FOGO CONTRA FOGO (1995)

(Heat)

 

Videoteca do Beto #130

Dirigido por Michael Mann.

Elenco: Al Pacino, Robert De Niro, Val Kilmer, Jon Voight, Tom Sizemore, Ashley Judd, Natalie Portman, Danny Trejo, Diane Venora, Amy Brenneman, Mykelti Williamson, Wes Studi, Ted Levine, Dennis Haysbert, William Fichtner, Tom Noonan, Hank Azaria, Kevin Gage e Tone Loc.

Roteiro: Michael Mann.

Produção: Art Linson e Michael Mann.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Dois dos maiores atores de sua geração (e, porque não dizer, de todos os tempos), Al Pacino e Robert De Niro se destacaram também pela coragem de escolher projetos audaciosos no auge ao invés de surfar na fama em projetos puramente comerciais. Donos de enorme talento e carisma, eles sempre estiveram entre os atores mais respeitados da indústria, conquistando o respeito de fãs e críticos. Curiosamente, antes de “Fogo contra Fogo” eles jamais tinham dividido um plano sequer, a não ser numa rápida transição de planos em “O Poderoso Chefão – Parte II”. Por isso, você pode imaginar qual era a expectativa para finalmente vê-los atuando juntos no filme dirigido por Michael Mann. E para a alegria geral, o resultado não poderia ser melhor. Ainda que contracenem apenas em duas cenas, eles estrelam um filme de ação não apenas eficiente, mas que apresenta, além de grandes cenas, um excepcional estudo de personagens.

Escrito e dirigido por Michael Mann, “Fogo contra Fogo” começa apresentando rapidamente os personagens centrais da narrativa enquanto acompanhamos a preparação de um assalto. Desta forma, conhecemos em poucos minutos os criminosos Neil (Robert De Niro), Chris (Val Kilmer), Cheritto (Tom Sizemore) e Waingro (Kevin Gage), além do informante do grupo Nate (Jon Voight). Durante a execução do plano, Waingro dispara contra um policial e provoca o assassinato de outros dois, o que força a presença do detetive da Divisão de Homicídios Vincent Hanna (Al Pacino), que assume o caso. Lentamente, ele descobre quem são aqueles criminosos e passa a persegui-los, o que só piora sua relação conturbada com a esposa Justine (Diane Venora) e a enteada Lauren (Natalie Portman).

Desde o início, o impecável roteiro entrelaça de maneira consistente os caminhos de seus diversos personagens, criando uma narrativa sempre envolvente e dinâmica, que jamais soa confusa, graças também ao bom trabalho dos montadores Pasquale Buba, William Goldenberg, Dov Hoenig e Tom Rolf, que alternam num ritmo interessante entre a investigação de Vincent e as ações do grupo de Neil, acertando ainda nas cenas de ação, como o sensacional tiroteio em plena luz do dia após o assalto ao banco – que abordarei novamente em instantes. Mann também aborda de maneira interessante o meticuloso trabalho da policia, nos envolvendo no processo ao mesmo tempo em que acompanhamos os criminosos planejando seus próximos passos, num jogo de gato e rato sempre interessante. Entretanto, ainda que desenvolva bem a maioria dos personagens, é no profundo estudo da dupla Neil e Vincent que o roteiro se destaca, apresentando dois homens que, mesmo estando em lados opostos da lei, compartilham diversas características marcantes – que também voltarei a abordar em instantes.

Visualmente, “Fogo contra Fogo” se destaca em diversos momentos, como nos lindos planos em que Neil e Eady (Amy Brenneman) olham a cidade iluminada de uma sacada. Aliás, a competente fotografia de Dante Spinotti auxilia bastante no trabalho excepcional de Michael Mann, com suas cores frias e perfeita iluminação nas cenas noturnas (repare o visual esplêndido no vôo dos helicópteros, por exemplo). Também discretos e eficientes são os figurinos de Deborah Lynn Scott, que mantém a coerência ao priorizar cores que não chamam a atenção na maior parte do tempo, assim como a trilha melancólica de Elliot Goldenthal sublinha suavemente os diálogos entre os casais, subindo o tom apenas em algumas cenas de ação, como no assalto ao carro forte.

