THE DOORS (1991)

(The Doors)

3 Estrelas 

Filmes em Geral #108

Dirigido por Oliver Stone.

Elenco: Val Kilmer, Meg Ryan, Kyle MacLachlan, Frank Whaley, Kevin Dillon, Kathleen Quinlan, Michael Wincott, Michael Madsen, Billy Idol, Sean Stone, Wes Studi, Kelly Hu, Mimi Rogers, Jennifer Rubin e Crispin Glover.

Roteiro: Randall Jahnson e Oliver Stone.

Produção: Bill Graham, Sasha Harari e A. Kitman Ho.

The Doors[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Dizem que Val Kilmer precisou de alguns meses para se recuperar psicologicamente após viver o lendário Jim Morrison neste interessante “The Doors”, biografia de um dos maiores frontman da história do rock dirigida pelo polêmico e competente Oliver Stone. Verdade ou não, o fato é que o ator se entregou de corpo e alma numa atuação de encher os olhos, que salta da tela e faz os fãs vibrarem enquanto acompanham a trajetória do ídolo sendo retratada na telona. No entanto, Stone não ousou ir além e entregou um filme que retrata Morrison apenas sob este prisma de ídolo, sem jamais se aprofundar na pessoa existente debaixo daquela capa. O resultado é um filme que agrada em cheio aos fãs de The Doors (como eu), mas que deixa a sensação de que faltou alguma coisa para aqueles que estavam interessados em conhecer um pouco mais do ícone (também como eu).

Trazendo a básica trajetória de ascensão e decadência de um astro do rock, o roteiro de Randall Jahnson e do próprio Oliver Stone narra a vida de Jim Morrison (Val Kilmer) desde a criação da lendária banda The Doors ao lado de Ray Manzarek (Kyle MacLachlan), Robby Krieger (Frank Whaley) e John Densmore (Kevin Dillon), passando pelo enorme sucesso, pelo relacionamento com Pamela Courson (Meg Ryan), pelo uso compulsivo de drogas e álcool e chegando a decadência que levaria o vocalista a morte precoce ainda aos 27 anos de idade.

O tom escolhido por Stone para levar a trajetória da banda às telonas fica evidente logo no início, quando o vocalista pergunta para a plateia se “estão todos aí”, como na abertura de um show. A partir de então, o que temos é um verdadeiro presente para os fãs que, justamente por se preocupar demais em agradá-los, acaba pecando um pouco pela falta de ousadia.

Tecnicamente, “The Doors” tem muitos acertos. A reconstituição dos anos 60, por exemplo, é excelente, graças aos carros antigos, a decoração dos bares e casas de show e as roupas e acessórios típicos da época como os óculos coloridos e as bandanas, o que é mérito do design de produção de Barbara Ling e dos figurinos de Marlene Stewart. Além disso, a câmera inquieta do diretor passeia pelas festas e apresentações com destreza, ilustrando a euforia das pessoas naqueles ambientes. Aliás, o grande mérito da direção de Stone é justamente captar o espírito livre da época e a energia dos shows da banda com incrível precisão, o que é ótimo para sugar o espectador pra dentro da narrativa.

Para isto, o diretor conta também com a ágil montagem de David Brenner e Joe Hutshing, que reflete a personalidade agitada do vocalista, mas peca pelo excesso ao prolongar demais a narrativa em certos momentos, tornando o filme um pouco arrastado e cansativo por alguns instantes. Ainda assim, os montadores merecem elogios por criarem transições elegantes como aquela em que saímos do olho do índio que atormenta Morrison para vê-lo cantando The End ao vivo em Los Angeles. E por falar nos shows, vale citar também o ótimo design de som, que cria a atmosfera perfeita nos permitindo ouvir com clareza os gritos da plateia, as conversas entre a banda e cada instrumento que é tocado no palco.

Como era de se esperar, a trilha sonora obviamente é deliciosa, recheada de clássicos da banda que nos fazem vibrar na poltrona durante a projeção. E não podemos negar que é muito empolgante acompanhar o processo de criação de clássicos eternos do rock como Light my Fire, assim como é muito interessante a maneira como Stone usa a câmera para nos colocar dentro das viagens de ácido deles, como na sequência do deserto, na qual sentimos as mesmas sensações alucinógenas dos integrantes do The Doors. O banquete para os fãs se complementa com as confusões no palco, as prisões por relatar um ataque da polícia e por insinuar mostrar a genitália em um show, as brigas de Morrison com Pam e com a banda e o uso abusivo de drogas e álcool. Neste sentido, não temos do que reclamar, está tudo lá. Até mesmo a origem do nome da banda é explicada, para o deleite dos fãs.

Decoração dos baresViagens de ácidoConfusões no palcoEsta abordagem respeitosa ao ícone se confirma através do visual do longa. Observe como a fotografia de Robert Richardson abusa de tons dourados que destacam cores como amarelo e laranja, realçando a imagem icônica do personagem – algo ainda mais intenso quando Stone emprega planos em ângulo baixo e contra a luz que buscam engrandecê-lo na tela, criando esta aura de ídolo tão desejada pelo diretor. Em outros momentos, Richardson abusa dos tons em vermelho, realçando a aura pecaminosa que normalmente é associada ao rock, especialmente quando acompanhamos os abusos do vocalista. Mas esta abordagem excessivamente respeitosa é também prejudicial (voltaremos a ela em instantes).

Entretanto, o grande destaque do longa é mesmo a atuação visceral de Val Kilmer. Caracterizado com enorme competência, o ator lembra bastante o verdadeiro Jim Morrison em vários momentos através do cabelo, das calças apertadas e de acessórios como os óculos pequenos e arredondados. Mas a força de sua atuação está mais na atitude do que na aparência, já que Kilmer encarna Morrison com muita intensidade, mostrando força no palco (o que é essencial, já que é justamente sua performance hipnótica no palco chama a atenção de uma gravadora e dá início ao sucesso avassalador da banda) e um comportamento excêntrico fora dele, causado pelo excesso de uso de drogas e álcool.

Ousado e criativo, Jim Morrison é uma verdadeira força da natureza, capaz de escrever a mais bela poesia e de estragar um almoço entre amigos com a mesma facilidade, num comportamento imprevisível que Kilmer demonstra muito bem em momentos interessantes como uma entrevista para a imprensa britânica, que evidencia a dualidade de sua mente genial e conturbada. Traumatizado por lembranças da infância que inspiraram a criação da canção Riders on the Storm, Morrison precisa se sentir admirado, como fica evidente nas noites de sexo com Patricia e Pam, mas a origem de seu trauma jamais fica muito clara, o que nos permite interpretar que aqueles índios eram apenas um símbolo dos demônios internos dele.

Vivendo ao seu lado, a carismática Meg Ryan compõe uma Pam alegre e espirituosa, mas que nem por isso deixa de ter suas crises provocadas pelos excessos da vida do casal – que, aliás, são responsáveis pelas brigas homéricas entre eles. Também obrigados a aguentar os excessos de seu frontman, os outros integrantes da banda são interpretados de maneira discreta por MacLachlan, Whaley e Dillon, enquanto Kathleen Quinlan se encarrega de dar vida à jornalista Patricia Kennealy, que rouba a atenção de Morrison por um período, e Michael Madsen diverte-se na pele do amigo do vocalista Tom Baker. Mas o fato é que todos empalidecem diante da presença marcante de Kilmer. Finalmente, vale citar a participação rápida do diretor Oliver Sonte como o professor de cinema da UCLA.

Tons douradosPerformance hipnóticaPam alegre e espirituosaAstro decadente e incapaz de enxergar isto, Jim Morrison para um show para ofender o público, cria o caos ao incitar a plateia contra a polícia e quase é preso novamente, mas ao começar um dos grandes hits da banda, a velha energia está lá, intacta, como acontece com as grandes bandas da história do rock – e Stone capta isto com precisão com sua câmera agitada que nos coloca no meio da multidão que pula ensandecida acompanhando Morrison pelo local. Neste terceiro ato, aliás, é impressionante notar também a transformação física de Val Kilmer, que passa do astro jovem e magro do início para o barrigudo e decadente vocalista do ato final.

Artista de alto nível, Jim Morrison foi um verdadeiro gênio, um dos grandes nomes da história da música, assim como o “The Doors” foi uma das bandas mais respeitáveis do rock, com sua discografia repleta de canções excepcionais. Mas isto todos nós já sabemos. A pergunta que fica ao final de “The Doors” é: e o homem? Quem foi verdadeiramente Jim Morrison? Quais eram seus anseios, suas angústias, suas dúvidas? As respostas que temos após mais de duas horas de projeção são muito poucas, o que deixa a sensação de que o longa foi dirigido por um fã, que não ousou desconstruir o mito e investigar a fundo o lado falho e humano do quase intocável ídolo do rock.

Mesmo assim, sua energia e a sensacional atuação de Val Kilmer são suficientes para agradar. Mas poderíamos ter recebido algo mais. E esta é uma sensação que nós jamais temos ao ouvir as músicas da banda e que, certamente, as pessoas jamais sentiam ao comparecer aos shows deles. Morrison e seus companheiros entregavam tudo no palco. Infelizmente, Stone não fez o mesmo.

The Doors foto 2Texto publicado em 10 de Setembro de 2013 por Roberto Siqueira

WALL STREET – PODER E COBIÇA (1987)

(Wall Street)

4 Estrelas 

Videoteca do Beto #162

Dirigido por Oliver Stone.

Elenco: Charlie Sheen, Michael Douglas, Martin Sheen, Daryl Hannah, Hal Holbrook, Sean Young, Franklin Cover, Chuck Pfeiffer, James Karen, John C. McGinley, James Spader, Terence Stamp e Leslie Lyles.

Roteiro: Stanley Weiser e Oliver Stone.

Produção: Edward R. Pressman.

Wall Street - Poder e Cobiça[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Tanto tematicamente quanto narrativamente, Oliver Stone nunca foi um diretor de sutilezas. Com seu estilo histriônico e sua maneira direta de se posicionar diante dos temas que escolhe como centro de suas narrativas, Stone rapidamente foi rotulado como um diretor polêmico, gerando simpatia e rejeição em proporções similares. No entanto, existem momentos em que este estilo agressivo casa perfeitamente com o tema abordado, como acontece nos ótimos “Platoon”, “Nascido em 4 de Julho”, “Assassinos por Natureza” e na obra-prima “JFK”. Ao decidir explorar o universo especulativo da bolsa de valores, Stone acertou mais uma vez em cheio e, ao lado de seu talentoso elenco, fez deste “Wall Street – Poder e Cobiça” um ótimo filme.

