Vídeo: Mank

No vídeo de hoje, conversei com Hector Colacelli sobre “Mank”, novo longa de David Fincher, estrelado por Gary Oldman e Amanda Seyfried, disponível na Netflix.

Confira:

Um abraço e uma semana cinematográfica para todos nós!

Vídeo publicado em 13 de Dezembro de 2020 por Roberto Siqueira

DRÁCULA DE BRAM STOKER (1992)

(Dracula)

Filmes em Geral #89

Dirigido por Francis Ford Coppola.

Elenco: Gary Oldman, Winona Ryder, Anthony Hopkins, Keanu Reeves, Richard E. Grant, Cary Elwes, Bill Campbell, Sadie Frost, Tom Waits, Monica Bellucci e Jay Robinson.

Roteiro: James V. Hart, baseado em romance de Bram Stoker.

Produção: Francis Ford Coppola, Fred Fuchs e Charles Mulvehill.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

O mínimo que podemos esperar de um filme dirigido por Francis Ford Coppola é o cuidado com os detalhes que ajudam a criar um visual marcante. Seja em filmes de época com grandes orçamentos como “O Poderoso Chefão” ou em filmes menores (mas nem por isso menos qualificados) como a pérola “A Conversação”, o cuidado com o aspecto visual sempre foi uma marca do diretor. O problema é que na maioria das vezes Coppola também se preocupava com a composição dos personagens e a condução da narrativa, algo que, infelizmente, não ocorre de maneira tão eficiente neste “Drácula de Bram Stoker”, um filme visualmente belo, mas emocionalmente vazio.

Baseado no mítico romance de Bram Stoker, o roteiro escrito por James V. Hart é bastante fiel à obra que o inspirou (o que certamente agradou aos fãs), narrando a história desde os tempos em que o guerreiro Drácula (Gary Oldman) se revolta contra Deus após o suicídio de sua esposa até quando o advogado Jonathan Harker (Keanu Reeves) fica aprisionado em seu imponente castelo, enquanto ele parte para Londres em busca de Mina (Winona Ryder), a noiva de Harker que Drácula acredita ser a reencarnação de sua amada.

Historicamente, a lenda do Drácula costuma provocar fascínio, misturando elementos díspares com o terror, a sensualidade e o amor. Ciente disso, Coppola investe nestes elementos clássicos, deixando clara sua preferência pelo “amor”, numa estratégia que busca romantizar o vampiro e justificar suas ações diante do espectador. Só que desta vez ele comete um erro raro em sua carreira e perde a mão, exagerando na abordagem romântica e enfraquecendo o lado sombrio da narrativa. Além disso, a caracterização do Drácula soa exagerada, com sua maquiagem carregada passando do ponto ideal, mas felizmente a boa atuação do excelente Gary Oldman compensa esta falha. Inicialmente limitado ao papel de vampiro assustador, lentamente Oldman transforma o Drácula num personagem carismático, conseguindo a proeza de fazer o espectador torcer por ele em alguns momentos e fazendo jus a fama de sedutor do personagem.

Enquanto isso, o quase sempre inexpressivo Keanu Reeves até que se sai bem inicialmente, mas é totalmente ofuscado diante da presença de Anthony Hopkins do segundo ato em diante, que assume muito bem a função de herói e rouba a cena com seu Van Helsing. Pra piorar, mesmo com cabelo grisalho e tudo mais, o envelhecimento de Reeves não convence graças ao seu rosto juvenil. O ator também não consegue estabelecer boa química com a bela Winona Ryder, que exala a delicadeza necessária no papel e se sai bem melhor ao lado de Gary Oldman. Fechando o elenco, vale citar a caricata atuação de Tom Waits como o lunático Renfield e o desempenho selvagem de Sadie Frost como Lucy, que cai muito bem no papel.

