CHINATOWN (1974)

(Chinatown)

 

 

Filmes em Geral #77

Videoteca do Beto #210 (Filme comprado após ter a crítica divulgada no site e transferido para a Videoteca em 13 de Julho de 2015)

Dirigido por Roman Polanski.

Elenco: Jack Nicholson, Faye Dunaway, John Huston, Diane Ladd, Perry Lopez, John Hillerman, Darrell Zwerling, Roy Jenson, Richard Bakalyan, Joe Mantell, Bruce Glover, Nandu Hinds, Burt Young e Belinda Palmer.

Roteiro: Robert Towne.

Produção: Robert Evans.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Apenas cinco anos após perder sua esposa Sharon Tate, assassinada no auge da contracultura pelo grupo liderado por Charles Manson, Roman Polanski voltou à Hollywood para dirigir este excepcional “Chinatown”, que com sua atmosfera noir e seu tom melancólico, reflete o estado de espírito de seu diretor e se confirma como uma das muitas obras-primas de Hollywood nos anos 70. Contando ainda com atuações inspiradas e um roteiro praticamente perfeito, o longa se estabelece também como uma das mais bem sucedidas incursões no gênero que se notabilizou nas décadas de 40 e 50.

Em “Chinatown”, acompanhamos a trajetória do detetive particular J. J. Gittes (Jack Nicholson) quando este é contratado pela esposa de Hollis Mulwray (Darrell Zwerling), o chefe do Departamento de Águas e Energia de Los Angeles, para descobrir se ele está tendo um caso extraconjugal. Após a confirmação da traição, Gittes descobre que a verdadeira esposa dele, Evelyn Mulwray (Faye Dunaway), jamais solicitou os seus serviços, exatamente no mesmo dia em que Hollis aparece morto. Gittes decide então investigar o assassinato e as possíveis ligações entre o crime e o pai de Evelyn, o poderoso Noah Cross (John Huston), que também era sócio de Hollis.

Escrito pelo ótimo Robert Towne, “Chinatown” apresenta uma estrutura narrativa perfeita, que gradativamente envolve o protagonista numa situação bastante complicada e, conseqüentemente, conquista também a atenção da platéia. Com um texto precioso e coeso, a narrativa intrincada e repleta de sutilezas aborda muitos temas complexos sob sua superfície de filme policial, apresentando personagens nada unidimensionais, que parecem sempre serem muito mais do que o que vemos na tela. Towne também espalha diversas pistas pela narrativa, que obrigam o espectador a prestar atenção em cada pequeno detalhe da investigação conduzida por Gittes, somente para descobrir momentos depois que muitas delas eram falsas. Além disso, ele constrói diversos diálogos marcantes, entre os quais vale destacar aquele no restaurante em que Evelyn confessa que também traía o marido e o embate entre Noah e Gittes, que também acontece num almoço e nos deixa em dúvida sobre o caráter do milionário e de sua filha.

Com este ótimo roteiro em mãos, Polanski conduz o longa com paciência até os 30 minutos de projeção, quando a morte de Hollis Mulwray insere o elemento noir que faltava para a narrativa definitivamente engrenar: o crime. Claramente inspirado na estética noir, como podemos notar através do terno do detetive Gittes (figurinos de Anthea Sylbert) e dos ambientes fechados, como o escritório dele e a casa dos Mulwray – que, por exemplo, indica a boa situação financeira do casal (direção de arte de W. Stewart Campbell) -, “Chinatown” só não apresenta o forte contraste entre o preto e o branco característico do gênero, mas ainda assim tem diversos momentos em que as sombras tomam conta da tela, como no diálogo entre Gittes e Evelyn num carro, logo após ela revelar quem é a sua irmã, onde podemos ver apenas parcialmente o rosto dos personagens. Além disso, os tradicionais ambientes esfumaçados e as sombras das persianas que invadem os escritórios criam o típico visual noir. Neste aspecto, vale destacar a fotografia de John A. Alonzo, que emprega cores sóbrias na maior parte do tempo (preto, marrom, cinza), conferindo uma aura melancólica coerente com o tom da narrativa. Ainda na parte técnica, a trilha sonora de Jerry Goldsmith acentua o clima apreensivo em diversos momentos e a direção de arte de Campbell volta a se destacar nos pequenos detalhes com função narrativa, como os quadros na parede que indicam a sociedade entre Hollis e Noah, além dos carros e casas que nos jogam para a Los Angeles dos anos 30 com precisão.

Voltando à direção, Polanski também comanda com precisão as cenas de alta tensão, como quando Gittes tenta invadir o Departamento de Águas à noite e é surpreendido por um tiro, pela água e por dois homens (um deles, armado com uma faca, é interpretado pelo próprio Polanski) ou quando ele é atacado num laranjal e perseguido por homens montados em cavalos. Auxiliado pela montagem de Sam O’Steen, o diretor conduz a narrativa com tranqüilidade e sutileza, acelerando a trama na medida em que Gittes se aproxima da verdade sobre o assassinato de Hollis ao emendar uma grande cena após a outra, como na seqüência em que Gittes visita um asilo, foge com Evelyn de carro, dorme com ela e descobre a natureza da relação dela com a amante de Hollis. E apesar de parecer quebrar o ritmo, a cena em que eles ficam juntos (embalada pela trilha romântica) serve para revelar um pouco mais sobre o passado misterioso de Gittes em Chinatown e indicar que a morte de alguma mulher o traumatizou. Outro aspecto importante a se ressaltar é que Polanski procura nos guiar na narrativa sob a perspectiva de Gittes, o que justifica sua presença em todas as cenas e a câmera que o acompanha por trás dos ombros em diversos momentos.