Escrito pelo próprio Stone ao lado de Stanley Weiser, “Wall Street – Poder e Cobiça” narra à trajetória do jovem corretor da bolsa de Nova York Bud Fox (Charlie Sheen), que encontra a grande chance de se destacar no ramo das ações quando obtém uma importante informação sobre a empresa aérea em que seu pai (Martin Sheen) trabalha e decide repassá-la ao bilionário Gordon Gekko (Michael Douglas), um homem que não mede esforços para fazer sua fortuna crescer através do competitivo mercado financeiro.

Apenas um ano após ser consagrado pela Academia com o Oscar por “Platoon”, Oliver Stone confirmava sua coragem ao abordar outro tema delicado e cutucar o coração financeiro dos EUA: Wall Street. Filho de um corretor da bolsa, Stone enxergava com preocupação as ações dos chamados “Mestres do Universo” (assim intitulados por Tom Wolve em seu livro “A Fogueira das Vaidades”), homens poderosos que manipulavam o mercado financeiro descaradamente, gerando sentimentos contraditórios no cidadão comum, que se via enojado diante da falta de princípios que regrava aquele mundo quase incompreensível e, ao mesmo tempo, fascinado diante de tanta autoconfiança e poder.

Para retratar este ambiente misterioso e nada ético, Stone e seu bom diretor de fotografia Robert Richardson exploram cores sem vida como cinza, azul marinho e preto, que ecoam também nos ternos impecáveis dos figurinos de Ellen Mirojnick, que, por sua vez, ganham ainda mais importância num mundo onde as aparências são tão valorizadas. Da mesma forma, observe o contraste entre o quase asséptico escritório novo de Bud e o caótico escritório em que ele trabalhava (design de produção de Stephen Hendrickson), apresentado num curto plano-sequência logo nos primeiros minutos de projeção que serve também para nos familiarizar com a hierarquia do local. Quanto maior a sala, mais importante é aquela pessoa na corporação. Por outro lado, ainda que tenha a cara dos anos 80, a trilha sonora de Stewart Copeland hoje soa datada e pouco contribui na construção desta atmosfera opressora, salvando-se apenas em momentos onde tem alguma função narrativa, como quando ilustra a preocupação de Bud ao indicar as ações da Bluestar para Gekko, demonstrando que ele sabia o risco que corria ao tomar aquela perigosa decisão.

Ternos impecáveisEscritório novoCaótico escritórioAuxiliado pela montagem dinâmica de Claire Simpson, Stone ainda reflete com precisão a atmosfera de urgência da bolsa de valores, empregando closes, dividindo a tela e agitando a câmera assim que o relógio anuncia a abertura do mercado. Observe ainda como os cortes rápidos ilustram a tensão do ambiente, chegando ao auge na empolgante sequência da venda das ações da Anacott Steel, que reflete a euforia de Bud diante daquela importante transação (vale notar a rápida aparição do próprio Oliver Stone nesta sequência). Por outro lado, observe como quando as ações se passam no escritório de Gekko, tanto o ambiente mais amplo e organizado quanto à câmera mais controlada de Stone refletem o excepcional domínio que aquele homem tem sobre o que faz.

Dividindo a telaRelógio anuncia a abertura do mercadoAmbiente mais amplo e organizadoMas o grande mérito de “Wall Street – Poder e Cobiça” não está nos aspectos técnicos. Ciente de que a narrativa depende muito mais do desempenho dos atores, Oliver Stone consegue extrair boas atuações de quase todo seu elenco, a começar por papeis menores como o de Sean Young, que vive a artificial esposa de Gekko, e Hal Holbrook, que, vivendo o corretor da bolsa Lou Mannheim, faz bem o tipo experiente que já viu de tudo na carreira, enxergando de longe aonde a ganância de Bud poderia levá-lo. E se Martin Sheen encarna o Sr. Fox com simplicidade, isto não o impede de se impor diante do filho quando é preciso, ainda que ele não consiga conter o ímpeto do rapaz diante de tantas possibilidades – e o plano que ilumina o rosto de Bud em certo momento sugere uma aura mística e indica que ele era mesmo “o escolhido” por Gekko para entrar naquele seleto grupo de milionários.

Artificial esposa de GekkoCorretor Lou MannheimSr. FoxPai e filho na vida real, Charlie e Martin estabelecem a química dos personagens naturalmente, o que é essencial para compreender a reação de Bud ao descobrir as reais intenções de Gekko na aquisição da Bluestar. Jovem e ambicioso, Bud rapidamente conquista a confiança do bilionário, sendo recompensado com agrados e a meteórica ascensão social. Na época firmando-se como um ator dramático após o sucesso de “Platoon”, Charlie Sheen transmite este deslumbramento do personagem com precisão, mudando-se em pouco tempo para um apartamento luxuoso e conquistando a bela Darien de Daryl Hannah, que, por sua vez, também tira o máximo proveito daquele bem sucedido grupo social (financeiramente, diga-se) ao envolver-se secretamente com Gekko em troca de novos e importantes clientes.

Envolvendo-se gradualmente numa troca ilegal de informações sigilosas, Bud se torna mais e mais ganancioso, e este mundo luxuoso e repleto de regalias que se abre a sua frente não colabora em nada para impedir sua inserção naquele ambiente. Só que toda esta superficialidade tem um preço. Assim, quando o casal discute, Bud não hesita em deixar claro que sabe que Darien o enxerga apenas como uma oportunidade de continuar sua escalada social, mas as duras respostas dela mostram que ele não era tão diferente assim – e o bom desempenho da atriz neste momento nos faz acreditar que ela de fato gostava dele, o que torna tudo ainda mais intenso.

Química naturalDeslumbramentoCasal discuteControlando este complexo jogo de interesses com maestria, o persuasivo e arrogante Gordon Gekko soa quase como um vilão inabalável, ainda mais pela maneira visceral que Michael Douglas compõe o personagem, surgindo sempre confiante e poderoso, como se fosse capaz de prever tudo que acontece com grande antecedência. Enxergando o dinheiro como a única coisa pela qual vale a pena lutar (“Almoçar é para os fracos”), Gekko demonstra enorme habilidade nas negociações, mas mostra igual capacidade de passar por cima da ética se assim for preciso para conquistar seus objetivos. Destacando-se ainda em momentos marcantes como o icônico discurso feito aos sócios da Teldar Paper (“A ganância é boa”), Douglas consegue transformar um personagem que tinha tudo para ser detestável em alguém cativante através de sua maneira prática de enxergar o mundo e de dizer coisas profundamente cruéis.

Persuasivo e arrogante Gordon GekkoConfiante e poderosoIcônico discursoEntretanto, não são apenas as palavras de Gekko que provocam desconforto em “Wall Street – Poder e Cobiça”, como atesta a forte discussão entre os Fox no elevador, onde os cortes rápidos de Stone ajudam a nocautear a plateia, desnorteada diante das duras palavras trocadas por eles – num grande momento da atuação dos Sheen. Da mesma forma, a câmera inquieta realça a tensão na discussão entre Bud e Gekko sobre a liquidação da Bluestar, na qual o primeiro demonstra que não aceitará tão facilmente ser manipulado pelo bilionário, enquanto o segundo resume muito bem o que é o capitalismo e como funciona a divisão de renda nos EUA (e na maior parte do planeta, porque não?) – e repare como após ser enganado na venda da Bluestar, Gekko surge coberto pelas sombras, indicando sua decadência.

Forte discussão no elevadorDiscussão entre Bud e GekkoGekko surge coberto pelas sombrasObviamente, Oliver Stone não perde a oportunidade de criticar acidamente todo aquele sistema e insere seus comentários sociais em diversos momentos, como quando acompanhamos Bud ganhando uma sala ampla ao mesmo tempo em que um velho funcionário é demitido (“Tenho dois filhos para criar, vou parar na sarjeta”, argumenta). A intenção é clara: criticar o feroz sistema especulativo de Wall Street, responsável por fabricar jovens milionários da noite para o dia – e também por gerar algumas crises marcantes nas últimas décadas, como hoje sabemos bem. Soltas durante a narrativa, frases como “O dinheiro faz você fazer coisas que não quer fazer” e “Pare de ir atrás do dinheiro fácil e produza algo com sua vida” resumem bem a visão de Stone sobre o tema.

É verdade que para alcançar seu objetivo, o diretor acaba pesando a mão em alguns instantes. Assim, o milionário Gekko obviamente acaba punido e preso, enquanto Bud perde a namorada e o dinheiro, vende o apartamento, vê seu pai sofrer um enfarte e ainda é surpreendido em seu escritório pela polícia, num resultado trágico que nem sempre traduz a realidade do mercado financeiro – e é curioso notar como mesmo após fazer tantas coisas erradas, nós sentimos pena dele ao vê-lo deixando o escritório algemado e chorando. É evidente que nem todo trader é como Gekko e que é possível ser bem sucedido como corretor sem deixar-se cegar pela ganância, mas nem por isso “Wall Street – Poder e Cobiça” deixa de ser um grande filme que, curiosamente, acabou antevendo parte do processo de decadência dos “Mestres do Universo”.

Bud ganhando uma sala amplaVelho funcionário é demitidoDeixa o escritório algemado e chorandoEm “Wall Street – Poder e Cobiça”, Oliver Stone aponta sua metralhadora crítica não apenas para o especulativo mercado financeiro, mas também para a mentalidade de uma época em que a qualidade de um terno era mais importante do que a pessoa dentro dele e que o sucesso era medido pelos dígitos de sua conta bancária. O tempo provou que o diretor tinha certa dose de razão e que, ao contrário do que afirma Gordon Gekko, a ganância não é algo tão bom assim.

Wall Street - Poder e Cobiça foto 2Texto publicado em 16 de Março de 2013 por Roberto Siqueira

O POVO CONTRA LARRY FLYNT (1996)

(The People vs. Larry Flynt)

Videoteca do Beto #143

Dirigido por Milos Forman.

Elenco: Woody Harrelson, Courtney Love, Edward Norton, Brett Harrelson, Donna Hanover, James Cromwell, Crispin Glover, Vincent Schiavelli, Miles Chapin, James Carville, Richard Paul e Burt Neuborne.

Roteiro: Scott Alexander e Larry Karaszewski.

Produção: Michael Hausman, Oliver Stone e Janet Yang.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Numa época em que deputados tentam proibir a exibição de filmes no Brasil, nada melhor do que recordar a trajetória do exótico editor da revista Hustler, adaptada para os cinemas neste excelente “O Povo contra Larry Flynt”. Sendo assim, não deixa de ser curioso que somente agora eu possa escrever sobre o filme, já que originalmente eu pretendia terminar 1996 ainda no primeiro trimestre deste ano, quando a polêmica envolvendo o filme “TED” sequer existia e a discussão sobre “Um Filme Sérvio” já fazia parte do passado. Dirigido pelo ótimo Milos Forman, o longa tem todos os ingredientes necessários para provocar polêmica (algo que certamente atraiu a atenção do produtor Oliver Stone), misturando temas bombásticos como religião, política e pornografia.