Mas “Drácula de Bram Stoker” também tem suas qualidades. A começar pela competente direção de arte de Andrew Precht e pelos figurinos impecáveis de Eiko Ishioka que reforçam a ambientação do espectador e colaboram na criação de um visual marcante. Apoiando-se neste bom trabalho e na fotografia repleta de tons avermelhados de Michael Ballhaus, Coppola cria diversos planos estilizados, abusando também de recursos como a aceleração da imagem, criando um visual sombrio, normalmente reforçado pela chuva e pelo vento, que se torna ainda mais expressivo pelo uso constante da sensualidade feminina numa trama que naturalmente já é carregada de conotação sexual. Aliás, vale reparar também como a fotografia colorida das cenas que envolvem Mina contrasta bastante com os tons obscuros na Transilvânia, onde até mesmo as sombras ganham vida. Finalmente, o diretor não se esquece de homenagear os filmes antigos do famoso vampiro, fazendo referência ao clássico “Nosferatu”, de 1922, e a outros filmes clássicos, por exemplo, na aula do professor Van Helsing e ao utilizar uma paleta granulada na chegada de Drácula em Londres, numa alusão aos tempos da moviola.

A estilização visual continua através da montagem de Anne Goursaud, Glen Scantlebury e Nicholas C. Smith, que abusa de transições interessantes, como quando a pluma de um pavão se transforma no túnel de um trem ou quando os furos no pescoço de Lucy dão lugar aos olhos de um lobo. E ainda que possam parecer datados atualmente, os efeitos especiais funcionam na verdade como outra grande homenagem ao cinema antigo, com trucagens, maquetes e pinturas de fundo que tornam o aspecto visual de “Drácula de Bram Stoker” ainda mais impressionante. Fechando a parte técnica, a trilha sonora de Wojciech Kilar alterna bem entre os tons macabros, como quando o navio que traz Drácula chega a Londres, e os momentos melódicos, como no belo encontro entre Mina e Drácula num quarto.

Voltamos então ao problema central de “Drácula de Bram Stoker”. Talvez pela boa química existente nas cenas que envolvem Ryder e Oldman, Coppola acaba investindo demasiadamente neste lado romântico, enfraquecendo outro aspecto muito importante da narrativa, que é o lado sombrio do vampiro. Até mesmo a frase que promoveu o filme denuncia esta abordagem excessivamente melódica (“O amor nunca morre”), mas estes momentos adocicados demais acabam esvaziando o longa, ainda que em certos momentos Coppola consiga sucesso em sua abordagem, como quando Drácula diz para Mina que a ama demais para condená-la. Reequilibrando a conta, o decepcionante terceiro ato traz uma perseguição que jamais empolga e um final seco demais, impedindo que Coppola entregue um trabalho a altura de sua brilhante carreira. Ainda assim, trata-se de um bom filme.

Grandioso e operístico como um filme de Coppola deve ser, “Drácula de Bram Stoker” é um deleite para os olhos, mas funciona exatamente como aquela moça bonita que perde seu encanto após meia hora de conversa. Infelizmente, beleza não é tudo.

Texto publicado em 16 de Outubro de 2012 por Roberto Siqueira

JFK – A PERGUNTA QUE NÃO QUER CALAR (1991)

(JFK)

 

 

Videoteca do Beto #77

Dirigido por Oliver Stone.

Elenco: Kevin Costner, Tommy Lee Jones, Joe Pesci, Sissy Spacek, Laurie Metcalf, Gary Oldman, Kevin Bacon, Beata Pozniak, Donald Sutherland, Jack Lemmon, Walter Matthau, Vincent D’Onofrio, Martin Sheen, Michael Rooker, Jay O. Sanders, Brian Doyle-Murray, Gary Grubbs, Wayne Knight, Jo Anderson, Pruitt Taylor Vince, Sally Kirkland, Steve Reed, Jodie Farber, Columbia Dubose, Randy Means, Gary Carter, John Candy, Lolita Davidovich, Dale Dye, Ron Rifkin e Jim Morrison.