Empregando closes que realçam cada personagem e os aproximam do espectador, Mann rapidamente revela informações importantes, como os problemas familiares de Vincent e Chris e a solidão de Neil. Já o primeiro assalto serve para introduzir a violência brutal dos criminosos, nos preparando para o que veremos ao longo da narrativa. Ainda mais interessante é a maneira como Mann explora dramaticamente os personagens, nos aproximando de seus problemas e compartilhando suas angústias e dilemas, num processo inteligente que humaniza até mesmo os criminosos. Mas o mais interessante mesmo é como o diretor conduz a marcante cena do tiroteio nas ruas de Los Angeles, nos colocando no meio da cena como se fizéssemos parte da ação, com a câmera se escondendo entre os carros enquanto os tiros passam raspando. O espetáculo, porém, começa antes, desde quando acompanhamos Neil convidando o ex-presidiário Breedan (Dennis Haysbert) para substituir Trejo (Danny Trejo) no assalto, enquanto Vincent, desesperado, sequer sabe onde eles estão. O assalto segue bem sucedido até o instante em que Vincent descobre o local. E então, a tensão toma conta da tela, especialmente pela forma como Mann transita entre os planos até que Chris perceba a presença da polícia e inicie o tiroteio, onde, além do verdadeiro espetáculo de direção e montagem, vale destacar também o excepcional trabalho de design de som que torna tudo mais realista e, junto com os planos subjetivos, praticamente nos coloca dentro do confronto.

Ainda na direção, Mann também conduz com precisão outras cenas bastante tensas, como quando Neil e Chris invadem um local à noite e são observados pela polícia, onde cada plano complementa o outro perfeitamente, criando um clima crescente e quase insuportável de suspense – e repare como em dois planos idênticos, as sombras cobrem metade do rosto de Vincent e Neil, sugerindo que eles se complementam. Outra cena de grande destaque é aquela em que Vincent descobre que Neil está observando a polícia nos contêineres, numa virada interessante na narrativa. Em outro momento tenso, Charlene (Ashley Judd) desiste de entregar o marido Chris, o que confere ainda mais peso dramático à conturbada relação deles e comprova que os personagens de “Fogo contra Fogo” fogem do estereótipo unidimensional típico dos filmes de ação. Aqui não existe o clichê “o bem contra o mal”. Todos têm qualidades e defeitos e, por isso, compreendemos suas motivações, ainda que discordemos delas.

Apoiado num elenco espetacular, Michael Mann extrai ótimas atuações que tornam “Fogo contra Fogo” ainda mais realista, a começar pelos papéis menores dos ótimos Jon Voight e Tom Sizemore, passando por Ted Levine, Amy Brenneman e Ashley Judd, além da na época adolescente Natalie Portman, que interpreta a enteada de Vincent cheia de problemas com o pai biológico. Num papel de maior destaque, Val Kilmer vive o explosivo Chris, que, assim como Vincent, tem problemas com a esposa, mas, diferente do policial e do parceiro Neil, não consegue evitar que eles interfiram em seu “trabalho”. Fechando o elenco secundário, Diane Venora parece sequer expressar os sentimentos de Justine, numa atuação fria coerente com o sofrimento da personagem, já anestesiada diante de tanto desprezo do marido (“O que eu tenho são sobras”, diz ela).

Homens parecidos mesmo em lados opostos da lei, Vincent e Neil são muito competentes naquilo que gostam de fazer, mas não conseguem ter sucesso na vida social e nos relacionamentos amorosos. Se Vincent já está no terceiro casamento fracassado, Neil evita ter um relacionamento sério e, mesmo gostando de Eady, deixa claro que não hesitará em largá-la se assim for preciso. Atores completos e que impõe respeito naturalmente, De Niro e Pacino jamais dão a sensação de que hesitarão antes de partir pra cima de alguém, ainda que seus personagens demonstrem um impressionante autocontrole e saibam como agir de maneira inteligente em cada situação, como fica claro nas conversas de Neil com Charlene e de Vincent com Albert, o irmão do informante Richard, o que é essencial para o sucesso dos personagens. Assim, sabemos que eles não pensaram duas vezes antes de atirar, ainda que do outro lado esteja um “oponente” de respeito – algo vital para a seqüência final, por exemplo.

