SEVEN – OS SETE CRIMES CAPITAIS (1995)

(Se7en)

 

 

Videoteca do Beto #136

Dirigido por David Fincher.

Elenco: Brad Pitt, Morgan Freeman, Gwyneth Paltrow, R. Lee Ermey, Kevin Spacey, Daniel Zacapa, John Cassini, Richard Roundtree, John C. McGinley, Richard Portnow, Leland Orser, Andrew Kevin Walker, Richard Schiff e Charles S. Dutton.

Roteiro: Andrew Kevin Walker.

Produção: Phyllis Carlyle e Arnold Kopelson.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Logo em seu segundo filme na carreira (antes ele dirigiu “Alien 3”), David Fincher já demonstrava todo seu talento neste sufocante thriller policial, capaz de grudar os espectadores na cadeira com sua atmosfera constante de tensão. Narrando uma história intrigante de maneira impecável, a obra-prima “Seven” não apenas funciona perfeitamente como uma complexa investigação policial na busca de um misterioso serial killer, como vai além, mostrando também a decadência da nossa sociedade e questionando os valores contemporâneos.

Muito bem escrito por Andrew Kevin Walker, o roteiro perfeito de “Seven” narra a investigação dos detetives David Mills (Brad Pitt) e William Somerset (Morgan Freeman), que tentam impedir um assassino em série que utiliza os sete pecados capitais como motivação para seus crimes.

Conduzindo uma narrativa envolvente e bem construída, o diretor David Fincher imprime um ritmo ágil durante todo o tempo, contando obviamente com a colaboração de seu montador Richard Francis-Bruce, que já demonstra seu talento nos sensacionais créditos iniciais, acompanhados de uma agitada música eletrônica (que denuncia a origem de Fincher, na época ex-diretor de videoclipes famosos na MTV) e que revelam ainda o planejamento meticuloso do criminoso antes que o espectador perceba o que está acontecendo. Indicando a passagem dos dias através de letreiros (não dá pra deixar de citar a beleza temática envolvendo o número de dias e os pecados capitais), eles cobrem os acontecimentos de maneira envolvente, sem jamais perder o foco nas investigações, mas encontrando espaço também para Interessantes discussões filosóficas e existenciais entre o desiludido Somerset e o esperançoso Mills, que rendem debates a respeito da degradação de nossa sociedade (tema favorito de Fincher) e do ser humano de forma geral.

Apostando num visual obscuro e repleto de sombras, a fotografia de Darius Khondji cria a atmosfera pretendida pelo diretor através dos diversos ambientes fechados que predominam na narrativa, iluminados apenas por poucos pontos de luz até mesmo quando estamos dentro dos escritórios da policia ou de uma simples biblioteca. Observe ainda como quando as ações se passam nas ruas, ou as cenas são noturnas ou são banhadas pela forte chuva (que, aliás, só não aparece no último dia). A decoração dos ambientes também reforça esta atmosfera, revelando o excepcional trabalho de direção de arte de Gary Wissner em lugares como o simétrico escritório do advogado assassinado, o conturbado quarto da prostituta, a apertada casa do homem obeso e o sinistro apartamento de John Doe (Kevin Spacey). Seguindo a mesma lógica, a sombria trilha sonora de Howard Shore só aumenta a aflição, pontuando as cenas com precisão e alternando para um ritmo intenso nas cenas com mais ação física.

Inteligente, Fincher aproveita esta atmosfera perfeita para criar planos sombrios que aumentam o clima sufocante da narrativa, conduzindo as ações de maneira sempre eletrizante, seja através de momentos mais agitados que são capazes de nos fazer perder o fôlego ou através de instantes mais intimistas que acompanham o raciocínio dos detetives na busca de informações. Aliás, o diretor acerta ao envolver a plateia nestas investigações, nos permitindo acompanhar os estudos sobre os sete pecados de Dante, por exemplo, como se fossemos parceiros de Mills e Somerset na caça ao misterioso assassino. Vale destacar ainda a destreza de Fincher na construção do suspense. Observe, por exemplo, como ele estica ao máximo os momentos que precedem a revelação do corpo da primeira vitima, trabalhando o suspense com precisão através de planos escuros, iluminados apenas pelas lanternas dos detetives.

O diretor também trabalha muito bem no desenvolvimento dos personagens, extraindo excelentes atuações de todo o elenco. Surgindo juntos inicialmente num plano baixo que os engrandece na tela, Mills e Somerset rapidamente estabelecem suas maneiras distintas de trabalhar. Transmitindo a segurança exigida por seu experiente personagem com incrível tranquilidade, Morgan Freeman revela-se a escolha ideal para viver o inteligente Somerset, um homem já acostumado a enfrentar diversas situações adversas e que, talvez por isso (e pelos crimes brutais que provavelmente investigou), já não acredita mais no futuro da humanidade. Entretanto, o ator demonstra com precisão que o caso dos pecados capitais é diferente de tudo que viu, transmitindo a crescente preocupação de Somerset através de seu semblante e de suas reações, que chamam a atenção do parceiro Mills (“Fala a verdade, você já viu algo assim antes?”, questiona Mills; Somerset responde: “Não”). Freeman consegue até mesmo a proeza de driblar com habilidade o velho clichê do policial prestes a se aposentar que decide encarar seu ultimo desafio, transmitindo o dilema de Somerset com enorme sensibilidade e de maneira verossímil, como quando reflete na cama sem conseguir dormir e, bastante abatido, joga seu metrônomo na parede, numa interessante rima com um dos primeiros planos do longa.

Por sua vez, Brad Pitt exala jovialidade demonstrando a ansiedade esperada de alguém que acaba de mudar do interior para uma metrópole e enxerga em sua nova posição a grande oportunidade de sua carreira, o que o leva, por exemplo, a aceitar sem hesitar todo e qualquer caso que apareça (“Dane-se ele, eu pego o caso!”). Transformando seu detetive Mills num personagem potencialmente tenso que raramente nos permite prever suas reações, o ator faz dele o contraponto ideal para o experiente e controlado Somerset. Observe, por exemplo, como ele praticamente desiste de investigar o caso na sala do advogado, mas rapidamente se empolga novamente quando Somerset descobre as digitais que revelam as palavras “Help me” escondidas na parede. Priorizando a ação física em detrimento do raciocínio lógico, Mills torna-se o ponto psicologicamente vulnerável da dupla – algo que o assassino não demora a perceber. Finalmente, ele consegue estabelecer boa química com sua esposa Tracy nos raros momentos em que eles surgem juntos.

Surgindo em raras ocasiões na primeira metade de “Seven”, Tracy lentamente passa a se aproximar de Somerset (e do espectador), convidando-o até mesmo para jantar em sua casa e, posteriormente, revelando sua gravidez ao experiente detetive (num ótimo momento de Paltrow), o que é essencial para aumentar o impacto do terceiro ato. Além disso, o divertido jantar na turbulenta casa dos Mills é responsável por um belo momento das atuações de Freeman, Pitt e Paltrow, num dos raros instantes de alivio cômico da narrativa. Além de Paltrow, vale destacar também R. Lee Ermey que, em seu segundo papel importante no ano (ele também estava em “Os últimos passos de um homem”), faz o chefe de polícia encarregado dos detetives.

Além de todas as qualidades citadas acima, Fincher ainda nos reserva cenas realmente espetaculares, daquelas que ficam gravadas por muito tempo na memória do espectador. A invasão da casa de Victor, por exemplo, é um destes grandes momentos conduzidos com precisão pelo diretor, que inicialmente emprega um ritmo ágil, mostrando as ações da SWAT com sua câmera agitada, mudando para um silêncio capaz de paralisar o espectador quando eles encontram o homem deitado na cama, quebrado somente pela tosse repentina do moribundo traficante – que, aliás, quase me matou de susto na primeira vez que assisti ao filme. Assustar, aliás, parece ser um dos prazeres de Fincher em “Seven”, como acontece também quando os detetives descobrem o apartamento de John Doe e, segundos depois, um homem surge no corredor, finge procurar a chave no bolso e atira repentinamente contra eles, iniciando uma sensacional sequência de perseguição na chuva, conduzida novamente num ritmo alucinante pela câmera agitada de Fincher, que só terminará quando o misterioso homem apontar uma arma para a cabeça de Mills – repare como o diretor evita revelar o rosto do criminoso, mantendo o suspense através das gotas que embaçam a câmera na chuva.

Após esta eletrizante sequência, a ligação de John Doe só confirma o quão respeitável ele é. De fala educada e polida, o assassino demonstra toda sua inteligência ao não provocar a ira dos policiais e demonstrar respeito por eles. Mesmo com a inesperada descoberta de seu apartamento, ele sabia que tinha o total controle da situação, sendo hábil para mudar a rota e continuar sua “obra”, o que o torna um vilão bastante temível, algo vital para que o espectador continue temendo pelo futuro dos detetives. A crueldade dos seus crimes também chama muito a atenção (e Fincher faz questão de não ocultar os resultados de seus atos violentos, o que é ótimo). Trabalhando nos mínimos detalhes para, como ele mesmo diz, virar o pecado contra seu pecador, Doe é capaz de torturar uma vítima por um ano, praticamente explodir outra ao alimentá-la à força e, naquele que considero o mais cruel dos cinco primeiros crimes, obrigar um homem a violentar uma prostituta com um artefato letal – e a atuação de Leland Orser como o desesperado homem encontrado na boate é digna de aplausos. Tudo isso ajuda na formação de um assassino realmente temível, capaz de deixar o espectador constantemente intrigado e tenso.

