marcante presença de Robert De Niro como o poderoso Al Capone, impondo respeito toda vez que entra em cena (De Palma acentua seu poder ao filmá-lo constantemente em ângulo baixo). Seu cinismo exala na tensa seqüência em que fala sobre beisebol e trabalho em equipe, momentos antes de espancar com o taco de beisebol um dos integrantes da máfia, numa cena extremamente violenta. Em dois momentos, De Niro tem um duelo direto com Costner e ambos transmitem muita segurança no que falam. No primeiro deles, Ness, inconformado com a morte de Wallace, invade o hotel Lexington e chama Capone pra briga. No segundo, Capone, derrotado nos tribunais, é provocado por Ness e precisa de alguns capangas para segurá-lo, tamanha a fúria que sentia. Fechando os destaques do elenco, Patricia Clarkson vive a serena esposa de Eliot Ness, se transformando na estrutura familiar que ele precisa para desempenhar sua função com sucesso.

“Os Intocáveis” conta também com o bom roteiro de David Mamet que, além da boa construção dos personagens, é repleto de frases marcantes, como a citada orientação de Malone sobre como se faz para pegar Capone e as polêmicas declarações do poderoso mafioso. Além disso, a montagem de Gerald B. Greenberg e Bill Pankow mantêm a narrativa num ritmo ágil, permitindo, por exemplo, que o espectador saiba quem são os personagens principais, quais são as suas motivações e o que está em jogo de forma rápida e direta, além de colaborar decisivamente na melhor cena do filme, dentro da estação de trem. E finalmente, chegamos a Brian De Palma. Diretor com grande apreço pelo visual estilizado, permite que o espectador note sua inventividade logo no primeiro plano, quando vemos em plongèe (filmado por cima) o poderoso Al Capone rodeado de jornalistas numa barbearia dizendo que “existe violência em Chicago, mas não vem de mim”. Em seguida, um lento travelling nos leva à porta de um bar onde uma pequena garota está entrando. A recusa do dono do bar em comprar cerveja contrabandeada, a presença da pequena garota e uma suspeita maleta “esquecida” por um gângster são os ingredientes de um início explosivo, que desmente logo de cara as palavras de Capone. O espectador sabe, a partir deste instante, do que o mafioso é capaz. Por isso, quando um gângster ameaça a família de Ness na porta da casa dele, o desespero do agente ao subir as escadas é compartilhado com o espectador, que leva um pequeno susto ao ver a cama vazia, acalmando-se com o movimento de câmera para a direita que mostra a filha dele. O diretor, aliás, abusa dos movimentos “não convencionais”, como a câmera que circula a mesa com os quatro intocáveis ou o travelling que sai da janela onde Ness e Wallace conversam sobre o imposto de Capone e revela que eles estão num avião. Em outro momento, a câmera funciona como o ponto de vista do invasor da casa de Malone, deixando o espectador grudado na cadeira até o violento desfecho da cena. De Palma é competente também na condução de seqüências espetaculares, como o flagra na divisa entre os EUA e Canadá, onde – embalada pela ótima trilha sonora – a montagem alterna muito bem entre os diversos planos, tornando a seqüência ainda mais empolgante. E, obviamente, demonstra seu talento na melhor cena do longa, durante a espetacular seqüência na estação de trem (uma bela homenagem a “O Encouraçado Potemkin”, de 1925). A câmera lenta mostra em detalhes o show orquestrado por De Palma, com o carrinho do bebê lentamente descendo as escadarias enquanto os gângsteres trocam tiros com Ness e Petri, num balé perfeito que é puro cinema.

Apesar do clima tenso, “Os Intocáveis” não é carregado dramaticamente. Mesmo assim, não deixa de ter cenas extremamente tocantes e tristes, como a morte de Wallace, que escancara de vez a corrupção da polícia de Chicago, e a atordoante morte de Jim Malone. Por outro lado, as empolgantes intervenções do grupo no tráfico de bebidas e o grande final garantem a sensação de satisfação ao espectador. A seqüência final, aliás, não poderia ser menos do que sensacional, iniciando quando Ness, agora poderoso após conseguir o julgamento, aparece gigante na tela ao sair da côrte (De Palma também utiliza um ângulo que o engrandece na tela). O inteligente roteiro utiliza o fósforo (“1634 Rancine”) como forma de indicar para Ness quem matou Malone (num artifício chamado pista e recompensa, que normalmente agrada muito ao espectador), dando início a outra ótima perseguição, ainda que tenha pequenos exageros (Ness erra um tiro a meio metro). E novamente, o estilo marcante de Brian De Palma aparece, quando após empurrar Nitti (Billy Drago), a câmera faz um movimento interessante buscando Ness em cima do prédio. O empolgante final, com a troca do júri e a prisão de Capone, completa a perfeita conclusão da narrativa.

Impecável tecnicamente, “Os Intocáveis” conta de maneira muito interessante como o poderoso Al Capone viu seu império cair diante do determinado agente Eliot Ness. O refinado estilo visual de seu diretor e suas grandes atuações fazem com que este seja um grande momento do cinema nos anos oitenta, explorando de maneira divertida um gênero normalmente mais pesado e mesmo assim, conseguindo sucesso absoluto.

Texto publicado em 25 de Março de 2010 por Roberto Siqueira