O HOMEM QUE MATOU O FACÍNORA (1962)

(The Man Who Shot Liberty Valance)

 

Filmes em Geral #72

Dirigido por John Ford.

Elenco: John Wayne, James Stewart, Vera Miles, Lee Marvin, Edmond O’Brien, Andy Devine, Ken Murray, John Carradine, Jeanette Nolan, Denver Pyle, John Qualen, Woody Strode e Lee Van Cleef.

Roteiro: James Warner Bellah e Willis Goldbeck, baseado em história de Dorothy M. Johnson.

Produção: John Ford e Willis Goldbeck.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Apesar do sucesso de seus dramas, John Ford se notabilizou por dirigir westerns clássicos, explorando com maestria belas paisagens para criar um visual esplêndido. Não é o caso de “O homem que matou o facínora”. Apesar de utilizar algumas das características marcantes do gênero, o longa foge bastante do estilo tradicional do faroeste, apresentando uma narrativa melancólica, ambientes fechados, personagens ambíguos e uma série de simbolismos que ilustram o fim de uma era. Contando ainda com um ótimo elenco, trata-se de um filme sóbrio e triste, um verdadeiro canto do cisne do gênero preferido do diretor.

O senador Ransom Stoddard (James Stewart) e sua esposa Hallie (Vera Miles) chegam numa pequena cidade para o funeral de um amigo. Interessado pela ilustre visita, um repórter decide entrevistar o senador e descobre que Tom Doniphon, o amigo morto e hoje desconhecido, acolhera o senador na cidade há muitos anos. Recém formado em advocacia na época em que chegou ao local, Stoddard tentava deter um terrível pistoleiro chamado Liberty Valance (Lee Marvin) por meio da lei, enquanto Tom acreditava em sua arma. Apesar das diferentes formas de pensar, eles se respeitavam e ainda compartilhavam o amor por Hallie, na época a garçonete do saloon.

Escrito por James Warner Bellah e Willis Goldbeck, baseado em história de Dorothy M. Johnson, “O homem que matou o facínora” utiliza um longo flashback para contar a história da chegada do hoje senador Ransom Stoddard ao oeste, uma terra dominada por uma lei própria, onde a justiça era feita pelas próprias mãos. Naquele ambiente hostil, o culto Stoddard descobre rapidamente que tudo que ele estudou tinha pouco valor, após ser roubado e espancado por um grupo de bandidos, liderados pelo temido Liberty Valance. E é justamente a trajetória de mudança deste personagem, amparada por outro personagem ainda mais fascinante, que acompanharemos durante a narrativa. Stoddard simboliza a chegada do progresso num local onde a única lei que era respeitada era a “lei das armas”, simbolizada pelos antagonistas Tom e Liberty. Ele será transformado por aquele ambiente hostil, mas também trará mudanças irreversíveis ao local.

Como de costume, a direção de Ford é sóbria e discreta, jamais chamando a atenção a não ser em alguns momentos em que o zoom realça as reações dos personagens. Desta vez (até por limitações financeiras impostas pela Paramount), o diretor foca as ações em ambientes fechados, valorizando o trabalho de direção de arte de Eddie Imazu e Hal Pereira em detrimento das paisagens que ele normalmente utilizava em seus filmes, que aqui surgem somente no treinamento de Stoddard. A arquitetura da cidade segue o tradicional do oeste, com o saloon, as casas de madeira e as diligências que aguardam seus passageiros para cruzar as estradas poeirentas. Também por imposição dos estúdios, a direção de fotografia de William H. Clothier é discreta, limitando-se a criar um visual mais claro que explora o contraste entre o preto e o branco através da iluminação destes ambientes fechados.

Quem segue o estilo tradicional do western são os personagens secundários, com o xerife medroso (Andy Devine), o jornalista sem escrúpulos e o médico bêbado marcando presença na narrativa. Entre estes personagens secundários, vale destacar dois atores que participariam dos famosos westerns spaghetti de Sergio Leone: Lee Van Cleef, que vive um dos comparsas de Liberty chamado Reese, e Woody Strode, que interpreta Pompey, o ajudante de Tom. John Carradine também integra o elenco como o major Cassius Starbuckle e Lee Marvin cria um temível vilão na pele de Liberty Valance. Mas, entre todos eles, o destaque fica mesmo para Vera Miles, que vive Hallie, a garçonete disputada por Tom e Stoddard no passado, agora casada com o senador – e o pouco convincente envelhecimento de Stewart e Miles no presente é um problema pequeno demais para comprometer uma obra tão madura.

Demonstrando interesse por Stoddard logo de cara, a Hallie de Miles oscila entre a alegria ao lado do jovem advogado e os momentos em que fica brava, como quando o xerife chega ao saloon pedindo comida. A atriz ainda demonstra com competência a emoção de Hallie ao voltar ao local, com os olhos marejados e um semblante abatido, reforçados pela trilha sonora melancólica que embala o momento em que ela vê uma velha casa, indicando a importância daquele local (e de quem viveu nele) em sua vida. Esta mesma trilha triste acompanhará o momento em que Hallie vê o caixão que guarda o corpo do amigo Tom, num momento tocante e universal. Afinal, todos nós sabemos (ou infelizmente saberemos) como é doloroso ver uma pessoa querida daquela forma, já sem vida, apenas esperando que seus restos mortais sejam enterrados enquanto os momentos vividos se eternizam na memória dos que ficam. São estas memórias que guiam a narrativa de “O homem que matou o facínora”.