[Antes de seguir lendo o texto, vale repetir: só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme!]

Só que, quando menos esperamos, um taxi para na porta da delegacia logo após a chegada dos detetives. Em seguida, um homem desce e caminha lentamente para dentro do local, dando início à épica aparição de John Doe, que surpreendentemente se entrega aos policiais, deixando a todos atônitos. Porque ele teria feito isto? Porque se entregaria antes de completar os sete crimes? A mente dos investigadores e do próprio espectador passa a fervilhar e a resposta virá de maneira cruel e ainda mais surpreendente. Surgindo de maneira simplesmente sensacional como o psicopata capaz de realizar crimes tão cruéis, Kevin Spacey está absolutamente perfeito com seu olhar penetrante, tom de voz controlado e sua ideologia capaz de minar qualquer um que tente interrogá-lo (e me arrisco a dizer que ele merecia o Oscar daquele ano, mas por este papel e não pela boa atuação em “Os Suspeitos”). Ainda durante o interrogatório na delegacia, ele já demonstra seu assustador controle emocional, aguardando tranquilamente enquanto os policiais tentam desvendá-lo – e vale notar também como após a sua prisão, Mills menciona a esposa duas vezes, num indicio sutil do que viria pela frente.

Chegamos então ao momento mais fantástico de “Seven” (e uma das melhores cenas dos anos 90) durante a conversa entre Mills, Somerset e Doe dentro do carro, onde os três atores demonstram todo seu talento num diálogo memorável, penetrante e perturbador, em que o assassino questiona os valores contemporâneos e se intitula um escolhido por Deus enquanto Mills espuma de raiva e Somerset demonstra sabedoria ao tentar decifrar a mente do criminoso (“Vemos um pecado capital em cada esquina e toleramos”, afirma Doe, tentando explicar sua filosofia distorcida ao mostrar o lado podre de suas vitimas). O tenso final, também sensacional, ainda reserva uma surpresa capaz de abalar a plateia, encerrando a obra-prima de John Doe e de David Fincher de maneira brilhante (e aqui vale destacar a atuação de Pitt, que demonstra toda a ira de seu personagem com precisão).

Contudo, engana-se quem pensa que grande parte do sucesso do longa está em seu impactante final. Com sua narrativa complexa e envolvente, roteiro perfeito, atuações competentes e direção impecável, “Seven” é um thriller espetacular, uma verdadeira obra-prima que merece um lugar de destaque entre os grandes filmes da história da sétima arte.

Texto publicado em 29 de Julho de 2012 por Roberto Siqueira

UM SONHO DE LIBERDADE (1994)

(The Shawshank Redemption)

 

 

Videoteca do Beto #107

Dirigido por Frank Darabont.

Elenco: Tim Robbins, Morgan Freeman, William Sadler, Jeffrey DeMunn, Bob Gunton, Gil Bellows, Mark Rolston, James Whitmore, Clancy Brown, Larry Brandenburg e Neil Giuntoli.

Roteiro: Frank Darabont, baseado em história de Stephen King.

Produção: Niki Marvin.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Na superfície, “Um Sonho de Liberdade” conta a história de um banqueiro condenado à prisão perpétua que foge após 19 anos de detenção. Na prática, o longa dirigido por Frank Darabont vai muito além, narrando a amizade entre dois condenados e a redenção de ambos com muita sensibilidade, num triunfo cinematográfico tão humano quanto belo. Com momentos tão lindos que soam como poesia, extremamente bem atuado e muito bem conduzido, “Um Sonho de Liberdade” é um dos pontos altos do cinema, não apenas nos anos 90, mas em todos os tempos.

Condenado a prisão perpétua pelo assassinato da esposa e de seu amante, o bem sucedido banqueiro Andy Dufresne (Tim Robbins) é enviado para “Shawshank”, um presídio de segurança máxima. Lá faz amizade com Red (Morgan Freeman), um prisioneiro veterano que controla o mercado negro e consegue tudo, desde escovas de dente até um pôster de uma atriz famosa. Mas a vida na prisão não é um conto de fadas e Andy enfrentaria muitas dificuldades antes de demonstrar suas habilidades e começar a trabalhar para Samuel Norton (Bob Gunton), o diretor do presídio.

Dirigido com competência por Frank Darabont, “Um Sonho de Liberdade” prende a atenção do espectador desde seus primeiros minutos, quando acompanhamos o julgamento de Andy ao mesmo tempo em que vemos os momentos prévios ao crime. Acertadamente, por um bom tempo a narrativa não esclarece se ele de fato matou ou não a esposa e o amante, encerrando o flashback segundos depois de ele descer do carro. Por isso, e também pelo jeito reservado de Andy, carregamos esta dúvida até o momento em que Tommy (Gil Bellows) conta a história verdadeira, já próximo ao terceiro ato. Ainda assim, criamos empatia pelo personagem, talvez pelo seu comportamento na prisão, por ele ser perseguido inicialmente e, principalmente, pela empatia com Red. Aliás, é curioso notar como quando “Um Sonho de Liberdade” tem início e vemos Andy indo para a prisão, mantemos uma pequena esperança de que ele seja inocente e consiga sair de lá. Mas, com o passar do tempo, passamos a desistir desta idéia, até por causa de pequenos momentos que esvaziam esta possibilidade, como as risadas de Andy e Red ao falarem sobre o martelo. E quando já não esperamos mais pela fuga, Andy surpreende a todos e o impacto é muito maior.

Escrito pelo próprio Darabont, baseado em história de Stephen King, o elegante roteiro tem frases tão bem construídas que em muitos momentos chega a ser poético, ainda mais quando narradas pela voz solene de Morgan Freeman – uma das minhas favoritas surge após a fuga de Andy: “Sei que alguns pássaros não podem viver numa gaiola. Suas penas brilham demais. E quando eles voam você fica contente, porque sabia que era um pecado prendê-los. Mesmo assim o lugar onde vive se torna mais vazio e chato depois da partida”. Além disso, a perfeita estrutura narrativa trabalha em cada detalhe da fuga de Andy sem jamais deixar que a platéia perceba o que ele planeja, fazendo o espectador querer rever o filme assim que ele termina, apenas para confirmar que cada passo foi de fato mostrado na projeção. Os pequenos detalhes de seu plano de fuga são fascinantes, como a bíblia com o martelo dentro (e a irônica frase deixada para o diretor “a salvação vem de dentro”), as pedras espalhadas pelo pátio, os sapatos trocados no dia da fuga, a escolha de uma noite chuvosa para abafar o barulho e até mesmo o pedaço de corda. Pra completar, os personagens são muito bem desenvolvidos e até mesmo personagens secundários como Brooks (James Whitmore) e Tommy tem passagens marcantes pela narrativa – o primeiro, na pequena e triste narração fora da prisão que revela seu suicídio, e o segundo, esbanjando energia e jovialidade até ser friamente assassinado. Também é interessante como o roteiro mostra a corrupção no presídio e como Andy usa seu conhecimento para lavar dinheiro, criando uma pessoa que nem existe (Randal Stevens) e que será vital na narrativa. E finalmente, num dos raros momentos em que vemos uma mulher em cena, a aparição de Rita Hayworth na telona delicia os presos e é um eficiente alivio cômico numa narrativa até então bastante pesada.

Realçando a tristeza local, os uniformes sem vida da figurinista Elizabeth McBride, que misturam cinza e azul marinho, colaboram na ambientação do espectador aquele ambiente. Além disso, cenas realistas como o espancamento de um preso logo no início e os ataques das “bichas” ilustram a hostilidade que impera no presídio. Apresentada num belo travelling de Darabont antes da chegada de Andy, a prisão de Shawshank parece ter vida e intimida bastante (direção de arte de Peter Landsdown Smith), mas, na medida em que a narrativa avança, nos acostumamos com aqueles muros e, assim como os próprios personagens, ficamos “institucionalizados” – repare como Brooks afirma sentir falta de “casa” quando está na rua. Além disso, a fotografia fria e cinzenta de Roger Deakins reflete o mundo sombrio e triste em que os personagens estão inseridos, exibindo a luz do sol em poucas vezes (até porque a narrativa se passa predominantemente num local fechado), como na bela cena em que Andy consegue algumas cervejas para seus amigos que trabalham no teto da prisão. Aliás, nesta cena, quando o capitão Hadley (Clancy Brown) ameaça jogá-lo, Darabont faz um belo movimento de câmera que nos dá a exata noção do perigo que ele corre, e quando vemos aqueles homens se sentindo livres por um instante, com o sol batendo em seus rostos ao ar livre, temos a mesma sensação de liberdade deles, graças aos closes do diretor, que realçam a felicidade de cada um.