Tranqüilo e com tom de voz baixo, Jack Nicholson cria um personagem diferente do habitual, comprovando sua versatilidade e competência como ator. Ainda assim, seu Gittes é determinado e impõe respeito junto aos seus subordinados, como podemos notar logo no início quando ele repreende um de seus assistentes, saindo-se ainda melhor nos embates verbais com Noah, Evelyn e com o tenente Lou, quando sempre soa convincente em suas afirmações. Extremamente inteligente, seu Gittes sabe muito bem se adaptar aos ambientes que freqüenta – o que explica sua preocupação com a aparência (repare sua reação ao molhar os sapatos) e sua constante mudança de comportamento (no escritório, conta piadas; diante dos milionários, fala de forma refinada). Faye Dunaway também se destaca, criando uma Evelyn misteriosa e imponente, que sempre parece esconder algo através da fala reticente e do olhar enigmático quando que se refere ao marido e, especialmente, ao pai – um comportamento, aliás, que descobriremos ser totalmente coerente com o passado da personagem. Interpretado por John Huston (que dirigiu “O Falcão Maltês”), Noah Cross é mesmo um personagem ameaçador e Huston tem grande mérito nisto com sua presença marcante na tela. No restante do elenco, vale destacar o tenente Lou Escobar, interpretado por Perry Lopez, e a jovem Katherine Cross, interpretada por Belinda Palmer, que se destaca na cena final, com seu desespero tocante ao ver a mãe ser assassinada.

Após um encontro inesperado entre Gittes e Lou no apartamento de uma prostituta, entramos na parte final de “Chinatown”, onde a revelação da relação incestuosa entre Noah e Evelyn abala as estruturas tanto do detetive como do espectador e inicia outra seqüência atordoante, em que descobrimos o verdadeiro assassino de Hollis e caminhamos para o clímax pessimista, na primeira vez em que o tão citado bairro chinês Chinatown aparece. E novamente, Polanski confirma sua habilidade na direção de maneira sutil. Em certo momento do filme, Evelyn encosta involuntariamente a cabeça na buzina de um carro. Parece uma cena sem propósito, mas não é à toa que ela está lá. Com este momento em mente, o espectador já sabe o destino cruel de Evelyn nesta cena final, somente através do som da buzina no plano distante em que vemos o carro parado na rua. Sua trágica morte é confirmada de maneira forte e tocante, com Katherine desesperada e o violento resultado do tiro surgindo na tela diante do espectador. O final amargo, com a chocante morte de Evelyn e Noah escapando ileso, deixa o espectador reflexivo e melancólico – algo refletido também na trilha que fecha a narrativa.

Repleta de momentos memoráveis, com um roteiro impecável e atuações inspiradas, a obra-prima “Chinatown” confirma o talento de Roman Polanski na direção e reforça o time dos maravilhosos filmes pessimistas que invadiram Hollywood em sua era dourada. Nestes casos, o gosto amargo que fica na boca do espectador ao final da projeção é gradualmente substituído pelo sentimento de respeito diante da grandiosidade da obra que testemunhamos.

Texto publicado em 25 de Novembro de 2011 por Roberto Siqueira

BUSCA FRENÉTICA (1988)

(Frantic)

 

Filmes em Geral #39

Dirigido por Roman Polanski.

Elenco: Harrison Ford, Betty Buckley, Emmanuelle Seigner, Gérard Klein, Djiby Soumare, Dominique Virton, Raoulf Ben Amor, Böll Boyer, David Huddleston, Alexandra Stewart, Robert Barr, Stéphane D’Audeville e Alan Ladd.

Roteiro: Roman Polanski e Gérard Brach.

Produção: Tim Hampton e Thom Mount.