Roteiro: Oliver Stone e Zachary Sklar, baseado nos livros de Jim Marrs e Jim Garrison.

Produção: A. Kitman Ho e Oliver Stone.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Oliver Stone é um diretor polêmico, capaz de tocar na ferida provocada pela guerra do Vietnã como poucos (“Platoon” e “Nascido em 4 de Julho”), de criticar o sensacionalismo da imprensa (“Assassinos por Natureza”) e de mostrar o mundo obscuro dos negócios (“Wall Street – Poder e Cobiça”). Mas apesar de sua conhecida coragem, nunca o diretor foi tão polêmico (e proporcionalmente competente) como em “JFK – A pergunta que não quer calar”, filme que escancarou para o mundo a até hoje mal explicada solução dada para o assassinato de John Kennedy pela comissão Warren. Com um elenco numeroso e afinado e muita competência na organização de uma narrativa complexa, Stone entregou uma verdadeira obra-prima do cinema, que se não prova definitivamente a existência de uma conspiração, chega muito perto disto.

O promotor Jim Garrison (Kevin Costner) decide liderar uma investigação extra-oficial para o assassinato do presidente John F. Kennedy na tentativa de provar a existência de uma gigantesca conspiração, contrariando a conclusão da comissão Warren, que afirma ser Lee Harvey Oswald (Gary Oldman) o único responsável pelo crime.

Escrito por Oliver Stone e Zachary Sklar, baseado nos livros de Jim Marrs e Jim Garrison (olha ele aqui), “JFK” apresenta uma narrativa incrivelmente complexa, que consegue manter a atenção do espectador em cada minuto de projeção. O intrincado roteiro, repleto de informações e diálogos ágeis, além de flashbacks acompanhados de imagens que ilustram o raciocínio dos personagens, apresenta uma gama enorme de personagens numa seqüência estruturada com perfeição para que o espectador não se perca diante de tamanha complexidade. Este impressionante número de personagens importantes que cruzam a narrativa serve também para reconstituir com precisão o complicado processo de investigação daquele dia trágico, sempre sob a liderança do centrado (porém inquieto) Jim Garrison. Toda a investigação, aliás, é conduzida num ritmo intenso, que leva o espectador junto na jornada, como se estivéssemos fazendo parte daquele processo ao lado da equipe de Garrison. E a base de todo o trabalho do promotor aparece logo na introdução do filme, num vídeo com imagens de arquivo que mostra John Kennedy declarando suas idéias sobre a guerra do Vietnã, sua pretensão de retirar as tropas norte-americanas da região, sua proposta de “mudança” no olhar para a União Soviética e sua intenção de mudar no conceito de paz, “diferente daquela paz imposta pelos Estados Unidos ao mundo através da força”. Não por acaso, logo após a morte de Kennedy, o novo presidente decide manter as tropas no Vietnã. E se este fato pode até ser questionado por aqueles que acreditam no “único culpado” Lee Oswald, a simulação no prédio, quando Garrison tenta reproduzir os tiros de Oswald com o mesmo rifle, prova definitivamente que a teoria da comissão Warren é, no mínimo, questionável.

