MAGNÓLIA (1999)

(Magnolia)

5 Estrelas

 

 

obra-prima 

Videoteca do Beto #228

Dirigido por Paul Thomas Anderson.

Elenco: John C. Reilly, Julianne Moore, William H. Macy, Tom Cruise, Philip Baker Hall, Philip Seymour Hoffman, Jason Robards, Alfred Molina, Melora Walters, Michael Bowen, Ricky Jay, Jeremy Blackman, Melinda Dillon, Luis Guzmán, Felicity Huffman, Henry Gibson, Michael Murphy, April Grace, Don McManus e Patton Oswalt.

Roteiro: Paul Thomas Anderson.

Produção: Paul Thomas Anderson e JoAnne Sellar.

Magnólia[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Alguns filmes precisam de um tempo para serem absorvidos em sua plenitude pelo espectador. Este tempo pode ser aqueles instantes em que você repassa o filme na cabeça tentando encontrar possíveis furos no roteiro, horas em que você reflete sobre as questões levantadas ou até mesmo dias ou meses em que tenta formar uma teoria que interprete sua mensagem. Pois a obra-prima “Magnólia” se encaixa em todas estas possibilidades e ainda oferece mais, permitindo ao espectador desfrutar novos e deliciosos detalhes em cada revisita. Motivo de grande polêmica e revolta de espectadores mais apressados por causa de uma única cena, o longa dirigido por Paul Thomas Anderson é um deleite para o verdadeiro fã de cinema, tamanha a sua complexidade temática e narrativa.

Escrito pelo próprio Paul Thomas Anderson (assim como todos os outros filmes de sua carreira), “Magnólia” acompanha um dia na vida de um grupo de pessoas em Los Angeles, que têm seus destinos interligados de alguma forma. Assim, temos o policial Jim (John C. Reilly) que conhece Claudia (Melora Walters) ao atender um chamado; Claudia que é filha de Jimmy (Philip Baker Hall), o apresentador de um programa de TV no qual Stanley (Jeremy Blackman) é o astro infantil, assim como Donnie Smith (William H. Macy) já fora um dia. O programa é produzido por Earl Partridge (Jason Robards), casado com Linda (Julianne Moore) e pai de uma espécie de guru do sexo, o misógino Frank T.J. Mackey (Tom Cruise). Doente em estado terminal, Earl tem a companhia do cuidador Phil (Philip Seymour Hoffman), que acaba descobrindo em conversas com seu paciente a razão da raiva que o filho sente do pai.

Como é fácil perceber neste breve resumo, “Magnólia” não é um filme simples de acompanhar. Ou ao menos não deveria ser. Com tantos personagens e, o que é mais admirável, com importância semelhante dramaticamente, a ousada narrativa intercala a vida de todos eles de maneira dinâmica, o que faz o trabalho do montador Dylan Tichenor (parceiro de Anderson no também multifacetado e ótimo “Boogie Nights”) essencial para o sucesso do filme. E é incrível perceber como a genialidade da montagem e a condução de Anderson nos mantém interessados por todas as histórias narradas quase que na mesma intensidade, através de sua câmera em constante movimento que jamais nos deixa confusos e do absoluto controle da misè-en-scene, o que não é nada fácil numa narrativa multifacetada e repleta de personagens importantes. Empregando movimentos de câmera elegantes que alternam entre o uso do zoom, travellings e belíssimos planos-sequência (aquele nos corredores da emissora de televisão é sensacional), o diretor não apenas mantém nosso interesse como ainda cria um visual gradualmente sufocante, ampliado pela brilhante fotografia de Robert Elswit, que explora os ambientes fechados, a noite predominante e a chuva que cai em boa parte do filme para criar esta sensação de sufocamento gradual no espectador e refletir os sentimentos dos personagens.