Baseado na biografia de Larry Flynt, o roteiro de Scott Alexander e Larry Karaszewski narra a trajetória do editor da revista Hustler, que rivalizou com a Playboy ao apresentar pornografia explícita e se transformou numa verdadeira febre nos anos 70. Após o sucesso, Larry (Woody Harrelson) tornou-se um dos homens mais poderosos dos Estados Unidos, casou-se com a ex-prostituta Althea (Courtney Love) e, ao lado do irmão Jimmy (Brett Harrelson), construiu um verdadeiro império, mas também sofreu pesados processos judiciais e até mesmo um atentado por causa disto. Coube então ao jovem advogado Alan Isaacman (Edward Norton) a árdua missão de defendê-lo nos tribunais.

Se existe um tema que ainda é tabu na nossa sociedade, este tema é o sexo. Mesmo quando tratamos apenas da nudez, muitas pessoas ainda se comportam como se estivessem diante da maior das aberrações, num comportamento puritano que muitas vezes é proporcionalmente inverso ao que elas de fato sentem. Aproveitando-se deste interessante traço da sociedade e com o auxilio do material original que inspirou a obra, o afiado roteiro de “O Povo contra Larry Flynt” é repleto de discursos no mínimo interessantes, como aquele em que Larry constrói um raciocínio divertidíssimo a respeito da origem do homem, da mulher e, consequentemente, do órgão genital feminino. Outro discurso marcante é aquele em que Larry questiona porque as pessoas consideram o sexo obsceno, mas aceitam os horrores da guerra, levando o espectador a uma importante reflexão. Entretanto, entre todos os discursos, aquele que melhor resume a mensagem do longa acontece quando Isaacman ilustra para o júri como a censura pode significar o fim da liberdade de toda a sociedade, trabalhando como um vírus que começa agindo em coisas pequenas e se agiganta com o passar do tempo – uma discussão, aliás, que é muito bem vinda atualmente após os episódios envolvendo “Um Filme Sérvio” e “TED”.

Censura pode significar o fim da liberdadeA fórmula do sucesso do longa, entretanto, vai além do ótimo roteiro, passando diretamente pela escolha de diretor e elenco. Historicamente, personagens excêntricos sempre despertaram o interesse de Forman (lembre-se de “Um Estranho no Ninho” e “Amadeus”), que, por sua vez, sempre demonstrou competência para extrair atuações marcantes de seus protagonistas. Se considerarmos ainda que poucos atores poderiam encarnar Larry Flynt com a mesma desenvoltura de Woody Harrelson, temos a combinação perfeita para dar vida ao folclórico personagem nas telonas. Debochado e expressivo, o ator se sai muito bem na pele do polêmico editor, chamando a atenção pelo comportamento excêntrico nos tribunais, pela relação nada convencional com Althea e pela decadência gradual que transforma Flynt a partir do acidente e que o ator demonstra muito bem (repare como até sua voz muda após a cirurgia).

Aliás, a breve introdução na infância de Larry já nos apresenta um importante traço de sua personalidade: ele fará qualquer coisa para ter sucesso comercialmente. Por isso, chega a ser brilhante o momento em que Forman traz Flynt em primeiro plano e uma cruz vermelha no segundo, indicando que aquela decisão seria trágica para o futuro dele. E não é apenas neste momento que o aspecto visual diz muito sobre o personagem, já que os objetos eróticos espalhados por seu escritório (design de produção de Patrizia von Brandenstein) e as roupas que ele usa nos julgamentos (“Fuck this court”) só confirmam sua personalidade conturbada (figurinos de Arianne Phillips e Theodor Pistek). Neste sentido, o Jimmy Flynt de Brett Harrelson mostra-se o contraponto ideal para que o espectador não seja totalmente influenciado pela visão de Larry, funcionando como o outro lado da moeda em diversas situações, já que ele é o único membro da equipe capaz de questionar as ideias do irmão.

Se considerarmos seu comportamento fora dos palcos, não chega a ser surpreendente o bom desempenho de Courtney Love na pele da maluca Althea Flynt. Ainda assim, pouca gente poderia esperar uma atuação tão segura da cantora, que demonstra a degradação da personagem com precisão na medida em que o tempo passa, chegando até mesmo a emagrecer sensivelmente e a falar com mais dificuldade no ato final, quando já está infectada com o vírus da AIDS. E finalmente, para viver um advogado jovem e promissor, ninguém melhor que um ator igualmente jovem e promissor como Edward Norton, que interpreta Isaacman com uma desenvoltura notável, demonstrando com competência como o advogado se sente desnorteado diante de seu cliente, parecendo incapaz de prever quais serão seus próximos passos mesmo convivendo o tempo todo com ele. Ainda assim, Norton acerta o tom quando Isaacman se revolta com Larry, finalmente se impondo diante dele, além de nos convencer plenamente durante os julgamentos de que Isaacman defenderá até o fim o direito de Larry se manifestar, ainda que não goste do resultado do trabalho dele.

Ciente de que todo cuidado é pouco numa biografia, Forman não teme explorar o lado cômico de seu protagonista, criando sequências hilárias como aquela em que Larry é cercado pelo FBI em sua mansão e acompanha tudo enlouquecido pela televisão até finalmente ser preso. Em outro momento, logo após Larry afirmar que mudará para onde os pervertidos são bem vindos, temos a imagem dos famosos letreiros de Hollywood, numa transição divertida que conta com o trabalho do montador Christopher Tellefsen. Saltando de tempos em tempos de maneira episódica (até mesmo letreiros são utilizados para indicar a passagem do tempo), Tellefsen compensa este erro com muito dinamismo na primeira metade do longa, mantendo a atenção do espectador até o instante em que Larry é baleado. Desde então, o filme sofre uma queda sensível no ritmo, tornando-se um pouco arrastado ao focar demasiadamente nos julgamentos e na decadência do casal.

Demonstrando visualmente esta decadência através do quarto escuro e sombrio em que eles passam os últimos dias juntos, Forman chega ao auge na chocante cena da morte de Althea, criando um plano assustador com a moça afogada dentro da banheira, seguido pelo tocante choro desesperado de Larry (num dos inúmeros momentos inspirados de Harrelson). Entretanto, esta abordagem sombria destoa do restante do longa. Buscando ilustrar a mente criativa de seu protagonista, a fotografia de Philippe Rousselot abusa de cores vivas, priorizando sempre que possível as cores da bandeira norte-americana, o que, somado a trilha sonora repleta de músicas típicas do país de Thomas Newman, reforça o sentimento nacionalista tão evidente no longa. Mas isto tudo tem um propósito. Lembre-se que Milos Formam é tcheco e, portanto, não teria razão alguma para exaltar o ufanismo. Na verdade, sua intenção é espelhar as ações de seu protagonista e tocar na ferida da nação mais poderosa do mundo. Afinal de contas, como um país que diz prezar tanto pela liberdade pode ser tão preconceituoso? Existe uma sequência em especial que, sutilmente, indica como o radicalismo tem grande espaço na sociedade norte-americana, quando, em questão de segundos, os integrantes da equipe de Larry levantam suspeita sobre diversos grupos distintos como a máfia, a KKK e até mesmo a CIA.

Entre todos estes grupos, os fanáticos religiosos são os que ganham mais espaço em “O Povo contra Larry Flynt”. Sem medo de tocar num tema tão polêmico, Forman aproveita muito bem a história verdadeira do personagem para nos levar a interessantes reflexões. E ainda que tenha um tom folclórico em diversos instantes, o longa não hesita em criticar acidamente algumas instituições religiosas norte-americanas. Chega a provocar náuseas a forma como o reverendo Jerry Falwell usa a morte de Althea para se promover, num comportamento que não é unânime, mas que se repete em muitas das instituições religiosas contemporâneas, contrariando um dos ensinamentos básicos do Cristianismo que é a compaixão. Por outro lado, a sequência final na suprema corte dos EUA tem um tom leve e descontraído que encerra bem o filme, ainda que as lembranças de Larry confiram um tom nostálgico ao ato final.

Com muito talento, “O Povo contra Larry Flynt” transporta para o cinema o espírito controverso de seu protagonista, levando o espectador a refletir sobre sua trajetória e, o que é mais interessante, a debater sobre conceitos importantíssimos da nossa sociedade. Podemos detestar a obra de qualquer pessoa, mas jamais devemos impedi-la de realizar seu trabalho. É neste direito que reside à essência da liberdade.

Texto publicado em 26 de Novembro de 2012 por Roberto Siqueira

ASSASSINOS POR NATUREZA (1994)

(Natural Born Killers)

 

Videoteca do Beto #100

Dirigido por Oliver Stone.

Elenco: Woody Harrelson, Juliette Lewis, Tom Sizemore, Robert Downey Jr., Tommy Lee Jones, Rodney Dangerfield, Everett Quinton, Edie McClurg, Lanny Flaherty, O-Lan Jones, Richard Lineback, Kirk Baltz, Maria Pitillo, Melinda Renna, Dale Dye, Lorraine Farris, Steven Wright, Joe Grifasi, Robert Swan, Russell Means e Jared Harris.

Roteiro: David Veloz, Richard Rutowski e Oliver Stone, baseado em história de Quentin Tarantino.

Produção: Jane Hamsher, Don Murphy e Clayton Townse.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Oliver Stone já era bastante conhecido por provocar polêmicas quando decidiu lançar este excelente “Assassinos por Natureza”, uma ácida crítica a imprensa sensacionalista e ao culto aos assassinos em série, tão comuns nos Estados Unidos e em grande parte do mundo. E felizmente o diretor acertou novamente, entregando um filme empolgante, visualmente rico e que cumpre o seu propósito, mostrando com clareza (e uma dose de humor negro) os piores hábitos desta parte da imprensa (e de seu público) a partir da história de um perigoso casal de assassinos.

Após ser abusada constantemente pelo pai, a jovem Mallory (Juliette Lewis) conhece Mickey (Woody Harrelson) e se apaixona perdidamente. Cansado dos abusos sofridos por sua amada, Mickey assassina o pai e a mãe dela, com o auxílio da própria Mallory. Nascia ali uma dupla infernal de assassinos, que mataria dezenas de pessoas em poucas semanas pelas estradas empoeiradas dos Estados Unidos, sempre deixando alguém vivo no caminho para contar a história, o que, como eles previam, atrai a atenção da mídia sensacionalista, especialmente do repórter Wayne Gale (Robert Downey Jr.), que os coloca como atração principal do programa “American Maniacs”.