[Antes um esclarecimento: Como todos sabem, costumo ler os textos do Pablo Villaça, Rodrigo Carreiro, Luis Carlos Merten e Roger Ebert, críticos que admiro e respeito e que considero os melhores na profissão. Por outro lado, obviamente, só leio algo sobre algum filme que escrevi após ter escrito o meu próprio texto, para evitar qualquer tipo de influência. Mas existem casos de críticas que li muito tempo antes de decidir criar o Cinema & Debate e, obviamente, algumas observações destes renomados críticos ficaram marcadas em minha memória. Em outros casos, como o deste “Busca Frenética”, eu assisti ao filme, li as críticas, e muito tempo depois, por ocasião de alguma semana especial, decidi escrever sobre o filme em questão – o que me obrigou a assistir ao filme novamente, para anotar minhas observações. Obviamente, alguma influência dos textos que li sempre irá existir nestas situações. No caso do Pablo Villaça esta influencia é ainda mais gritante, até porque fiz o seu curso de Teoria, Linguagem e Crítica Cinematográfica e sou fã declarado deste importante crítico que tanto respeito e admiro, e não nego que ele tenha enorme influencia em meu trabalho. Por isso, quando terminei de escrever sobre “Busca Frenética”, constatei que grande parte das minhas “observações” pertencia à minha lembrança da crítica do Villaça (que você pode conferir na íntegra clicando aqui), que eu tinha lido muitos meses antes de decidir escrever sobre o filme. Confesso: cheguei a cogitar não divulgar este texto, mas entendo que não posso deixar de fazê-lo por causa disto, já que não plagiei o texto dele de maneira alguma, apenas escrevi minha visão sob influência do que aprendi com o próprio Pablo – algo, aliás, que já ocorreu em outros textos também, onde inclui observações aprendidas no próprio curso. Afinal de contas, muita coisa que escrevo tem forte influencia não só do Villaça, mas também do Rodrigo, do Merten e até mesmo do Ebert. Por isso, resolvi divulgar o texto na íntegra, do jeito que escrevi originalmente, mas não sem antes citar o crítico que primeiro observou todo o subtexto do filme – e quem, afinal, me chamou a atenção para esta interessante leitura do longa de Polanski. É bom poder escrever sobre os filmes que gosto, é bom começar a ter algum reconhecimento do público, mas é vital e no mínimo ético respeitar aqueles que, direta ou indiretamente, me impulsionaram a fazer este trabalho. Por isso, dou todo o crédito ao Pablo por muitas das observações a seguir – e vocês mesmos poderão observá-las comparando os textos.]

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

A julgar pelo nome do filme (tanto em inglês, quanto em português), “Busca Frenética” parece ser um thriller daqueles de tirar o fôlego, com muita ação e repleto de situações inesperadas que levam o espectador ao completo desespero. Mas o filme dirigido pelo competente Roman Polanski apresenta, na realidade, um homem pacato que, através da procura por sua mulher desaparecida, acaba se descobrindo numa verdadeira jornada interior em busca de sua real identidade.

O médico Richard Walker (Harrison Ford) viaja com sua esposa Sondra (Betty Buckley) para participar de uma conferência em Paris. Porém, antes mesmo que eles desfrutem a beleza da cidade luz, sua esposa desaparece misteriosamente. Sem entender exatamente o que estava acontecendo, o médico parte em busca dela no sombrio submundo parisiense. Nesta busca, encontra a bela Michelle (Emmanuelle Seigner), que, envolvida numa trama internacional, decide ajudá-lo.

Apesar de utilizar a bela capital francesa como locação, “Busca Frenética” jamais explora os lindos pontos turísticos (ou deveria dizer, cartões postais?) da cidade, com exceção da distante Torre Eiffel que aparece no início e no fim do longa, limitando-se a percorrer as ruas apertadas e sujas do submundo local. Desta forma, a narrativa adota um tom sombrio bastante coerente com o drama do personagem principal, além de sutilmente indicar, através da distante torre, o tema principal da narrativa, simbolizando o romance perdido ao longo dos anos pelo letárgico Walker. A fotografia granulada de Witold Sobocinski, com predominância de tons pastéis e em especial da cor cinza, garante o distanciamento do espectador, confirmando o visual naturalista do longa e refletindo a frieza da narrativa, além de ilustrar o sentimento de tristeza de Walker. Em outro momento, Sobocinski mergulha Walker na escuridão quando este invade o apartamento de Dede (Böll Boyer) e a trilha sonora igualmente sombria indica o trágico desfecho daquela busca (e do próprio traficante procurado por Walker). Trilha sonora que é composta pelo sempre competente Ennio Morriconne, que utiliza uma trilha eficiente, aparecendo somente em raros momentos da narrativa e alterando o tom leve da chegada à Paris para uma trilha mais pesada, coerente com a tensão do decorrer do filme. Vale registrar também que o som é bastante eficiente e de suma importância no momento chave da trama, quando Walker não consegue escutar o que sua esposa tenta dizer enquanto ele toma banho. O espectador, estrategicamente colocado na mesma posição de Walker, através do inteligente plano de Polanski de dentro do boxe, percebe que algo acontece quando vê Sondra atendendo ao telefone, pegando um vestido e saindo de cena (e até mesmo a trilha sonora indica isto), mas não sabe exatamente o que é.

E estas são apenas algumas das muitas decisões acertadas de Polanski e sua equipe. O diretor, por exemplo, acertadamente investe um bom tempo no estabelecimento da relação estável do casal, fazendo com que o espectador perceba o quanto eles se sentem à vontade juntos (o que será vital para fazer com que o espectador sinta a mesma aflição de Walker quando sua mulher desaparecer). Por outro lado, as conversas do casal no hotel sutilmente indicam problemas no relacionamento, provavelmente provocados pela mudança de Walker ao longo dos anos, como quando Sondra reclama ao descobrir que ele avisou o organizador da conferência que estaria em Paris ou quando ela responde ironicamente à promessa de sexo do marido. Polanski ainda utiliza com freqüência o close e até mesmo o zoom, como quando Walker encontra a pulseira de Sondra, realçando o desespero do personagem principal. Além disso, conta com o auxilio do montador Sam O’Steen para evitar imprimir um ritmo frenético à narrativa (ao contrário do que sugere o nome do filme), o que se revela uma estratégia acertada ao impedir que o filme se transforme num simples thriller de suspense, focando na mudança gradual de comportamento de Walker. Finalmente, Polanski explora com competência o segundo plano em diversos momentos, mostrando ações vitais para o andamento da narrativa, como quando vemos Walker no telefone e Sondra, ao fundo, tentando abrir a mala sem sucesso.