Absoluto controle da misè-en-sceneBelíssimos planos-sequênciaNoite predominante e a chuva que cai

As elegantes transições surgem também através de muitos raccord sonoros, que são transições entre cenas que iniciam primeiro através do som e somente depois através da imagem, ou seja, começamos a ouvir o som da cena posterior enquanto ainda acompanhamos imagens da cena antecessora, o que serve para aumentar a expectativa pela sequência que está por iniciar, como por exemplo quando o som do show de Frank surge enquanto ainda acompanhamos seu pai doente na cama. A trilha sonora de Jon Brion também colabora na criação do mencionado clima melancólico, além de muitas vezes ajudar a ditar o ritmo da narrativa, tanto nos momentos mais empolgantes em que a música acompanha as constantes mudanças de foco, transitando entre todas aquelas histórias, quanto nos momentos mais intimistas em que os personagens estão mais reflexivos.

Competente também na direção de atores, Anderson extrai atuações respeitáveis de um elenco qualificado e homogêneo. Personagem central da narrativa (ainda que em “Magnólia” não seja tão simples definir o protagonista), Jim talvez seja o personagem mais tranquilo depois de Phil, chegando a ser comovente em sua quase ingenuidade. Carismático, John C. Reilly assume o papel com facilidade e transforma Jim num dos pontos de equilíbrio de uma narrativa tão pesada dramaticamente, como atesta a personagem que mais contracena com ele. Logo em sua primeira aparição, Melora Walters já sugere o forte trauma de Claudia através da histeria dela ao ver o pai e segue na mesma intensidade durante quase todo o filme. Observe, por exemplo, como ela está inquieta na chegada do policial, demonstrando tanto o efeito das drogas quanto sua ansiedade provocada pela visita recente do pai. Claudia é uma personagem traumatizada e depressiva e Walters transmite isso com precisão.

Comovente em sua quase ingenuidadeForte trauma de ClaudiaHomem cansado, amargurado

Seu pai é interpretado por Philip Baker Hall, que vive Jimmy como um homem cansado, amargurado talvez, que ficou famoso por apresentar um quiz show envolvendo crianças, mas que não soube se aproximar da própria filha como deveria e, o que é muito pior, cometeu um crime horrendo contra ela. Vivendo outra linha narrativa crucial para entendermos os temas tratados em “Magnólia”, William H. Macy vive o ex-garoto prodígio Donnie Smith, externando com competência o ressentimento provocado pela exploração dos pais e a falta de confiança para aceitar-se como ele é. Apaixonado por um barman, mas sem coragem para assumir sua orientação sexual, ele encontra na platônica paixão a possibilidade de aceitação social que tanto lhe faz falta. Já Stanley, seu herdeiro na posição de menino prodígio, reage à pressão de ser o fio condutor da riqueza dos pais e não aceita ser explorado, levando o pai (Michael Bowen) ao desespero – e o garoto Jeremy Blackman segura bem o papel neste sentido, demonstrando firmeza sem perder o encanto da infância. As crianças que são exploradas pelo show business por puro interesse econômico (das emissoras e dos pais, diga-se) é um dos temas importantes abordados pelo longa.

Representando o espectador naquele mar de dor e angustia, Philip Seymour Hoffman encarna Phil com grande sensibilidade, demonstrando o quanto o cuidador absorve o sofrimento dos que estão à sua volta. Único personagem sem motivos aparentes para sentir a própria dor, seu rosto transmite a paz e a empatia pelo próximo tão necessárias em sua profissão – e as expressões de Hoffman realçam com exatidão a intensidade com que o personagem sente a dor alheia. Assim, Phil se transforma no ponto de equilíbrio principal do espectador naquela narrativa angustiante. O mesmo não podemos dizer de Linda. Inicialmente mais discreta, Julianne Moore lentamente ganha força na narrativa até transformá-la num poço de emoções à flor da pele, culminando numa tentativa de suicídio melancólica e tocante movida pelo remorso após revelar suas reais intenções naquele relacionamento. A confissão, aliás, é um dos bons momentos da atriz, no qual demonstra como o peso do passado corrói a personagem.

Ex-garoto prodígio Donnie SmithHerdeiro na posição de menino prodígioPonto de equilíbrio principal

O peso do passado é, portanto, outro tema central de “Magnólia”, escancarado na frase “Nós até podemos ter esquecido do passado, mas o passado ainda não se esqueceu de nós”, repetida algumas vezes. Quem melhor personifica este peso é Earl Partridge, interpretado de maneira estupenda por Jason Robards, que consegue o feito de humanizar um personagem tão cruel. Graças a intensidade de sua performance, sentimos a dor de Earl como se fosse nossa, com seus gemidos agudos, olhar desfocado e a voz cansada, que denotam o desgaste de um homem lentamente consumido pelo passado, como podemos notar no momento magistral em que Earl conta como conheceu a esposa Lilly e confessa o arrependimento pela forma como a tratou e especialmente por traí-la, reclamando cheio de amargura que “A vida não é curta, é longa!” após tantos anos convivendo com seu remorso, numa cena que ecoa na mente do espectador mesmo após a projeção.