Não é novidade para ninguém que as tragédias (e os assassinatos fazem parte deste universo) exercem algum estranho fascínio na grande maioria das pessoas. Para constatar isto, basta observar o tumulto que se forma em volta de qualquer acidente no trânsito ou a grande audiência de telejornais especializados neste tipo de assunto. Mas existe uma considerável diferença entre noticiar uma tragédia (cumprindo o dever jornalístico) e explorá-la ao máximo, numa tentativa desesperada de conseguir audiência. Escrito por David Veloz, Richard Rutowski e Oliver Stone, baseado em história de Quentin Tarantino (ele mesmo!), “Assassinos por Natureza” é uma crítica feroz a esta parte da imprensa, que não mede esforços para explorar ao máximo os crimes que chamam a atenção do público, sem se importar com o sofrimento das vítimas e dos familiares. O longa narra a história do casal Mickey e Mallory, dois perigosos assassinos em série, que cruzam as estradas norte-americanas deixando vítimas por toda parte (sempre deixando alguém vivo para contar o que aconteceu e espalhar a fama do casal) e acabam se transformando em celebridades. Logo no início, o diretor Oliver Stone deixa claro que a dupla segue os seus instintos mais primitivos ao mostrar imagens de animais perigosos, remetendo ao instinto predador do casal. Aliás, Stone capricha no aspecto visual, criando diversos planos interessantes e diferenciados, como na primeira cena, onde o diretor apresenta planos em ângulo baixo e inclinados, além de misturar cenas muito coloridas com outras em preto e branco, numa característica marcante do longa, que é também mérito da excelente direção de fotografia de Robert Richardson.

Contando ainda com os bons efeitos visuais da Pacific Data Images, Stone cria cenas de violência bastante estilizadas, como no massacre do bar, onde vemos uma bala girando segundos antes de atingir uma atendente ou quando uma faca lentamente se choca contra o vidro de uma janela, segundos antes de atingir as costas de um homem que fugia da fúria do casal. Estilizadas também são as inúmeras cenas repletas de imagens psicodélicas, normalmente embaladas pela excelente trilha sonora de Brent Lewis, que ilustram a mente perturbada do casal. Aliás, além das excelentes músicas que pontuam a narrativa, vale destacar o ótimo trabalho de sons e efeitos sonoros, notável, por exemplo, na tempestade no deserto, onde podemos ouvir o vento, os cavalos galopando e os gritos das pessoas, e na rebelião na prisão, que capta perfeitamente o clima de tensão através dos tiros e dos gritos dos presos. E, finalmente, além de conduzir com muita energia a empolgante narrativa, Stone ainda cria belos planos, como no criativo casamento dos assassinos na ponte, onde também vale destacar o momento em que Mickey respira fundo quando um carro passa por trás deles e grita, se esforçando para conter seu instinto assassino (“Não vou matar ninguém no dia do nosso casamento”).

Além do apuro visual, existem pequenas seqüências que são um verdadeiro show de criatividade narrativa, como, por exemplo, o quadro “I Love Mallory”, que remete aos sitcoms norte-americanos, com risadas e aplausos ao fundo, ao mesmo tempo em que nos mostra a vida dura de Mallory, abusada pelo pai e “salva” por Mickey (em outra seqüência violenta, encerrada com o assassinato dos pais dela e as chamas que indicam a vida infernal da dupla dali em diante). Auxiliado pela espetacular montagem de Brian Berdan e Hank Corwin, Stone imprime um ritmo intenso à narrativa, intercalando imagens tanto de cenas que já vimos como de figuras não diegéticas (como desenhos animados), dando ao espectador a mesma sensação de euforia do casal principal. Este festival de cores, músicas, composição de planos distorcidos que fogem da realidade e imagens psicodélicas cria um mundo assustador, que, reforçado pelos figurinos coloridos e descolados de Richard Hornung, reflete a mente dos psicopatas assassinos.

Aliás, Woody Harrelson e Juliette Lewis demonstram excelente química em cena, mostrando empatia ao mesmo tempo em que soam assustadores e ameaçadores (“Só o amor pode matar o demônio”, diz Mickey). Alucinada na pele de Mallory, Lewis alterna bem entre o lado meigo e gentil da garota (quando está com Mickey) e os momentos de pura insanidade (observe sua risada demoníaca ao constatar que seu pai morreu). O trauma dos abusos do pai, aliás, acompanha a jovem por toda a vida, provocando brigas com seu parceiro e sendo fundamental na cena em que ela se entrega a um garoto no posto, mudando de idéia no meio do caminho e atirando nele (“Foi o pior sexo oral que já tive!”). Harrelson também está ameaçador na pele do maluco Mickey e, da mesma forma, oscila entre momentos de fúria e de autocontrole, por exemplo, durante a entrevista, quando fala com o tom de voz baixo e tranqüilo, e na rebelião, quando tira a arma de Wayne Gale, alegando que ele está descontrolado. Lewis e Harrelson se saem bem até mesmo nas brigas do casal (especialmente na seqüência do deserto) – e este desempenho é essencial para que o espectador não se afaste completamente da dupla após acompanhar todos os seus crimes. Curiosamente, podemos não concordar com seus atos, mas acabamos torcendo pelo casal em diversos momentos – o que, de certa forma, explica a fixação da maioria das pessoas, criticada pelo filme. Não concordamos com suas atitudes, mas temos curiosidade pelo tema, que é explorado pela imprensa na eterna busca por audiência. E esta fixação, somada à cobertura da imprensa sensacionalista, faz Mickey e Mallory se transformarem em celebridades. Eles não fizeram nada de bom para a humanidade (pelo contrário, tudo que fizeram foi matar pessoas), mas conquistaram muitos fãs pelo país.

Representando esta fatia da imprensa, Robert Downey Jr. vive o jornalista sem escrúpulos que apresenta um programa sensacionalista sobre os criminosos norte-americanos, deixando claro o pensamento predominante neste setor com frases como “Coloque qualquer coisa, é fastfood para o cérebro” e se referido ao seu público como “zumbis que vêem qualquer coisa”. Com suas reações viscerais que visam chamar a atenção do espectador, Downey Jr. faz bem o típico repórter destes programas, chegando a ficar alucinado quando tem uma arma na mão durante uma rebelião, atirando pra todos os lados e matando até mesmo policiais. E entre os policiais, o maior destaque fica mesmo para Tommy Lee Jones, que vive o chefe da prisão Dwight McClusky, um homem tão louco quanto aqueles que ele mantém presos, que não tem medo de andar entre eles e suspeita quando tudo está “bem” (“Este silêncio é perigoso”). Só que Jones exagera na tentativa de ilustrar a loucura e a raiva do personagem, chegando ao auge das “caras e bocas” após a explosão da rebelião, quando mais parece um lunático do que um homem assustado.

Ao contrário da loucura da maioria, o velho índio interpretado por Russell Means é talvez o personagem mais tranqüilo da narrativa, abrigando e alimentando o casal de assassinos. Mas a história que ele conta sobre a mulher que cuidou de uma cobra serve como metáfora para sua própria morte, algo que ele já previa e que fica claro quando revela um sonho e, principalmente, quando olha para o quadro da falecida esposa segundos antes de morrer, indicando seu desejo de encontrá-la. Só que Mickey não queria matar aquele homem e se desespera ao constatar o que fez, provocando também a revolta de Mallory. Atordoados, eles saem pelo deserto e se deparam com muitas cobras, que atacam impiedosamente o casal. Mas, nas palavras de Mickey, “vaso ruim não quebra” e eles conseguem chegar a uma farmácia na cidade, onde acabarão presos (ao vivo!) pelo violento detetive Jack Scagnetti, interpretado por Tom Sizemore, que cria um estilo agressivo e sacana, chegando a matar uma jovem num hotel e a tentar se relacionar sexualmente com Mallory na prisão (“Ela faz meu tipo”, diz). E é justamente na prisão que a ácida crítica de “Assassinos por Natureza” chega ao auge, com a entrevista ao vivo de Mickey feita por Gale, repleta de momentos interessantes, como a crítica às corporações que matam animais e destroem as florestas por razões econômicas e o momento em que Mickey fala sobre a natureza violenta do homem, se proclamando um assassino por natureza (vale destacar que Harrelson e Downey Jr têm um excelente desempenho na cena, mantendo a entrevista dinâmica e interessante). Repare ainda a crítica nada velada ao espectador de programas sensacionalistas, quando Mickey diz que “muitas pessoas já morreram por dentro” e Stone insere um plano triste, em preto e branco, de uma família que assiste atentamente a entrevista. Mas estas pessoas não veriam o fim da tão aguardada entrevista, pois uma rebelião explode no meio dela e transforma o local num verdadeiro inferno, algo ilustrado pela câmera agitada de Stone, que acompanha a fuga de Mickey e Mallory, e pela montagem ainda mais dinâmica, que intercala planos com mais rapidez. E mesmo no meio de toda esta confusão, a emissora ainda quer transmitir a rebelião ao vivo, colocando em risco a vida de seu repórter – e o desespero da apresentadora do programa que faz contato com Gale não se deve ao risco que corria o colega de profissão, mas sim à pressa dela para tentar transmitir o evento ao vivo o mais rápido possível.

Num simbolismo perfeito da parceria formada pela imprensa sensacionalista e os criminosos, Mickey e Mallory usam Gale como refém para fugir do local. E se a palavra “parceria” parece forte demais, este pensamento se desfaz ao constatarmos que o criminoso precisa da imprensa para ficar famoso e a imprensa precisa dele para ter audiência. Mas, seguindo seu instinto assassino, a dupla mata o jornalista e tudo que ele representa, deixando a câmera como testemunha do assassinato – afinal de contas, alguém precisa contar a história depois. E as imagens reais de programas norte-americanos sensacionalistas que aparecem no final do filme apenas comprovam a fixação da imprensa pelas tragédias e pelos criminosos, que existe em praticamente todos os cantos do planeta.

Com seu estilo ousado e corajoso, Oliver Stone critica o culto aos criminosos promovido pela imprensa sensacionalista neste “Assassinos por Natureza”, que conta ainda com um visual magnífico e excelentes atuações de Woody Harrelson e Juliette Lewis. Não há dúvida que tirar uma vida é um crime abominável. Mas também é abominável que pessoas usem este crime horrível para ganhar dinheiro, fazendo a fama de assassinos em todo o mundo e banalizando a vida.

Texto publicado em 03 de Julho de 2011 por Roberto Siqueira

JFK – A PERGUNTA QUE NÃO QUER CALAR (1991)

(JFK)

 

 

Videoteca do Beto #77

Dirigido por Oliver Stone.