Policial inteligente e muito respeitado, o Vincent de Al Pacino sabe que sua dedicação ao trabalho atrapalha o relacionamento com a esposa e a enteada, mas não consegue fazer nada a respeito – e talvez nem queira. Por isso, Justine lentamente vai se afastando do marido até consumar a traição – e repare na fotografia obscura e opressora na cena em que eles discutem a relação num restaurante, momentos antes dela resolver agir. Aliás, nem mesmo após a traição ele consegue demonstrar sentimento por ela, utilizando a televisão para descarregar sua raiva. Mas ao ver a enteada quase morta na banheira, Vincent finalmente demonstra afeto e recebe um doloroso abraço de sua esposa – o que não significa uma reaproximação ou revisão de valores.

Do outro lado da moeda, o Neil de Robert De Niro demonstra sua inteligência desde o início, quando se irrita com o assassinato dos motoristas do carro forte por saber que aquilo chamaria ainda mais a atenção da polícia para o caso. Mas sua energia na execução dos crimes é proporcional à sua inércia na vida particular, representada pelo apartamento sem mobília que simboliza uma vida vazia. Simbólico também é o plano em que ele olha para o mar, numa alusão ao sonho de largar tudo pra trás e viver bem longe, escancarado quando convida Eady para deixar o país (obviamente, já contando com a grana que receberia após o assalto ao banco). Mas, assim como Vincent, ele desperdiça a chance que tem de mudar quando Nate avisa o paradeiro do traidor Waingro – e a expressão dele demonstra claramente seu conflito interior, assim como a fotografia indica seu trágico futuro mudando drasticamente do túnel iluminado para as ruas sombrias da cidade. Ele precisava escolher entre a fuga com Eady e a vingança e, mesmo sabendo que perderia um tempo precioso, não resiste ao impulso e desvia o caminho. Neste momento, o espectador já sabe o que esperar. Ainda assim, a melancólica cena em que ele abandona Eady no carro incomoda, mas é coerente com a personalidade dele. Uma cena visualmente belíssima, aliás, com a câmera lenta destacando o momento em que ele decide abandoná-la, exatamente como avisou que faria se fosse necessário.

Estas duas personalidades tão fortes e tão parecidas se cruzam apenas duas vezes durante a narrativa. Num momento histórico para cinéfilos e fãs, Al Pacino e Robert De Niro contracenam pela primeira vez quando o primeiro para o segundo no trânsito e o convida para tomar um café. A conversa direta e cheia de ameaças sutis é um dos grandes momentos do longa (e da atuação de ambos), servindo também para preparar o clima da seqüência final. O segundo encontro acontece exatamente no esperado confronto final, em que a ausência da trilha sonora, os sons diegéticos e a escuridão do aeroporto reforçam a tensão até que finalmente Vincent acerte Neil. O cumprimento deles apenas comprova o respeito mútuo de dois homens inteligentes e obstinados, que não conseguiam fazer outra coisa a não ser o “trabalho” que amavam. Infelizmente, o trabalho de um era atrapalhar o trabalho do outro, e eles jamais permitiriam que alguém atrapalhasse seus caminhos. Mas se o trabalho de um interferia diretamente no do outro, ironicamente este conflito era necessário para que eles pudessem exercer a profissão com tanta paixão – e, além do respeito, este cumprimento final revela esta assombrosa compreensão de ambos do cenário em que estão inseridos.

Com uma rara profundidade dramática e um complexo estudo de personagens pouco comum no gênero, “Fogo contra Fogo” é um excepcional filme de ação, que traz ainda uma das mais sensacionais cenas de tiroteio já vistas no cinema. Ao estudar personalidades tão parecidas em corpos inimigos, Michael Mann entrega mais do que um ótimo filme de ação, trazendo dois homens obstinados por suas profissões, que, numa melancólica ironia, dependiam um do outro para se sentirem completos, mesmo estando em lados opostos da lei.

