ERA UMA VEZ NA AMÉRICA (1984)

(Once Upon a Time in America)

5 Estrelas 

Videoteca do Beto #159

Dirigido por Sergio Leone.

Elenco: Robert De Niro, James Woods, Elizabeth McGovern, Tuesday Weld, Treat Williams, Burt Young, Danny Aiello, Jennifer Connelly, Joe Pesci, James Hayden, William Forsythe, Larry Rapp, Amy Ryder, Scott Tiler, Rusty Jacobs, Brian Bloom, Adrian Curran, Mike Monetti, Noah Moazezi, James Russo, Julie Cohen e Sergio Leone.

Roteiro: Leonardo Benvenuti, Piero De Bernardi, Enrico Medioli, Franco Arcalli, Franco Ferrini e Sergio Leone, baseado em novela de Harry Grey.

Produção: Arnon Milchan.

Era uma vez na América[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Hoje reconhecido como um dos grandes mestres da história do cinema, Sergio Leone notabilizou-se na direção dos chamados western spaghetti, realizando obras de grande destaque e importância como a famosa “Trilogia dos Dólares” e “Era uma vez no Oeste”. No entanto, talvez o maior desafio de toda a carreira do diretor italiano tenha sido este ambicioso “Era uma vez na América”, justamente por representar sua incursão num ambiente diferente daquele em que estava habituado. Massacrado por público e crítica na época de seu lançamento devido à decisão do estúdio de lançar uma versão extremamente reduzida nos cinemas, o projeto da vida de Leone levou anos para ser realizado e só foi reconhecido quando a versão imaginada pelo diretor foi lançada tempos depois. E justiça seja feita, o verdadeiro “Era uma vez na América” é um filme belíssimo que justifica em cada momento a ambição de seu diretor.

Escrito por seis pessoas (inclusive o próprio Leone), “Era uma vez na América” narra à trajetória de ascensão e queda de um grupo de gângsteres de descendência judaica durante o período da lei seca em Nova York. A partir das memórias de Noodles (Robert De Niro), que resolve voltar ao local 35 anos após sua saída, conhecemos a história dele e de seus amigos Max (James Woods), Pasty (James Hayden) e Cockeye (William Forsythe), percorrendo desde a infância sofrida nas ruas do Lower East Side até o incidente trágico que destruiu o grupo.

Grandiloquente e recheado pelo tom operístico que caracteriza quase toda a filmografia de Sergio Leone, “Era uma vez na América” aposta numa estrutura narrativa complexa, que busca manter a atenção do espectador durante suas quase quatro horas de duração – o que, convenhamos, é um enorme desafio. Para conduzi-la com segurança e evitar que se torne enfadonha, Leone conta com o ótimo trabalho do montador Nino Baragli, que salta no tempo diversas vezes (tanto para o passado como para o futuro), mas sempre de maneira elegante e fluída; e o que é ainda mais interessante, demonstrando enorme confiança na inteligência do espectador ao jamais apelar para letreiros ou diálogos expositivos que indiquem a passagem do tempo – sempre que temos este tipo de informação, ela surge de maneira orgânica. Assim, temos uma verdadeira coleção de transições elegantes, como aquela em que Noodles olha para uma lamparina e a chama se transforma numa lâmpada, já debaixo de chuva e no cenário da morte de seus amigos – e é interessante notar também o excepcional design de som, que mantém o barulho do telefone tocando até que Noodles faça uma ligação, nos levando de volta ao teatro chinês onde toda a sequência se iniciou (voltaremos a este toque de telefone em instantes).

Noodles olha para uma lamparinaChama se transforma numa lâmpadaCenário da morte de seus amigosUtilizar o som diegético para provocar tensão, aliás, é outra característica marcante do diretor que aqui surge com força total, como na cena da descida de um elevador, momentos antes de Noodles surpreender seu perseguidor com um tiro na cabeça, numa cena graficamente impressionante que evidencia a violência que permeará a narrativa. Apesar do sangue exageradamente vermelho que busca ampliar o choque, a violência de “Era uma vez na América” é convincente e perfeitamente justificável naquele ambiente, surgindo em diversos momentos como na entrega dos diamantes ao amigo do mafioso Frankie (Joe Pesci, em participação pequena), na surra de Bugsy (James Russo) em Noodles e Max e na morte do pequeno Dominic (Noah Moazezi), além da violência sexual cometida por Noodles em dois momentos impactantes.

