(A Perfect World)
Videoteca do Beto #97
Dirigido por Clint Eastwood.
Elenco: Kevin Costner, Clint Eastwood, Laura Dern, T.J. Lowther, Keith Szarabajka, Leo Burmester, Paul Hewitt, Bradley Whitford, Ray McKinnon, Jennifer Griffin, Leslie Flowers, Belinda Flowers e Darryl Cox.
Roteiro: John Lee Hancock.
Produção: Clint Eastwood, Mark Johnson e David Valdes.
[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].
Depois de ressuscitarem o western e arrebatarem 2 Oscar de melhor filme num período de apenas 3 anos, Clint Eastwood e Kevin Costner decidiram se juntar neste belo “Um Mundo Perfeito”, um drama comovente sobre a amizade entre um seqüestrador e sua vítima, um garoto de apenas 8 anos de idade. Aliás, o longa faz mais do que isso, analisando com cuidado os problemas provocados pela falta da figura paterna e os traumas que o meio em que somos criados podem deixar em nossas vidas, seja este um bordel ou um lar de rígida criação religiosa.
Nos anos 60, Butch Haynes (Kevin Costner) foge de uma prisão no Texas junto com Terry Pugh (Keith Szarabajka). No caminho, eles acabam invadindo uma casa e acordando toda a vizinhança com o barulho, o que força a dupla a levar o menino Phillip (T.J. Lowther), de apenas 8 anos de idade, como refém. Tem inicio então uma verdadeira caçada, liderada pelo Texas Ranger Red Garnett (Clint Eastwood) e pela inteligente Sally Gerber (Laura Dern). Mas o que ninguém imaginava acontece e, durante a fuga, Butch e Phillip acabam se tornando amigos.
Poucas situações devem ser tão desesperadoras quanto o seqüestro de um filho. E este terrível crime é o ponto de partida deste “Um Mundo Perfeito”, que, curiosamente, praticamente não mostra o sofrimento da mãe desesperada do garoto Phillip, a não ser pelo breve zoom que destaca, por alguns segundos, sua aflita feição ao ver o carro levando seu menino. Escrito por John Lee Hancock, o roteiro aborda, na maior parte do tempo, o relacionamento que nasce desta situação, entre o criminoso Butch e o menino seqüestrado. Em certo momento, a personagem Sally diz que “num mundo perfeito, estas coisas não aconteceriam”, e é justamente aí que reside a mensagem principal da narrativa. O mundo não é perfeito, as pessoas não são perfeitas e, por isso, é difícil rotular alguém como “bom” ou “mau” e definir o que é certo e errado.
Tecnicamente, “Um Mundo Perfeito” é discreto e eficiente, como podemos notar na fotografia de Jack N. Green, que explora bem a beleza das paisagens que cercam as estradas, auxiliando Eastwood a criar belos planos, mas evita usar cores muito alegres, refletindo o tom melancólico da narrativa. Além disso, Green cria um visual sombrio tanto na cena da fuga como no momento do seqüestro, o que soa correto, dado a tensão destes dois momentos. Já a direção de arte de Jack G. Taylor Jr. colabora na ambientação aos anos 60, com os carros de época e a arquitetura das casas, e a trilha sonora de Lennie Niehaus alterna momentos de pura melancolia com outros mais empolgantes, refletindo o estado de espírito da dupla Butch e Phillip, além de rechear a narrativa com belas canções dos anos 60, como na linda cena em que Butch fala sobre o pai de Phillip e sobre o próprio pai (“Nossos velhos não valem nada”), deixando claro que ambos sentiam falta da figura paterna.


