O HOMEM QUE MATOU O FACÍNORA (1962)

(The Man Who Shot Liberty Valance)

 

Filmes em Geral #72

Dirigido por John Ford.

Elenco: John Wayne, James Stewart, Vera Miles, Lee Marvin, Edmond O’Brien, Andy Devine, Ken Murray, John Carradine, Jeanette Nolan, Denver Pyle, John Qualen, Woody Strode e Lee Van Cleef.

Roteiro: James Warner Bellah e Willis Goldbeck, baseado em história de Dorothy M. Johnson.

Produção: John Ford e Willis Goldbeck.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Apesar do sucesso de seus dramas, John Ford se notabilizou por dirigir westerns clássicos, explorando com maestria belas paisagens para criar um visual esplêndido. Não é o caso de “O homem que matou o facínora”. Apesar de utilizar algumas das características marcantes do gênero, o longa foge bastante do estilo tradicional do faroeste, apresentando uma narrativa melancólica, ambientes fechados, personagens ambíguos e uma série de simbolismos que ilustram o fim de uma era. Contando ainda com um ótimo elenco, trata-se de um filme sóbrio e triste, um verdadeiro canto do cisne do gênero preferido do diretor.

O senador Ransom Stoddard (James Stewart) e sua esposa Hallie (Vera Miles) chegam numa pequena cidade para o funeral de um amigo. Interessado pela ilustre visita, um repórter decide entrevistar o senador e descobre que Tom Doniphon, o amigo morto e hoje desconhecido, acolhera o senador na cidade há muitos anos. Recém formado em advocacia na época em que chegou ao local, Stoddard tentava deter um terrível pistoleiro chamado Liberty Valance (Lee Marvin) por meio da lei, enquanto Tom acreditava em sua arma. Apesar das diferentes formas de pensar, eles se respeitavam e ainda compartilhavam o amor por Hallie, na época a garçonete do saloon.

Escrito por James Warner Bellah e Willis Goldbeck, baseado em história de Dorothy M. Johnson, “O homem que matou o facínora” utiliza um longo flashback para contar a história da chegada do hoje senador Ransom Stoddard ao oeste, uma terra dominada por uma lei própria, onde a justiça era feita pelas próprias mãos. Naquele ambiente hostil, o culto Stoddard descobre rapidamente que tudo que ele estudou tinha pouco valor, após ser roubado e espancado por um grupo de bandidos, liderados pelo temido Liberty Valance. E é justamente a trajetória de mudança deste personagem, amparada por outro personagem ainda mais fascinante, que acompanharemos durante a narrativa. Stoddard simboliza a chegada do progresso num local onde a única lei que era respeitada era a “lei das armas”, simbolizada pelos antagonistas Tom e Liberty. Ele será transformado por aquele ambiente hostil, mas também trará mudanças irreversíveis ao local.

Como de costume, a direção de Ford é sóbria e discreta, jamais chamando a atenção a não ser em alguns momentos em que o zoom realça as reações dos personagens. Desta vez (até por limitações financeiras impostas pela Paramount), o diretor foca as ações em ambientes fechados, valorizando o trabalho de direção de arte de Eddie Imazu e Hal Pereira em detrimento das paisagens que ele normalmente utilizava em seus filmes, que aqui surgem somente no treinamento de Stoddard. A arquitetura da cidade segue o tradicional do oeste, com o saloon, as casas de madeira e as diligências que aguardam seus passageiros para cruzar as estradas poeirentas. Também por imposição dos estúdios, a direção de fotografia de William H. Clothier é discreta, limitando-se a criar um visual mais claro que explora o contraste entre o preto e o branco através da iluminação destes ambientes fechados.

Quem segue o estilo tradicional do western são os personagens secundários, com o xerife medroso (Andy Devine), o jornalista sem escrúpulos e o médico bêbado marcando presença na narrativa. Entre estes personagens secundários, vale destacar dois atores que participariam dos famosos westerns spaghetti de Sergio Leone: Lee Van Cleef, que vive um dos comparsas de Liberty chamado Reese, e Woody Strode, que interpreta Pompey, o ajudante de Tom. John Carradine também integra o elenco como o major Cassius Starbuckle e Lee Marvin cria um temível vilão na pele de Liberty Valance. Mas, entre todos eles, o destaque fica mesmo para Vera Miles, que vive Hallie, a garçonete disputada por Tom e Stoddard no passado, agora casada com o senador – e o pouco convincente envelhecimento de Stewart e Miles no presente é um problema pequeno demais para comprometer uma obra tão madura.