Outra cena marcante é o canto das italianas (a música chama-se “The Marriage of Figaro”, de Mozart), que voa pela prisão como um lindo pássaro e paralisa os presos, em outro momento conduzido com muita sensibilidade por Darabont (“Esta é a beleza da música, ninguém pode tirá-la de você”, diz Andy). Aliás, vale ressaltar também a importância da música em “Um Sonho de Liberdade”, ilustrando o sentimento dos personagens em alguns momentos, como quando Andy consegue melhorar a biblioteca e o som de Hank Williams reflete seu estado de espírito, agora já mais adaptado à Shawshank. E por falar em música, a trilha sonora de Thomas Newman tem momentos sombrios na maior parte do tempo, mas apresenta variações triunfais, como aquela que sublinha a fuga de Andy, e outras com função narrativa, como aquela que o acompanha escrevendo na parede, que é exatamente igual à do dia de sua fuga, indicando com sutileza o momento em que ele começa a planejar tudo.

Inteligente e meticuloso, Andy planeja cada etapa com calma, também porque, como diz Red em certo momento, tudo que ele tinha na prisão era tempo. E o tempo passa lentamente naquele local. Cobrindo quase vinte anos de história sem jamais soar episódica, a montagem de Richard Francis-Bruce imprime o ritmo correto ao longa, dando a exata noção de lentidão que pede a narrativa, mas saltando alguns anos de maneira inteligente, como quando Andy faz o imposto de renda dos guardas seguidamente, além de indicar a passagem do tempo com simplicidade e eficiência, por exemplo, através do crescimento do pássaro Jake. Vale ressaltar também a perfeita decupagem de muitas seqüências, como quando Andy senta para fazer o primeiro imposto de renda para um guarda e, em seguida, vemos Brooks contando a história para os amigos. E se podemos chamá-los de amigos é porque o talentoso elenco de “Um Sonho de Liberdade” estabelece excelente química na relação dos prisioneiros, fazendo com que eles realmente pareçam se importar uns com os outros. Praticamente todo o elenco está bem, destacando-se em papéis secundários os citados Gil Bellows, que vive Tommy Williams, e o veterano James Whitmore, que interpreta Brooks, um personagem que ilustra a dificuldade de ex-prisioneiros para se adaptar fora da prisão. Lá dentro, eles têm algum respeito e uma ocupação. Lá fora, são apenas velhos ex-presidiários. Além dos presos, temos boas atuações também no grupo que tenta manter a ordem local, com o agressivo e assustador Capitão Hadley de Clancy Brown e, principalmente, o diretor Norton. Sempre falando do “Senhor”, Bob Gunton compõe um Norton bastante corrupto e ameaçador, como podemos notar, por exemplo, quando ele conversa com Andy na solitária, após ouvir a história de Tommy.

Mas o grande destaque fica mesmo para a antológica empatia da dupla principal. Em atuação muito boa, Tim Robbins vive Andy, que começa intimidado, mas cresce lentamente e se mantém diferente dos outros presos na maior parte do tempo, parecendo mesmo uma pessoa que não pertence aquele mundo. Sempre fechado e misterioso, o ex-banqueiro exala frieza, o que explica o afastamento de sua esposa, como ele mesmo esclarece num diálogo tocante com Red, em que ele também cita a cidade mexicana de Zihuatanejo e pede que Red faça uma promessa – repare que a mesma trilha do dia de sua fuga sublinha a cena. E é impressionante notar como mesmo sendo alguém tão pensativo e recluso, Andy consegue influenciar as pessoas à sua volta e ser admirado por muitas delas. E se Robbins está bem, Morgan Freeman tem uma atuação simplesmente perfeita como Red, sempre no tom correto, demonstrando a serenidade de um homem já acostumado àquele local. Tranqüilo, Red é o ponto de equilíbrio que impede que Andy perca a cabeça e permite que o amigo consiga suportar todos aqueles anos na prisão, mas é também através de Andy que Red renovará seu conceito de “esperança” e encontrará a redenção. A empatia entre os dois atores é tão orgânica que temos a sensação de que Red e Andy se conhecem há anos já nos primeiros diálogos. E é num destes diálogos marcantes que Andy fala sobre a “esperança” e é repreendido por Red, num momento essencial para entender que Andy estava mesmo alheio ao que acontecia ali, se preparando para viver a vida lá fora, enquanto o amigo ainda precisava mudar. No fim das contas, “Um Sonho de Liberdade” mostra a importância deste sentimento, algo reforçado pelas últimas palavras de Red, que encerram a narrativa.

Quando Andy presenteia o amigo com uma gaita após sair da solitária, temos apenas mais um simples exemplo daquela amizade sincera, tocante e bela. Mas Andy também conquista outros prisioneiros com seu jeito de ser. Meticuloso ao ponto de gostar de polir pedras e jogar xadrez, seu relacionamento mais intenso e conflitante envolve o elétrico Tommy, por isso, quando lhe avisam que “o menino passou”, seu sorriso de canto de boca significa muito, demonstrando que ele se sente recompensado por todo o esforço que fez – e este é apenas um dos bons momentos de Tim Robbins. Aliás, Tommy é responsável também pela grande guinada na narrativa, quando traz a tona novamente o assassinato da esposa de Andy. Por isso, quando Red fala sobre o crime, um close em sua reação indica que ele sabe algo a respeito, paralisando os personagens e o espectador. E a revelação surge como uma bomba: Andy era mesmo inocente! O espectador está em choque, assim como os personagens.

Momentos antes da grande cena de “Um Sonho de Liberdade”, temos muitos indícios de que Andy cometeria um suicídio. Seu estranho diálogo com Red, somado ao pedido da corda, à morte de Tommy e ao fim de sua esperança de um novo julgamento, fazem o espectador temer sua morte. “Todos têm um limite”, afirma Red, reforçando este sentimento. A fotografia sombria, a chuva e a narração de Red na noite mais longa de sua vida reforçam o temor. Pra piorar, quando a contagem de presos começa no dia seguinte e Andy não aparece, o guarda vai até a cela, olha levemente pra cima e diz “Meu Deus!”. O espectador muda então da tensão para a euforia quando todos começam a procurar pelo homem que “sumiu ao vento”. A cela vazia e o interrogatório que começa deixam nossas mentes num turbilhão. O que teria feito Andy? E então, quando Rachel revela seu segredinho (algo indicado brilhantemente pelo som da pedra que percorre o buraco na parede), o espectador está em êxtase. Andy fugiu! Tem inicio então a meticulosa reconstituição da trajetória de Andy desde o dia em que ele escreve na parece até a fuga. E o plano plongèe, com Andy abrindo os braços na chuva, parece lavar a alma do personagem e do espectador, numa das mais belas cenas do filme. Além de fugir, Andy (ou devo dizer Randal Stevens?) ainda sai rico e incrimina Norton. E o melhor é que tudo isto soa verdadeiro e orgânico, graças ao roteiro coeso e a condução competente de Darabont.

Após este momento de euforia, o espectador ainda acompanha a saída de Red da prisão, depois de ser finalmente aprovado na análise do conselho. Agora, só nos resta torcer pelo reencontro dos grandes amigos, e ele acontece após Red passar nos campos de Buxton e seguir as instruções de Andy. Ao ouvirmos as lindas palavras de Red e vermos um travelling pelo pacífico, um recompensador plano geral mostra os dois amigos se abraçando e termina uma das obras-primas dos anos 90. É difícil conter as lágrimas num final tão emocionante e apoteótico.

Finalmente, é importante ressaltar que a redenção do título original em inglês se refere muito mais à Red do que a Andy. Com exceção do prólogo com o julgamento do protagonista, durante todo o tempo a história é apresentada sob o filtro do olhar dele. Momentos cruciais da vida de Andy são narrados sob a perspectiva de Red, como a fuga da prisão, o fechamento das contas bancárias e a viagem para o México, por exemplo. Além disso, não vemos mais Andy após a fuga, e sim como Red chega até ele. Quando Red diz no final que “espera” reencontrar o amigo e apertar a mão dele, o verbo esperar tem um significado muito maior do que aparenta. Red havia encontrado mais do que a esperança tão comentada pelo amigo. Ele encontrou a redenção.

Contando com pessoas talentosas em todas as áreas, Frank Darabont e seu ótimo elenco entregaram uma obra-prima, que viverá muito tempo em nossas memórias. No meu caso, pelo menos, já se passaram 16 anos desde que assisti ao filme pela primeira vez e seu efeito continua intacto. Narrando uma história humana e com reviravoltas marcantes, “Um Sonho de Liberdade” pertence ao seleto grupo de filmes que parece melhorar a cada nova revisão. Esta é a marca dos grandes filmes.

PS: Confesso que não foi nada fácil escrever sobre este que é um dos filmes mais importantes da minha vida. Por isso, qualquer traço de “exagero emocional” que apareça no texto não é mera coincidência. Este filme, de fato, ainda mexe muito comigo. Ao lado de “Coração Valente”, é responsável direto por minha paixão pelo cinema.

Texto publicado em 22 de Julho de 2011 por Roberto Siqueira

OS IMPERDOÁVEIS (1992)

(Unforgiven)

 

Videoteca do Beto #87

Vencedores do Oscar #1992

Dirigido por Clint Eastwood.

Elenco: Clint Eastwood, Gene Hackman, Morgan Freeman, Richard Harris, Jaimz Woolvett, Saul Rubinek, Frances Fisher, Anna Levine, David Mucci, Rob Campbell, Anthony James, Beverley Elliott, Shane Meier, Aline Levasseur e Ron White.

Roteiro: David Webb Peoples.