Elenco: Kevin Costner, Tommy Lee Jones, Joe Pesci, Sissy Spacek, Laurie Metcalf, Gary Oldman, Kevin Bacon, Beata Pozniak, Donald Sutherland, Jack Lemmon, Walter Matthau, Vincent D’Onofrio, Martin Sheen, Michael Rooker, Jay O. Sanders, Brian Doyle-Murray, Gary Grubbs, Wayne Knight, Jo Anderson, Pruitt Taylor Vince, Sally Kirkland, Steve Reed, Jodie Farber, Columbia Dubose, Randy Means, Gary Carter, John Candy, Lolita Davidovich, Dale Dye, Ron Rifkin e Jim Morrison.

Roteiro: Oliver Stone e Zachary Sklar, baseado nos livros de Jim Marrs e Jim Garrison.

Produção: A. Kitman Ho e Oliver Stone.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Oliver Stone é um diretor polêmico, capaz de tocar na ferida provocada pela guerra do Vietnã como poucos (“Platoon” e “Nascido em 4 de Julho”), de criticar o sensacionalismo da imprensa (“Assassinos por Natureza”) e de mostrar o mundo obscuro dos negócios (“Wall Street – Poder e Cobiça”). Mas apesar de sua conhecida coragem, nunca o diretor foi tão polêmico (e proporcionalmente competente) como em “JFK – A pergunta que não quer calar”, filme que escancarou para o mundo a até hoje mal explicada solução dada para o assassinato de John Kennedy pela comissão Warren. Com um elenco numeroso e afinado e muita competência na organização de uma narrativa complexa, Stone entregou uma verdadeira obra-prima do cinema, que se não prova definitivamente a existência de uma conspiração, chega muito perto disto.

O promotor Jim Garrison (Kevin Costner) decide liderar uma investigação extra-oficial para o assassinato do presidente John F. Kennedy na tentativa de provar a existência de uma gigantesca conspiração, contrariando a conclusão da comissão Warren, que afirma ser Lee Harvey Oswald (Gary Oldman) o único responsável pelo crime.

Escrito por Oliver Stone e Zachary Sklar, baseado nos livros de Jim Marrs e Jim Garrison (olha ele aqui), “JFK” apresenta uma narrativa incrivelmente complexa, que consegue manter a atenção do espectador em cada minuto de projeção. O intrincado roteiro, repleto de informações e diálogos ágeis, além de flashbacks acompanhados de imagens que ilustram o raciocínio dos personagens, apresenta uma gama enorme de personagens numa seqüência estruturada com perfeição para que o espectador não se perca diante de tamanha complexidade. Este impressionante número de personagens importantes que cruzam a narrativa serve também para reconstituir com precisão o complicado processo de investigação daquele dia trágico, sempre sob a liderança do centrado (porém inquieto) Jim Garrison. Toda a investigação, aliás, é conduzida num ritmo intenso, que leva o espectador junto na jornada, como se estivéssemos fazendo parte daquele processo ao lado da equipe de Garrison. E a base de todo o trabalho do promotor aparece logo na introdução do filme, num vídeo com imagens de arquivo que mostra John Kennedy declarando suas idéias sobre a guerra do Vietnã, sua pretensão de retirar as tropas norte-americanas da região, sua proposta de “mudança” no olhar para a União Soviética e sua intenção de mudar no conceito de paz, “diferente daquela paz imposta pelos Estados Unidos ao mundo através da força”. Não por acaso, logo após a morte de Kennedy, o novo presidente decide manter as tropas no Vietnã. E se este fato pode até ser questionado por aqueles que acreditam no “único culpado” Lee Oswald, a simulação no prédio, quando Garrison tenta reproduzir os tiros de Oswald com o mesmo rifle, prova definitivamente que a teoria da comissão Warren é, no mínimo, questionável.

É importante ressaltar, no entanto, que “JFK” não se resume às polêmicas que cercam sua obstinada investigação. O longa de Oliver Stone é, acima de tudo, um trabalho cinematográfico excepcional, que se destaca especialmente na direção de Stone, na montagem de Joe Hutshing e Pietro Scalia e na direção de fotografia de Robert Richardson. Stone conduz a narrativa com incrível habilidade, com sua câmera inquieta que auxilia no clima de urgência da narrativa, mas conta especialmente com a fantástica montagem de Hutshing e Scalia, que emprega um ritmo intenso, alternando com velocidade entre o presente, quando Garrison conduz a investigação, e o passado, quando as cenas revivem o fatídico dia, e, ao mesmo tempo, ilustram o pensamento dos personagens no presente. Na precisa reconstituição do assassinato, merece destaque também o som, com os gritos e tiros que dão a exata noção do pânico daquele momento, ampliado pela tensa trilha sonora de John Williams. Já a fotografia de Richardson utiliza diversas câmeras (incluindo câmeras de 16 mm e Super 8), indo do visual sépia para o preto-e-branco, e até mesmo utilizando imagens de arquivo para reforçar toda a teoria que inspira o longa. Stone chega a introduzir um vídeo chocante, com a imagem do exato momento em que Kennedy é atingido, numa imagem capaz de perturbar qualquer um.  Aliás, a longa e sensacional seqüência em que Garrison explica a “teoria da bala mágica” nocauteia o espectador, também por causa do excelente desempenho de Kevin Costner, que transmite muita confiança e emoção enquanto fala, provando sua qualidade como ator. Não sei se todas as pessoas e instituições citadas estavam envolvidas naquele assassinato, mas após esta explicação emocionada de Garrison, o vídeo e a informação de que os arquivos estão proibidos para o público até 2029 é muito difícil não concordar que realmente houve uma conspiração.

E já que citei Kevin Costner, vale dizer que todo este incrível trabalho técnico de nada adiantaria se as atuações de “JFK” não fossem tão competentes. A começar pelo próprio Costner, que encarna muito bem o tranqüilo Jim Garrison, numa atuação convincente e coerente com a personalidade do promotor, que lentamente altera seu comportamento, se tornando uma pessoa atormentada diante de suas descobertas, que influenciam até mesmo sua relação com a esposa Liz (Sissy Spacek, também em grande atuação), algo ilustrando perfeitamente quando ele perde o domingo de páscoa com a família para interrogar Clay Shaw (Tommy Lee Jones). A dinâmica do casal é fundamental para compreender os efeitos daquela investigação na vida do promotor, ilustrados na excepcional cena em que Jim e Liz discutem na frente dos filhos e, com seus gritos e vozes embargadas, demonstram a situação quase insustentável daquela relação – e aqui vale observar como Costner demonstra até mesmo certo desconforto por estar diante dos filhos, procurando abraçá-los imediatamente após o fim da discussão. O ator volta a se destacar ainda quando seu olhar mistura incredulidade e passividade diante da matéria da imprensa que busca destruir sua imagem diante da sociedade (algo que de fato aconteceu, pois até hoje muita gente afirma que Garrison buscava se promover ao se envolver em casos polêmicos, revelando um pensamento que certamente interessa às pessoas e instituições atingidas pela investigação dele). Ironicamente, sua própria esposa o acusa de estar fazendo o mesmo com a imagem de Clay Shaw, interpretado brilhantemente por Tommy Lee Jones, que transmite muito cinismo, especialmente quando é interrogado por Garrison, provocando a explosão do promotor, num diálogo tenso e muito bem construído. E o que dizer de Joe Pesci, novamente espetacular, fumando muitos cigarros e transmitindo com perfeição a inquietação de David Ferrie? Seu nervosismo fica ainda mais evidente quando ele vai ao encontro de Garrison, amedrontado com a descoberta da imprensa sobre as investigações, quando Pesci olha para todos os lados, abre as portas com desconfiança e se assusta quando alguém bate na porta, mostrando claramente o quanto Ferrie está perturbado – algo ilustrado também pela câmera agitada de Stone e pela trilha sonora acelerada. Seu desespero resulta na revelação das intenções da CIA e dos exilados cubanos, revoltados com a postura de Kennedy diante do fracasso da invasão da “baía dos porcos”. Já Kevin Bacon está excelente em sua pequena participação como Willie O’Keefe, o prisioneiro homossexual interrogado por Garrison, demonstrando através da fala rápida e do olhar agitado a inquietação do personagem. E finalmente, toda a equipe de Garrison mantém o bom nível das atuações, com destaque para Laurie Metcalf como Susie Cox, Michael Rooker como Bill Broussard e Jay O. Sanders como Lou Ivon.

Em certo momento de “JFK”, um personagem diz que a pergunta mais importante não é “quem” matou o presidente, mas “porque”. Trata-se do Sr. “X” (Donald Sutherland), que apresenta em poucos minutos o coração da teoria do filme. E confesso que é muito difícil (pelo menos pra mim) não acreditar nesta teoria diante da notória preferência norte-americana pelos conflitos armados. As guerras, obviamente, giram a economia do país, algo ilustrado sutilmente através das constantes notícias sobre o Vietnã no jornal e, de forma mais clara, nos números citados no longa, afinal de contas, são bilhões de dólares gastos na guerra – e estes dólares sempre entram no bolso de alguém. Sutherland colabora bastante para a credibilidade das informações dadas por seu personagem, transmitindo segurança no que fala e convencendo Garrison sobre a importância que a guerra tem para as empresas do país, como os citados fabricantes de helicópteros e até mesmo os fabricantes de armamentos. Diante de todo este cenário, é compreensível (ainda que repugnante) que um presidente que pregava a paz, a retirada das tropas do Vietnã e a reaproximação com a União Soviética fosse considerado uma ameaça aos interesses de muitos. Esta teoria é reforçada durante a discussão entre Bill e a equipe de Garrison, quando o jovem não se conforma diante das evidencias do envolvimento de instituições norte-americanas, algo amplificado pelo momento em que Garrison dá uma entrevista para uma emissora de televisão, demonstrando o envolvimento da imprensa em todo aquele processo. Pode parecer paranóia uma conspiração deste tamanho, mas sinceramente acho mais fácil acreditar nela do que na teoria da comissão Warren.

São tantos fatos históricos que reforçam os argumentos de “JFK” que é até mesmo incompreensível que algumas pessoas acreditem que apenas Lee Oswald seja o responsável pelo crime. Um destes fatos é a morte de Robert Kennedy, que aumenta ainda mais o desespero de Garrison – algo reforçado pelo zoom de Stone que realça a expressão de Costner. Depois deste fato, até mesmo Liz passa a acreditar no marido, e a fotografia sombria que envolve o beijo do casal, acompanhada pela triste trilha sonora e pela frase de Jim “queria poder te amar mais”, ilustra o quanto aquela relação foi enfraquecida pela investigação. E se podemos questionar a veracidade de alguns aspectos da impressionante investigação conduzida por Garrison ou considerar que Stone exagera na forma como os apresenta, a qualidade cinematográfica de sua obra é impressionante e inquestionável, conseguindo criar uma narrativa igualmente complexa e coesa.