Entretanto, se o ritmo do longa evita transmitir a sensação de dinamismo imaginada em um thriller de perseguição, é também porque a situação em que Walker se envolve é capaz de provocar tensão suficiente no espectador. Note, por exemplo, como poucas pessoas realmente se importam com seu drama (repare quantas pessoas insinuam uma traição) e até mesmo como a barreira do idioma dificulta sua busca, o que auxilia no desconforto provocado tanto no personagem quanto no espectador. Porém, “Busca Frenética”, como já afirmei anteriormente, não é um filme simplesmente de perseguição. O roteiro do próprio Polanski, auxiliado por Gérard Brach, aparentemente narra a trajetória de um homem em busca de sua mulher seqüestrada, mas na realidade faz um fascinante estudo de personagem, ao mostrar a busca de Walker por sua própria personalidade. E esta luta é simbolizada de maneira genial através de outra personagem, inserida na trama de maneira despretensiosa e sutil, praticamente impedindo que o espectador antecipe sua importância na trama. E o brilhantismo da personagem, que aparentemente existe somente para auxiliar Walker em sua busca, reside no simbolismo. Michelle é, na realidade, uma mulher que sutilmente remete a época em que Walker era jovem, impulsivo e muito diferente do homem pacato dos dias atuais, que não consegue lembrar nem mesmo de uma cidade marcante como Paris, como notamos no início do filme. E de que maneira Michelle poderia simbolizar esta época? As dicas, sutis, são espalhadas pelo roteiro, fazendo com que Michelle simbolize a jovem Sondra (não por acaso o nome de sua companheira de apartamento é Sonia), por quem Walker se apaixonou um dia, ainda nos tempos de juventude. Olhar para Michelle inconscientemente o faz lembrar esta época, hoje distante graças à passagem dos anos e, principalmente, ao rumo que ele tomou em sua vida, dedicando-se à profissão em detrimento da família. Por isso, não é apenas coincidência que, no terceiro ato, a moça apareça vestida com o mesmo vermelho que Sondra foi seqüestrada, algo reforçado também pela música tema do filme (“I´ve seen that face before”/“Eu já vi este rosto antes”), que embala a dança entre eles numa boate. Finalmente, quando Walker literalmente troca Michelle por Sondra no terceiro ato, esta escolha entre o passado vibrante e o presente seguro e pacato fica evidente, quando uma das duas é literalmente sacrificada, simbolizando a escolha feita por Walker pelo estilo de vida que mais lhe convém. Não por acaso também, a estátua da liberdade aparece diversas vezes durante a narrativa, simbolizando a busca do personagem principal por sua própria liberdade. É importante, no entanto, registrar que, de maneira inteligente, o roteiro jamais aborda a relação entre Michelle e Walker com conotações sexuais, mostrando, na realidade, uma relação carinhosa, como de pai e filha (algo que fica evidente quando Walker fecha a blusa da garota para que ela não passe frio e quando ele fecha a porta enquanto Michelle troca de roupa).

Obviamente, para que este conflito interior do andarilho Walker (que coincidência) seja verossímil, a atuação de Harrison Ford tem papel fundamental. E felizmente Ford oferece uma atuação brilhante na pele do homem comum, que se vê repentinamente forçado a mudar seu comportamento radicalmente. Inicialmente um homem pacato e acomodado (repare como é sua esposa quem pega os passaportes quando chegam ao hotel), Walker se vê obrigado a tomar a iniciativa e partir em busca da esposa, algo que claramente contraria sua natureza contida, refletida até mesmo em sua roupa palidamente cinza (figurinos de Anthony Powell). Sua mudança de comportamento começa a acontecer já no consulado americano, quando ele responde irritado que é de São Francisco, “como está escrito no passaporte”. Constantemente inseguro, o homem jamais se apresenta como o típico herói capaz de superar qualquer obstáculo, o que trabalha a favor da narrativa, pois o espectador teme constantemente por seu destino. E se o espectador teme pelo destino de Walker é porque Ford consegue transmitir esta insegurança do personagem em todo momento, como podemos notar através de sua tocante conversa com a filha pelo telefone ou em sua explosiva reação a um burocrático telefonista, com seu tom de voz trêmulo, o olhar inquieto e a voz ofegante demonstrando sua revolta, indicando claramente sua transformação. O próprio Walker, aliás, percebe o quanto está mudado quando se olha no espelho e vê um homem completamente diferente, o que é refletido até mesmo em seu figurino, quando ele começa a andar descalço e com a camisa pra fora da calça, algo totalmente impensável para um homem inicialmente metódico e pragmático. E o agente motivador desta mudança é indicado sutilmente, através da fotografia recortada que simboliza o racha na família de Walker, responsável por sua mudança de comportamento. E note como até mesmo o quarto do hotel bagunçado reflete o novo estado de espírito dele, cada vez mais distanciado do homem pacato que costumava ser, contrastando com o local limpo e organizado da chegada à Paris. Aliás, o apartamento bagunçado também serve para refletir a personalidade agitada de Michelle, interpretada com carisma por Emmanuelle Seigner.