Demonstrando interesse por Stoddard logo de cara, a Hallie de Miles oscila entre a alegria ao lado do jovem advogado e os momentos em que fica brava, como quando o xerife chega ao saloon pedindo comida. A atriz ainda demonstra com competência a emoção de Hallie ao voltar ao local, com os olhos marejados e um semblante abatido, reforçados pela trilha sonora melancólica que embala o momento em que ela vê uma velha casa, indicando a importância daquele local (e de quem viveu nele) em sua vida. Esta mesma trilha triste acompanhará o momento em que Hallie vê o caixão que guarda o corpo do amigo Tom, num momento tocante e universal. Afinal, todos nós sabemos (ou infelizmente saberemos) como é doloroso ver uma pessoa querida daquela forma, já sem vida, apenas esperando que seus restos mortais sejam enterrados enquanto os momentos vividos se eternizam na memória dos que ficam. São estas memórias que guiam a narrativa de “O homem que matou o facínora”.

Este importante homem é Tom Doniphon, interpretado por John Wayne, que naturalmente impõe respeito com seu porte físico e olhar ameaçador. Sempre gentil com as mulheres, especialmente com sua paixão Hallie, Tom é o típico homem do oeste, que confia muito mais em seu revólver do que na lei e na ordem. Fruto daquele ambiente hostil, ele adverte o advogado Stoddard sobre os perigos que corre ali (“Estes livros de direito valem muito pra você, mas aqui não valem nada”, afirma). E apesar do jeito grosseiro, o tempo se encarregará de mostrar o grande homem que ele é. Quem descobrirá isto é o advogado Stoddard de James Stewart, que cai bem no papel do homem intelectual e notoriamente mais frágil que aqueles que habitam o oeste. Carismático, o ator conquista o espectador ao longo da narrativa, ainda que demore a se adaptar ao ambiente em que estava inserido. Entre os principais momentos de sua atuação, vale destacar a alegria genuína quando ouve Hallie dizer que quer aprender a ler. E apesar de derrubar o ritmo da narrativa por um instante, a aula serve para criar empatia entre Stoddard e a platéia, ao mostrar aquele homem dedicado tentando mudar uma sociedade naturalmente arredia aos estudos (até pela falta de acesso). No fundo, Tom e Stoddard também simbolizam o conflito entre a força física e o intelecto.

E será a força física que salvará o intelecto, primeiro na chegada dos bandidos ao restaurante, onde o silêncio que predomina na cena só amplia a tensão – repare como o zoom realça o rosto assustado de Hallie. Quando Liberty derruba Stoddard e, junto com ele, o bife de Tom, Wayne surge ameaçador e se agiganta na tela, colocando o bandido pra correr do local, numa das melhores cenas do filme. Após este momento, Stoddard vive o conflito entre cumprir a lei e fazer justiça com as próprias mãos – e um plano simbólico em que ele apaga do quadro a frase “a educação é a base para a lei e a ordem” começa a indicar sua mudança de comportamento. Mudança que só se consolida após o divertido treinamento em que ele dá um soco em Tom (que leva numa boa) e, principalmente, após ver a morte do amigo jornalista, brutalmente espancado por Liberty. Conforme ele fora avisado, sua placa na entrada do jornal havia sido destruída pelo temível bandido e ele agora estava decidido a enfrentá-lo.

A fotografia sombria amplia a angustia do espectador enquanto Stoddard aguarda Liberty na rua para o duelo. E ele vence, atirando no vilão a queima roupa, pra surpresa geral. Teria mesmo Stoddard mudado seus conceitos? Momentos depois, Tom aparece na cidade, se embebeda e queima a própria casa (num grande momento de Wayne), indicando sua desilusão amorosa ao ver Hallie nos braços do advogado. Chegamos até mesmo a pensar que ele saiu da cidade na esperança de que Liberty mataria Stoddard, mas suas ações prévias (como o treinamento) não indicavam isto. Chegam às eleições e com elas o nojento jogo político, evidenciado quando um dos candidatos usa o “crime” de Stoddard contra ele. E então o grande momento de “O homem que matou o facínora” surge, quando Tom confessa a autoria do crime para Stoddard e prova seu altruísmo, num flashback dentro do flashback que surge através da fumaça expelida pela boca dele (um momento belíssimo, aliás). Somos levados novamente à cena do crime, desta vez sob outro ponto de vista que revelará a verdade. Tom salvou Stoddard e saiu sem deixar rastros. Ainda assim, sofreu bastante por não ter Hallie, como deixa claro na frase “devia não ter salvado você, Hallie agora é sua”, mas sua atitude só comprova seu caráter. Ele abriu mão da fama (afinal de contas, matou o pior bandido da região) e da mulher que ama e só revelou que salvou Stoddard para que este não desistisse de sua candidatura. “Ambíguo” é pouco para um personagem como este. A importância do papel da imprensa na criação de mitos também entra em cena aqui. Ao contrário da lenda criada, foi Tom, e não Stoddard, quem matou o facínora. Mas, como diz um repórter na frase mais famosa do filme, “quando a lenda é mais famosa que a realidade, imprima-se a lenda”.