Este importante homem é Tom Doniphon, interpretado por John Wayne, que naturalmente impõe respeito com seu porte físico e olhar ameaçador. Sempre gentil com as mulheres, especialmente com sua paixão Hallie, Tom é o típico homem do oeste, que confia muito mais em seu revólver do que na lei e na ordem. Fruto daquele ambiente hostil, ele adverte o advogado Stoddard sobre os perigos que corre ali (“Estes livros de direito valem muito pra você, mas aqui não valem nada”, afirma). E apesar do jeito grosseiro, o tempo se encarregará de mostrar o grande homem que ele é. Quem descobrirá isto é o advogado Stoddard de James Stewart, que cai bem no papel do homem intelectual e notoriamente mais frágil que aqueles que habitam o oeste. Carismático, o ator conquista o espectador ao longo da narrativa, ainda que demore a se adaptar ao ambiente em que estava inserido. Entre os principais momentos de sua atuação, vale destacar a alegria genuína quando ouve Hallie dizer que quer aprender a ler. E apesar de derrubar o ritmo da narrativa por um instante, a aula serve para criar empatia entre Stoddard e a platéia, ao mostrar aquele homem dedicado tentando mudar uma sociedade naturalmente arredia aos estudos (até pela falta de acesso). No fundo, Tom e Stoddard também simbolizam o conflito entre a força física e o intelecto.

E será a força física que salvará o intelecto, primeiro na chegada dos bandidos ao restaurante, onde o silêncio que predomina na cena só amplia a tensão – repare como o zoom realça o rosto assustado de Hallie. Quando Liberty derruba Stoddard e, junto com ele, o bife de Tom, Wayne surge ameaçador e se agiganta na tela, colocando o bandido pra correr do local, numa das melhores cenas do filme. Após este momento, Stoddard vive o conflito entre cumprir a lei e fazer justiça com as próprias mãos – e um plano simbólico em que ele apaga do quadro a frase “a educação é a base para a lei e a ordem” começa a indicar sua mudança de comportamento. Mudança que só se consolida após o divertido treinamento em que ele dá um soco em Tom (que leva numa boa) e, principalmente, após ver a morte do amigo jornalista, brutalmente espancado por Liberty. Conforme ele fora avisado, sua placa na entrada do jornal havia sido destruída pelo temível bandido e ele agora estava decidido a enfrentá-lo.

A fotografia sombria amplia a angustia do espectador enquanto Stoddard aguarda Liberty na rua para o duelo. E ele vence, atirando no vilão a queima roupa, pra surpresa geral. Teria mesmo Stoddard mudado seus conceitos? Momentos depois, Tom aparece na cidade, se embebeda e queima a própria casa (num grande momento de Wayne), indicando sua desilusão amorosa ao ver Hallie nos braços do advogado. Chegamos até mesmo a pensar que ele saiu da cidade na esperança de que Liberty mataria Stoddard, mas suas ações prévias (como o treinamento) não indicavam isto. Chegam às eleições e com elas o nojento jogo político, evidenciado quando um dos candidatos usa o “crime” de Stoddard contra ele. E então o grande momento de “O homem que matou o facínora” surge, quando Tom confessa a autoria do crime para Stoddard e prova seu altruísmo, num flashback dentro do flashback que surge através da fumaça expelida pela boca dele (um momento belíssimo, aliás). Somos levados novamente à cena do crime, desta vez sob outro ponto de vista que revelará a verdade. Tom salvou Stoddard e saiu sem deixar rastros. Ainda assim, sofreu bastante por não ter Hallie, como deixa claro na frase “devia não ter salvado você, Hallie agora é sua”, mas sua atitude só comprova seu caráter. Ele abriu mão da fama (afinal de contas, matou o pior bandido da região) e da mulher que ama e só revelou que salvou Stoddard para que este não desistisse de sua candidatura. “Ambíguo” é pouco para um personagem como este. A importância do papel da imprensa na criação de mitos também entra em cena aqui. Ao contrário da lenda criada, foi Tom, e não Stoddard, quem matou o facínora. Mas, como diz um repórter na frase mais famosa do filme, “quando a lenda é mais famosa que a realidade, imprima-se a lenda”.

Western diferente e até mesmo pessimista, “O homem que matou o facínora” faz um excelente estudo sobre o fim de uma era, abordando temas importantes como a passagem do tempo, a criação de mitos, as formas de combater a violência e o papel da imprensa. Além disso, apresenta dois personagens ambíguos e fascinantes. Enquanto Tom se manteve fiel aos seus princípios, Stoddard se viu obrigado a rever seus conceitos e se adaptar ao cenário em que estava inserido, ainda que de certa forma tenha colaborado para mudar o local. Carregou consigo uma fama que ele sabia não merecer, mas que tinha grande importância na formação de sua imagem pública. Mas tanto ele quanto Hallie sabiam quem foi o homem que matou o facínora.

Texto publicado em 12 de Agosto de 2011 por Roberto Siqueira

COMO ERA VERDE MEU VALE (1941)

(How Green Was My Valley)

 

Filmes em Geral #70

Vencedores do Oscar #1941

Dirigido por John Ford.

Elenco: Donald Crisp, Roddy McDowall, Barry Fitzgerald, Walter Pidgeon, Maureen O’Hara, Sara Allgood, Anna Lee, John Loder, Lionel Pape, Patric Knowles, Morton Lowry, Arthur Shields, Ann Todd, Frederick Worlock, Richard Fraser, Evan S. Evans, James Monks, Rhys Williams, Ethel Griffies e Marten Lamont.

Roteiro: Philip Dunne, baseado em romance de Richard Llewellyn.

Produção: Darryl F. Zanuck.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Premiações nunca serviram como atestado de qualidade na história do cinema. Por isso, evito citar prêmios em meus textos e tento focar apenas no filme analisado. Mas quando falamos de “Como era verde meu vale” é inevitável lembrar que este foi o filme que derrotou o atemporal “Cidadão Kane”, obra-prima incontestável de Orson Welles, no Oscar. Talvez porque o primeiro ressalta o valor da família, a importância do trabalho e a América como uma terra de esperanças, numa época em que este sentimento otimista era tudo que os norte-americanos queriam. Não importa. Apesar de suas qualidades, o longa de John Ford está longe de ser um grande filme.