Portanto, “Busca Frenética” foge do lugar comum ao retratar, através da busca de Walker por sua mulher, um conflito existente no interior daquele homem que, ao longo dos anos, deixou seu lado jovem e visceral lentamente ser substituído pelo pragmatismo e pelo comodismo de uma vida bem sucedida, porém pálida. E o mais interessante é que o longa não mostra isto claramente, mas indica através de simbolismos, o que é extremamente elegante e inteligente.

Roman Polanski oferece muito mais que um thriller de suspense neste “Busca Frenética”, que faz, na realidade, um interessante estudo de personagem e mostra, através da busca incessante por sua esposa, a luta interior de um homem para descobrir sua verdadeira personalidade.

Texto publicado em 26 de Janeiro de 2011 por Roberto Siqueira

LUA DE FEL (1992)

(Bitter Moon)

 

Videoteca do Beto #84

Dirigido por Roman Polanski.

Elenco: Hugh Grant, Kristin Scott Thomas, Emmanuelle Seigner, Peter Coyote, Victor Banerjee, Sophie Patel, Patrick Albenque, Luca Vellani e Stockard Channing.

Roteiro: Gérard Brach, John Brownjohn, Jeff Gross e Roman Polanski, baseado em livro de Pascal Bruckner.

Produção: Roman Polanski.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Durante grande parte de “Lua de Fel”, Roman Polanski faz um profundo e interessante estudo da paixão sem limites, revelando as melhores e as piores conseqüências de se entregar totalmente a uma pessoa, abdicando de si mesmo. Mas, infelizmente, o diretor escorrega no ato final, diminuindo parte do impacto de um filme que tinha tudo para deixar o espectador completamente atordoado com seu retrato pessimista da relação entre duas pessoas perdidamente apaixonadas. O resultado é um longa correto, que deixa a sensação de que Polanski, com um pouco mais de ousadia, poderia ter realizado uma obra marcante.

Casados há sete anos, os ingleses Nigel (Hugh Grant) e Fiona (Kristin Scott Thomas) decidem embarcar num cruzeiro marítimo, como forma de renovar a relação. Durante a viagem, eles conhecem a francesa Mimi (Emmanuelle Seigner) e seu marido norte-americano Oscar (Peter Coyote). Ao perceber o interesse de Nigel por sua esposa, Oscar decide contar sua história de paixão doentia pra ele, lentamente revelando como foi parar numa cadeira de rodas.

Roman Polanski é um diretor talentoso. Por isso, não surpreende que “Lua de Fel” apresente momentos marcantes, como a sensual dança de Mimi para Oscar, e tenha um ritmo envolvente, nos sugando pra dentro da história, especialmente nos momentos que envolvem o passado dos amantes. Também não faltam belos planos, como aquele em que Nigel olha para o mar durante a noite com a lua refletindo na água, e inteligentes mecanismos narrativos, como os planos do mar que antecedem as conversas entre Oscar e Nigel, que indicam a intensidade da história que será contada a seguir (ou seja, quanto mais agitado o mar, mais quente e ousada será a nova parte da história). Contando com a montagem de Hervé de Luze, o diretor cria ainda elegantes transições, como quando a imagem de Mimi na tela do computador se transforma na imagem dela dentro do ônibus, durante uma lembrança de Oscar. Além disso, conta também com a bela trilha sonora de Vangelis, com sua melodia triste se alternando com variações sombrias, coroada pelo lindo tema que embala o inicio da relação de Mimi e Oscar em Paris. Mas apesar destes belos momentos, Polanski deixa escapar a chance de realizar um grande filme e se perde no ato final, quando o longa assume contornos de lesbianismo e um clima festivo que contradizem radicalmente a atmosfera pessimista da narrativa até então, apesar do sutil indício de que isto poderia acontecer quando Mimi vê Fiona pela primeira vez e diz que ela é linda.

Para viver Mimi, a mulher que embalaria os melhores sonhos e os piores pesadelos de Oscar, Polanski escolheu sua esposa Emmanuelle Seigner, com quem já havia trabalhado em “Busca Frenética”. Inexpressiva em boa parte da narrativa, a atriz exagera em alguns momentos, como quando chora nas pernas de Oscar, e se sai bem em outros, como nas intensas discussões com Oscar ou quando se mostra insinuante no bar na ousada primeira conversa com Nigel, entregando uma atuação bastante irregular. Ainda assim, é interessante acompanhar a trajetória de sua personagem, que lentamente se transforma de jovem apaixonada numa mulher dominadora, caindo repentinamente ao fundo do poço e voltando para viver um misto de amor e ódio com Oscar. Com pouco tempo em cena, a talentosa Kristin Scott Thomas vive a entediada Fiona, para quem o momento mais excitante da viagem é uma conversa com um desconhecido no bar, que serve de aviso para seu distante marido (“Não há nada que você faça que eu não faça melhor”, ameaça). Observe o olhar ameaçador de Fiona para Nigel quando diz para o rapaz no bar o dito popular “azar no jogo, sorte no amor”, insinuando que não hesitaria em trair o marido caso ele continuasse agindo daquela maneira. Mas o aviso não surtiu efeito, e logo em seguida ele deixa Fiona passando mal na cabine e volta para ouvir o final da história de Oscar. Interpretado por Hugh Grant, o tímido Nigel é o típico homem de família inglês, sempre polido e educado, mas incapaz de se conter diante da insinuante Mimi. O ator demonstra bem a luta constante de Nigel para não demonstrar interesse no que ouve, enquanto claramente se mostra cada vez mais interessado nos detalhes mais obscenos da relação entre Oscar e Mimi (vale citar o engraçado momento em que Nigel se mostra incomodado com os detalhes escatológicos da história que ouve). Já Peter Coyote exagera em alguns momentos, como quando Mimi derruba Oscar da cama no hospital, mas vai bem em muitos outros, principalmente quando desafia Nigel na cabine a ouvir mais de sua história, além de prender a atenção do espectador com sua narração envolvente.