É importante ressaltar, no entanto, que “JFK” não se resume às polêmicas que cercam sua obstinada investigação. O longa de Oliver Stone é, acima de tudo, um trabalho cinematográfico excepcional, que se destaca especialmente na direção de Stone, na montagem de Joe Hutshing e Pietro Scalia e na direção de fotografia de Robert Richardson. Stone conduz a narrativa com incrível habilidade, com sua câmera inquieta que auxilia no clima de urgência da narrativa, mas conta especialmente com a fantástica montagem de Hutshing e Scalia, que emprega um ritmo intenso, alternando com velocidade entre o presente, quando Garrison conduz a investigação, e o passado, quando as cenas revivem o fatídico dia, e, ao mesmo tempo, ilustram o pensamento dos personagens no presente. Na precisa reconstituição do assassinato, merece destaque também o som, com os gritos e tiros que dão a exata noção do pânico daquele momento, ampliado pela tensa trilha sonora de John Williams. Já a fotografia de Richardson utiliza diversas câmeras (incluindo câmeras de 16 mm e Super 8), indo do visual sépia para o preto-e-branco, e até mesmo utilizando imagens de arquivo para reforçar toda a teoria que inspira o longa. Stone chega a introduzir um vídeo chocante, com a imagem do exato momento em que Kennedy é atingido, numa imagem capaz de perturbar qualquer um.  Aliás, a longa e sensacional seqüência em que Garrison explica a “teoria da bala mágica” nocauteia o espectador, também por causa do excelente desempenho de Kevin Costner, que transmite muita confiança e emoção enquanto fala, provando sua qualidade como ator. Não sei se todas as pessoas e instituições citadas estavam envolvidas naquele assassinato, mas após esta explicação emocionada de Garrison, o vídeo e a informação de que os arquivos estão proibidos para o público até 2029 é muito difícil não concordar que realmente houve uma conspiração.

E já que citei Kevin Costner, vale dizer que todo este incrível trabalho técnico de nada adiantaria se as atuações de “JFK” não fossem tão competentes. A começar pelo próprio Costner, que encarna muito bem o tranqüilo Jim Garrison, numa atuação convincente e coerente com a personalidade do promotor, que lentamente altera seu comportamento, se tornando uma pessoa atormentada diante de suas descobertas, que influenciam até mesmo sua relação com a esposa Liz (Sissy Spacek, também em grande atuação), algo ilustrando perfeitamente quando ele perde o domingo de páscoa com a família para interrogar Clay Shaw (Tommy Lee Jones). A dinâmica do casal é fundamental para compreender os efeitos daquela investigação na vida do promotor, ilustrados na excepcional cena em que Jim e Liz discutem na frente dos filhos e, com seus gritos e vozes embargadas, demonstram a situação quase insustentável daquela relação – e aqui vale observar como Costner demonstra até mesmo certo desconforto por estar diante dos filhos, procurando abraçá-los imediatamente após o fim da discussão. O ator volta a se destacar ainda quando seu olhar mistura incredulidade e passividade diante da matéria da imprensa que busca destruir sua imagem diante da sociedade (algo que de fato aconteceu, pois até hoje muita gente afirma que Garrison buscava se promover ao se envolver em casos polêmicos, revelando um pensamento que certamente interessa às pessoas e instituições atingidas pela investigação dele). Ironicamente, sua própria esposa o acusa de estar fazendo o mesmo com a imagem de Clay Shaw, interpretado brilhantemente por Tommy Lee Jones, que transmite muito cinismo, especialmente quando é interrogado por Garrison, provocando a explosão do promotor, num diálogo tenso e muito bem construído. E o que dizer de Joe Pesci, novamente espetacular, fumando muitos cigarros e transmitindo com perfeição a inquietação de David Ferrie? Seu nervosismo fica ainda mais evidente quando ele vai ao encontro de Garrison, amedrontado com a descoberta da imprensa sobre as investigações, quando Pesci olha para todos os lados, abre as portas com desconfiança e se assusta quando alguém bate na porta, mostrando claramente o quanto Ferrie está perturbado – algo ilustrado também pela câmera agitada de Stone e pela trilha sonora acelerada. Seu desespero resulta na revelação das intenções da CIA e dos exilados cubanos, revoltados com a postura de Kennedy diante do fracasso da invasão da “baía dos porcos”. Já Kevin Bacon está excelente em sua pequena participação como Willie O’Keefe, o prisioneiro homossexual interrogado por Garrison, demonstrando através da fala rápida e do olhar agitado a inquietação do personagem. E finalmente, toda a equipe de Garrison mantém o bom nível das atuações, com destaque para Laurie Metcalf como Susie Cox, Michael Rooker como Bill Broussard e Jay O. Sanders como Lou Ivon.