A história se passa no País de Gales e é contada num longo flashback a partir das memórias do protagonista Huw Morgan (Roddy McDowall), que já tem mais de 50 anos. Ele recorda a época em que era uma criança e convivia com seu pai Gwilym (Donald Crisp), sua mãe Beth (Sara Allgood), sua irmã Angharad (Maureen O’Hara) e seus irmãos mais velhos, que trabalhavam numa mina de carvão ao lado do pai. Tudo ia bem até que o Sr. Evans (Lionel Pape), o proprietário da mina, decide diminuir os salários e provoca uma greve geral que se arrasta por meses e divide a família Morgan.

Os primeiros minutos de “Como era verde meu vale” já indicam seu tom nostálgico através da narração em off do protagonista, que relembra com saudade dos tempos em que sua família vivia unida. Apostando neste sentimento universal de apego às raízes, o roteiro escrito por Philip Dunne, baseado em romance de Richard Llewellyn, investe numa visão romantizada da vida no campo, como se tudo fosse perfeito até a chegada das empresas de mineração. A crítica a industrialização se confirma nas palavras do narrador, que acusa o preto do carvão de manchar “seu vale”, mas o próprio roteiro se encarrega de suavizar este aspecto através da postura de seu pai, que defende os empregadores quando os salários diminuem e autoriza o casamento da filha com o filho do chefe, sem se preocupar com a felicidade dela. Quando os salários começam a diminuir (resultado do excesso de operários que Ford estuda de maneira mais eficiente em “As Vinhas da Ira”), o conflito político entra em cena e torna a trama mais interessante, com o conservador Gwilym defendendo seu empregador enquanto seus filhos, tachados de socialistas, buscam a união entre os empregados. O ódio ao socialismo, aliás, imperava até mesmo na igreja, como fica claro nas palavras do detestável parceiro do pastor Gruffydd (Walter Pidgeon). Revoltados com a postura do pai, os irmãos de Huw deixam a casa e, infelizmente, a narrativa perde força, com o interessante confronto político cedendo lugar para a doença de Beth e Huw, congelados após caírem num lago na volta do inflamado discurso dela em defesa do marido.

Seguindo a cartilha de John Ford, a montagem de James B. Clark é discreta e eficiente, mas ainda assim utiliza alguns fades que escurecem a tela completamente, em raros momentos de sofisticação – Ford entendia que a montagem deveria ser “transparente” e jamais chamar a atenção. Por outro lado, o visual do filme é rico e as cenas nas minas e no próprio vale são lindas (a cidade de mineradores foi totalmente criada nas colinas do rancho da Fox, nas Montanhas de Santa Mônica), ressaltando o bom trabalho de direção de arte de Richard Day e Nathan Juran e, especialmente, do diretor de fotografia Arthur C. Miller, que alterna do visual claro e alegre do início para um final obscuro, que reflete a tristeza do narrador. Vale lembrar também que estamos vendo apenas lembranças filtradas pela memória do protagonista, o que explica aquele mundo perfeito e belo. E se Ford utiliza mais planos fechados que de costume, ainda assim cria seus tradicionais planos gerais que exploram a bela paisagem, além de empregar interessantes movimentos de câmera, como o travelling para a direita que revela a saída de casa de Owen (James Monks) e Gwilym Morgan Jr (Evan S. Evans), dois dos irmãos de Huw.

Huw que é interpretado pelo carismático Roddy McDowall, que convence especialmente quando está doente e indefeso, mas falha quando começa a trabalhar, parecendo inseguro, por exemplo, nas conversas com Bronwyn e com sua irmã Angharad. Ainda criança, ele se apaixona pela mulher do irmão e acompanha o casamento dela com pesar. Interpretada por Anna Lee, Bronwyn é uma moça encantadora, de fato, mas, assim como a maioria das mulheres do longa, sem atitude e passiva. Diferente delas é a Sra. Beth Morgan de Sara Allgood, uma típica “mãezona” que defende a família com unhas e dentes e sofre ao ver cada filho partir – e a atriz, apesar de alguns exageros, consegue convencer no papel. Capaz de oferecer comida para toda a comunidade do vale – numa cena pouco realista em que ela parece esquecer rapidamente tudo que passou (e custo a acreditar que seria tão fácil alimentar toda aquela gente) -, Beth só não consegue perceber o sofrimento da filha, apaixonada pelo pregador da região. E neste aspecto, vale destacar a atuação de Maureen O’Hara, que demonstra bem o incômodo de Angharad com o casamento, deixando claro seu amor por Gruffydd.

Chamado de “Sir” pelos próprios filhos, Gwilym Morgan é um personagem autoritário e unidimensional. Apesar disto, Donald Crisp até que diverte no papel, mas jamais consegue criar empatia com a platéia – algo que, diga-se de passagem, nem mesmo o protagonista consegue, comprometendo a narrativa. Aliás, personagens unidimensionais não faltam em “Como era verde meu vale”, como atestam o professor Jonas vivido por Morton Lowry, a governanta da casa de Angharad e as puritanas mulheres que fofocam durante a semana e vão à igreja aos domingos. Pelo menos, Rhys Williams nos diverte com seu boxeador Dai Bando – especialmente quando ensina ao professor como tratar os alunos – e Ford consegue nos emocionar ao mostrar a reação de Angharad à morte do marido Ivor (Patric Knowles). Embalada por uma trilha sombria, esta é uma das cenas mais tristes do filme.

E já que citei a trilha sonora de Alfred Newman, observe como ela também alterna do tom alegre inicial para o tom melancólico que acompanha o trágico final. Além disso, segue uma tradição galesa ao espalhar muitos cantos pela narrativa, criando uma interessante trilha diegética enquanto os mineradores vão para o trabalho. Por outro lado, por vezes o filme mais parece uma novela, com seus momentos melodramáticos e atuações caricatas, como quando o médico diz que o garoto Huw não conseguirá mais andar. Para compensar, Ford acerta a mão na condução da excelente cena em que o pastor Gruffydd critica a hipocrisia daquelas pessoas na igreja, que olham mais para a vida dos outros do que pra elas próprias, num momento de destaque da atuação de Walter Pidgeon. E justamente por estes altos e baixos (além da falta de empatia dos personagens) é que a frase que encerra a narrativa (“Homens como meu pai não podem morrer”) não provoca o impacto esperado.