Parte deste sofrimento vem também da certeza do trauma provocado em seu filho Frank que, como muitos personagens em “Magnólia”, também precisa acertar contas com o passado. Talvez no ano mais especial de sua carreira em termos de atuação, Tom Cruise está muito bem na pele do misógino protagonista de um show voltado para homens obviamente machistas, demonstrando grande segurança no palco e uma carcaça que esconde fortes traumas do passado fora dele, como fica evidente quando é confrontado pela entrevistadora e, inquieto, dá os primeiros sinais de que está mentindo (algo que tanto a repórter quanto o espectador já sabiam). Após a menção aos pais, ele muda completamente a feição e perde a estabilidade e a confiança que pareciam transbordar até então, escancarando sua conexão com a mãe e o trauma provocado pela morte dela, o que talvez explique, sem justificar, a persona machista que criou como uma autodefesa ou uma forma de esconder a fragilidade emocional e afetiva que tinha. Por isso, seu comportamento na entrevista passa da euforia para a introspecção, numa transição conduzida com perfeição por Cruise.

Poço de emoções à flor da peleHomem lentamente consumido pelo passadoMisógino protagonista de um show

O comportamento de Frank, aliás, serve para ilustrar aquele que talvez seja o principal tema de “Magnólia”, que é o desentendimento entre pais e filhos. Desta forma, temos o ressentimento de Donnie e a revolta de Stanley alimentados pelo mesmo motivo, assim como o ódio que Claudia sente pelo pai também é o sentimento de Frank por Earl, mas por razões diferentes. Orbitando em volta deles, temos personagens igualmente sugados pela culpa que Jimmy e Earl carregam, como Linda, ou aqueles que tentam amenizar a dor dos que estão em volta, como Jim e Phil. A intenção é clara: demonstrar a conexão entre aquelas pessoas. O primeiro momento em que isso acontece é durante o show de Jimmy, em que vários personagens, mesmo distantes uns dos outros, surgem conectados através da tela da televisão, numa das várias sequências conduzidas com maestria por Anderson e seu montador. Da mesma forma, o zoom que nos leva até Jimmy instantes antes dele cair no palco surge logo após uma sequência dinâmica que nos faz passar por vários personagens, na qual a trilha sonora indica que aquelas pessoas estavam muito próximas de chegarem aos seus limites.

Este limite chega no instante em que o peso das atitudes do passado toma conta de boa parte dos personagens e o sofrimento atinge níveis quase insuportáveis, levando-os a se isolarem de alguma forma, ainda que em alguns casos este isolamento surja apenas mentalmente e não de fato fisicamente. Então surge a emocionante sequência em que todos se conectam novamente, agora cantando a bela música “Wise up”, de Aimee Mann, num momento lindo, realçado pela chuva que cai, pela noite e pela melancolia coletiva que toma conta da tela, conduzido com maestria por Anderson – que é amigo pessoal de Mann e escolheu a cantora para desenvolver as músicas especialmente para o filme. Em seguida, a chuva finalmente cessa e o alívio temporário chega, dando início ao terceiro ato da narrativa.

Conectados através da tela da televisãoTodos se conectam novamenteDivertido segmento de abertura

O tragicamente divertido segmento de abertura passa então a fazer mais sentido quando um fato inusitado surge para interferir na vida de todas aquelas pessoas. Seria coincidência ou a ação do destino? Temos um ser superior que direciona nossas vidas ou estamos jogados ao acaso? Chegamos então ao grande mistério de “Magnólia”, desvendado brilhantemente pelo crítico Pablo Villaça em sua memorável crítica de 2000. Inicialmente, a interpretação mais plausível é a de que o acaso tem peso em nossas vidas e a chuva de sapos representaria metaforicamente este acaso. É uma visão coerente e que faz todo sentido. No entanto, Paul Thomas Anderson não queria apenas nos abrir a possibilidade de interpretação, ele queria brincar com nossa percepção e o faz durante toda a narrativa. Observe, por exemplo, como o garoto rapper faz uma espécie de profecia sobre a chuva que aliviaria a todos, assim como alguns personagens dizem que “está chovendo gatos e cachorros”, numa expressão típica do idioma inglês que serve para brincar com o fato estranho que ocorreria depois.