Em certo momento de “JFK”, um personagem diz que a pergunta mais importante não é “quem” matou o presidente, mas “porque”. Trata-se do Sr. “X” (Donald Sutherland), que apresenta em poucos minutos o coração da teoria do filme. E confesso que é muito difícil (pelo menos pra mim) não acreditar nesta teoria diante da notória preferência norte-americana pelos conflitos armados. As guerras, obviamente, giram a economia do país, algo ilustrado sutilmente através das constantes notícias sobre o Vietnã no jornal e, de forma mais clara, nos números citados no longa, afinal de contas, são bilhões de dólares gastos na guerra – e estes dólares sempre entram no bolso de alguém. Sutherland colabora bastante para a credibilidade das informações dadas por seu personagem, transmitindo segurança no que fala e convencendo Garrison sobre a importância que a guerra tem para as empresas do país, como os citados fabricantes de helicópteros e até mesmo os fabricantes de armamentos. Diante de todo este cenário, é compreensível (ainda que repugnante) que um presidente que pregava a paz, a retirada das tropas do Vietnã e a reaproximação com a União Soviética fosse considerado uma ameaça aos interesses de muitos. Esta teoria é reforçada durante a discussão entre Bill e a equipe de Garrison, quando o jovem não se conforma diante das evidencias do envolvimento de instituições norte-americanas, algo amplificado pelo momento em que Garrison dá uma entrevista para uma emissora de televisão, demonstrando o envolvimento da imprensa em todo aquele processo. Pode parecer paranóia uma conspiração deste tamanho, mas sinceramente acho mais fácil acreditar nela do que na teoria da comissão Warren.

São tantos fatos históricos que reforçam os argumentos de “JFK” que é até mesmo incompreensível que algumas pessoas acreditem que apenas Lee Oswald seja o responsável pelo crime. Um destes fatos é a morte de Robert Kennedy, que aumenta ainda mais o desespero de Garrison – algo reforçado pelo zoom de Stone que realça a expressão de Costner. Depois deste fato, até mesmo Liz passa a acreditar no marido, e a fotografia sombria que envolve o beijo do casal, acompanhada pela triste trilha sonora e pela frase de Jim “queria poder te amar mais”, ilustra o quanto aquela relação foi enfraquecida pela investigação. E se podemos questionar a veracidade de alguns aspectos da impressionante investigação conduzida por Garrison ou considerar que Stone exagera na forma como os apresenta, a qualidade cinematográfica de sua obra é impressionante e inquestionável, conseguindo criar uma narrativa igualmente complexa e coesa.

Apresentando um dos fatos mais marcantes da história norte-americana e, mais do que isso, entrando em conflito direto com importantes órgãos como o FBI e a CIA, “JFK – A pergunta que não quer calar” impressiona principalmente porque a polêmica que o envolve é apenas um dos aspectos relevantes de um longa que acerta em praticamente tudo, começando pelos magníficos aspectos técnicos, passando pelas ótimas atuações e fechando na excepcional direção de Oliver Stone. Ao contrário do assassinato de Kennedy, aqui o organizado trabalho em conjunto resultou em algo benéfico. E assim como naquele abominável crime, este resultado ficará marcado eternamente na memória.

Texto publicado em 16 de Dezembro de 2010 por Roberto Siqueira

BATMAN – O CAVALEIRO DAS TREVAS (2008)

(The Dark Knight) 

5 Estrelas 

Filmes em Geral #3

Dirigido por Christopher Nolan.

Elenco: Christian Bale, Heath Ledger, Aaron Eckhart, Maggie Gyllenhall, Michael Caine, Morgan Freeman, Gary Oldman, Eric Roberts, Cillian Murphy, Anthony Michael Hall, Monique Curnen, Nestor Carbonell, Joshua Harto, Melinda McCraw e Nathan Gamble. 