Produção: Clint Eastwood.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Durante boa parte da carreira, Clint Eastwood ficou marcado por personagens durões que iam dos solitários pistoleiros do western spaghetti ao implacável “Dirty Harry”. Entretanto, nos últimos anos Clint passou a viver personagens amargos, que carregam nos ombros o peso de seu passado, e até mesmo os filmes que ele dirigiu nas últimas décadas costumam nos deixar com aquela sensação de incômodo diante de situações que parecem não ter certo ou errado. E é justamente o excepcional western “Os Imperdoáveis” que marca a transição definitiva da fase “durona” para este momento mais “sensível” de Clint, apresentando uma história que faz uma singela homenagem ao gênero que consagrou o ator e diretor.

As prostitutas de uma pequena cidade oferecem 1000 dólares para quem matar dois vaqueiros responsáveis por cortar o rosto de uma delas. A notícia atrai o jovem Schofield Kid (Jaimz Woolvett), que convida o pistoleiro aposentado William Munny (Clint Eastwood) para a matança. No caminho, Munny convida seu velho amigo Ned Logan (Morgan Freeman) e eles partem para a cidade, onde o xerife Little Bill (Gene Hackman) já expulsou o matador Bob inglês (Richard Harris) a pontapés, como forma de intimidar os assassinos que possam se interessar pela recompensa.

Conduzindo a narrativa com segurança e sem muitos floreios, Clint Eastwood consegue sucesso através da simplicidade e eficiência de sua direção, transitando com elegância entre os momentos que desconstroem os mitos do western e aqueles que fazem uma bela homenagem ao gênero. Além disso, conduz com competência o elenco, criando personagens complexos e extremamente interessantes, que não são bons nem ruins, apenas agem de maneiras distintas em situações diferentes. O diretor mostra ainda muita sensibilidade na composição de belos planos, como o lindo plano inicial, com o pôr-do-sol ao fundo e William enterrando sua esposa na frente da casa, seguido por um trovão que anuncia a mudança radical na vida dele. Em outro momento, somente o olhar da esposa de Ned ao ver o rifle no cavalo de Munny indica que seu marido voltará às armas, algo ilustrado antes mesmo que ele pronuncie alguma palavra apenas pela composição da cena, com Freeman logo abaixo do rifle pendurado na parede.

Escrito por David Webb Peoples, “Os Imperdoáveis” apresenta diálogos deliciosos e coerentes com o universo daqueles personagens, abrindo espaço para momentos de alivio cômico nas conversas entre Munny e Ned (destaque para a curiosidade de Ned em saber como Munny supre a falta de sexo após a morte da esposa), reforçados pela dificuldade de montar de Munny e pelos tiros sem direção de Kid (“Você atirou em toda a criação”, reclama Ned). Obviamente, a empatia entre Freeman e Eastwood colabora bastante e torna aquela amizade crível, como podemos notar, por exemplo, na conversa ao pé da fogueira sobre o que Ned sente falta, que ainda indica que Kid está mentindo, ao dizer, sem muita convicção, que já matou 5 homens (e aqui vale destacar a atuação de Woolvett, nos transmitindo esta sensação de insegurança através da fala pouco convicta). Mas o grande tema do longa é mesmo a desconstrução de diversos clichês e mitos do western, além do constante “flerte” com a morte e a certeza de que não é fácil tirar a vida de alguém. Basicamente, o filme prega que puxar o gatilho não é para qualquer um, por isso, homens com a frieza necessária neste momento viram lendas e são raridades (algo que também refletirá no sensacional clímax da narrativa). É claro que existem também as lendas criadas ao acaso, romantizadas por aqueles que contam a história e se permitem “alguma liberdade criativa”, como afirma o escritor Beauchamp (Saul Rubinek). Melhor do que ninguém, ele representa a visão glamourizada que Hollywood tinha do western e que Eastwood quer desconstruir. Para Clint, a vida no velho oeste não era tão bela assim.

Nos aspectos técnicos, a impecável direção de arte de Adrian Gorton e Rick Roberts nos transporta para o velho oeste através da precisa arquitetura da cidade de “Big Whiskey”, reforçada pelos figurinos de Janice Blackie-Goodine, que seguem o padrão western com as botas, calças de couro e os chapéus (destaque para o marcante chapéu de Eastwood, que remete aos tempos do western spaghetti). Destaque também para a deslumbrante direção de fotografia de Jack N. Green, que capta com precisão as lindas paisagens, com muitas cenas sob o pôr-do-sol e até mesmo sob a chuva (o que reforça a melancolia da narrativa). Além disso, as diversas cenas noturnas, sempre iluminadas com velas e lampiões, têm um visual belíssimo, bastante sombrio e coerente com a amargura daqueles personagens, algo refletido também na linda trilha sonora de Lennie Niehaus, com sua delicada e nostálgica música tema sofrendo algumas variações que ilustram o sentimento dos personagens, como quando William, após levar uma surra de Bill, pensa que vai morrer e mostra arrependimento por tudo que fez (e nas duas cenas, o visual carregado pelas sombras transmite a aflição do personagem). Já o bom trabalho de som é perceptível não somente nos notáveis tiros e trovões, mas também através de ruídos sutis, como o som do gatilho sendo puxado ou dos grilos no campo, e o ritmo delicioso do longa é mérito da montagem de Joel Cox, que intercala momentos contemplativos diante de lindas paisagens e momentos de alta tensão. Além disso, faz elegantes transições, como quando Munny acorda e descobre que ficou doente por 3 dias ou quando uma prostituta diz que “a chuva está chegando”, anunciando também a chegada de Munny, Ned e Kid, que galopavam sob a chuva minutos antes.

Todo este excelente trabalho técnico serve como sustentação para que o excelente elenco de “Os Imperdoáveis” construa, sob a direção do competente Eastwood, personagens amargos e complexos. A começar por uma das lendas do oeste, interpretada pelo sempre carismático Richard Harris. Acompanhado de perto pelo curioso escritor Beauchamp, Bob “inglês” é o típico fora-da-lei que fez fama no oeste, mas a forma como as coisas acontecem vai desconstruindo esta imagem do “mito” diante do escritor e do espectador, especialmente quando Bill conta a verdadeira história do assassinato de Corky “Duas Armas”. As lendas vão sendo criadas com base em exageros, como quando Kid diz que o homem cortou os olhos, as orelhas e os peitos da prostituta, o que leva o próprio Kid a duvidar que Munny pudesse apanhar de Bill, alegando que sua arma “provavelmente” travou. E já que citei o xerife, Gene Hackman compõe um Little Bill cruel e implacável, capaz de expulsar a pontapés um perigoso bandido da cidade, entregar uma arma carregada nas mãos de um prisioneiro e espancar até a morte um matador capturado. Por outro lado, mostra piedade quando pega o homem que cortou uma prostituta (“São apenas vaqueiros que fizeram besteira”) e em diversos momentos parece apenas desejar viver em paz em sua nova casa – e Hackman é muito competente ao oscilar entre os momentos de fúria e os momentos de serenidade do personagem com precisão. Vale destacar ainda seu excepcional desempenho na tensa conversa que tem com Beauchamp e Bob na prisão, quando fala sobre a frieza necessária para matar alguém (algo que terá reflexo direto no terceiro ato da narrativa, quando apenas ele e Munny se enquadram nesta situação). A dupla Harris e Hackman vive ainda um dos grandes momentos do longa, quando Bill interroga e revista Bob, agredindo-o em seguida sob o olhar incrédulo de toda cidade, numa tentativa de manter o controle da situação e, ao mesmo tempo, mandar um recado a todos os assassinos da região (“Não virá ninguém”, diz uma das prostitutas preocupada). Infelizmente para Bill, o recado não chegou aos ouvidos de William Munny.

Sempre firme, Eastwood convence no papel do veterano que volta à ativa somente para conseguir um dinheiro que lhe permita criar os filhos com mais dignidade. Seu William Munny carrega o peso do passado no semblante triste e o peso da idade também fica evidente, por exemplo, em sua dificuldade para montar no cavalo. Depois de um passado sombrio, Munny agora é um pai cuidadoso, que evita falar sobre o passado na frente das crianças e ainda corrige o filho ao escutar um palavrão (“Cuidado como fala”). Sua esposa Claudia de fato mudou sua vida, como ele faz questão de deixar claro em frases como “Era o uísque que me deixava daquele jeito. Minha mulher me curou da bebedeira e da malvadeza”. Ele não é mais um assassino, deixou de beber uísque e agora se preocupa com sua reputação, algo que fica evidente todas as vezes que alguém cita o seu passado (“Não sou mais assim”) e quando recusa uma prostituta, numa cena tocante e bela (“Admiro você por ser fiel a sua esposa”). Só que Claudia não estava mais presente e agora ele estava de volta àquela vida, ainda que não admitisse isto, como seu olhar de reprovação indica ao ouvir do amigo Ned que “se Claudia estivesse viva ele não estaria fazendo aquilo”. Mas ao contrário do passado, agora William sente imediatamente o peso do que fez após matar um homem, e Eastwood demonstra bem o incomodo do personagem, mexendo com uma pedrinha enquanto olha triste pra baixo e gritando para darem água para o rapaz que agoniza, assim como Freeman também ilustra bem o incomodo de Ned através de seu semblante sofrido. Aliás, o Ned de Morgan Freeman se mostra um bom parceiro, fiel ao amigo, mas também transformado pelo tempo e já sem a mesma agilidade e até mesmo sem a mesma frieza para matar, como fica claro quando hesita em atirar num homem indefeso. Matar já não era tão fácil pra ele e o ator demonstra isto muito bem. E fechando o elenco, o Kid de Jaimz Woolvett fala muito e faz pouco, mostrando-se o típico jovem sonhador que se deslumbra diante da fama que aquela vida traz. Ele vai descobrir que matar alguém tem muito pouco de glamour e traz grande amargura quando, após hesitar bastante, finalmente dispara contra um vaqueiro e o mata, sendo corroído pelo remorso momentos depois – algo que Woolvett demonstra bem na tocante conversa entre Kid e Munny ao pé de uma árvore. Observe ainda como William percebe o sofrimento do rapaz e resolve o problema à sua maneira, mandando o garoto “tomar um trago” após ouvir que foi o primeiro homem que ele matou. Em seguida, diz uma frase de forte impacto que traduz muito bem o sentimento que domina “Os Imperdoáveis”: “Matar um homem é algo infernal. Você tira tudo que ele tem e tudo que ele poderia vir a ter um dia”.