Western diferente e até mesmo pessimista, “O homem que matou o facínora” faz um excelente estudo sobre o fim de uma era, abordando temas importantes como a passagem do tempo, a criação de mitos, as formas de combater a violência e o papel da imprensa. Além disso, apresenta dois personagens ambíguos e fascinantes. Enquanto Tom se manteve fiel aos seus princípios, Stoddard se viu obrigado a rever seus conceitos e se adaptar ao cenário em que estava inserido, ainda que de certa forma tenha colaborado para mudar o local. Carregou consigo uma fama que ele sabia não merecer, mas que tinha grande importância na formação de sua imagem pública. Mas tanto ele quanto Hallie sabiam quem foi o homem que matou o facínora.

Texto publicado em 12 de Agosto de 2011 por Roberto Siqueira

TRÊS HOMENS EM CONFLITO (1966)

(Il Buono, Il Brutto, Il Cattivo) 

5 Estrelas 

Videoteca do Beto #4

Dirigido por Sergio Leone.

Elenco: Clint Eastwood, Lee Van Cleef, Eli Wallach, Aldo Giuffrè, Mario Brega, Luigi Pistilli, Rada Rassimov, Antonio Casale, John Bartho, Angelo Novi e Antonio Casas. 

Roteiro: Agenore Incrocci, Sergio Leone, Furio Scarpelli e Luciano Vincenzoni. 

Produção: Alberto Grimaldi. 

Três Homens em Conflito é o ponto alto da parceria entre o diretor italiano Sérgio Leone e o hoje astro de Holywood Clint Eastwood. Pouco conhecidos na época, conseguiram alcançar o sucesso através da trilogia dos dólares, que marcou o western para sempre e simbolizou uma época onde o estilo Western Spaghetti ficou conhecido. Depois de “Por um punhado de dólares” e “Por uns dólares a mais”, a dupla alcançou seu melhor resultado em “Três homens em conflito” e brindou o cinema com uma obra que atravessa gerações graças à extraordinária qualidade que têm.

Já na apresentação dos créditos podemos perceber a originalidade de Leone através da montagem de imagens acompanhada da maravilhosa trilha de Ennio Morricone. O filme narra à estória de Tuco Benedito Pacifico Juan Maria Ramirez (isso tudo mesmo!), apelidado de “O Feio” (Eli Wallach), Angel Eyes Sentenza, apelidado de “O Mau” (Lee Van Cleef) e Blondie, apelidado de “O Bom” (Clint Eastwood). Estes três homens atravessam o velho oeste em meio a Guerra Civil americana à procura de 200 mil dólares que foram roubados. A introdução do filme e dos personagens é absolutamente perfeita. Na primeira delas, sem utilizar nenhuma palavra, o diretor cria um clima absurdamente tenso e demonstra com as imagens o quão perigoso é “O Feio”. Na introdução de “O Mau”, ele também cria este mesmo clima de tensão, e quando as primeiras palavras são ditas no filme, já sabemos o que está para acontecer. “O Bom” tem uma introdução de personagem mais bem humorada, e que ao mesmo tempo, serve para demonstrar a habilidade do personagem com a arma e um traço importante de sua personalidade: a esperteza.

A montagem de Eugenio Alabiso e Nino Baragli ajuda a manter a narrativa dos três personagens igualmente interessante, apesar de nos identificarmos mais com “O Bom”, talvez influenciados pela introdução deste personagem, onde ele é apresentado como o menos cruel dos três. Os bons diálogos do roteiro que Leone ajudou a escrever também merecem destaque, como a conversa entre dois personagens sobre as porcentagens que cada um merecia na parceria que tinham e outra conversa entre estes mesmos personagens em um quarto do Hotel sobre cinturões e esporas. O roteiro cruza os caminhos dos três personagens em diversos momentos da narrativa de forma inteligente e jamais cansativa, mantendo o espectador sempre atento ao que acontece. Também utiliza alguns artifícios como um diálogo expositivo entre “O Feio” e seu irmão padre (Luigi Pistilli), mas o truque é utilizado de forma inteligente, já que o conflito é bastante verossímil. Além disso, algumas frases são verdadeiras pérolas como o momento em que “O Feio” diz: “Na hora de atirar atire, não fale”. Leone também cria momentos de alívio cômico interessantes, como a bem humorada e muito inteligente cena com o exército azul empoeirado e parecendo cinza.