Maniqueísta e com personagens unidimensionais, “Como era verde meu vale” retrata a visão otimista que o sonho americano vendia e que foi desconstruída ao longo dos anos diante da dura realidade. Não sou contrário a filmes otimistas, longe disto, mas prefiro que este sentimento seja criado de maneira orgânica e não induzido pela narrativa. Neste aspecto, prefiro o pessimismo sóbrio de “As Vinhas da Ira”.

Texto publicado em 10 de Agosto de 2011 por Roberto Siqueira

NO TEMPO DAS DILIGÊNCIAS (1939)

(Stagecoach)

 

Filmes em Geral #68

Dirigido por John Ford.

Elenco: Claire Trevor, John Wayne, Andy Devine, John Carradine, Thomas Mitchell, Louise Platt, George Bancroft, Tim Holt, Donald Meek e Berton Churchill.

Roteiro: Dudley Nichols e Ben Hecht, baseado em história de Ernest Haycox.

Produção: John Ford (não creditado).

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Filme que iniciou a parceria entre John Ford e John Wayne, que ainda duraria muitos anos e renderia outras obras marcantes, “No Tempo das Diligências” é um western clássico no sentido amplo da palavra, com todos os personagens e componentes narrativos característicos do gênero. Repleto de seqüências marcantes, que se tornaram referência ao longo dos anos, com personagens cativantes e uma inteligente crítica social, o longa é certamente um dos mais importantes do gênero e ainda hoje é entretenimento de primeira.

Viajando numa diligência para Lordsburg, um grupo de estranhos encontra o foragido Ringo Kid (John Wayne), que é preso imediatamente por seu amigo delegado Curly Wilcox (George Bancroft). Além de Curly, Ringo se junta ao bêbado Dr. Boone (Thomas Mitchell), a prostituta Dallas (Claire Trevor), ao banqueiro Henry Gatewood (Berton Churchill), ao jogador Hatfield (John Carradine), a esposa de um oficial Lucy Mallory (Louise Platt), ao vendedor de uísque Samuel Peacock (Donald Meek) e ao condutor Buck (Andy Devine). No meio do caminho, eles são avisados que o índio Geronimo e seus guerreiros apaches estão no caminho. O grupo terá de enfrentar os selvagens antes de alcançar seu destino e permitir que Ringo acerte as contas com seu desafeto Luke Plummer.

O cinema de John Ford não necessita de muitas palavras. Em diversos momentos, apenas as imagens são capazes de transmitir a mensagem pretendida ao espectador. Olhares, gestos e pequenos movimentos fazem com que a platéia perceba algo a respeito de determinado personagem, como a atração entre Ringo e Dallas, que vai se tornando evidente na medida em que a narrativa avança, sem que eles precisem dialogar para isto. Somente através dos olhares, sempre destacados pela câmera hábil de Ford, o espectador percebe tudo. Por isso, os diálogos surgem apenas quando necessários, o que não quer dizer que o longa tenha um ritmo lento. Pelo contrário, a narrativa envolvente é um dos trunfos de “No Tempo das Diligências”. Auxiliado pela montagem de Otho Lovering e Dorothy Spencer, que se destaca na memorável cena da perseguição dos apaches, o diretor emprega um ritmo bem dinâmico ao longa (ainda mais para um filme de 1939). Escrito por Dudley Nichols e Ben Hecht, baseado em história de Ernest Haycox, “No Tempo das Diligências” aborda ainda um tema caro ao diretor, que é a segregação social e o falso moralismo, como fica claro na forma como alguns personagens tratam a prostituta Dallas e o bêbado Boone.

É neste filme também que Ford explora pela primeira vez na carreira o lindo visual do Monument Valley, que se tornaria sua locação favorita, criando seqüências de tirar o fôlego durante a viagem da diligência com seus planos gerais e enquadramentos perfeitos. Para isto, conta também com a direção de fotografia de Bert Glennon, que evolui de um início claro e iluminado para um final obscuro e sombrio, sublinhando bem a tensão do conflito entre Ringo e Luke e ilustrando visualmente a trajetória do personagem interpretado por John Wayne. Wayne, aliás, que também aparece pela primeira vez num filme de John Ford, inaugurando uma parceria de sucesso e duradoura.

Sempre prezando pela estética de seus filmes, John Ford conta ainda com o bom trabalho de direção de arte de Alexander Toluboff, que ambienta o espectador nas cidades, com a arquitetura típica do velho oeste, os tradicionais cavalos e as carroças que atravessam as ruas, além de contar com Walter Plunkett e seus figurinos marcantes, com o chapéu de Ringo e os vestidos de Dallas e Mallory. Fechando os destaques da parte técnica, a trilha sonora de Gerard Carbonara alterna entre momentos solenes e outros mais agitados, destacando-se durante a perseguição dos apaches à diligência, em que a trilha amplia a adrenalina com seu ritmo frenético.

Após estabelecer quem são os personagens que viajarão na diligência, a narrativa insere o elemento que faltava para agregar tensão à viagem através da presença do foragido Ringo, apresentado através de um zoom que realça o rosto expressivo de Wayne e engrandece o personagem na tela. Ainda que pouco sutil e com algumas limitações como ator, é inegável que John Wayne tem enorme presença e um grande carisma, conferindo força a narrativa e ao personagem. Prestes a voltar para a prisão, seu Ringo desconstrói o mito do bandido cruel, sendo educado com as mulheres, ético ao manter a palavra e não fugir mesmo sem algemas, e até mesmo encantador, conquistando lentamente a atenção de Dallas e o respeito de alguns dos viajantes da diligência. Interpretada por Claire Trevor, Dallas já surge discriminada ao ser expulsa da cidade por sua conduta “imoral”. Por isso, ela constantemente aparece calada e claramente incomodada com a situação. Dallas nunca diz abertamente, mas teme que seu passado em Lordsburg comprometa sua relação com Ringo. Observe que mais uma vez as reações dos personagens falam mais que as palavras, indicando o temor da moça sutilmente em seu semblante aflito. E mesmo quando as palavras surgem, não explicam explicitamente o que está acontecendo, como quando o doutor comenta com Ringo sobre Dallas e indica algo sobre o passado dela para o rapaz. Dallas era prostituta? Sim, era. A narrativa indica isto, mas jamais de maneira escancarada.