Apresentando um dos fatos mais marcantes da história norte-americana e, mais do que isso, entrando em conflito direto com importantes órgãos como o FBI e a CIA, “JFK – A pergunta que não quer calar” impressiona principalmente porque a polêmica que o envolve é apenas um dos aspectos relevantes de um longa que acerta em praticamente tudo, começando pelos magníficos aspectos técnicos, passando pelas ótimas atuações e fechando na excepcional direção de Oliver Stone. Ao contrário do assassinato de Kennedy, aqui o organizado trabalho em conjunto resultou em algo benéfico. E assim como naquele abominável crime, este resultado ficará marcado eternamente na memória.

Texto publicado em 16 de Dezembro de 2010 por Roberto Siqueira

NASCIDO EM 4 DE JULHO (1989)

(Born on the Fourth of July)

 

Videoteca do Beto #64

Dirigido por Oliver Stone.

Elenco: Tom Cruise, Willem Dafoe, Kyra Sedgwick, Bryan Larkin, Raymond J. Barry, Caroline Kava, Tom Berenger, Josh Evans, Seth Allen, Jamie Talisman, Sean Stone, Anne Bobby, Jenna von Oi, Samantha Larkin, Erika Geminder, Kevin Harvey Morse, Jessica Prunell, Frank Whaley, Jason Klein, Jerry Levine, Lane R. Davis, Richard Panebianco, Johnny Pinto, Rob Camilletti, J.R. Nutti, Stephen Baldwin, Oliver Stone e Tom Sizemore.

Roteiro: Oliver Stone e Ron Kovic, baseado em livro de Ron Kovic.

Produção: A. Kitman Ho, Lope V. Juban Jr. e Oliver Stone.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Três anos depois de dirigir “Platoon”, o filme “definitivo” sobre a guerra do Vietnã, o diretor Oliver Stone volta ao tema para contar a “guerra após a guerra” com seu “Nascido em 4 de Julho”, belo drama baseado na história verídica de Ron Kovic, ex-combatente do Vietnã (assim como o diretor) gravemente ferido nos campos de batalha. A luta pessoal de Kovic para conseguir se readaptar a sociedade norte-americana após retornar paralítico do conflito e a sua gradual mudança de ideologia é o tema central do bom longa estrelado pelo então jovem astro Tom Cruise.

Jovem idealista e cheio de sonhos, o patriota Ron Kovic (Tom Cruise) deixa para trás a família e a namorada (Kyra Sedgwick) para lutar voluntariamente no Vietnã. Após se chocar com a triste realidade da guerra, ao ver crianças e mulheres vietnamitas assassinadas acidentalmente, Kovic é gravemente ferido e fica paraplégico. Pra piorar, seu retorno à pátria amada não será glorioso como ele imaginava e Kovic terá de enfrentar o preconceito e as dificuldades provocadas por sua condição física, o que faz com que ele passe a lutar também por seus direitos, agora negados pelo mesmo governo que o enviou para o Vietnã.

Personagem rico e complexo, Ron Kovic é interpretado com competência por Tom Cruise, numa das grandes atuações de sua carreira. A longa introdução de “Nascido em 4 de Julho” serve para criar empatia entre o espectador e o personagem principal, o que faz com que o espectador se importe com o destino do personagem. Nascido no dia da independência de seu país, o jovem Ron tem seu patriotismo reforçado durante o pomposo desfile do dia 04 de Julho, com centenas de bandeiras dos Estados Unidos, música típica norte-americana e o desfile de ex-combatentes do exército nacional. Nesta cena, aliás, vale observar como a câmera lenta de Stone realça um momento emblemático na vida do jovem Ron, auxiliado pela triste trilha sonora de John Williams, que indica o trágico destino do protagonista. Numa interessante rima narrativa, Ron sofrerá muitos anos depois um enorme choque diante da dura realidade quando estiver do lado de lá do desfile, sendo ele o “homenageado”, mas vendo diversas pessoas protestando enquanto desfila, e posteriormente, no discurso hipócrita dos governantes. Jovem determinado a honrar a tradição da família e “servir a pátria”, Ron deixa claro durante uma conversa com os amigos a respeito do alistamento voluntário como o governo utilizava o comunismo para influenciar os jovens a seguir para a guerra. Filho de pais religiosos e muito rígidos (ter a revista Playboy era um pecado mortal), o jovem via no exército a chance de ser alguém importante, o que não impede que ele se sinta aflito momentos antes de seguir para o Vietnã e deixar para trás família e namorada – e neste momento, Cruise transmite muito bem a aflição de Ron quando pede a orientação divina. O ator também demonstra com competência a aflição do personagem quando o padre lhe dá a extrema unção após ferir-se em combate, e novamente, quando o médico o deixa sozinho (“Eu quero minhas pernas!”). A boa atuação de Tom Cruise cresce ainda mais após a tragédia. Repare como ator transmite perfeitamente a revolta do personagem, além de demonstrar com muita veracidade a enorme dificuldade para se movimentar, imposta pela limitação física. A transformação ideológica de Ron, ilustrada até mesmo em seu visual, começa a dar sinais quando ele conversa com um amigo, também ex-combatente, e reflete sobre a validade de todo aquele sacrifício. Em seguida, começa a se afundar na bebida e externar sua revolta, o que resulta na cena mais impactante do filme, quando ele dispara contra a família, o governo e até mesmo contra Deus. Vale observar também como a cena é rica em detalhes, como a decepção de sua mãe, revoltada com as palavras do filho. Caroline Kava, aliás, se sai muito bem na pela da puritana Sra. Kovic, que coloca sua fé acima até mesmo do próprio filho. Completando o elenco, apesar de pequena, a participação do ótimo Willem Dafoe é marcante, transmitindo muito bem a revolta de Charlie pela vida que leva, como fica evidente na sensacional discussão entre ele e Ron na estrada. O longa conta ainda com pequenas aparições do ótimo Tom Berenger, como o Sargento Hayes, e do próprio Oliver Stone, como um repórter. Finalmente, Kyra Sedgwick vive o par romântico de Cruise, interpretando Donna de forma correta, mas sem grande destaque.

O bom roteiro de Oliver Stone e do verdadeiro Ron Kovic, baseado em livro do próprio Kovic, espalha diversas críticas à política belicista norte-americana, seja nas palavras do amigo Steve Boyer (Jerry Levine) sobre as mentiras do governo engolidas pelos jovens idealistas ou na reação do irmão de Ron assim que ele retorna paralítico. Após sua transformação, Ron também passa a questionar a guerra, resumindo em seu discurso para uma emissora de televisão a mensagem principal do longa. E neste discurso também estão as palavras de Stone, que aponta o dedo para os governantes americanos e diz que a guerra do Vietnã foi um erro, levando à morte de milhares de jovens inocentes a mais de 20 mil quilômetros de distância, enquanto os lideres do governo faziam discursos inflamados de terno e gravata. Por outro lado, o roteiro escorrega no melodrama, por exemplo, quando a mãe de Ron diz que sonhou com ele discursando igual ao presidente, com a melancólica trilha sonora ao fundo.

Mas se escorrega em alguns detalhes do roteiro, Oliver Stone compensa o espectador com uma direção impecável, conduzindo a narrativa com firmeza e estilo. Repare, por exemplo, como Stone mantém a câmera agitada durante o conflito, com closes da mata e dos soldados, aumentando a sensação de desorientação. Esta desorientação culmina com a imagem de Wilson (Lili Taylor) vindo contra o sol e sendo acidentalmente morto por Ron, numa tragédia que lhe incomodará pelo resto de sua vida (e Cruise também é competente na transmissão deste sentimento). O diretor cria ainda um impressionante plano quando Ron, atingido por um tiro no peito, cai na mata cuspindo sangue, realçando o impacto da cena através da câmera lenta e do plano da mão dele agarrada à mata, além de utilizar em diversos momentos uma câmera subjetiva, sob o ponto de vista dos personagens, como quando Ron chega ao baile ou quando sua mãe vai ao seu encontro em seu retorno. Esta técnica fica mais evidente quando o diretor mantém a câmera na linha de cintura dos personagens, algo que ocorre principalmente na seqüência do México, nos colocando na mesma situação de desconforto de Kovic. Finalmente, Stone cria ainda planos emblemáticos – como o rosto de Kovic refletindo numa foto, transmitindo a tristeza dele ao ver o passado, quando podia andar – e cenas belíssimas, como a dança entre Ron, molhado pela chuva, e Donna, seguida pelo beijo e a música triste que indicam uma despedida inconsciente do jovem àquela vida, ou a emblemática seqüência do massacre na aldeia vietnamita (que também acontece em “Platoon”), que provoca um choque no jovem Ron (“Nós fizemos isso?!”). Chocado também fica o espectador quando, já no final do filme, os policiais afastam de forma violenta os manifestantes, sem nenhum respeito pelo ser humano, agredindo até mesmo os deficientes físicos.

Ainda na parte técnica de “Nascido em 4 de Julho”, a montagem de David Brenner e Joe Hutshing conduz a narrativa em bom ritmo, apesar de alguns escorregões, como os desnecessários flashbacks de cenas que já vimos anteriormente (como as palavras da mãe de Ron repetidas quando ele caminha para discursar, na última cena do filme). A dupla também utiliza o fade em diversos momentos, escurecendo completamente a tela e refletindo o vazio dentro do coração de Kovic. Além disso, faz um interessante raccord sonoro no momento em que Ron deixa a casa dos Wilson, cortando para o mesmo Ron já entre os veteranos que protestam contra a guerra. A direção de fotografia de Robert Richardson cria um visual opaco no Vietnã, que destaca o amarelo e reforça a aridez do campo de batalha. Por outro lado, a fotografia fria e sem vida durante a infância de Kovic deixa claro que esta época é apenas uma lembrança distante na memória dele, contrastando muito bem com a fotografia vermelha do prostíbulo mexicano em que ele vive seu inferno astral. O trabalho de som é espetacular, captando todos os detalhes, como passos na grama, tiros, bombas, helicópteros e os gritos desesperados dos combatentes. E finalmente, as péssimas condições do hospital refletem o descaso do governo com os “heróis de guerra” – algo que fica evidente quando o médico diz que a verba foi reduzida – e revela o bom trabalho de direção de arte de Richard L. Johnson e Victor Kempster.

Quando o pai de Wilson (Tony Frank) diz com orgulho que a família lutou em todas as guerras em que o país se envolveu, “Nascido em 4 de Julho” está na verdade escancarando a necessidade norte-americana de se envolver em conflitos. Repare como Stone foca o neto dele com uma arma na mão quando o Sr. Wilson diz que “estamos sempre prontos para partir”, num plano simbólico que demonstra o tipo de pensamento que leva estes jovens ao conflito e a morte. Por outro lado, o velho Wilson se redime quando diz que nunca vai entender esta guerra, resumindo também o pensamento dos dois roteiristas do longa. Nesta conversa, aliás, Stone coloca Ron no canto da tela, mostrando como ele está claramente intimidado naquele ambiente, em outro momento de destaque na emocionada atuação de Cruise. Ron precisava aliviar sua alma, aflita desde o momento em que disparou acidentalmente contra Wilson. Stone também precisava dizer ao mundo a verdade sobre a guerra do Vietnã, e fez isso com competência por duas vezes, em trabalhos que se complementam.