A atuação de Clint Eastwood é minimalista, com poucas mudanças de feição. O ator não expressa muitas emoções, o que cai bem no personagem frio e calculista que é “O Bom”. Um dos momentos de inspiração de Clint é quando “O Feio” pede que ele coloque a cabeça na corda e ele move a sobrancelha levemente, como quem está pensando “Fazer o que…”. Bem humorado. Interessante como seu personagem utiliza inteligentemente a seu favor o fato de ser o único que sabe algo extremamente importante na trama, permitindo-lhe trocar de parceria à qualquer momento, já que ele sabe que é o mais importante do trio. Já Lee Van Cleef tem uma atuação mais exagerada como “O Mau”, usando caras e bocas em diversos momentos da trama como na cena em que o personagem aparece pela primeira vez, o que acaba fazendo um contraponto interessante para a fria atuação de Clint. Mas é Eli Wallach quem consegue maior destaque entre os três personagens. Seu “Feio” é ao mesmo tempo ameaçador e ingênuo. Por diversas vezes sentimos pena dele e em outras tantas vezes sentimos raiva. Wallach consegue transmitir a personalidade insegura e ao mesmo tempo gananciosa do personagem em diversos momentos, como no momento em que ele é salvo pela primeira vez por seu comparsa. O sorriso misturado com tensão fica claro no rosto de Wallach, muito bem captado pela câmera próxima de Leone.

Também impressionante é o excelente trabalho de Ennio Morricone. A trilha sonora de Três Homens em Conflito é sensacional, com toda cara do velho oeste. Os assovios e os gritos que ouvimos em sua melodia principal se encaixam perfeitamente na melancólica e assustadora visão do velho oeste proposta por Leone. Ao longo de toda projeção somos presenteados com belíssimas melodias, além da maravilhosa música instrumental “The Ecstasy of Gold”, executada na íntegra em um momento chave e extremamente belo do filme. O trabalho de figurino e direção de arte também é competente, situando-nos na época com roupas bem características do velho oeste americano, além da excepcional maquiagem em certo momento da trama, onde um personagem está praticamente desfigurado por caminhar muitos dias sob o sol. A Fotografia de Tonino Delli Colli destaca as cores marrom, cinza, bege e em poucos momentos o azul escuro, demonstrando a aridez do velho oeste. Também demonstra visualmente o mundo seco, de pessoas com corações frios onde viviam os personagens.

Mas o grande destaque do filme é, sem dúvida nenhuma, a aula de direção dada por Sérgio Leone. O diretor italiano tem controle total do filme e demonstra como cada plano é cuidadosamente planejado. Observe por exemplo o talento de Leone ao criar planos e composições extremamente belas, muitas vezes utilizando somente as imagens para passar sentimentos ao espectador. Ele sabe cadenciar perfeitamente a alternância entre estes planos amplos com os closes, utilizados para acentuar o traço surrado daqueles personagens queimados pelo sol. Estes closes também demonstram a frieza com que eles encaram momentos extremamente tensos, como os duelos armados. O filme todo é recheado de momentos bem orquestrados, uma verdadeira coleção de cenas absolutamente perfeitas. Para citar algumas, repare a composição visual da cena do trem cortando a corrente presa a um determinado personagem, a tensa cena da invasão de um quarto de Hotel, a já citada cena acompanhada da música “The Ecstasy of Gold”, a explosão da ponte e o ataque aos comparsas de “O Mau”. São momentos de puro cinema, com imagens belíssimas e cheias de estilo, narrando uma trama inteligente diante de nossos olhos.

[se você ainda não viu o filme, pule este parágrafo] Entre todas as lindas cenas, a que merece maior destaque é a sensacional cena final do duelo anunciado entre os três personagens. O momento tão esperado mais parece um balé extremamente bem orquestrado por Leone, com movimentos de câmera sensacionais, cortes perfeitos, closes espetaculares e um crescente clima de tensão que aumenta ainda mais com a ótima trilha sonora, criando uma cena incrivelmente bela e inesquecível. Somente esta cena já serviria de referência para o belíssimo trabalho de um diretor extremamente inteligente e competente que podemos testemunhar neste filme.

Representante maior do estilo Western Spaghetti, Três Homens em Conflito encanta pela quantidade enorme de cenas esplendidamente bem filmadas, explorando todo o potencial das paisagens do velho oeste e extraindo o máximo da trama criada, demonstrando toda a competência de Sergio Leone como diretor. Mesmo muitos anos depois de seu lançamento, ainda se mantêm como um dos maiores westerns já lançados no cinema. Com cenas inesquecíveis, momentos de extrema tensão e imagens belíssimas, o filme consegue criar empatia com o espectador e mantê-lo sempre interessado na narrativa, de uma forma absolutamente competente e imperdível.

 

Texto publicado em 02 de Julho de 2009 por Roberto Siqueira