Um dos grandes destaques do elenco é Thomas Mitchell, que vive o divertido doutor Boone, mal conseguindo acordar sem tomar uma boa dose de uísque. E sua falta de controle acaba sendo perigosa, pois seus serviços são requisitados durante a viagem e ele é obrigado a se recompor rapidamente, colocando em risco a vida de Mallory graças ao seu vício em bebidas alcoólicas. Ainda assim, cumpre seu papel e permite que Dallas surja com um bebê nos braços, surpreendendo alguns personagens que sequer desconfiavam da gravidez de Mallory. Boone também foi expulso da cidade por sua conduta fora do “padrão moral”, mas se mostra uma pessoa boa, que é obrigada a viajar ao lado do insuportável banqueiro Gatewood, interpretado por Berton Churchill e sempre pensando em seus interesses em detrimento do grupo (“O que é bom para os bancos é bom para o país”, diz ele). Completando o elenco, destaque para o delegado Curly Wilcox de George Bancroft, que é obrigado a deixar a amizade de lado e manter o amigo Ringo sob custódia durante toda a viagem, e para a conservadora Lucy Mallory de Louise Platt, que transmite bem a aflição da personagem, desesperada para encontrar o marido e proteger seu bebê, e sua transformação, percebendo ao longo do tempo que Boone e Dallas não eram pessoas ruins.

Os índios também marcam presença em “No Tempo das Diligências”, cumprindo o papel que normalmente lhes é atribuído no gênero. “Não é ruim ter uma esposa apache, eles não me incomodam”, diz um homem que recebe a diligência, somente para ser desmentido em seguida, com o roubo dos cavalos e a fuga de sua esposa. É interessante notar como o índio era visto apenas como um selvagem nos westerns, algo que o próprio Ford tratou de mudar em “Rastros de Ódio” e que seria definitivamente revisto em “Dança com Lobos”, muitas décadas depois. Ainda assim, a índia apache é responsável por um belo momento, quando canta uma música antes de fugir.

A menção ao nome de Luke Plummer logo no início começa a preparar o espectador para o duelo final com Ringo – e as constantes referências ao seu nome só aumentam esta expectativa. Além de Luke, outro vilão temido e citado antes de sua aparição é Geronimo, que surge com seus apaches na melhor seqüência do longa, logo após um sinal de fumaça indicar sua presença. A perseguição dos índios à diligência é emocionante e muito bem conduzida por Ford e seus montadores, que alternam entre os planos num ritmo intenso sem jamais deixar a platéia confusa. Além disso, a beleza do lugar, o som dos tiros e a trilha sonora ambientam o espectador de maneira eficiente, fazendo com que ele se sinta dentro da cena. Pra completar, ainda tem o memorável momento em que Ringo salta por cima dos cavalos em movimento e a emblemática cena em que uma tragédia é evitada pelo som de uma corneta militar, onde o silêncio que acompanha Hatfield se armando para matar Mallory e evitar que ela sofra com a eminente vitória dos índios só amplia a tensão. Já o aguardado duelo entre Ringo e Luke sequer é mostrado por Ford, que prefere focar a reação de Dallas ao escutar os tiros e Luke caindo no bar, num final ambíguo que sugere a vitória de Ringo, mas que pode também representar sua morte, pois nada impede que ele tenha acertado o inimigo e morrido no local (afinal de contas, eram três oponentes no total). Ainda assim, um momento prévio ao duelo pode facilitar a interpretação, quando um dos irmãos Plummer atira num gato a poucos metros e erra.

Com seu visual magnífico e uma narrativa envolvente, “No Tempo das Diligências” é o primeiro dos grandes momentos da parceria entre John Ford e John Wayne, que se estabeleceram ao longo dos anos como dois ícones do western. E esta fama veio merecidamente, principalmente pelo talento de Ford na construção de narrativas sóbrias e planos belíssimos, mas também pelo carisma de Wayne. Ainda que hoje esteja praticamente extinto, o western nos deu inúmeros filmes inesquecíveis e este certamente é um deles.

Texto publicado em 08 de Agosto de 2011 por Roberto Siqueira

RASTROS DE ÓDIO (1956)

(The Searchers)

 

Filmes em Geral #71

Filmes Comentados #14 (Comentários transformados em crítica em 11 de Agosto de 2011)

Dirigido por John Ford.

Elenco: John Wayne, Natalie Wood, Jeffrey Hunter, Vera Miles, Ward Bond, Henry Brandon, Hank Worden, Harry Carey Jr., Dorothy Jordan, John Qualen, Olive Carey, Pippa Scott e Ken Curtis.

Roteiro: Frank S. Nugent.

Produção: C. V. Whitney.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Tecnicamente brilhante, “Rastros de Ódio” aborda uma temática difícil para a época, saindo dos padrões estabelecidos e dando maior realismo ao gênero preferido da dupla John Ford e John Wayne. Desta forma, Ford conseguiu criar um clássico do western, abusando das lindas paisagens e contando uma história sombria demais para os padrões até então estabelecidos em Hollywood, com seu anti-herói ambíguo e amargurado e uma narrativa repleta de sutilezas.

O veterano de guerra civil Ethan Edwards (John Wayne) resolve visitar a casa de seu irmão e, após sair para investigar um roubo de gado, encontra a casa queimada e a família assassinada por índios. Apenas as sobrinhas Lucy (Pippa Scott) e Debbie (Natalie Wood) escapam do massacre e são levadas pelos índios liderados por Scar (Henry Brandon). Ethan parte em busca das sobrinhas ao lado do sobrinho – que ele não reconhece como tal – Martin Pawley (Jeffrey Hunter) e de Brad Jorgensen (Harry Carey Jr.), o namorado de Lucy.