Ao descobrir que Ned foi espancado até a morte por Bill, o velho instinto matador de William Munny vem à tona, algo ilustrado em um pequeno gesto do personagem, que pega a garrafa de uísque e toma muitos goles. A garrafa vazia, jogada na lama debaixo da chuva, indica que o velho assassino está de volta e o final sensacional de “Os Imperdoáveis” tem inicio quando seu rifle interrompe as comemorações de Little Bill e seus amigos no bar. O diálogo que precede o tiroteio é uma grande homenagem ao gênero que fez a fama de Eastwood, repleto de frases marcantes como “Já matei mulheres e crianças. Já matei tudo que anda e rasteja e estou aqui para matar você Little Bill pelo que fez com Ned” (repare o brilho nos olhos de Beauchamp ao ouvir a frase e perceber que estava diante de uma verdadeira lenda). Este tipo de frase de impacto era tradicional no western. O tiroteio que segue é uma síntese de tudo que o filme prega, mostrando que não é fácil pegar uma arma e atirar num homem. Por isso, enquanto Munny acerta praticamente todos os tiros, os outros atiram para qualquer lado, sem direção, ou saem correndo, com medo diante de um verdadeiro assassino. O final antológico, com Munny e Bill marcando um encontro no inferno, encerra o clímax desta maravilha do cinema.

Como bem ilustrado pela singela frase que encerra “Os Imperdoáveis”, até mesmo um cruel assassino pode mudar seu comportamento ao lado de uma pessoa que lhe valha a pena. Se nada explicou para a Sra. Feathers porque sua filha se casou com um homem violento e inclemente, o longa explica como um homem marcado por papéis violentos pode, ao longo dos anos, exibir tamanha sensibilidade e nos entregar trabalhos tão maduros como este excelente “Os Imperdoáveis”.

Texto publicado em 09 de Fevereiro de 2011 por Roberto Siqueira

ROBIN HOOD – O PRÍNCIPE DOS LADRÕES (1991)

(Robin Hood: Prince of Thieves)

 

Videoteca do Beto #80

Dirigido por Kevin Reynolds.

Elenco: Kevin Costner, Morgan Freeman, Mary Elizabeth Mastrantonio, Christian Slater, Alan Rickman, Sean Connery, Geraldine McEwan, Brian Blessed, Nick Brimble, Soo Drouet, Daniel Newman, Daniel Peacock, Walter Sparrow, Michael Wincott e Michael McShane.

Roteiro: Pen Densham e John Watson, baseado em história de Pen Densham.

Produção: Pen Densham, Richard Barton Lewis e John Watson.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Aproveitando o embalo do sucesso do belo “Dança com Lobos”, Kevin Costner embarcou nesta aventura inspirada no mais famoso dos ladrões, aquele que roubava dos ricos para dar aos pobres. Só que o longa dirigido por Kevin Reynolds jamais apresenta um resultado próximo dos filmes que alçaram o ator/diretor à fama. Apesar de entreter, “Robin Hood, o príncipe dos ladrões” apresenta falhas que comprometem seu resultado, se escorando na força de seu personagem principal, no carisma de seu elenco e nas boas cenas de ação que sustentam esta despretensiosa aventura.

Após ser capturado nas cruzadas, Robin de Locksley (Kevin Costner) foge ao lado de Azeem (Morgan Freeman) e volta para a Inglaterra, onde encontra seu pai (Brian Blessed) morto e descobre os planos do xerife de Nottingham (Alan Rickman), que fará de tudo para que o rei Ricardo (Sean Connery) não volte ao trono. Após visitar sua amiga de infância Marian (Mary Elizabeth Mastrantonio), ele foge dos soldados do xerife liderados por Guy de Gisborne (Michael Wincott) e vai parar na temida floresta de Sherwood, onde encontrará João Pequeno (Nick Brimble), Will Scarlett (Christian Slater) e todos os foras-da-lei que serão liderados por ele na luta contra o xerife.

Apesar de seu início promissor, com a fuga de Robin e Azeem após serem capturados nas cruzadas, “Robin Hood, o príncipe dos ladrões” é um filme leve e despretensioso, que não deixa grandes reflexões e jamais faz um estudo mais profundo a respeito do homem que o inspirou, limitando-se a apresentar as aventuras de Robin e seu grupo nas florestas de Sherwood, balanceadas pelo tradicional romance com Lady Marian. Mas ainda que o tom leve domine a maior parte da narrativa, seu inicio é bastante sombrio e violento, com mãos de prisioneiros ingleses sendo arrancadas numa obscura prisão que reflete a dureza daquela vida. O forte contraste é notável já na chegada de Robin à Inglaterra, quando o visual agradável dá o tom leve e coerente com a lenda. Ainda assim, há espaço para o embate entre religiões que motivou a luta pela terra santa, um tema recorrente e interessante da narrativa, notável quando Robin diz que seu pai achava uma idiotice lutar nas cruzadas para impor sua crença à força ou quando Duncan (Walter Sparrow), após insultar os mouros, pergunta à Azeem a origem do nome dele. Escrito por Pen Densham e John Watson, baseado em história de Pen Densham, o roteiro de “Robin Hood” jamais se define como drama, comédia ou aventura, transitando entre os gêneros freqüentemente, mas, curiosamente, este “escorregão” acaba conferindo charme à narrativa (justamente por se tratar da encantadora lenda de Robin Hood), ao balancear os excelentes momentos de ação, como quando Robin e Azeem fogem para a floresta de Sherwood, com momentos bem humorados, como a chegada à casa de Lady Marian ou o próprio encontro entre Robin e aqueles que ele iria liderar num rio. Por outro lado, o maniqueísmo do longa é evidente, algo ilustrado até mesmo na direção de fotografia de Douglas Milsome, que busca apresentar a floresta de Sherwood constantemente iluminada, com os raios solares vazando as folhas das árvores, ao passo em que o castelo de Nottingham é freqüentemente filmado com pouca iluminação e predomínio das sombras, induzindo o espectador a simpatizar pelo “príncipe dos ladrões”. Mas nem tudo é perdido no roteiro de Densham e Watson, que apresenta, por exemplo, interessantes rimas narrativas, como a pergunta “ela vale a pena?” feita por Robin para Azeem, que refletirá no clímax da narrativa (e que inspirou parte da música tema do filme), ou quando Robin sai do banho e diz para Marian que “estava seguindo o conselho de uma donzela”. Finalmente, vale citar a referência a “O Feitiço de Áquila”, de Richard Donner, quando o frei entra no castelo e fala algo sobre as bebidas.

E se “Robin Hood” apresenta uma narrativa leve, Kevin Reynolds emprega uma direção enérgica, imprimindo um ritmo interessante à aventura, graças também à montagem ágil de Peter Boyle, que se destaca na seqüência final dentro do castelo de Nottingham e também na batalha de Sherwood, além da pequena seqüência de roubos na floresta, que mostra em poucos minutos o crescimento da lenda “Robin Hood”, e de um interessante raccord (corte), quando Mortianna fala para o xerife sobre uma aliança com sangue real e em seguida vemos Lady Marian. Mas este ritmo intenso da aventura não impede que o diretor indique com sutileza, por exemplo, que Will é irmão de Robin, ao focar rapidamente seu rosto após o irmão dizer pela primeira vez seu nome para os donos da floresta, assim como é sutil o momento em que as sombras na parede indicam que os soldados seguirão Duncan. Mas são nas curiosas câmeras que acompanham as flechas que o diretor consegue causar impacto, criando seqüências empolgantes nos treinamentos e um plano belíssimo em câmera lenta, quando Robin atira uma flecha de fogo e salva o irmão. Obviamente, o diretor não perde a oportunidade de explorar o potencial do então astro Kevin Costner para alavancar a bilheteria, abusando de closes e explorando os belos momentos vividos pelo herói e sua amada Marian, como quando o casal desce de uma árvore preso numa corda. Reynolds, no entanto, conduz com irregularidade a batalha na floresta, intercalando bons e maus momentos que culminam no suspense barato sobre a morte de Robin (todos sabem que ele não morreria daquela forma). Por outro lado, o longa apresenta um bom trabalho técnico, com destaque para a direção de arte de Fred Carter, que capricha nas armas dos soldados e nos castelos de Nottingham e Locksley, nos transportando para aquela época. Também colaboram os ótimos figurinos de John Bloomfield, a começar pela caracterização de Robin Hood (o visual foge ao tradicional, mas mantém o charme do “bom ladrão”) e Azeem, passando pelos camponeses e suas roupas rasgadas e chegando aos soldados de Nottingham, com suas impecáveis armaduras. E certamente o maior destaque da parte técnica é a sensacional trilha sonora de Michael Kamen, que alterna entre trechos empolgantes e melódicos, como a despedida de Robin e Marian à beira de um rio (num admirável plano de Reynolds) em que a trilha se funde à melodia da bela música tema “Everything I do (I do it for you)”, de Bryan Adams.