Escrito por Gérard Brach, John Brownjohn, Jeff Gross e Roman Polanski, baseado em livro de Pascal Bruckner, “Lua de Fel” faz um interessante estudo da paixão sem limites, utilizando uma narrativa que intercala a viagem de navio com os flashbacks que ilustram as memórias de Oscar. E é curioso acompanhar a mudança sistemática no relacionamento do casal apaixonado, ilustrada até mesmo através da fotografia de Tonino Delli Colli, mais clara e iluminada no inicio da narrativa, escurecendo na medida em que a relação avança e se afundando inteiramente nas sombras após a conversa deles numa praça, quando Oscar diz que é melhor cada um seguir o seu caminho. Este momento até mesmo tocante se contrapõe diretamente ao promissor inicio do romance, com direito a jantar de gala, brincadeiras e passeio no parque, terminando na belíssima cena da primeira relação sexual do casal, com lareira ao fundo e os closes de Polanski destacando a sensualidade e o erotismo do encontro. Após o romântico passeio no parque, a sensual dança a luz de velas e as brincadeiras com leite, o casal se mostra cada vez mais íntimo. Só que um pequeno corte feito por Mimi enquanto barbeia Oscar indica que a relação entraria em novos terrenos, explorando novas experiências e revelando o lado sádico da jovem. E após comprarem seus “brinquedos” e se trancarem por dias no apartamento para se divertirem, Oscar começa a perceber que a relação está entrando em decadência, e na tentativa de se renovar, sai com ela e os amigos, nos levando ao momento que mudaria pra sempre aquela história, quando uma crise de ciúmes de Mimi é o estopim para uma serie de atitudes entre eles que os levará ao outro extremo da paixão, o ódio. O choro compulsivo de Mimi após esta briga evidencia sua paixão doentia e desperta as piores idéias na cabeça de Oscar, reforçadas pelo momento em que ele bate nela e ela, após desmaiar, acorda e diz que o ama. Faltava amor próprio a Mimi (algo refletido até mesmo em seu visual dali em diante) e Oscar percebe isto, revelando sua pior faceta com verdadeiros requintes de crueldade. Mas um acidente viraria o jogo novamente, colocando Mimi numa posição favorável e abrindo a possibilidade de vingança pra ela. Revigorada (algo também refletido no visual dela), ela aproveita para devolver o amargo gosto do desprezo ao amante, que, incapaz de reagir, se afunda em solidão, algo ilustrado no obscuro plano em que olha pela janela a distante Torre Eiffel, simbolizando o romance perdido e fazendo-o sentir a humilhação que Mimi sentiu ao olhar para a lua no avião. Oscar finalmente chega ao fundo do poço na melancólica seqüência em que Mimi transa com outro na frente dele e o travelling de Polanski pelo quarto nos leva ao rosto incrédulo daquele homem em ruínas. A paixão tinha se transformado em ódio.

A triste história de Oscar e Mimi desperta Nigel, que finalmente compreende que sua relação com a esposa estava deteriorada, o que o leva a ensaiar uma conversa franca com ela (“Vamos ser adultos”, diz sozinho olhando para o mar). Em seguida, ele se entrega a paixão por Mimi, que não corresponde. Ela não queria sofrer mais, por isso, era melhor nem se envolver com alguém que quisesse mais do que sexo com ela. Assim como Oscar, ela já não acreditava mais no amor. E então o surpreendente (e até certo ponto incompreensível) final contraria toda a atmosfera amarga do longa, quando Mimi e Fiona se beijam na festa e dormem juntas. Embalada pela música “Slave to Love” (a mesma que embalou “9 ½ Semanas de Amor”, outro longa que aborda o tema “paixão sem limites”), a festa destoa do restante da narrativa e parece deslocada. Mas os tiros impiedosos de Oscar contra Mimi e na própria cabeça devolvem o pessimismo à “Lua de Fel”, deixando, com o perdão do trocadilho, um gosto amargo na boca do espectador, refletido no melancólico plano final, com Nigel e Fiona, solitários, diante do mar.

Com muito mais acertos do que erros, “Lua de Fel” apresenta um retrato cruel e pessimista da paixão avassaladora, mas, infelizmente, boa parte de seu impacto é reduzido pelo inexplicável terceiro ato. Talvez se Fiona tivesse ficado com o homem que conheceu no bar e Nigel tivesse perdido as duas mulheres em definitivo, o tom pessimista soaria homogêneo em toda a narrativa. Ainda assim, o longa faz jus ao fel de seu título.