Descida de um elevadorEntrega dos diamantesMorte do pequeno DominicEstabelecendo a natureza violenta dos personagens desde os primeiros minutos de projeção, “Era uma vez na América” nos joga pra dentro daquele ambiente hostil de maneira impressionante, numa imersão que se dá também graças ao excepcional design de produção de Carlo Simi, que nos transporta para os Estados Unidos do início do século XX através dos carros, das casas e até mesmo da decoração do bar de Moe (Larry Rapp), além é claro dos impecáveis figurinos de Gabriella Pescucci, que recriam as roupas dos gângsteres e dos judeus com precisão, seguindo o padrão instituído no imaginário popular por “O Poderoso Chefão”. Nesta mesma linha, a fotografia de Tonino Delli Colli abusa do uso das sombras nos ambientes internos para ilustrar a natureza obscura daquele submundo, mas adota tons pastéis que realçam o tom nostálgico do longa, se destacando também na iluminação de cenas noturnas impressionantes – como aquela que revela a morte dos amigos de Noodles ainda no primeiro ato – e no uso da fumaça para conferir uma atmosfera onírica a certas lembranças do protagonista.

Estados Unidos do início do século XXRoupas dos gângsteres e judeusAtmosfera oníricaEmpregando seus tradicionais closes, zooms e travellings (o superclose surge em raras ocasiões), Leone desfila por estes cenários e personagens com elegância, criando um visual impactante e repleto de cenas belíssimas que, enriquecidas pela trilha sonora sempre marcante do mestre Ennio Morricone, conferem um tom épico ao filme, destacando-se em alguns momentos especiais, como quando Noodles liga para o velho amigo Moe da porta do bar, onde somente a música e as imagens já são suficientes para demonstrar o saudosismo daquele reencontro. Leone não precisa de palavras para nos emocionar, seu cinema é pura magia. E se a trilha sonora de Morricone realça a nostalgia do protagonista, destacando-se especialmente no lindo tema principal e nas composições que envolvem um coral de vozes, as longas sequências em silêncio tão características do diretor surgem como um contraponto interessante, criando cenas extremamente tensas como quando Noodles, após a decepção do encontro com Deborah (Elizabeth McGovern), mexe o café numa xícara por longos segundos antes de se manifestar, exalando uma eletricidade palpável que evidencia sem uma única palavra a possibilidade de uma briga entre ele e o amigo Max.

Noodles liga para o velho amigo MoeXícara de caféPossibilidade de uma brigaLeone mostra talento também na direção dos atores mirins através de pequenos momentos, como aquele em que Dominic volta para conferir se o bagageiro onde eles esconderam a maleta cheia de dinheiro estava mesmo trancado. Cobrindo a vida daqueles amigos desde a infância, quando surgem ateando fogo numa banca de jornal por falta de pagamento do dono, o diretor faz questão de investir muito tempo na construção meticulosa daqueles personagens e da relação entre eles. Assim, toda a fase da infância serve para nos familiarizar com cada um deles, apresentando seus medos, ansiedades e motivações, trazendo ainda cenas belíssimas como aquela em que Noodles observa Deborah dançando, o lindo primeiro beijo deles ou o tocante momento em que Pasty decide entre comer um bolo ou transar com Peggy – e a atuação do jovem Brian Bloom neste instante é primorosa, transmitindo a indecisão do garoto com precisão e ilustrando como ele ainda não estava pronto para aquele salto de maturidade. Ainda na infância, vale citar a curiosa e marcante participação de Jennifer Connelly, ainda criança, como a linda e expressiva Deborah, que rouba o coração de Noodles com seu jeito meigo e insinuante de agir.