Oliver Stone confirma que é um diretor competente e, acima de tudo, corajoso ao tocar novamente na ferida norte-americana provocada pela guerra do Vietnã. Com um roteiro audacioso, ainda que tenha problemas, e uma grande atuação de Tom Cruise, “Nascido em 4 de Julho” consegue transmitir a mensagem que deseja, tocando o espectador e principalmente, abrindo os olhos para a triste realidade da guerra, aquela que não aparece nas propagandas e discursos inflamados de governantes. Felizmente, o cinema se encarregou de mostrar a realidade ao longo dos anos através de obras marcantes como esta.

Texto publicado em 07 de Setembro de 2010 por Roberto Siqueira

PLATOON (1986)

(Platoon)

 

Videoteca do Beto #45

Vencedores do Oscar #1986

Dirigido por Oliver Stone.

Elenco: Tom Berenger, Willem Dafoe, Charlie Sheen, Forest Whitaker, Francesco Quinn, John C. McGinley, Richard Edson, Kevin Dillon, Reggie Johnson, Keith David, Johnny Depp, David Neidorf, Mark Moses, Chris Pedersen, Tony Todd, Corkey Ford, Dale Dye e Oliver Stone.

Roteiro: Oliver Stone.

Produção: Arnold Kopelson.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido o filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Antes mesmo de suas primeiras imagens, “Platoon”, maravilhoso e verdadeiro retrato do que foi a guerra do Vietnã dirigido por Oliver Stone, deixa claro uma das grandes perdas da guerra. A frase bíblica “Jovem, regozija-te na juventude” faz questão de reforçar que a juventude e a inocência que ela carrega são deixadas no combate, independente da sobrevivência ou não daqueles jovens que são enviados para o fronte.

O jovem e idealista Chris (Charlie Sheen), insatisfeito com a vida comum que seus pais queriam que vivesse, decide se tornar voluntário na guerra do Vietnã e defender seu país como o pai e o avô fizeram em outras guerras. Mas aos poucos, a convivência com o pelotão liderado por Barnes (Tom Berenger) e Elias (Willem Dafoe) e a terrível violência sem sentido da guerra vão alterando completamente sua visão do mundo.

Oliver Stone dirige “Platoon” com conhecimento de causa, já que o diretor é um ex-combatente da guerra do Vietnã. Não à toa, o excelente roteiro escrito por ele próprio escancara os conflitos internos do pelotão, jamais sendo ufanista ou maniqueísta e fazendo questão de mostrar os norte-americanos como seres humanos normais, que cometem erros e acertos e chegam até mesmo a ser cruéis em determinados momentos, como na chocante cena em que atacam uma aldeia. Stone utiliza ainda o inteligente artifício de expor os pensamentos de Chris através das cartas que envia para a avó, fazendo com que o espectador saiba o que ele pensa sem que a narração soe falsa ou deslocada. Repare como os pensamentos cessam subitamente a partir do momento em que Chris deixa de enviar as cartas, pois o jovem percebe que aquilo não fazia mais sentido e corta sua ligação com o mundo exterior.

Stone é ainda mais competente na direção, utilizando a câmera panorâmica com freqüência para ambientar o espectador dentro da hostil selva que o pelotão vai desbravando e alternando o movimento com closes das folhas e árvores, fazendo com que o incômodo seja praticamente palpável ao caminhar pela mata. Colabora na ambientação o excepcional trabalho de som, perfeito desde os pequenos insetos, cigarras e pés estalando folhas no chão até os muitos tiros e bombas explodindo durante os combates. Aliás, o diretor também mostra sua competência nestas seqüências de combate – auxiliado pela boa montagem de Claire Simpson – alternando o close no rosto dos angustiados soldados com planos que demonstram o ponto de vista deles, buscando desesperadamente encontrar o inimigo entre as brechas da floresta e ao mesmo tempo, tentando se proteger dos ataques. Neste sentido, vale destacar o tenso primeiro contato entre o pelotão e os vietnamitas, extremamente bem dirigido por Stone, deixando o espectador lado a lado com Chris, que está distante de sua arma e das granadas, enquanto nota a aproximação dos nativos disfarçados com galhos de árvore presos aos capacetes. Outro grande momento é a triste seqüência da queima da aldeia, exemplificando perfeitamente a insanidade da guerra. “Platoon” também é extremamente realista na forma como retrata os feridos em combate, não aliviando em nada o desagradável resultado de toda aquela carnificina. Finalmente, é importante ressaltar a excelente direção de fotografia de Robert Richardson, que adota um tom obscuro e torna ainda mais sombrias as cenas noturnas, e que mesmo durante o dia, onde destaca a cor verde, mantém a paleta escura refletindo o clima melancólico do longa.

Inconformado por saber que somente os jovens da base da pirâmide social eram enviados para a guerra, Chris decide abandonar os estudos e tornar-se voluntário, o que faz um companheiro de Vietnã questionar sua sanidade (“Só sendo rico para pensar assim”. “Os ricos pisam nos pobres. Sempre foi assim e sempre será”). Mas infelizmente, a inocência é mesmo a primeira vítima da guerra. Jovem de boa formação e idealista, Chris percebe durante sua passagem pelo Vietnã que “defender o país” não é algo tão nobre assim. Charlie Sheen retrata com precisão a gradual transformação de Chris, que chega até mesmo a perder a cabeça quando atira em um deficiente físico vietnamita para fazê-lo dançar, mas se redime momentos depois ao interromper um estupro coletivo de garotas nativas. Esta cena, vale lembrar, contém uma pequena pérola do roteiro, que capta muito bem a mensagem anti-bélica do filme, quando um dos soldados questiona “Você é homossexual? Ela é uma vietnamita!”, e Chris responde: “Ela é um ser humano!”. No reencontro entre Barnes e Chris, logo após a morte de Elias, Sheen demonstra com o olhar sua raiva, explodindo segundos depois contra o sargento vivido por Berenger (“A verdade está no olhar”). Tom Berenger, aliás, que é o grande destaque do longa, com uma atuação firme e assustadora, que atinge seus melhores momentos na rígida discussão que tem com o sargento Elias e na seqüência em que escuta alguns soldados falando em matá-lo (“Estão falando em matar?”), onde com o olhar firme, questiona a fuga da realidade daquele grupo (“Vocês fumam pra fugir da realidade? Eu sou a realidade”). O seco sargento Barnes é um homem transformado pela guerra, alguém que acredita cegamente que está agindo de forma correta, mesmo que para isto tenha que matar pessoas inocentes. Sua personificação do terror chega ao auge no plano em que se prepara para matar Chris. Ironicamente, Barnes falha e acaba sendo vítima do garoto, que por sua vez, completa ali sua total transformação.

Willem Dafoe também se destaca como o sargento Elias, que após tanto tempo em serviço, simplesmente perdeu a motivação e já não mais acredita na finalidade de tudo aquilo, como deixa claro em um diálogo que tem com Chris. Neste mesmo diálogo, Elias reflete também a perda da inocência do povo americano, simbolizada historicamente no conflito do Vietnã (“Já maltratamos tantos outros povos. Acho que agora chegou a nossa vez”). Além da citada discussão com Barnes, em que Dafoe também se destaca, um plano em especial merece ser citado em sua atuação. Segundos antes de ser baleado pelo sargento rival, o incrédulo Elias muda o olhar e pressente o ataque, e Stone – através de um close em seus olhos – capta o momento inspirado de Dafoe com precisão. Surpreendentemente, Elias sobrevive, somente para morrer depois num ataque em massa dos vietnamitas, em outro plano de grande impacto acompanhado pela melancólica trilha sonora de Georges Delerue. Completam o elenco, entre outros, Forest Whitaker e Johnny Depp (em papéis menores), além do próprio Oliver Stone, que faz uma pequena participação já na seqüência final.

Por tudo isto, “Platoon” pode ser considerado um retrato fiel do que foi a guerra do Vietnã, exposto por alguém que esteve lá dentro de fato, e por isso, sabe como ninguém os efeitos causados pelo conflito na mente do ser humano. Retratada também com competência em outros grandes filmes, como Apocalypse Now (de Francis Ford Coppola), esta guerra parece ser mesmo a ferida aberta no país mais poderoso do mundo atualmente. Ou pelo menos era, até o fatídico dia 11 de Setembro de 2001, que curiosamente, gerou novos conflitos envolvendo os Estados Unidos da América, e provavelmente, gerará novos “Oliver Stone” no futuro.

“Platoon” revela a visão peculiar de Oliver Stone sobre o confronto mais marcante na vida dos norte-americanos. Mas as marcas deixadas no povo, por mais profundas que sejam, não se comparam às marcas deixadas nos combatentes que sobreviveram e levaram consigo aquelas tristes memórias. Os dois momentos marcantes da passagem de Chris pelo Vietnã – a morte de Elias e a saída do Vietnã – acontecem em sobrevôos idênticos, acompanhados pela mesma melancólica trilha sonora. E no segundo vôo, a imagem dos corpos jogados no enorme buraco é simplesmente perturbadora. Nas palavras finais dele, “a guerra acabou, mas aquelas imagens ficarão pra sempre em sua memória”. E ficarão também na memória do espectador, assim como o competente filme dirigido por Oliver Stone.

Texto publicado em 13 de Fevereiro de 2010 por Roberto Siqueira

SCARFACE (1983)

(Scarface)

 

Videoteca do Beto #29

Dirigido por Brian De Palma.

Elenco: Al Pacino, Steven Bauer, Michelle Pfeiffer, Mary Elizabeth Mastrantonio, Robert Loggia, Miriam Colon, F. Murray Abraham, Paul Shenar, Harris Yulin, Ángel Salazar, Arnaldo Santana, Pepe Serna, Michael P. Moran e Al Israel.

Roteiro: Oliver Stone.

Produção: Martin Bregman.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido o filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Scarface é um filme violento. O mundo em que é ambientado também. E é exatamente por retratar com muita veracidade o perigoso e sanguinário mundo do tráfico de drogas que o grande filme dirigido por Brian De Palma acerta em cheio e agrada bastante. É claro, o carisma e o talento de Al Pacino na criação de um personagem absolutamente fascinante, por mais nojento e sem escrúpulos que seja, colabora e muito para o sucesso do longa. E é justamente este personagem que, aliado à violência gráfica e a dinâmica das cenas criadas por De Palma, consegue fazer de Scarface um filme empolgante.