Com a costumeira segurança e eficiência, Eastwood conduz a narrativa de maneira envolvente, graças também a montagem de Joel Cox e Ron Spang, que alterna num ritmo delicioso entre as seqüências que mostram a fuga de Butch e Phillip e as que focam na perseguição conduzida por Red, sabendo dar prioridade a linha narrativa principal, claramente mais interessante que aquela envolvendo os conflitos entre Red e Sally. Além disso, o diretor mostra a costumeira elegância na construção de momentos belíssimos, como a cena de abertura, em que Butch, deitado na grama, olha para o céu, com a máscara do gasparzinho jogada ao seu lado, dinheiro voando e o som do helicóptero ao fundo – este início misterioso será perfeitamente compreendido no emblemático final de “Um Mundo Perfeito”. O diretor sabe ainda quando sair do costumeiro estilo clássico e contemplativo, empregando movimentos de câmera diferenciados, como o plano subjetivo que nos coloca sob o ponto de vista de Pugh enquanto ele observa a mãe de Phillip, segundos antes de ele invadir a casa, ou através da câmera que sacoleja durante a perseguição em que Butch despista os policiais, além de acertar a mão nas cenas mais tensas do longa, como o seqüestro de Phillip, que só ocorre após a chegada de um vizinho, ou a tensa fuga da loja “Friendly’s”, com a policia cercando Butch com dois carros e Phillip esperando na porta da loja, com a fantasia de gasparzinho escondida sob a blusa. Repare ainda que, nesta cena, Eastwood destaca o rosto de Phillip através de um zoom, evidenciando o momento em que ele decide ir com Butch, vencendo um conflito interno provocado pela forte criação religiosa, como ficaria evidente mais pra frente, quando ele diz pra Butch que iria para a cadeia e para o inferno por roubar a fantasia. Aliás, é exatamente nestes momentos que exigem sensibilidade que o trabalho de Clint tem maior destaque, conduzindo as cenas com perfeição, como quando o garoto Phillip, triste por não poder participar do Halloween, fica olhando para a rua, enquanto os outros garotos da sua idade se divertem e jogam frutas no vidro da janela dele. Finalmente, o diretor mostra ainda versatilidade e balanceia a pesada narrativa com pequenos momentos de alivio cômico, como quando Phillip faz xixi enquanto Butch rouba um carro ou quando ele solta o freio do carro numa ladeira, além do engraçado momento em que o governador se gaba do novo veículo para a imprensa e, no plano seguinte, vemos os policiais a pé e o veículo batido nas árvores.





Além de saber o que fazer com a câmera, Eastwood também consegue extrair excelentes atuações de todo elenco, a começar por Keith Szarabajka, que se sai bem como Pugh, especialmente na cena que conversa com Phillip enquanto o garoto aponta uma arma pra ele. Já Laura Dern se sai muito bem quando Sally confronta Red no carro, tentando pensar estrategicamente e não apenas seguir os instintos policiais, além de se destacar quando a personagem fala como se fosse Butch, tentando pensar como ele, o que funciona também como forma de apresentar o passado difícil do criminoso ao espectador. Com seu estilo pratico de resolver os problemas e o chapéu de “durão”, o Red de Eastwood parece mesmo estar numa caçada, algo reforçado pelo constante uso do termo “man hunt” (algo como “caçada humana”). Eastwood também se sai bem na cena em que Red ameaça um federal por mexer com Sally, mostrando autoridade e soando convincente. Aliás, a dupla Eastwood e Dern também se destaca na sincera conversa sobre o passado de Butch, quando Red admite ter subornado um juiz para mandar o garoto ao reformatório e livrá-lo do pai criminoso, num dialogo que também funciona como uma crítica a estas instituições, que, em muitas vezes, acabam piorando o jovem ao invés de recuperá-lo.


Mas o grande destaque fica mesmo para a dupla vivida por Kevin Costner e T.J. Lowther. Convincente no papel de um criminoso fugitivo, Costner impõe respeito, por exemplo, nas discussões com Pugh, como quando “explica” pra ele a diferença entre ameaça e fato. Só que, curiosamente, mesmo sendo um bandido e mostrando que é perigoso ao matar o parceiro de fuga, o espectador acaba simpatizando por Butch, talvez pelo carisma de Kevin Costner, mas também por causa da maneira afetiva que o ladrão trata o garoto Phillip. Por exemplo, logo após matar Pugh, Butch não obriga o garoto a vir com ele, perguntando se ele prefere ficar. A resposta do garoto marca o inicio de uma relação praticamente de “pai e filho”, que duraria somente alguns dias, mas marcaria a vida dele eternamente. Obviamente, a empatia entre Costner e o garoto Lowther é essencial para o sucesso da narrativa e a dupla se sai muito bem. Aliás, Lowther tem uma ótima atuação, misturando a inocência da criança e a curiosidade de alguém que sente falta não apenas da figura paterna, mas de poder fazer o que as outras crianças de sua idade fazem. Para ele, Butch representa o pai que tanto lhe faz falta, permitindo ao garoto fazer coisas que ele sempre sonhou, como tomar refrigerantes à vontade, brincar de “montanha russa” em cima do carro, comer doces e dirigir um carro. Aliás, o próprio Butch sabe a falta que um pai faz, como fica evidente quando ele revela a razão da escolha do Alasca como destino de sua viagem. Juntos, eles vivem momentos que só um pai vive com um filho, como quando Butch diz que o pênis de Phillip tem um bom tamanho pra idade dele e o garoto abre um largo sorriso no rosto. Esta relação amigável e sincera nos leva a emblemática cena em que o criminoso para na beira da estrada e encosta no carro, sendo imitado por Phillip em seguida. O garoto já tinha desenvolvido uma enorme admiração por ele. Esta admiração se transforma em carinho de verdade quando ele diz que não pode brincar de “travessuras e gostosuras” por causa da religião, provocando a revolta de Butch (e Eastwood diminui o garoto no plano nesta cena, mostrando seu sentimento de inferioridade por causa disto). O criminoso pergunta se ele quer brincar e ele aceita, ficando tão feliz que chega a pegar na mão do bandido enquanto caminha em direção a casa. E apesar de resistir inicialmente, Butch acaba pegando na mão do garoto. Os dois chegam inclusive a viver um pequeno conflito, quando Phillip vê Butch transando com uma atendente num bar, que resulta numa interessante conversa entre eles. E após rirem do episódio, Butch pede para que Phillip faça uma lista de desejos, num momento tocante. Em pouco tempo, Butch ensinou mais sobre a vida para o garoto do que os pais haviam feito até então.