Roteiro: Jonathan Nolan e Christopher Nolan, baseado em estória de Christopher Nolan e David S. Goyer e nos personagens criados por Bob Kane. 

Produção: Christopher Nolan, Charles Roven e Emma Thomas. 

Cavaleiro das Trevas

Filmes baseados em heróis dos quadrinhos costumam oferecer boas produções no cinema, sejam eles mais famosos (Homem-Aranha) ou menos conhecidos por parte do grande público (V de Vingança). Melhor ainda é quando estes filmes oferecem mais do que diversão, contendo narrativas inteligentes e personagens complexos. Pois este excelente Batman – O Cavaleiro das Trevas consegue ser muito mais que apenas um filme de super-herói, alcançando um peso dramático e uma carga de tensão do mais alto nível, tornando-se um filme de ação diferenciado e acima da média. Ao contrário do visual esplendido que Tim Burton empregava em seus filmes do homem-morcego, recheado de personagens rasos e propositalmente distantes da realidade, Christopher Nolan investe no peso dramático e na ambigüidade, oferecendo personagens fascinantes e uma narrativa maravilhosa.

Desde que Batman (Christian Bale) iniciou sua luta contra o crime organizado na cidade, os criminosos não conseguem mais ter vida fácil. Com o apoio do incorruptível promotor de justiça Harvey Dent (Aaron Eckhart) e do inteligente tenente James Gordon (Gary Oldman), o misterioso homem mascarado conseguiu sucesso em sua empreitada e despertou a ira dos criminosos. Ciente do poder de inibição que o herói provoca nos criminosos, Gordon utiliza a imagem projetada no céu com freqüência para controlar o crime. Por outro lado, pessoas comuns passaram a se vestir como Batman, o que evidentemente se tornou algo perigoso, já que estas pessoas não são capacitadas para combater os perigosos criminosos. Desesperados e sem muita saída, um grupo de mafiosos aceita a proposta de um estranho homem que usa maquiagem para esconder suas cicatrizes conhecido como Coringa (Heath Ledger), que ofereceu seus serviços para eliminar o homem-morcego da cidade.

Dirigido com competência por Christopher Nolan, o filme inicia em ritmo alucinante mostrando diversas ações paralelas que formarão a base da narrativa. Auxiliado pelo excelente trabalho de montagem de Lee Smith, que consegue manter o foco em todas estas ações paralelas e este ritmo acelerado durante todo o filme sem se tornar cansativo, Nolan consegue captar a atenção do espectador e nos jogar pra dentro da trama de forma muito convincente. Além disso, o inicio consegue introduzir de maneira exemplar o personagem mais fascinante do longa, o assustador Coringa. Nolan também é competente na criação de cenas plasticamente belas, como os travellings que sobrevoam as cidades e as empolgantes seqüências de ação e perseguição. Além disso, o diretor utiliza interessantes movimentos de câmera, como podemos notar durante o diálogo entre Gordon, Dent e Batman no terraço. A excelente fotografia azulada cria um ambiente frio e assustador, além de mergulhar os personagens em sombras e escuridão por diversas vezes, refletindo muito bem o sombrio universo do super-herói amargurado. Mas, apesar de cuidar muito bem de todos estes detalhes, é no desenvolvimento de personagens que Nolan demonstra toda sua competência, extraindo atuações do mais alto nível.

Apoiando-se no excelente roteiro escrito por ele próprio e seu irmão Jonathan Nolan, o diretor consegue criar personagens complexos e carregados dramaticamente, o que é sempre um prato cheio para os grandes atores. A narrativa dos irmãos Nolan tem como tema principal o lado egoísta e cruel existente dentro de cada ser humano, apontado através dos jogos propostos pelo vilão. O roteiro também aborda com competência outros temas interessantes, como a corrupção dentro das autoridades que deveriam oferecer segurança à sociedade, além de manter o espectador sempre grudado na tela devido às surpreendentes armadilhas do Coringa. Conta ainda com bons momentos de alivio cômico como a piada dos desaparecimentos do Batman, o nome alternativo que Alfred utiliza para bebidas alcoólicas e a frase do mesmo Alfred sobre o uso do Lamborghini.