Como de costume, John Ford aproveita a belíssima paisagem de sua locação preferida (Monument Valley, Utah – EUA) para criar cenas lindas, desta vez apoiado pela tecnologia “Technicolor” para ressaltar o colorido da região. Auxiliado pela fotografia maravilhosa de Winton C. Hoch, o diretor cria um visual deslumbrante, misturando a luz amarelada do sol com o vermelho da terra. Além do tradicional cuidado com cada enquadramento e movimento de câmera, Ford ainda cria interessantes rimas narrativas, como aquela entre a imagem que abre o filme e o plano final, e espalha sutilmente informações que terão reflexo futuro, como o medalhão dado por Ethan de presente para Lucy. Ford mostra habilidade ainda na condução de cenas marcantes, como momentos antes do ataque dos índios, quando a tensão domina a tela e a própria fotografia sombria indica a tragédia. Sem que algum personagem diga uma palavra, Ford indica que duas pessoas sobreviveram, através da imagem das três cruzes no enterro (cinco pessoas estavam na casa antes do ataque). Este tipo de situação sutil permeia toda a narrativa de “Rastros de Ódio”.

Toda esta beleza visual é ressaltada ainda pela linda trilha sonora de Max Steiner e Stan Jones, repleta de canções melancólicas que refletem bem o estado de espírito de quem vive distante de tudo e, principalmente, de Ethan, um homem solitário e misterioso, que, como indica o último plano do filme, pertence aquele lugar mais do que ninguém. “Rastros de Ódio” conta ainda com a dinâmica montagem de Jack Murray, que cobre muitos anos sem jamais se tornar episódica, indicando a passagem do tempo, por exemplo, através das estações do ano ou de momentos simples, como a carta que informa a morte de Brad um ano depois do ocorrido. Reforçando a sutileza da narrativa, observe como Ethan diz que Lucy não cresceu muito e a garota aponta para a irmã maior (“Aquela é Lucy, eu sou Debbie”), indicando o longo tempo que ele esteve distante.

Escrito por Frank S. Nugent, o competente roteiro permite que John Ford crie um anti-herói complexo, amargurado e extremamente ambíguo. Ethan é um homem que carrega em seus ombros o peso do passado, associado a um racismo extremo, que fica explícito logo no início, quando responde “não creio” ao mestiço Pawley – que havia sido salvo por ele na infância – ao ouvi-lo afirmar que seu sangue indígena é misturado ao sangue galês e inglês. Ninguém melhor que John Wayne para interpretar Ethan Edwards, que parte em busca de vingança com toda sua brutalidade e rancor após sua família ser massacrada pelos índios cherokees. Entretanto, descobriremos que as razões de sua viagem ao lado do mestiço Pawley não eram tão nobres. Ethan quer ter certeza de que Debbie se transformou numa índia, somente para matá-la e garantir que não tenha nenhum laço com os índios. Interpretado por Jeffrey Hunter, Pawley quer evitar que o tio cometa esse ato insano, o que explica duas pessoas tão diferentes viajarem por tanto tempo lado a lado. Ethan escancara suas intenções quando escreve um testamento deixando tudo para Pawley, deixando de lado a sobrinha criada por índios.

Astuto ao ponto de pressentir um ataque (cena da fogueira), Ethan foge completamente do herói convencional do gênero, evidenciando seu racismo ao atirar duas vezes num Índio morto e dizer para o reverendo Clayton (Ward Bond) que ele não poderá mais andar pelo vale dos mortos sem os olhos. Aparentemente, ele não segue religião alguma, mas prefere garantir que o índio não ficará bem nem aqui e nem numa suposta outra vida. As razões de seu ódio jamais são explicadas, mas este sentimento é notável, por exemplo, quando ele diz que um cherokee andaria mais trinta quilômetros em um cavalo cansado, somente para matá-lo e comê-lo depois. Curiosamente, o assassinato da família Edwards faz o espectador sentir a mesma raiva dele pelos índios, o que confere peso dramático ao excelente momento em que os cherokees cercam o grupo antes da fuga pelo rio. Retratados na maior parte do tempo como selvagens cruéis, que caçam e matam sem piedade, os índios de “Rastros de Ódio” parecem seguir o padrão da época, mas a narrativa inverte as ações em determinado momento, eliminando o maniqueísmo e humanizando os “selvagens”, numa forma bastante original de tratar a questão. Ao mostrar homens brancos destruindo o acampamento indígena e fazendo prisioneiros, Ford cria uma impactante subversão de expectativa, que revela o outro lado da moeda para uma platéia acostumada a ver os índios como selvagens assassinos.

Entre o elenco de apoio, vale destacar a boa atuação de Hank Worden como o maluco (mas nem tanto) Mose Harper, além de Vera Miles, que está ótima como a atirada Laurie, partindo pra cima de Martin assim que o vê, beijando o rapaz e ajudando em seu banho. Completamente apaixonada, ela sofre com suas constantes viagens ao lado de Ethan e sua mãe (Olive Carey) parece ser a única que a compreende, como fica evidente quando ela lê a carta em que Pawley informa que se casou com uma índia. Aliás, a índia que persegue Pawley representa um ótimo momento de alivio cômico, embalado pelas tiradas de Ethan que rendem boas gargalhadas, assim como é divertida a sensacional briga entre Pawley e Charlie (Ken Curtis), em que os dois se ajeitam, ajudam um ao outro, param e conversam – vale destacar também o encanto de Laurie ao ver Pawley brigando por ela.