Só que ao contrário do que indica o nome do filme, o mundo não é perfeito. E, obviamente, Butch também não é. E começamos a ter indícios de seu comportamento violento quando ele fica muito bravo ao ver uma mãe maltratando suas crianças (algo que Costner demonstra com o semblante), revelando um lado de sua personalidade que seria vital no clímax da narrativa. E apesar de admirar uma pessoa controlada, como deixa claro ao elogiar Bob por não reagir ao roubo do carro, protegendo a família (“Este é o melhor tipo de pessoa que um homem pode ser”, afirma), ele não conseguirá se controlar ao ver outra criança apanhando. Justamente por isso, a cena na casa do caseiro é essencial para compreender a ambígua personalidade de Butch. Seu lado mais violento vem à tona quando vê pela segunda vez o dono da casa batendo no filho (repare a expressão de ódio de Costner, que explode em cena). Numa síntese de todo o filme, a cena é dominada pelo clima tenso e, ao mesmo tempo, comovente, quando Butch, pacientemente, amarra toda a família para executar o pai, sob o som da música que, momentos antes, embalava a dança suave de todos eles. Neste momento, o espectador se questiona se aquele é o mesmo homem que vimos ensinando tantas coisas legais para Phillip e a resposta vem no diálogo entre ele e a mulher da casa, que afirma que Butch é um homem bom. Sua resposta é emblemática: “Não sou um homem bom, mas também não sou o pior deles”. O trauma da infância fez com que Butch sentisse ódio ao ver um pai agredindo o filho e ele perde os limites, despertando seus piores instintos. Mas, surpreendentemente, Phillip, chorando muito, atira nele e joga a arma num poço, salvando a família.


Somos levados então ao comovente final de “Um Mundo Perfeito”, com Butch negociando com a mãe de Phillip, pedindo que ela prometa deixar o garoto fazer tudo que gosta. E é difícil segurar as lágrimas ao ver o garoto abraçar emocionado seu seqüestrador antes de partir, de mãos dadas com ele, em direção a polícia. Mas estamos falando de um filme dirigido por Clint Eastwood e, por isso, o final ainda nos reserva um momento dramático, que deixará o espectador perturbado e questionando muita coisa. Os policiais, sem saber que Butch estava desarmado, se preparam para evitar uma tragédia e, por isso, quando ele coloca a mão no bolso, atiram nele. Só que o espectador já sabe que ele está desarmado, e sente, assim como Red e Sally, um gosto amargo na boca ao ver aquele desfecho trágico, em que ninguém pode ser culpado (apesar das agressões ao federal que não obedeceu à ordem de Red). Enquanto o garoto chora e clama por seu amigo, pensamos o quanto a vida pode ser injusta.


Clint Eastwood acerta novamente neste belíssimo “Um Mundo Perfeito”, um drama humano, que comove não apenas pela relação desenvolvida por Butch e Phillip, mas por nos fazer questionar até que ponto nós podemos julgar as pessoas tão superficialmente, sem compreendê-las em toda sua complexidade. Após passar por tudo aquilo e ver o garoto comovido com a morte de seu seqüestrador, Red afirma: “Eu não sei de nada”. Nós também não.
Texto publicado em 15 de Maio de 2011 por Roberto Siqueira
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