Em Maio de 1980, Fidel Castro abriu o porto de Mariel, em Cuba, com a aparente intenção de liberar os cubanos para visitar seus familiares nos Estados Unidos. Em menos de 72 horas, as três mil embarcações que chegaram a Cuba perceberam que não só os civis embarcavam, mas também todos os tipos de criminosos, que eram obrigados por Castro a deixar o país. Entre eles estava Tony Montana (Al Pacino), que pouco tempo depois de chegar à Miami, começa a trabalhar pra o chefão do tráfico local. Será apenas questão de tempo para que Tony passe por cima de todos e alcance o topo da organização criminosa, conquistando tudo que desejava: poder, dinheiro e Elvira (Michelle Pfeiffer), a mulher de seus sonhos.

Scarface começa, acertadamente, descrevendo a situação política que levou o criminoso Tony Montana de Cuba até os EUA. A legenda e o vídeo mostram a saída dos exilados, deixando claro em que circunstâncias aquelas pessoas estavam deixando o país de Fidel, resultando numa invasão de criminosos latinos em Miami. Esta ótima introdução do filme é mérito do bom roteiro de Oliver Stone, que desenvolve muito bem os personagens e cria uma cadeia de relacionamentos responsável pelo crescimento, e posteriormente, pela queda trágica de Tony. O roteiro tem o mérito ainda de mostrar sem constrangimentos como funciona o mundo do crime, através de um diálogo entre Tony e um policial na boate. Com um bom roteiro em mãos, o talentoso Brian De Palma abusa do estilo e da elegância na criação de planos ousados e travellings, como na cena em que a câmera sai do meio da revolta na prisão e vai até o local onde Rebenga será morto, ou em outro momento ainda mais inspirado, em que o travelling vai desde o quarto do Hotel onde Tony e um amigo estão acuados até o carro onde Manny (Steven Bauer) paquera uma garota, somente para voltar ao banheiro do hotel logo em seguida, onde podemos ouvir o som da serra elétrica já atacando o amigo de Tony. Nos retorcemos na cadeira e nos desesperamos, torcendo para que os amigos cheguem à tempo de salvá-lo. De Palma é competente também no extremo realismo das cenas, que muitas vezes apenas sugerem o que acontece, como nesta do banheiro, onde podemos ver o sangue espirrando na cortina ao som da serra elétrica. Muitas outras cenas se destacam, como o tiroteio na boate, que é o estopim para o grande salto de Tony, a pesada morte de Frank (quando o diretor mostra o relógio apontando três horas e volta para Frank, sabemos que ele vai morrer), a simbólica cena em que Tony olha para o balão com a frase “O mundo é seu” e o belo clipe que mostra a construção do império Montana (a negociação com o banco, o casamento, o salão de beleza para a irmã). Além disso, De Palma demonstra sensibilidade naquela que talvez seja a cena com a maior carga emocional do longa: a triste morte de Manny. De certa forma previsível, devido ao temperamento explosivo de Tony, a cena não deixa de ser chocante e a câmera lenta diminui o impacto no espectador, ao mesmo tempo em que realça as reações dos personagens, principalmente de Gina (Mary Elizabeth Mastrantonio).

Mas se Tony é um criminoso tão podre e desprezível, porque torcemos tanto pelo seu sucesso? O segredo está na excelente introdução do personagem. Quando vemos Tony Montana pela primeira vez, ele está numa posição altamente vulnerável, cercado por policiais, sendo interrogado e claramente acuado. Até o movimento de câmera (na altura da visão dele e mostrando os policiais da cintura pra baixo) influencia em nossa identificação, fazendo com que o espectador também se sinta intimidado. Esta ligação criada no começo do filme será o elo para que, mesmo rejeitando grande parte das atitudes de Montana, o espectador torça pelo seu sucesso, ou pelo menos, por sua salvação. Colabora, é claro, o grande talento e carisma de Al Pacino, e sua atuação é espetacular. Com sotaque perfeito, olhar desconfiado e provocador, oscilações repentinas no tom de voz, poucos sorrisos e mostrando claramente a obstinação em alcançar o topo (“Neste país, primeiro é necessário ganhar dinheiro, depois poder e só depois as mulheres”), ele cria um criminoso mais que temível. Sua fala é sempre convicta. Tony não tem piedade, não teme ninguém e não respeita nenhuma regra. Sua ética se resume a não matar mulheres e crianças inocentes. Por outro lado, seu frio coração é capaz de demonstrar sentimentos também. O primeiro deles é a verdadeira obsessão pela mulher de Frank (Robert Loggia), o chefão do crime na cidade. Elvira é uma mulher sensual, que mais parece um troféu do que uma pessoa para Tony. E ele não sossega enquanto não a conquista, somente para depois tratá-la de forma desprezível. Os outros sentimentos são por aquela que talvez seja a única pessoa que ele ama de verdade, sua irmã Gina. O olhar dele quando vê a irmã dançando – reforçado pela trilha e pelo close em seus olhos – indica a fúria que sentia ao imaginar que alguém pudesse fazer mal a ela. Extremamente ciumento e super protetor, não permite que sua irmã cuide da própria vida, o que não deixa de ser egoísta da parte dele. Egoísmo e ganância, aliás, são palavras que definem muito bem a personalidade de Montana. Ele critica o capitalismo, mas nas palavras de Elvira, “é o maior capitalista” que ela já conheceu. Seu palácio demonstra o quanto gostava de ostentar riqueza, com objetos dourados e luxuosos (Direção de Arte de Edward Richardson). Em uma discussão dentro dele com Elvira e Manny, expõe todo seu egoísmo, dizendo que não precisa de ninguém. O criminoso até ensaia uma auto-reflexão num jantar com a esposa e o amigo, onde bêbado, questiona o que conquistou com o dinheiro (“Então é isso… Bebidas, comidas, cocaína, chegar aos cinqüenta anos barrigudo e com o fígado estragado… Foi pra isso que trabalhei tanto?”), mas, diante de tantos aspectos podres, o único que se salva mesmo é a sua decisão de não matar mulheres e crianças, que fica evidente na forte cena em que mata um comparsa para evitar uma tragédia (o que, ironicamente, leva ao seu fim).

Nos restante do elenco, o maior destaque fica para Mary Elizabeth Mastrantonio, muito bem como Gina, a irmã de Tony, como podemos observar na cena dentro do banheiro, quando se revolta contra o irmão, e no final do filme, quando explode contra ele. Fica evidente quando Montana tenta cuidar dela, já morta, que seu sentimento era muito difícil de entender, até mesmo pra Gina. Cego, ao tentar protegê-la, impedia que ela vivesse e fosse feliz. Michele Pfeifer tem atuação irregular como Elvira, uma mulher que despreza aquelas pessoas ao mesmo tempo em que não consegue largar o luxo que elas proporcionam. Pfeifer fracassa na cena mais dramática, dentro do restaurante, não mostrando a agressividade que o momento pedia. Por outro lado, vai muito bem quando é irônica, como quando diz que não entra no carro de Tony (gerando um olhar muito engraçado de Pacino para o Cadillac), além de demonstrar sutilmente seu interesse por Tony dando um leve sorriso quando ele coloca um chapéu feminino. Já a atuação de Miriam Colon como a mãe de Tony merece grande destaque, como podemos perceber logo em sua primeira aparição, demonstrando que não teme o criminoso e nem o respeita. Ele é uma decepção na vida dela e Colon deixa isto bem claro, de forma explosiva. F. Murray Abraham interpreta sem muito destaque o criminoso Omar e a forte cena de sua execução mostra que não existe lealdade neste mundo do tráfico. Completando o elenco, Steven Bauer tem boa atuação como Manny Ray, o amigo fiel de Tony, sempre tentando controlar os impulsos do parceiro. Malando, sabe exatamente os seus limites, como deixa claro na conversa com Gina no carro. O curioso é que justamente quando achou que podia cruzar esta linha, Manny encontrou a morte. E claro, vale a pena citar a engraçada reação de Arnaldo Santana, que interpreta Earnie, quando Montana, após matar Frank, pergunta pra ele: “Quer um emprego Earnie? Me liga amanhã”.

Tecnicamente, Scarface é muito competente. A montagem de Gerald B. Greenberg e David Ray é ágil e mantém o ritmo empolgante da narrativa (em certo momento faz uma interessante transição no tempo através dos ponteiros do relógio), enquanto o som funciona muito bem, por exemplo, durante o tiroteio no Hotel, onde podemos ouvir os gritos das pessoas na rua e nos quartos ao lado. A trilha sonora alterna momentos delicados, especialmente quando envolve as mulheres, com momentos de ritmo acelerado, principalmente nas cenas de ação. Observe como na primeira aparição de Elvira, a trilha sonora (reforçada pelo olhar fixo dele) indica o interesse de Tony por ela. A direção de fotografia de John A. Alonzo mistura as tradicionais sombras dos filmes de gângster com o festival de cores da cidade de Miami.

Scarface apresenta o mundo do tráfico de forma crua, sem jamais tentar discuti-lo, se resumindo a mostrar da forma mais violenta possível como se vive neste meio. Desta forma, evita criar um debate, por exemplo, sobre os motivos que levam alguém a vender, comprar ou utilizar drogas. Tony até tenta argumentar que o governo não quer autorizar a legalização porque todos ganham com isso (o próprio governo, a policia e os traficantes), o que merece discussão. Mas o propósito do filme não é este. O plano de Tony com quilos de cocaína em volta dele demonstra visualmente como aquela droga e o poder que ela trouxe engoliram o criminoso. Ele foi tragado pelo poder, pela ganância, e destruiu sua vida. Mesmo assim, o durão e destemido vilão não cai com as balas, num final que remete à “Touro Indomável”, quando La Motta diz que seu adversário não o derrubou. Mas Montana, ao contrário de La Motta, não resistiu ao último golpe, e o tiro de misericórdia o jogou na piscina, enfeitada com o irônico letreiro “o mundo é seu”. Tony desejou o mundo e o teve, mas este mesmo mundo o destruiu.

Mostrando a ascensão e queda de um dos maiores criminosos já retratados em celulóide, Scarface consegue causar impacto através de imagens chocantes, realistas e extremamente violentas. Por outro lado, cria empatia com o espectador, graças a um personagem que, mesmo sendo uma pessoa absolutamente desprezível do ponto de vista ético e moral, consegue ser fascinante. O mérito é da excelente direção de Brian De Palma e da grande atuação de Al Pacino. A ambição de Tony o levou ao topo e também o derrubou. A ambição de Brian De Palma e Al Pacino nos brindou com um grande filme. E este não vai cair, nem mesmo com o tempo.

Texto publicado em 23 de Dezembro de 2009 por Roberto Siqueira