Texto publicado em 10 de Junho de 2012 por Roberto Siqueira

15 comentários sobre “FOGO CONTRA FOGO (1995)

  1. MARCOS 16 fevereiro, 2017 / 8:27 pm

    A proposito no filme eu torci para o DE NIRO e creio que muitos tambem torceram para seu personagem

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  2. MARCOS 16 fevereiro, 2017 / 8:23 pm

    Esse filme e realmente muito bom ver dois monstros Pacino e De Niro contracenando e muito dez, tenho certeza que daria uma otima sequencia, o filho de Robert com a Natalie Portman sedento de vingança pela morte de seu pai, enviando cartas ameacadoras enteada de Pacino ja aposentado e tendo que se envolver no sequestro da mesma seria muito bom com o toque do genial Mann, seria dez talvez isso um dia aconteca, FOGO CONTRA FOGO A VINGANCA NUNCA E TARDIA

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  3. Anônimo 24 setembro, 2013 / 1:09 pm

    esse filme e´ chapado de mais adorei vi quando foi lançado sem palavras !!! e´dificil assistir filmes asim hoje em dia muita mintira nos filme de hoje valeu pela op de filme esse fogo contra fogo e´ o melhor que vi ate´ hoje goga cherrito capão

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    • Roberto Siqueira 11 janeiro, 2014 / 6:18 pm

      Muito obrigado pelo comentário.
      Abraço.

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  4. Marcel Carvalho 17 agosto, 2013 / 3:59 pm

    Roberto, bela crítica…muito bem escrita, parabéns ! Eu sempre gosto de ler críticas, mesmo de filmes que já vi trocentas vezes. Acredito que sempre há um detalhe ou outro ( ou vários) que passa despercebido. Sobretudo qdo a crítica aborda aspectos técnicos da película, exatamente como vc fez. Considero FOGO CONTRA FOGO um filme elegante, feito de escolhas muito felizes, de bom gosto, fruto de um trabalho técnico primoroso de todos os envolvidos. BRAVO ! Seu único deslize (olha a corneta aí rssss) foi dizer que a cena de tiroteio se passa nas ruas de NY…qdo eu sei que vc sabe muito bem que o pano de fundo é sempre LOS ANGELES. Mais uma vez, parabéns pelo trabalho, vou acompanhar. Um abraço !

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    • Roberto Siqueira 16 setembro, 2013 / 11:26 pm

      Muito obrigado pelos elogios e pela observação Marcel, já corrigi o texto.
      Um grande abraço e fique a vontade para comentar sempre que quiser.

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  5. rauny moreira 14 agosto, 2013 / 12:09 pm

    Ola Roberto, valeu pela dica, assisti O Informante recentemente e realmente me surpreende, pretendo assistior os outros, abraco e valeu pelas indicacoes

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    • Roberto Siqueira 14 agosto, 2013 / 11:39 pm

      Por nada Rauny.
      Abraço.

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  6. rauny moreira 26 julho, 2013 / 3:18 pm

    Respeitando sempre os grandes atores do passado como chaplin e kirk douglas,so para citar alguns, esses dois pra mim sao os melhores em atividade,neste filme os personagens estao perfeitos e no final pacino mata de niro,anos mais tarde o contrario aconteceria em as duas faces da lei talvez tambem citasse anthony hopkins entre os maiores mas pacino e de niro pra mim ocupam as primeiras colcacoes, agora sobre o diretor nao conheco outros trabalhos dele, voces poderiam me indicar outros filmes do mesmo valeu galera um abraco

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    • Roberto Siqueira 8 agosto, 2013 / 11:10 pm

      Olá Rauny,
      De Niro e Pacino estão entre os grandes da história, sem dúvida.
      Já o diretor Michael Mann tem diversos filmes de ótima qualidade na carreira, como “Miami Vice”, “Colateral”, “O Informante”, entre outros.
      Abraço.

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    • Roberto Siqueira 2 novembro, 2012 / 10:21 am

      Você pode alugar ou assistir online na Netflix ou Netmovies.
      Abraço.

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  7. Fábio 14 junho, 2012 / 10:38 pm

    Esse filme é perfeito!!!
    Sou muito fã do Mann, basta saber que ele dirige algum filme que já quero assistir, independente do gênero, e para mim Heat é a sua obra-prima, com destaque ao roteiro, ao visual, ao elenco (um filme com Al Pacino e Robert de Niro não dá para esperar outra coisa) e às cenas de ação (esse filme está para fazer 20 anos e neste tempo ainda não vi nenhuma outra cena de tiroteio que superasse em emoção e realismo desta).
    Reza a lenda que The Dark Knight se inspirou bastante neste aqui.
    Parabéns pelo site e pelo ótimo trabalho.

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    • Roberto Siqueira 20 junho, 2012 / 7:59 pm

      Obrigado pelo comentário e pelo elogio Fábio. Também sou fã do Mann.
      Grande abraço.

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