Infelizmente, o que deveria ser uma das grandes forças de “Robin Hood, o príncipe dos ladrões” acaba se revelando uma decepção, pois o talentoso elenco liderado por Kevin Costner e Morgan Freeman entrega atuações discretas, inferiores à capacidade da maioria deles. A começar por Costner, que escorrega ao falar o inglês norte-americano, obviamente contrariando a origem britânica do herói. Além disso, o ator não demonstra com realismo o sofrimento pela perda do pai, parecendo estar conformado quando deveria estar indignado. Por outro lado, confere um carisma enorme ao ladrão romântico, especialmente nos momentos de humor, como quando pergunta ao pequeno Wulf (Daniel Newman) se João Pequeno era o pai dele, imitando o sorriso sem graça do garoto em seguida, ou quando arranca um anel e um sorriso de uma bela princesa. Estabelecendo boa química com Freeman e Mastrantonio, principalmente nas seqüências vividas na floresta, Costner salva sua atuação em pequenos momentos dramáticos, como o discurso na floresta, quando Robin se proclama o líder dos “foras-da-lei”, ou quando demonstra o quanto ele está arrasado após a batalha de Sherwood – numa das poucas cenas onde o grande talento de Freeman também aparece, com a marcante frase “não existem homens perfeitos, somente intenções perfeitas”. Mas apesar da atuação apenas discreta, Morgan Freeman demonstra sua qualidade ao compor com cuidado o personagem, por exemplo, falando um inglês sofrível e coerente com a origem moura de Azeem, alguém mais tolerante à diversidade que todos os ingleses, como notamos quando frei Tuck (Michael McShane) se revolta ao vê-lo fazer um parto, que curiosamente serviria para aproximar os dois. Já Mary Elizabeth Mastrantonio tem um começo discreto como Lady Marian, se soltando durante a narrativa e conseguindo empatia com Costner, o que é vital para o sucesso da seqüência final, quando Robin luta por ela. Enquanto isso, o Will de Slater parece sempre tenso, um verdadeiro rebelde sem causa (e o ator tem culpa nisso, por causa de sua atuação exagerada), mas o ator se redime parcialmente no momento em que revela seu parentesco com Robin, conferindo emoção à cena – ainda assim, esta revelação soa forçada e dispensável. E fechando o lado do “bem”, quem também se destaca é Michael McShane como frei Tuck, personificando o tom leve que Reynolds emprega a narrativa através de suas constantes piadas. No lado obscuro da trama, a Mortianna de Geraldine McEwan é a típica bruxa asquerosa – e seu visual horrível é reforçado por ratos, sapos, cobras e tudo que é repugnante, provocando a antipatia do espectador. Sempre que está em cena, Mortianna é envolvida por um visual obscuro, reforçando a tendência de apresentá-la como o “mau” a ser enfrentado, o que reflete também no personagem de Alan Rickman, o terrível xerife de Nottingham. Por outro lado, Rickman, com sua atuação exagerada, confere uma graça ao personagem que trabalha a favor do clima descontraído do longa, mas claramente enfraquece o vilão diante do espectador, apesar do chocante momento em que mata o próprio primo Guy no castelo. Aliás, com sua voz rouca e olhar firme, Michael Wincott faz de seu Guy de Gisborne um vilão até mesmo mais aterrorizante que o xerife de Nottingham.

Após a humilhante derrota sofrida em seu próprio território, Robin e seus amigos decidem evitar a tragédia completa e impedir o enforcamento de seus companheiros no castelo de Nottingham. Tem início então a melhor seqüência do filme, a sensacional cena do enforcamento, conduzida num ritmo intenso por Reynolds. Quando rufam os tambores e o carrasco escolhe Wulf para iniciar a cerimônia, o espectador, agoniado, conta com a mira de Robin, que tenta cortar a corda e acerta na segunda tentativa – e após ver as diversas proezas do herói com o arco e flecha, é normal que o espectador conte com seu sucesso na cena. Vale notar ainda como momentos antes a câmera focaliza duas vezes o barril, indicando sua importância na estratégia de Robin e sua equipe. Mas nem mesmo esta cena é perfeita, pois é totalmente incompreensível a provocação de Will quando Wulf é levado à forca – seria mais coerente ele ficar na dele, sem chamar a atenção. Após esta empolgante seqüência, o esperado duelo final entre o vilão e o mocinho resulta na morte do xerife, atingido pela faca que ele deu de presente para Marian (olha a rima narrativa aí), só que Rickman novamente exagera, se contorcendo e fazendo caretas até finalmente agonizar. O final feliz, com a chegada do rei Ricardo (Connery, em participação descartável), agrada ao espectador, mas deixa a sensação de que “Robin Hood, o príncipe dos ladrões” tinha potencial para oferecer mais.

Em resumo, “Robin Hood – O Príncipe dos Ladrões” diverte, mas não vai além. Kevin Reynolds até apresenta cenas interessantes, Kevin Costner confere charme ao herói, Freeman e Mastrantonio estabelecem boa química com o astro, mas infelizmente o longa não passa de uma diversão sem compromisso. Talvez Reynolds tivesse a melhor das intenções ao juntar um ótimo elenco para contar a lendária história de Robin Hood. Mas, nas palavras de Azeem, “não existem homens perfeitos, somente intenções perfeitas”.

Texto publicado em 23 de Dezembro de 2010 por Roberto Siqueira

CONDUZINDO MISS DAISY (1989)

(Driving Miss Daisy)

 

Videoteca do Beto #60

Vencedores do Oscar #1989

Dirigido por Bruce Beresford.

Elenco: Morgan Freeman, Jessica Tandy, Dan Aykroyd, Patti LuPone, Esther Rolle, Jo Ann Havrilla, William Hall Jr., Alvin M. Sugarman, Clarice F. Geigerman, Muriel Moore, Sylvia Kahler e Crystal R. Fox.

Roteiro: Alfred Uhry, baseado em peça teatral de Alfred Uhry.

Produção: Lili Fini Zanuck e Richard D. Zanuck.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido o filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

De forma simples e eficiente, o diretor Bruce Beresford nos traz esta tocante estória sobre uma senhora judia que hesita em aceitar seu novo motorista negro após sofrer um leve acidente com seu novo carro. A trajetória de aceitação, quebra de preconceitos e aproximação de duas pessoas solitárias, e acima de tudo, o olhar humano, despido de preconceito racial ou religioso (ele é negro, ela judia), torna este “Conduzindo Miss Daisy” um lindo filme sobre o valor do caráter humano e da verdadeira amizade.

Uma rica judia de 72 anos de idade (Jessica Tandy) acidentalmente joga seu carro novo no jardim do vizinho. Seu filho Boolie (Dan Aykroyd) tenta convencê-la de que ela precisa de um motorista, mas ela resiste à idéia. Mesmo assim, seu filho contrata o motorista Hoke (Morgan Freeman), provocando a imediata recusa de sua mãe. Mas gradativamente ela quebra a barreira da diferença cultural e racial existente entre eles, aceita suas próprias limitações e permite nascer e crescer um sentimento puro e sincero de amizade que durará décadas.

Embalado pela leve e descontraída trilha sonora do sempre ótimo Hans Zimmer, o diretor Bruce Beresford conduz este singelo “Conduzindo Miss Daisy” com enorme segurança, permitindo que os ótimos desempenhos de todo o elenco sejam a principal atração do longa. Ainda assim, a parte técnica merece destaque, a começar pelo excelente trabalho de direção de arte de Victor Kempster que, auxiliado pelos figurinos de Elizabeth McBride, cria um visual coerente com a época da narrativa, notável através do interior das casas, dos carros e da própria maneira de se vestir dos personagens. Vale observar também como a fotografia discreta e sem muita vida de Peter James reflete a personalidade de Miss Daisy, que detesta chamar a atenção, como ela mesma deixa claro ao reclamar quando Hoke para o carro na porta da igreja. Por outro lado, James explora muito bem a beleza dos jardins e ruas arborizadas da cidade, criando um interessante contraste visual. Já a maquiagem da dupla Manlio Rocchetti e Kevin Haney é simplesmente espetacular, refletindo com precisão o envelhecimento dos personagens, notável principalmente no terceiro ato do longa. E finalmente, a montagem de Mark Warner flui muito bem, cobrindo muitos anos da vida dos personagens sem jamais soar cansativa ou episódica, além de fazer a transição do tempo de forma elegante em muitos momentos, por exemplo, através do crescimento das flores no jardim. O diretor Beresford também é competente na criação de planos interessantes, como aquele em que podemos ver o reflexo de Hoke no belíssimo Hudson que ele vai dirigir por muitos anos ou na magnífica composição visual da viagem feita por Miss Daisy e seu motorista, além é claro da elegante câmera lenta que indica a morte de Idella (Esther Rolle).