Dominic volta para conferirDeborah dançandoComer um bolo ou transarDurante todo este tempo, a amizade genuína daqueles jovens nos convence. Também por isso, é doloroso acompanhar esta relação sendo lentamente destruída na fase adulta por causa da ganância da maioria deles. No entanto, esta mudança já pode ser notada logo após a volta de Noodles da prisão, quando os abraços calorosos não conseguem esconder o distanciamento entre o grupo e o jovem regresso. Compondo Noodles com um ar misterioso que nem por isso esconde sua expressão naturalmente ameaçadora, De Niro transmite com precisão toda a melancolia daquele personagem deslocado, que parece sempre preso às memórias do passado e torna quase palpável seu incômodo por ter provocado a morte dos amigos, o que acaba aproximando um pouco aquele homem sofrido do espectador, por mais cruéis que sejam algumas de suas atitudes.

DistanciamentoPersonagem deslocadoPreso às memórias do passadoÉ interessante notar ainda como Noodles parece seguir um curioso e indecifrável código de ética, irritando-se com certas atitudes dos amigos – como o envolvimento com o perigoso Frankie – ao mesmo tempo em que tolera outras ainda piores. Mas talvez a sequência que melhor sintetize sua instável personalidade seja o jantar romântico com Deborah, onde ele consegue ser ao mesmo tempo encantador (durante o jantar) e repugnante (no chocante estupro no carro). Esta relação dolorosamente conturbada ecoa até na velhice, quando tanto De Niro quanto McGovern demonstram com competência a dor dos personagens ao constatarem a impossibilidade de ficarem juntos – e aqui vale destacar a ótima maquiagem que transforma De Niro de maneira convincente, assim como acontece com Woods e outros nomes importantes do elenco.

Jantar românticoChocante estuproMaquiagemJames Woods também está bem seguro e ameaçador como o adulto Max, demonstrando a evolução da ganância de seu personagem em seu olhar cada vez mais confiante, chegando ao auge na cena em que se orgulha de ter comprado um trono – e a reação de Noodles neste instante é sensacional por dizer muito sem precisar de palavras. Talvez por isso, Noodles não demonstra raiva e não aceita atirar nele quando descobre sua traição, demonstrando em seu semblante apenas um sentimento: decepção. “É o meu jeito de ver as coisas”, diz, antes de afirmar que, de qualquer forma, ele perdeu um grande amigo naquela trágica noite. Chega a doer. E finalmente, a citada Elizabeth McGovern confere charme e mistério à bela Deborah, enquanto Tuesday Weld se destaca especialmente na cena em que Carol tenta convencer Noodles a tirar a ideia do assalto ao banco da cabeça de Max, ciente de que esta atitude poderia levar ao fim do grupo.

Seguro e ameaçadorTronoCarol tenta convencer NoodlesNo fim das contas, “Era uma vez na América” é muito mais do que um filme sobre gângsteres. É um filme sobre memórias, que traz em cada fotograma um retrato perfeito da nostalgia, personificado no rosto sofrido e emblemático do personagem vivido por Robert De Niro. Seu sorriso no plano derradeiro levanta até mesmo a curiosa possibilidade de ele ter sonhado em certas passagens (não à toa ele surge fumando ópio no início), reforçada pela atmosfera onírica de algumas cenas e pelo som do telefone tocando durante toda a cena do crime, que transmite com exatidão sua sensação de desorientação. Amargurado por ter provocado a morte dos amigos de infância, ele teria imaginado certos acontecimentos (como o suposto romance entre Max e Deborah e o misterioso destino do amigo na famosa cena do caminhão de lixo), talvez buscando amenizar sua dor. Mas Leone jamais deixa claro se estas passagens são sonhos ou memórias, o que torna tudo ainda mais interessante.

Sorriso no plano derradeiroFumando ópioCena do caminhão de lixoApresentando as lembranças de um homem consumido pela culpa de maneira tocante, Leone mergulha em sentimentos profundamente humanos ao mesmo tempo em que nos apresenta parte da construção da história norte-americana, que viria a se tornar a nação economicamente mais poderosa do mundo durante o período em que a narrativa se passa. Por isso, a versão completa de “Era uma vez na América” é um filme memorável, repleto de imagens belíssimas e cenas marcantes, que justifica cada minuto investido pelo espectador nesta verdadeira experiência cinematográfica.

Era uma vez na América foto 2Texto publicado em 12 de Fevereiro de 2013 por Roberto Siqueira