Ciente de que toda a história da origem do homem-morcego foi corretamente abordada no filme anterior (Batman Begins), Nolan aproveita para focar ainda mais no desenvolvimento de seus pergonagens, o que possibilita ao elenco de primeira grandeza oferecer performances maravilhosas. Michael Caine está muito bem novamente como Alfred, firme em seus conselhos para Bruce Wayne e com seu ótimo senso de humor. A conversa entre eles sobre o ladrão de pedras preciosas revela muito sobre a personalidade caótica do grande vilão da trama. Christian Bale tem uma boa atuação como Bruce Wayne. Sua reação à insinuação de Alfred sobre seu interesse em Rachel é notável, quando ele vira o rosto e sai evitando o olhar do amigo. Seu momento mais tocante é quando chora a perda de alguém muito importante e reflete sobre o tipo de reação que causou na sociedade quando decidiu ser o Batman. Já com a máscara do homem-morcego seu desempenho é ainda melhor. Com a voz mais grave (e distorcida na pós-produção) e com muita segurança, ele consegue criar um herói ambíguo e amargurado pelas marcas do passado, dando muito peso dramático ao personagem. Morgan Freeman faz seu papel com extrema competência mais uma vez. Repare o sorriso contido de satisfação quando Wayne lhe pede para cancelar o acordo e ele responde “Você já sabia?”. Outra grande cena é quando Reese (Joshua Harto), o consultor das empresas Wayne, ameaça revelar a identidade secreta do Batman. Ele ri com muito cinismo e dá uma resposta muito inteligente ao rapaz, que demonstra através de seu rosto o arrependimento que sentiu. Ainda nas atuações, Aaron Eckhart também merece destaque como o promotor Harvey Dent. Seu arco dramático é incrível, transformando seu personagem de uma pessoa séria e comprometida com a causa para um vingador implacável e cruel que não tem mais código ético e moral após o duro golpe que sofreu. Sua transformação no vilão “Duas-Caras” é extremamente competente e tem total coerência com a narrativa, tornando o personagem mais próximo da realidade, o que o aproxima do público. Dent acaba se tornando o personagem símbolo da ideologia do vilão, que tenta provar que todos nós temos um lado mais obscuro. O momento da revelação de seu rosto é uma grande cena do filme. Interessante notar como a moeda utilizada por Dent se torna ainda mais simbólica após a tragédia que destruiu a vida do personagem, com o lado queimado passando a simbolizar a morte. Impressionante também é a comovente reação de Eckhart quando nota a moeda em seu leito.  Maggie Gyllenhall, apesar de não conseguir criar empatia com Christian Bale, consegue sucesso em sua relação com Eckhart, destacando-se na dramática cena em que aceita se casar com Dent. Gary Oldman completa o qualificado elenco de apoio oferecendo uma boa atuação, com destaque para a cena final do filme, quando demonstra sua aflição de forma muito convincente.