Sem fugir do clichê “eles se odeiam e depois viram grandes amigos” (que neste caso é muito bem utilizado, pois o desentendimento inicial é perfeitamente aceitável, assim como o nascimento da relação de respeito e carinho entre eles), o bom roteiro de Alfred Uhry, baseado em peça teatral do próprio Uhry, estuda minuciosamente os efeitos do envelhecimento no ser humano, normalmente resistente às mudanças provocadas pela passagem do tempo. Esta resistência provoca uma enorme dificuldade em aceitar que não podemos mais fazer as mesmas coisas de antes, como quando Miss Daisy resiste em aceitar que não pode mais dirigir. Além disso, o roteiro acertadamente aborda temas complicados, como o racismo (os negros são empregados e motoristas), tão forte naquele período da história dos EUA, e a discriminação religiosa, escancarados na frase preconceituosa do policial que pára os dois idosos na estrada. Finalmente, o roteiro de Uhry conta ainda com diálogos dinâmicos, inteligentes e repletos de ironia, principalmente entre a dupla principal e entre Miss Daisy e seu filho.

Colaboram para o dinamismo dos diálogos as excelentes atuações do elenco, com destaque para o trio principal formado por Tandy, Freeman e Aykroyd. Jessica Tandy está perfeita como a amargurada Miss Daisy. Teimosa e extremamente autoconfiante, ela demonstra enorme dificuldade em se despir de preconceitos e alterar sua rotina, como quando reclama por mudar o caminho para o mercado Piggly. Miss Daisy é tão ranzinza que canta enquanto o filho fala, simplesmente por não concordar com o que ouve. A ironia – traço forte do roteiro que garante o tom de comédia – também está presente nas frases da personagem, como quando ela fala sobre o nariz de sua nora Florine (Patti LuPone), assim como o olhar sempre negativo para o mundo, exemplificado no sorriso dela ao constatar que algo sumiu de sua dispensa, como se já esperasse por aquilo. Esta seqüência do “roubo do salmão”, aliás, reafirma o tom bem humorado do longa, perceptível até mesmo na trilha sonora, que dá um acorde alto criando suspense. Depois da resolução do “caso”, repare como o diretor inteligentemente cria um plano com a cozinha vazia, refletindo a sensação que o espectador sente naquele momento. Extremamente resistente no inicio, Miss Daisy completa sua gradual transformação ao longo dos anos quando confessa seu sentimento de amizade por Hoke (“Você é meu melhor amigo”), e esta transformação é notável graças ao excelente trabalho da atriz. Tandy também demonstra muito bem o desespero de Miss Daisy quando começa a enfrentar problemas de memória, descendo a escada para procurar “as provas que devem ser corrigidas” e falando repetitivamente, além de mostrar competência também quando recorda da primeira vez que viajou, aos doze anos de idade, num momento nostálgico e tocante. E o responsável por toda esta mudança na vida da rica judia é um senhor simples e de enorme coração, interpretado magnificamente por Morgan Freeman. A introdução de Hoke na narrativa é perfeita, apresentando logo de cara todos os trejeitos do personagem, como a voz calma e anasalada, o sotaque diferenciado, o andar encurvado e lento, o olhar por cima dos óculos e a gargalhada. Seu jeito tranqüilo e paciente é ideal para conseguir conviver diariamente com a difícil Miss Daisy. Repare como logo na entrevista com Boolie fica evidente a ótima caracterização do personagem, reforçando a qualidade da atuação de Freeman. Vale destacar em especial dois grandes momentos do ator. O primeiro, na emocionante cena em que Hoke procura a lápide de Bauer e escancara sua deficiência na leitura, onde o ator transmite toda a dificuldade e embaraço do personagem, provocando a imediata reação de Miss Daisy, que sorri de satisfação quando o motorista consegue encontrar a lápide. O outro momento acontece quando Hoke pede aumento para Boolie. Freeman demonstra com enorme sensibilidade, através do jeito de falar, da gargalhada e do tom de voz, a intenção do personagem, ainda que as palavras não digam claramente o que ele pretende. Finalizando os destaques do elenco, Dan Aykroyd se sai muito bem no papel do divertido Boolie, que sabe perfeitamente como é difícil conviver com sua amada mãe. Por isso, ele raramente dá ouvidos às constantes reclamações da velha senhora, e até mesmo quando o faz, é sempre com um pé atrás, como no caso do salmão roubado. Além disso, o ator demonstra com competência o modo sempre irônico com que Boolie lida com os problemas da família (“Carros não agem, as pessoas que agem com eles”), como quando sua esposa reclama por não ter coco ralado no natal.

Quando Hoke se rebela e diz que é um senhor de 70 anos de idade que precisa fazer xixi, ele finalmente ganha o respeito definitivo de Miss Daisy. Os dois, aliás, começam a dar sinais evidentes da relação de amizade entre eles quando ela lhe presenteia no natal (“Não é presente de Natal. Judeus não têm nada que ver com isso”, faz questão de ressaltar). Neste momento, ainda que as fortes tradições se mantenham (Hoke fica do lado de fora da casa), o livro que ele ganha simboliza que a relação entre os dois já não é apenas profissional. E é delicioso acompanhar a construção gradual e consistente de uma amizade verdadeira. Por isso, quando chegamos à seqüência final, com os dois amigos sentados à mesa conversando enquanto Hoke alimenta Miss Daisy, nos sentimos comovidos. E esta comoção não é provocada de forma artificial ou melodramática. É simplesmente belo ver como os velhos traços da amizade permanecem, com as alfinetadas e a ironia presentes no diálogo, mas o respeito e admiração são muito mais fortes.

A velhice é tratada com respeito neste sensível “Conduzindo Miss Daisy”, extremamente bem atuado e com um roteiro bastante inteligente, que nos deixa algumas reflexões. A vida passa, o corpo enfraquece, os filhos crescem, os amigos e familiares se vão, mas as lembranças ficam. E afinal de contas, o que levamos desta vida? Levamos o amor, as verdadeiras amizades e as histórias que vivemos para contar. Melhor ainda é quando chegamos ao final desta trajetória podendo contar com alguém, seja este (a) um (a) companheiro (a) ou um verdadeiro (a) amigo (a). É isto que vale a pena na vida.

Texto publicado em 31 de Julho de 2010 por Roberto Siqueira

BATMAN – O CAVALEIRO DAS TREVAS (2008)

(The Dark Knight) 

5 Estrelas 

Filmes em Geral #3

Dirigido por Christopher Nolan.

Elenco: Christian Bale, Heath Ledger, Aaron Eckhart, Maggie Gyllenhall, Michael Caine, Morgan Freeman, Gary Oldman, Eric Roberts, Cillian Murphy, Anthony Michael Hall, Monique Curnen, Nestor Carbonell, Joshua Harto, Melinda McCraw e Nathan Gamble. 

Roteiro: Jonathan Nolan e Christopher Nolan, baseado em estória de Christopher Nolan e David S. Goyer e nos personagens criados por Bob Kane. 

Produção: Christopher Nolan, Charles Roven e Emma Thomas. 

Cavaleiro das Trevas

Filmes baseados em heróis dos quadrinhos costumam oferecer boas produções no cinema, sejam eles mais famosos (Homem-Aranha) ou menos conhecidos por parte do grande público (V de Vingança). Melhor ainda é quando estes filmes oferecem mais do que diversão, contendo narrativas inteligentes e personagens complexos. Pois este excelente Batman – O Cavaleiro das Trevas consegue ser muito mais que apenas um filme de super-herói, alcançando um peso dramático e uma carga de tensão do mais alto nível, tornando-se um filme de ação diferenciado e acima da média. Ao contrário do visual esplendido que Tim Burton empregava em seus filmes do homem-morcego, recheado de personagens rasos e propositalmente distantes da realidade, Christopher Nolan investe no peso dramático e na ambigüidade, oferecendo personagens fascinantes e uma narrativa maravilhosa.

Desde que Batman (Christian Bale) iniciou sua luta contra o crime organizado na cidade, os criminosos não conseguem mais ter vida fácil. Com o apoio do incorruptível promotor de justiça Harvey Dent (Aaron Eckhart) e do inteligente tenente James Gordon (Gary Oldman), o misterioso homem mascarado conseguiu sucesso em sua empreitada e despertou a ira dos criminosos. Ciente do poder de inibição que o herói provoca nos criminosos, Gordon utiliza a imagem projetada no céu com freqüência para controlar o crime. Por outro lado, pessoas comuns passaram a se vestir como Batman, o que evidentemente se tornou algo perigoso, já que estas pessoas não são capacitadas para combater os perigosos criminosos. Desesperados e sem muita saída, um grupo de mafiosos aceita a proposta de um estranho homem que usa maquiagem para esconder suas cicatrizes conhecido como Coringa (Heath Ledger), que ofereceu seus serviços para eliminar o homem-morcego da cidade.