Após cruzar o cânion durante a viagem, a reação de Ethan indica algo terrível, que é confirmado momentos depois quando ele informa a morte de Lucy. Desesperado, Brad parte para a vingança e as reações de Ethan e Pawley (além da trilha sombria) indicam a morte dele. Em outro momento, é a reação de Martin, contida por Ethan na oca de Scar, que indica que eles encontraram Debbie, que surge no horizonte pouco tempo depois e é protegida por Martin enquanto Ethan tenta matá-la. Repare que em todas estas situações, as palavras são desnecessárias. Esta é a beleza de “Rastros de Ódio”, onde nada é muito explicado. Em diversos momentos, as reações dos personagens indicam que algo aconteceu no passado, pesando muito nos dias atuais. Porque Ethan é tão rancoroso e solitário? Qual a sua verdadeira relação com Pawley? Ele teve alguma relação além da amizade com a mulher de seu irmão, que o trata tão bem? Repare, por exemplo, a forma como Martha (Dorothy Jordan) ajeita suas roupas e o beijo que ele dá na testa dela, indicando alguma relação mais profunda no passado. Qual a relação entre Ethan, Martin e a mãe do garoto assassinada pelos índios? Após escalpelar Scar, Ethan fica em paz e aceita Debbie de volta, levando-a pra casa, mas por quê? Todas estas respostas devem ser encontradas por cada espectador. No fim das contas, refletimos a respeito enquanto vemos aquele homem solitário do lado de fora da casa, num plano final que ilustra bem este personagem ambíguo e amargo, que foge completamente do herói típico do western até então.

Transformando o inabalável herói do faroeste em um sujeito ambíguo e alterando o modo de ver os indígenas nos filmes do gênero, “Rastros de Ódio” se estabelece como um marco na história do cinema, redefinindo o western de forma corajosa e reafirmando a competência de John Ford como diretor.

PS: Comentários divulgados em 20 de Dezembro de 2009 e transformados em crítica em 11 de Agosto de 2011.

Texto atualizado em 11 de Agosto de 2011 por Roberto Siqueira

AS VINHAS DA IRA (1940)

(The Grapes of Wrath)

 

 

Filmes em Geral #69

Filmes Comentados #10 (Comentários transformados em crítica em 10 de Agosto de 2011)

Dirigido por John Ford.

Elenco: Henry Fonda, Jane Darwell, John Carradine, Charley Grapewin, Dorris Bowdon, Russell Simpson, O.Z. Whitehead, John Qualen, Eddie Quillan, Zeffrie Tilbury, Frank Sully, Frank Darien, Darryl Hickman e Shirley Mills.

Roteiro: Nunnally Johnson, baseado em livro de John Steinbeck.

Produção: Darryl F. Zanuck.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

A crise provocada pela grande depressão nos Estados Unidos é o pano de fundo para este “As Vinhas da Ira”, obra-prima humanista dirigida por John Ford, que escancara diversos problemas sociais provocados pela ganância de alguns numa época bastante difícil. Com um visual esplêndido, excelentes atuações e uma narrativa envolvente, o longa é acima de tudo um grito de liberdade de um povo sufocado pela opressão do sistema capitalista.

Tom Joad (Henry Fonda) volta para casa em liberdade condicional e encontra seu lar abandonado. Ao lado do pregador Casy (John Carradine), ele vai até a casa de seu tio John (Frank Darien) e descobre que sua família está sendo desabrigada por empresas que detém a propriedade daquelas terras. Sem ter onde ficar, eles partem para a Califórnia, empolgados com as promessas de emprego e de uma nova vida, mas a dura realidade era bem diferente do que eles imaginavam.

Escrito por Nunnally Johnson, baseado em livro de John Steinbeck, “As Vinhas da Ira” trata de um tema delicado com extrema sensibilidade enquanto acompanha a trajetória sofrida de migração de uma família simples do interior dos Estados Unidos. Acostumadas a um estilo de vida que a urbanização não permitiria existir mais, estas pessoas são forçadas a tentar a vida na cidade grande, numa mudança conturbada que só aumentará os problemas sociais do país, inchando ainda mais as metrópoles, já sem espaço para as pessoas que vivem lá. Por outro lado, como podemos esperar que estas pessoas fiquem num local sem oportunidades, tomado por grandes empresas que irão explorar aqueles que se aventurarem a ficar por lá? Como podemos perceber, os problemas gerados pelo sistema capitalista e, principalmente, pela ganância de alguns já ganhava espaço em 1940 e perdura até hoje. A urbanização e a evolução trouxeram mudanças drásticas na vida daquelas pessoas e infelizmente, ampliaram a pobreza e a miséria – e ainda bem que alguns cineastas, como Ford e Chaplin, tinham coragem de criticar este sistema já naqueles tempos.

Ford exalta o “amor a terra” logo no início da narrativa, quando um emocionado Muley (John Qualen) chora enquanto agarra a terra no chão (“Nasci aqui e vou morrer aqui!”, esbraveja). O diretor mostra também o outro lado da moeda, evidenciando os problemas causados pela migração quando um grupo de pessoas para o caminhão da família Joad e impede que eles entrem em determinada região, já repleta de pessoas famintas e desesperadas. Amontoados num caminhão caindo aos pedaços, a família Joad sofre durante praticamente toda a viagem, e a trilha sonora triste e melancólica simboliza a tristeza de quem teve que deixar a terra que ama. Nem todos agüentam o tranco e outra melodia triste surge para acompanhar o enterro do vovô, numa cena simples e comovente em que Ford demonstra toda sua sensibilidade. E o próprio caminhão simboliza a bagunça que aquela família estava vivendo longe de sua terra, num belo trabalho de direção de arte de Richard Day e Mark-Lee Kirk, que se destaca ainda no miserável acampamento que recebe os desabrigados na Califórnia.