Da mesma forma, a previsão do tempo surge várias vezes na tela, indicando a importância do clima desde o início e sinalizando de forma sutil o evento que ocorreria no clímax. Observe também como a primeira previsão é de 82% de chance de chuva, numa brincadeira que faz uma das primeiras alusões ao versículo “Êxodo 8:2”, algo que se repetiria algumas vezes, como na abertura do programa comandado por Jimmy em que vemos rapidamente um cartaz escrito este versículo na plateia. Em outro momento, a menção ao livro de Êxodo, capítulo 20, versículo 5 (“Os pecados dos pais recaem sobre os filhos”), além de reforçar o tema central de “Magnólia”, ainda indica a importância deste livro para compreender a narrativa. E por fim, repare como Jim passa por uma placa de publicidade luminosa contendo a frase “Êxodo 8:2” segundos antes do primeiro sapo atingir seu carro.

Primeira previsão é de 82% de chuvaCartaz escrito Êxodo 8 2Placa de publicidade luminosa

Mas o que quer dizer este bendito versículo (sem trocadilho)? Uma rápida consulta a Bíblia traz as palavras de Deus para o faraó, reveladas na voz de Moisés: “Mas se recusares deixá-lo ir, eis que ferirei com rãs todos os teus termos”. Em Magnólia, é justamente quando Frank implora para que seu pai não o deixe (“Don’t go away!”) que a chuva tem início, num momento em que todos pareciam estar sem saída ou encontrando soluções tragicamente definitivas para aliviar o sofrimento. Certamente a sequência mais polêmica de “Magnólia”, os sapos que surgem dos céus para salvá-los podem ser interpretados de várias formas, como o mencionado acaso que surge para alterar os seus destinos e mudar o rumo de suas vidas, mas esta pérola escondida por toda a projeção torna o longa ainda mais especial e brilhante.

Durante a chuva, o quadro com a frase “Mas realmente aconteceu” (“But it did happen”), já citada antes por Phil quando explicava a tentativa desesperada do pai em estado terminal de encontrar o filho no telefone (“Parece aqueles filmes…”), reforça a teoria da força do acaso em nossas vidas e serve para acalmar os mais céticos, ainda que a explicação bíblica esteja lá, espalhada de diversas formas por “Magnólia”. E vale dizer que, se tematicamente a cena tem um peso enorme, tecnicamente a sequência da chuva de sapos é perfeita, visualmente impactante e com instantes plasticamente belíssimos como quando acompanhamos um sapo caindo lentamente num plano plongè.

Frank implora para que seu pai não o deixeMas realmente aconteceuTecnicamente a sequência da chuva de sapos é perfeita

“O que podemos perdoar?”, questiona Jim instantes antes de encerrar esta obra-prima. A resposta é uma das mais difíceis que podemos encontrar. Assim, quando finalmente podemos ver o primeiro sorriso de Claudia, nos damos conta que já estamos no último plano do longa, mas nunca é tarde para encontrar alguma forma de redenção.

Narrativamente complexo, tematicamente rico e visualmente belo, “Magnólia” é uma obra-prima do cinema capaz de gerar grande polêmica, mas extremamente recompensadora para os amantes da sétima arte. Contando com um diretor talentoso e um elenco formidável, o longa tem o poder que somente os grandes filmes têm de tornar-se ainda mais especial em cada revisita. E isto, com o perdão do infame trocadilho, não é um mero resultado do acaso.

Magnólia foto 2Texto publicado em 25 de Abril de 2016 por Roberto Siqueira

QUASE FAMOSOS (2000)

(Almost Famous)

4 Estrelas 

Filmes em Geral #111

Dirigido por Cameron Crowe.