Dirigido com competência por Christopher Nolan, o filme inicia em ritmo alucinante mostrando diversas ações paralelas que formarão a base da narrativa. Auxiliado pelo excelente trabalho de montagem de Lee Smith, que consegue manter o foco em todas estas ações paralelas e este ritmo acelerado durante todo o filme sem se tornar cansativo, Nolan consegue captar a atenção do espectador e nos jogar pra dentro da trama de forma muito convincente. Além disso, o inicio consegue introduzir de maneira exemplar o personagem mais fascinante do longa, o assustador Coringa. Nolan também é competente na criação de cenas plasticamente belas, como os travellings que sobrevoam as cidades e as empolgantes seqüências de ação e perseguição. Além disso, o diretor utiliza interessantes movimentos de câmera, como podemos notar durante o diálogo entre Gordon, Dent e Batman no terraço. A excelente fotografia azulada cria um ambiente frio e assustador, além de mergulhar os personagens em sombras e escuridão por diversas vezes, refletindo muito bem o sombrio universo do super-herói amargurado. Mas, apesar de cuidar muito bem de todos estes detalhes, é no desenvolvimento de personagens que Nolan demonstra toda sua competência, extraindo atuações do mais alto nível.

Apoiando-se no excelente roteiro escrito por ele próprio e seu irmão Jonathan Nolan, o diretor consegue criar personagens complexos e carregados dramaticamente, o que é sempre um prato cheio para os grandes atores. A narrativa dos irmãos Nolan tem como tema principal o lado egoísta e cruel existente dentro de cada ser humano, apontado através dos jogos propostos pelo vilão. O roteiro também aborda com competência outros temas interessantes, como a corrupção dentro das autoridades que deveriam oferecer segurança à sociedade, além de manter o espectador sempre grudado na tela devido às surpreendentes armadilhas do Coringa. Conta ainda com bons momentos de alivio cômico como a piada dos desaparecimentos do Batman, o nome alternativo que Alfred utiliza para bebidas alcoólicas e a frase do mesmo Alfred sobre o uso do Lamborghini.

Ciente de que toda a história da origem do homem-morcego foi corretamente abordada no filme anterior (Batman Begins), Nolan aproveita para focar ainda mais no desenvolvimento de seus pergonagens, o que possibilita ao elenco de primeira grandeza oferecer performances maravilhosas. Michael Caine está muito bem novamente como Alfred, firme em seus conselhos para Bruce Wayne e com seu ótimo senso de humor. A conversa entre eles sobre o ladrão de pedras preciosas revela muito sobre a personalidade caótica do grande vilão da trama. Christian Bale tem uma boa atuação como Bruce Wayne. Sua reação à insinuação de Alfred sobre seu interesse em Rachel é notável, quando ele vira o rosto e sai evitando o olhar do amigo. Seu momento mais tocante é quando chora a perda de alguém muito importante e reflete sobre o tipo de reação que causou na sociedade quando decidiu ser o Batman. Já com a máscara do homem-morcego seu desempenho é ainda melhor. Com a voz mais grave (e distorcida na pós-produção) e com muita segurança, ele consegue criar um herói ambíguo e amargurado pelas marcas do passado, dando muito peso dramático ao personagem. Morgan Freeman faz seu papel com extrema competência mais uma vez. Repare o sorriso contido de satisfação quando Wayne lhe pede para cancelar o acordo e ele responde “Você já sabia?”. Outra grande cena é quando Reese (Joshua Harto), o consultor das empresas Wayne, ameaça revelar a identidade secreta do Batman. Ele ri com muito cinismo e dá uma resposta muito inteligente ao rapaz, que demonstra através de seu rosto o arrependimento que sentiu. Ainda nas atuações, Aaron Eckhart também merece destaque como o promotor Harvey Dent. Seu arco dramático é incrível, transformando seu personagem de uma pessoa séria e comprometida com a causa para um vingador implacável e cruel que não tem mais código ético e moral após o duro golpe que sofreu. Sua transformação no vilão “Duas-Caras” é extremamente competente e tem total coerência com a narrativa, tornando o personagem mais próximo da realidade, o que o aproxima do público. Dent acaba se tornando o personagem símbolo da ideologia do vilão, que tenta provar que todos nós temos um lado mais obscuro. O momento da revelação de seu rosto é uma grande cena do filme. Interessante notar como a moeda utilizada por Dent se torna ainda mais simbólica após a tragédia que destruiu a vida do personagem, com o lado queimado passando a simbolizar a morte. Impressionante também é a comovente reação de Eckhart quando nota a moeda em seu leito.  Maggie Gyllenhall, apesar de não conseguir criar empatia com Christian Bale, consegue sucesso em sua relação com Eckhart, destacando-se na dramática cena em que aceita se casar com Dent. Gary Oldman completa o qualificado elenco de apoio oferecendo uma boa atuação, com destaque para a cena final do filme, quando demonstra sua aflição de forma muito convincente.

Entre tantas boas performances, uma chamou a atenção em particular. A histórica atuação de Heath Leadger compôs um personagem fascinante e temível. O Coringa dele é alguém sem apego a dinheiro ou regras, que tenta provar que no fundo de sua alma todo ser humano tem seu lado ruim e cruel. Sua intenção é provar que, quando colocadas em alguma situação de risco, as pessoas sempre tentarão salvar a própria pele, como fica evidente na cena dos barcos e em sua engraçada metáfora com os cães de um mafioso. Seu plano lembra por muitas vezes o de John Doe em Se7en, já que ambos não têm mais esperança no ser humano. Incrível como ele trabalhou em cada pequeno detalhe de sua atuação. Observe o tique da língua saindo da boca e os olhos nunca fixos, que demonstram a personalidade psicótica do rapaz. Repare o jeito de andar encurvado, o cabelo bagunçado, a voz anasalada, além é claro do rosto de palhaço extremamente realista, fruto do grande trabalho de maquiagem. A oscilação nada comum de seu senso de humor manifestada através das risadas estridentes e gritos que alternam repentinamente para um tom de voz baixo. Em momentos de extrema tensão ele mantém o controle dos nervos como se não tivesse nada a perder, como na cena em que, com um policial como refém, pede tranquilamente pra fazer uma ligação. Seu bom humor é irônico, e ele demonstra isso com competência, por exemplo, quando chama Rachel de gatinha e ajeita seu cabelo ou quando diz para Batman que ele escolheu as palavras incorretas. Seu momento mais genial é o diálogo com Batman dentro da sala de entrevistas da cadeia, revelando a parte cruel de seu plano e causando a ira em seu oponente (em bom momento de Bale que explode em cena). Nesta cena você pode notar todos os detalhes citados acima em Ledger, além de descobrir que na realidade o Coringa respeita o Batman e entende que eles são dependentes um do outro, pensamento este que fica evidente minutos depois, quando pede em público a morte de um determinado cidadão. Nota-se também nesta cena a excelente composição visual de Nolan, filmando no primeiro plano o comissário correndo pra abrir a porta e no segundo plano o irritado Batman indo trancá-la, ao som da risada do Coringa.

O trabalho técnico do filme também é extremamente competente. Desde a trilha sonora típica de filmes de ação, pesada e com picos de volume para criar tensão, até os espetaculares trabalhos de som e efeitos sonoros, capazes de captar cada pequeno detalhe como o som do pescoço do Coringa estalando e da capa do Batman voando. Os efeitos especiais trabalham para ajudar o filme (e não se tornam a razão de ser dele), como podemos notar nos perfeitos ferimentos no rosto do Duas-Caras e nas maravilhosas seqüências de ação.

Com um ou outro escorregão típico dos arrasta-quarteirões norte-americanos, como a cena do tribunal que faz uma piada patriota sobre armas e a eficiente contagem de votos nos barcos (engraçado como um país tão ineficiente na contagem de votos tenha uma contagem tão rápida), o filme consegue um peso dramático e um terceiro ato capaz de desnortear qualquer um. O diálogo entre Batman e Dent, logo após este último ameaçar de matar um esquizofrênico, revela muito sobre a linha de raciocínio da dupla Coringa e Batman e o que está em jogo. Dent não poderia sujar sua imagem de incorruptível perante a sociedade, ele era o herói que Gotham precisava naquele momento. E a decisão final do homem-morcego de assumir os crimes de outra pessoa e manchar de vez sua reputação naquela sociedade demonstra sua nobreza e seu comprometimento com a causa, jamais levando o crédito pra si mesmo em prol da criação de um mito que ajude na defesa contra o crime organizado. Um herói capaz de uma decisão pesada, cruel e altruísta como esta demonstra sua magnitude e grandeza. Grande também é o filme de Nolan, adulto, pesado e extremamente complexo.

Utilizando os personagens dos quadrinhos como fio condutor de uma produção ambiciosa e oferecendo uma narrativa brilhante e repleta de detalhes, Batman – O Cavaleiro das Trevas é um filme acima da média, com uma atuação antológica e outras muito competentes, que levam o espectador a um enorme cansaço emocional devido à carga psicológica envolvida na trama. Quem dera todo filme de ação tivesse como base para explosões e perseguições uma narrativa tão coesa e complexa como esta. Esta é uma franquia que tem muito ainda a oferecer. Robin, Pingüim, Charada, entre outros, são personagens que podem render outros excelentes roteiros. Espero que venham mais ótimos filmes como estas duas produções de Nolan.

Coringa

Texto publicado em 24 de Julho de 2009 por Roberto Siqueira