Texto publicado em 19 de Janeiro de 2011 por Roberto Siqueira

O BEBÊ DE ROSEMARY (1968)

(Rosemary’s Baby)

 

Videoteca do Beto #42

Dirigido por Roman Polanski.

Elenco: Mia Farrow, John Cassavetes, Ruth Gordon, Sidney Blackmer, Maurice Evans, Ralph Bellamy, Victoria Vetri, Patsy Kelly, Elisha Cook Jr., Emmaline Henry, Charles Grodin, Hanna Landy, Phil Leeds, Marianne Gordon e Tony Curtis. 

Roteiro: Roman Polanski, baseado em livro de Ira Levin. 

Produção: William Castle e Dona Holloway. 

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido o filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Quando escrevi sobre “O Iluminado”, clássico do suspense dirigido por Stanley Kubrick, afirmei que a utilização de crianças como elemento chave do suspense é um artifício interessante, já que são teoricamente inofensivas, e por isso, quando envolvidas no suspense aumentam consideravelmente o medo provocado no espectador. Sendo assim, o que dizer então da utilização de um bebê que ainda se encontra no ventre de sua mãe? A aterrorizante busca pela verdade de uma mulher grávida que pensa ter sido vitima de bruxaria é o fio condutor deste excelente “O Bebê de Rosemary”, dirigido pelo ótimo Roman Polanski.

O jovem casal Guy (John Cassavetes) e Rosemary (Mia Farrow) se muda para um prédio antigo e ao chegar lá, se depara com vizinhos estranhos, porém muito receptivos. Algum tempo depois, Rosemary engravida e passa a ter estranhas visões, ao mesmo tempo em que seu marido, de forma suspeita, começa a se envolver cada vez mais com estes vizinhos, despertando dúvidas assustadoras em Rosemary.

Logo no elegante travelling inicial, Roman Polanski nos joga pra dentro do prédio onde toda a ação acontecerá. Em seguida, através das histórias contadas para o casal por Hutch (Maurice Evans) sobre o edifício para o qual eles estão se mudando, o diretor começa a criar o clima ideal para o suspense, aumentando gradualmente a expectativa no espectador. Quando Guy e Rosemary finalmente se mudam para o edifício e conhecem o casal de idosos Minnie Castlevet (Ruth Gordon) e Roman Castlevet (Sidney Blackmer), somos lentamente apresentados a diversos indícios que levantam dúvida sobre a idoneidade dos Castlevet. Muito receptivos, e até mesmo intrometidos, eles se mostram pessoas ao mesmo tempo encantadoras e assustadoras. A conversa sobre religião, logo no primeiro jantar na casa deles, é o primeiro claro sinal que reforçará os pensamentos futuros de Rosemary sobre bruxaria. Muitos outros indícios viriam com o passar do tempo, como o suicídio de Terry (Victoria Vetri), a moça que vivia com os Castlevet e, principalmente, o amuleto que é dado para Rosemary (e que pertencia a Terry), despertando desconfiança pelo mau cheiro e pela misteriosa erva que carrega dentro. Outro claro indicativo acontece quando, logo após conversar com Roman a respeito da dificuldade para conseguir um importante papel numa peça e ouvir “Tenho certeza de que os conseguirá” como resposta, o ator contratado fica cego e Guy é escolhido seu substituto. Finalmente, vale observar também como durante os pesadelos de Rosemary podemos escutar a mesma estranha reza, vinda do apartamento dos Castlevet, que antecedeu a morte de Terry. Seria apenas coincidência? Finalmente, a frase dita por Roman assim que soube da gravidez dela (“1966, o ano um!”) colabora ainda mais para os pensamentos da moça.

E que pensamentos são estes? Ora, Rosemary, na noite em que fica grávida, é assolada por visões no mínimo preocupantes. A composição da perturbadora cena em que o bebê é gerado é perfeita, repleta de imagens distorcidas que lembram um pesadelo. A mistura confusa – com o teto da Capela Sistina (símbolo católico), pessoas conhecidas e outras jamais vistas por Rosemary, um porão escuro com uma lareira que remete ao inferno, uma cama e a imagem da besta – acaba gerando dúvida sobre a realidade ou não destas imagens. Seria um pesadelo ou realmente aconteceu? Coincidentemente, após as conversas entre Guy e Roman, o ator começa a ter sucesso na carreira, ao mesmo momento em que finalmente deseja ter um bebê. A dúvida e a desconfiança começam a perambular pela mente da moça. Mas acertadamente, o excelente roteiro do próprio Polanski (baseado em livro de Ira Levin) não deixa claro se Rosemary realmente passou por tudo aquilo ou se ela está enlouquecendo. Como durante a gravidez é normal que as mulheres fiquem mais sensíveis, esta segunda possibilidade é plausível. Repare que nos momentos cruciais da narrativa – como a própria a noite em que o bebê é gerado – jamais podemos ter certeza se ela está tendo um pesadelo ou se o que vemos é realidade. Até mesmo os pequenos detalhes colaboram para criar esta dúvida, como o fato de Rosemary não comer todo o mousse de chocolate e os arranhões em seu corpo no dia seguinte ao “pesadelo”. Para os adeptos da teoria maligna de Rosemary, até mesmo a cor vermelha da roupa dela naquela noite pode simbolizar a união inconsciente com o demônio, o que revela uma escolha inteligente de Anthea Sylbert, responsável pelos figurinos. A trilha sonora de Christopher Komeda lembra uma canção de ninar, apresentando muitas variações do mesmo tema durante o filme. Já a Direção de Fotografia de William A. Fraker envolve os personagens em ambientes sombrios, além de trabalhar bem no contraste entre os apartamentos de Rosemary (claro e limpo) e dos Castlevet (bagunçado e escuro), revelando também o bom trabalho de Direção de Arte de Joel Schiller. Quando Rosemary e Guy fazem amor pela primeira vez no filme, Fraker mergulha os dois na completa escuridão, talvez refletindo o tortuoso caminho que ela seguiria na próxima vez em que os dois se relacionassem sexualmente.