Elenco: Patrick Fugit, Billy Crudup, Frances McDormand, Kate Hudson, Philip Seymour Hoffman, Jason Lee, Zooey Deschanel, Michael Angarano, Anna Paquin, Fairuza Balk, Noah Taylor, John Fedevich, Jimmy Fallon e Rainn Wilson.

Roteiro: Cameron Crowe.

Produção: Ian Bryce e Cameron Crowe.

Quase Famosos[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Precocemente convidado para escrever numa das revistas mais conceituadas do universo do rock, Cameron Crowe não demorou a estrear também no cinema, primeiro como roteirista do ótimo “Picardias Estudantis” e depois realizando entre outros filmes o bom “Jerry Maguire”. No entanto, seu grande momento atrás das câmeras foi mesmo em “Quase Famosos”, uma espécie de autobiografia nada disfarçada que narra de maneira apaixonada suas experiências nos bastidores do rock nos tempos de revista Rolling Stone.

Obviamente escrito pelo próprio Crowe, o roteiro de “Quase Famosos” narra a trajetória de William Miller (Patrick Fugit), um jovem de apenas 15 anos que é contratado pela revista Rolling Stone para escrever sobre a turnê da promissora banda Stillwater, mas, para o desespero de sua mãe (Frances McDormand), acaba envolvendo-se não apenas com os integrantes da banda, mas também com um universo de sexo, drogas e garotas ousadas, dentre as quais se destaca a bela Penny Lane (Kate Hudson).

Em certo momento de “Quase Famosos”, um personagem diz que “ser fã é amar tanto uma banda que chega a doer”, naquela que talvez seja a frase que, dentre os inúmeros bons diálogos do roteiro, melhor capte o espírito nostálgico do longa. Inspirado na própria trajetória que levou Crowe a ser precocemente contratado como crítico da famosa revista Rolling Stone e aproximar-se de bandas mitológicas como o Led Zeppelin (a favorita de Crowe), a narrativa comandada pelo diretor exala criatividade desde a apresentação dos créditos iniciais e demonstra não apenas sua paixão pela música, mas também por todo o universo que a cerca. E ainda que espalhe momentos cômicos por toda a narrativa, a abordagem de Crowe é na maior parte do tempo repleta de encanto.

Compensando o excesso de informações mastigadas através desta abordagem extremamente sensível, Crowe reverencia o rock na maior parte do tempo, seja através da excelente trilha sonora repleta de bandas do primeiro time como o próprio Zeppelin, The Who e Black Sabbath, seja na própria abordagem visual, começando pela fotografia de John Toll, que até utiliza cenas noturnas e ambientes fechados em muitos momentos para ilustrar a luta daquele grupo para sair das sombras e ganhar projeção, mas jamais deixa as cores tão marcantes naquela época de lado, conferindo um brilho especial às cenas diurnas e às muitas sequências nostálgicas embaladas por músicas (que lembram videoclipes e escancaram a origem do diretor), como por exemplo, quando Penny volta pra casa de avião enquanto William corre pelo aeroporto ou na belíssima cena em que todos cantam “Tiny Dancer” no ônibus, assim como na encantadora cena em que as garotas se juntam para tirar a virgindade de William.

Apresentação dos créditos iniciaisCenas noturnasTiny DancerAinda na parte técnica, enquanto a montagem de Joe Hutshing e Saar Klein confere um bom ritmo a narrativa, intercalando a turnê da banda com as cenas envolvendo a mãe de William, os editores da Rolling Stone e o crítico Lester Bangs interpretado por Philip Seymour Hoffman, os figurinos de Betsy Heimann e o design de produção de Clay A. Griffith, Clayton Hartley e Virginia L. Randolph nos transportam para a época da narrativa através das roupas coloridas e do próprio ônibus escolhido para acompanhar a turnê. Finalmente, o ótimo design de som cria o ambiente perfeito nos shows através das reações do público e dos diálogos entre os integrantes da banda, caprichando até mesmo nos pequenos detalhes, como quando ouvimos um diálogo no backstage e, ao fundo, o som do show do Black Sabbath.