Belos também são os movimentos de câmera de Ford, como aquele que inicia na família de Muley, passa pela casa destruída e, em seguida, corta para a sombra da família na terra, simbolizando que agora eles eram apenas sombra do que já foram um dia. Além disso, o diretor explora muito bem as longas planícies e plantações, sempre com a marcante linha do horizonte ao fundo, comprovando seu talento na composição de planos belíssimos. A bela direção de fotografia do ótimo Gregg Toland auxilia neste processo, especialmente durante a viagem da família. Além disso, a escolha do preto e branco reforça o tom melancólico da narrativa e ressalta a vida sofrida da família Joad. Repare ainda como quando Tom retorna pra casa, a fotografia sombria afunda o personagem nas sombras enquanto ele descobre o que aconteceu com seus vizinhos e familiares – e aqui vale destacar a atuação marcante de John Qualen como Muley, nos comovendo ao demonstrar sua paixão pela terra natal. Este clima sombrio é reforçado pela montagem de Robert L. Simpson, que utiliza alguns fades para fazer a transição das cenas, escurecendo completamente a tela por alguns segundos (o que hoje soa deselegante, mas na época não). Além disso, Simpson e Ford seguem uma linha narrativa clássica e, com exceção de um pequeno flashback no início, linear, em que a montagem jamais chama a atenção para si, numa decupagem cuidadosa que mostra apenas o que é necessário para o andamento da trama.

O curioso termo “cats” utilizado para os tratores Caterpillar que derrubam as casas não surge por acaso. Ele personifica uma empresa e a faz parecer algo palpável. Só que uma empresa não é uma pessoa e, portanto, não pode ser ameaçada (“Em quem nós atiramos?”, pergunta o filho de Muley). Naquele instante, as corporações passavam a dominar o cenário – e as terras que até então passavam de geração para geração – e ninguém podia fazer nada a respeito. E a situação só piorava. Tom começa a perceber isto quando um homem conta sobre sua experiência na cidade, onde as 800 vagas prometidas eram disputadas por milhares de pessoas, deixando muitos desempregados – e o momento em que ele fala sobre a morte dos filhos é tocante, revelando também a desonestidade do médico que apontou outra causa para a morte, evitando que as estatísticas de mortes por “fome” aumentassem. A fome também é o tema central de outra cena belíssima dentro de uma venda na beira da estrada, quando o dono (e depois a garçonete) percebe que a família está passando fome e vende os pães e doces por preços menores. Aliás, o rosto das crianças com fome, seja na venda ou no acampamento, é de cortar o coração de qualquer um.

Cativante e complexo desde sua introdução, quando revela seu passado criminoso e temperamento explosivo, o Tom Joad de Henry Fonda aprende lentamente a lidar com aquela situação, percebendo que o poder sempre esteve nas mãos do próprio povo. Esta mudança gradual é notável nas frases ácidas que demonstram o sentimento que crescia dentro dele, como quando diz que “o governo tem mais interesse pelos mortos do que pelos vivos” no enterro do avô. Ator talentoso e carismático, Fonda se destaca em diversos momentos, como quando reencontra sua mãe, partindo emocionado para abraçá-la (e o close de Ford em seu rosto realça sua bela atuação). Mas seu rosto aparentemente inofensivo esconde uma pessoa prestes a se revoltar contra tudo, como podemos notar quando ele responde rispidamente que seu nome “ainda” era Joad, após ser questionado diversas vezes num acampamento. “Não é preciso coragem se você não tem escolha”, diz para um policial antes de cruzar o deserto. O pior inimigo é aquele que não tem mais nada a perder e Tom estava nesta situação. Por isso, seu lado mais primitivo surge quando vê um homem atingir seu amigo Casy e ele volta a matar. Desesperado, se esconde nos braços da amada mãe, numa cena em que a simples visão da porta 63 abrindo e fechando, o som da sirene ao fundo e a posição da câmera de Ford – que não mostra o que se aproxima do local – criam muita tensão.

Além de Fonda, quem também dá um show é Jane Darwell como a mãe de Tom, emocionando a platéia com sutileza, como quando queima os objetos da família antes de partir. Sua conversa com o filho no final é uma linda cena, que simboliza o desmoronamento da família e, por outro lado, mostra o nascimento de um cidadão disposto a lutar por seus direitos e se opor a opressiva política das empresas capitalistas. Repare como ela olha para o horizonte com os olhos marejados, sabendo que seu filho estava partindo para, provavelmente, nunca mais voltar. Ela sabe que quando ele diz pensar em Casy, está deixando claro que lutará até o fim pela nova causa, assim como fez seu amigo – e as palavras de Tom (“Estarei em todo lugar…”) são marcantes e belíssimas, coroando a grande atuação de Fonda. Diretos e realistas, mãe e filho são muito parecidos, mas este jeito seco não os impede de amar um ao outro. Ao ouvir Ma Joad dizer que “Não somos do tipo que beija, mas…” e ver o abraço apertado deles, o espectador precisa segurar as lágrimas.

No restante do excelente elenco, merece destaque a atuação de Charley Grapewin como o vovô, especialmente quando ele se revolta antes de deixar sua casa. “Essa é a minha terra. Não é boa, mas é minha”, diz ele, numa excelente frase que sintetiza o quanto viver em sua própria terra era importante para aquelas pessoas. Também vale ressaltar a atuação de John Carradine como Casy, que se sai bem desde a primeira conversa com Tom e, principalmente, quando explica para o amigo o motivo da greve, momentos antes de morrer. A frase final “Nós viveremos para sempre, porque nós somos o povo!” deixa uma mensagem otimista, de que o povo, ainda que seja explorado, jamais deixará de existir (afinal, eles precisam do povo, não?). Seria interessante também que jamais deixasse de lutar por seus direitos.

“As Vinhas da Ira” é uma forte crítica ao sistema que tomou conta dos EUA depois da grande depressão, onde empregadores exploravam empregados, se aproveitando da situação para pagar salários insignificantes. De maneira tocante, John Ford entrega um filme humanista, melancólico e reflexivo, atingindo o coração do espectador. É preciso muita falta de sensibilidade para não se comover com a luta daquelas pessoas e não se revoltar com as atitudes dos mais favorecidos. A grande pergunta que fica é: depois de tantos anos, será que esta situação mudou?

PS: Comentários divulgados em 17 de Novembro de 2009 e transformados em crítica em 10 de Agosto de 2011.

Texto atualizado em 10 de Agosto de 2011 por Roberto Siqueira