Explorando muito bem a constante dúvida que o espectador sente ao testemunhar a busca de Rosemary pela verdade, Polanski acerta também na escolha do elenco, fundamental para o sucesso da trama. A atuação de Mia Farrow é muito boa, deixando as dúvidas e receios de Rosemary transparecer em seu semblante. Frágil e desconfiada, sua interpretação colabora com este sentimento ambíguo que o espectador sente durante praticamente todo o longa e sua determinação em defender seu bebê é tocante. As rezas estranhas escutadas através da parede e os quadros retirados quando Rosemary visita os Castlevet aumentam sua desconfiança, reforçada ainda pelo fato de Roman dizer que já viajou o mundo inteiro (“Diga um lugar e direi se já estive lá”), já que um bruxo não pode ficar muito tempo no mesmo local arriscando ser descoberto. O Guy de John Cassavetes é uma pessoa misteriosa. Bem humorado, como notamos quando faz piada sobre plantação de maconha e sobre os espíritos de duas irmãs no apartamento, ele mantém uma boa química com Rosemary no início. Por outro lado, seu fracasso profissional começa a afastá-lo da esposa, e curiosamente, aproximá-lo do casal de idosos, colaborando para a desconfiança de Rosemary. Observe como os dois reagem de maneira fria à gravidez, já refletindo o afastamento do casal. A alegria dela é contida, porém perceptível, ao passo em que Guy, apesar de feliz, não demonstra a empolgação esperada de um pai. Por outro lado, repare como ele corre para contar aos Castlevet assim que sabe da notícia da gravidez, gerando ainda mais desconfiança na garota. Finalmente, o fantástico casal Castlevet é interpretado por Ruth Gordon e Sidney Blackmer, com destaque para a belíssima atuação de Gordon como Minnie Castlevet. Intrometida e falastrona, ela nos deixa constantemente na dúvida sobre suas reais intenções enquanto faz amizade com o casal, fazendo com que o espectador jamais saiba se Minnie realmente é uma bruxa ou se simplesmente gosta deles. Ao mesmo tempo em que é receptiva e calorosa com Guy e Rosemary, a Sra. Castlevet demonstra um suspeito interesse no primeiro bebê da moça, ao dizer repetidas vezes que ela é jovem e com certeza vai ter “muitos” bebês ainda.

A descoberta lenta e tensa dos sinais – novamente, mérito do ótimo roteiro – leva Rosemary a procurar ajuda com outro médico. Porém, o diagnostico dele de que ela está delirando nos devolve a dúvida. E agora? Estaria ela realmente imaginando tudo aquilo ou seria um complô generalizado contra a indefesa garota? A excelente seqüência final em que Rosemary descobre toda a verdade, entrando pelos fundos do armário de sua casa com uma faca na mão, é esplendidamente bem conduzida por Polanski. Lentamente somos apresentados aos detalhes da casa, como os quadros sinistros e o berço negro, que confirmam a teoria de Rosemary. E o grande clímax acontece quando Rosemary finalmente se encontra com o filho, retirado de seus braços antes mesmo que ela pudesse ver seu rosto. O choque é tão grande que ela não consegue conter o espanto – e Mia Farrow dá um show nesta cena. Entretanto, após o susto e as conversas com Guy e Roman, ela volta ao berço e olha para o filho com os olhos encantados de mãe. E a dúvida volta: estaria ela ainda delirando quando entrou no local ou teria se conformado com a realidade? Eu fico com a segunda opção. Ainda assim, vale ressaltar que o longa jamais mostra o bebê de Rosemary, o que permite diversas interpretações diferentes e abre espaço para a imaginação do espectador fluir.

Extremamente bem conduzido, de forma a gerar pensamentos ambíguos em cada espectador, “O Bebê de Rosemary” revela-se um excelente filme de terror que não utiliza cenas violentas como forma de assustar o espectador. Polanski cria uma situação aterrorizante, capaz de causar pânico sem a necessidade de utilizar recursos artificiais como a trilha sonora para isto. É a situação em que os personagens estão envolvidos que causa temor, o que é muito mais interessante. A dúvida gerada em torno dos pensamentos e visões de Rosemary e a ambigüidade de sua atitude final elevam ainda mais a qualidade da obra. Por isso, independente de qual seja sua interpretação final, o espectador ficará satisfeito com o que viu. 

Texto publicado em 03 de Fevereiro de 2010 por Roberto Siqueira