Entre tantas boas performances, uma chamou a atenção em particular. A histórica atuação de Heath Leadger compôs um personagem fascinante e temível. O Coringa dele é alguém sem apego a dinheiro ou regras, que tenta provar que no fundo de sua alma todo ser humano tem seu lado ruim e cruel. Sua intenção é provar que, quando colocadas em alguma situação de risco, as pessoas sempre tentarão salvar a própria pele, como fica evidente na cena dos barcos e em sua engraçada metáfora com os cães de um mafioso. Seu plano lembra por muitas vezes o de John Doe em Se7en, já que ambos não têm mais esperança no ser humano. Incrível como ele trabalhou em cada pequeno detalhe de sua atuação. Observe o tique da língua saindo da boca e os olhos nunca fixos, que demonstram a personalidade psicótica do rapaz. Repare o jeito de andar encurvado, o cabelo bagunçado, a voz anasalada, além é claro do rosto de palhaço extremamente realista, fruto do grande trabalho de maquiagem. A oscilação nada comum de seu senso de humor manifestada através das risadas estridentes e gritos que alternam repentinamente para um tom de voz baixo. Em momentos de extrema tensão ele mantém o controle dos nervos como se não tivesse nada a perder, como na cena em que, com um policial como refém, pede tranquilamente pra fazer uma ligação. Seu bom humor é irônico, e ele demonstra isso com competência, por exemplo, quando chama Rachel de gatinha e ajeita seu cabelo ou quando diz para Batman que ele escolheu as palavras incorretas. Seu momento mais genial é o diálogo com Batman dentro da sala de entrevistas da cadeia, revelando a parte cruel de seu plano e causando a ira em seu oponente (em bom momento de Bale que explode em cena). Nesta cena você pode notar todos os detalhes citados acima em Ledger, além de descobrir que na realidade o Coringa respeita o Batman e entende que eles são dependentes um do outro, pensamento este que fica evidente minutos depois, quando pede em público a morte de um determinado cidadão. Nota-se também nesta cena a excelente composição visual de Nolan, filmando no primeiro plano o comissário correndo pra abrir a porta e no segundo plano o irritado Batman indo trancá-la, ao som da risada do Coringa.

O trabalho técnico do filme também é extremamente competente. Desde a trilha sonora típica de filmes de ação, pesada e com picos de volume para criar tensão, até os espetaculares trabalhos de som e efeitos sonoros, capazes de captar cada pequeno detalhe como o som do pescoço do Coringa estalando e da capa do Batman voando. Os efeitos especiais trabalham para ajudar o filme (e não se tornam a razão de ser dele), como podemos notar nos perfeitos ferimentos no rosto do Duas-Caras e nas maravilhosas seqüências de ação.

Com um ou outro escorregão típico dos arrasta-quarteirões norte-americanos, como a cena do tribunal que faz uma piada patriota sobre armas e a eficiente contagem de votos nos barcos (engraçado como um país tão ineficiente na contagem de votos tenha uma contagem tão rápida), o filme consegue um peso dramático e um terceiro ato capaz de desnortear qualquer um. O diálogo entre Batman e Dent, logo após este último ameaçar de matar um esquizofrênico, revela muito sobre a linha de raciocínio da dupla Coringa e Batman e o que está em jogo. Dent não poderia sujar sua imagem de incorruptível perante a sociedade, ele era o herói que Gotham precisava naquele momento. E a decisão final do homem-morcego de assumir os crimes de outra pessoa e manchar de vez sua reputação naquela sociedade demonstra sua nobreza e seu comprometimento com a causa, jamais levando o crédito pra si mesmo em prol da criação de um mito que ajude na defesa contra o crime organizado. Um herói capaz de uma decisão pesada, cruel e altruísta como esta demonstra sua magnitude e grandeza. Grande também é o filme de Nolan, adulto, pesado e extremamente complexo.

Utilizando os personagens dos quadrinhos como fio condutor de uma produção ambiciosa e oferecendo uma narrativa brilhante e repleta de detalhes, Batman – O Cavaleiro das Trevas é um filme acima da média, com uma atuação antológica e outras muito competentes, que levam o espectador a um enorme cansaço emocional devido à carga psicológica envolvida na trama. Quem dera todo filme de ação tivesse como base para explosões e perseguições uma narrativa tão coesa e complexa como esta. Esta é uma franquia que tem muito ainda a oferecer. Robin, Pingüim, Charada, entre outros, são personagens que podem render outros excelentes roteiros. Espero que venham mais ótimos filmes como estas duas produções de Nolan.

Coringa

Texto publicado em 24 de Julho de 2009 por Roberto Siqueira