No entanto, Crowe faz ainda mais bonito na direção de atores. Vivendo a mãe opressora que proíbe muitos prazeres da vida aos seus filhos, Frances McDormand evita que Elaine Miller se torne uma personagem detestável e unidimensional ao conferir humanidade a ela através da forma como se preocupa com o bem estar do filho e da empatia que cria com o jovem William. Equilibrando-se entre o rosto inocente e o sorriso carismático, o jovem Patrick Fugit tem sucesso na difícil tarefa de compor o tímido personagem central da narrativa, criando empatia com os integrantes da banda e, especialmente, com a bela Penny Lane – o momento em que o pequeno William volta para pegar a camiseta que causou uma briga na banda é muito divertido. Através da visão encantada dele, temos acesso aos bastidores do cotidiano de uma banda menor e somos levados pelas estradas na árdua busca por um lugar ao sol, por isso, a empatia entre o personagem e a plateia é essencial para o sucesso do longa.

Carismática, sensual e descolada, a Penny Lane de Kate Hudson é o elo entre o protagonista e a banda, funcionando como o alicerce daquela complexa cadeia – e não à toa, a ausência dela provoca turbulências ainda maiores entre os músicos. Compondo a personagem com sensibilidade, Hudson destaca-se na cena em que Penny sofre uma crise no quarto após ser desprezada pelo guitarrista Russel, o mais carismático integrante do Stillwater interpretado por Billy Crudup, que é também o pivô das constantes brigas motivadas pelos egos inflados dele e do vocalista Jeff Bebe, vivido por Jason Lee – um conflito muito comum nas bandas de rock, diga-se. Infelizmente, a forte influência de empresários também se tornou comum e “Quase Famosos” aborda o tema quando os integrantes da banda são convencidos a viajar de avião para fazer mais shows – algo que Crowe realça num plano no qual vemos o ônibus ficando para trás enquanto o avião decola ao fundo. Ironicamente, é durante uma tempestade que coloca em risco um voo da banda que eles aproveitam para lavar a roupa suja e escancarar seus problemas, o que não soluciona todos eles, mas ao menos faz com que a maioria dos músicos se sinta melhor.

Se preocupa com o bem estar do filhoRosto inocenteCarismática Penny LaneFechando o elenco, Philip Seymour Hoffman encarna bem o crítico alternativo que orienta o jovem William, destilando seu veneno contra tudo que lhe desagrada e revelando importantes informações a respeito da indústria da música. Seu apartamento bagunçado e cheio de LPs diz muito sobre ele, assim como as dicas que ele dá ao garoto, que terão reflexo no futuro, quando William sentirá na pele a dificuldade de criticar o trabalho da banda após fazer amizade com eles.

Viagem interessante pelos bastidores de uma banda de rock sob o olhar de um fã, “Quase Famosos” é uma verdadeira homenagem a este gênero que encanta gerações há décadas. Sem jamais soar ácido demais e sem por isso deixar de expor o universo polêmico no qual conviveu, Cameron Crowe realizou um ótimo trabalho, capaz de agradar roqueiros e cinéfilos com a mesma eficiência. E olha que estes dois grupos são muito exigentes – e eu faço parte de ambos!

Quase Famosos foto 2Texto publicado em 13 de Setembro de 2013 por Roberto Siqueira

BOOGIE NIGHTS – PRAZER SEM LIMITES (1997)

(Boogie Nights)

5 Estrelas 

Videoteca do Beto #170

Dirigido por Paul Thomas Anderson.

Elenco: Mark Wahlberg, Burt Reynolds, Julianne Moore, Heather Graham, Don Cheadle, John C. Reilly, Luis Guzmán, William H. Macy, Alfred Molina, Philip Seymour Hoffman, Melora Walters, Thomas Jane, Philip Baker Hall e Joanna Gleason.

Roteiro: Paul Thomas Anderson.

Produção: Paul Thomas Anderson, Lloyd Levin, John Lyons e Joanne Sellar.

Boogie Nights – Prazer sem Limites[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Paul Thomas Anderson tinha apenas um filme no currículo quando “Boogie Nights – Prazer sem Limites” chegou aos cinemas, chamando a atenção não apenas pelos virtuosismos técnicos e narrativos do diretor/roteirista, mas também por seu elenco igualmente numeroso e talentoso. Abordando um universo nada convencional e trazendo inúmeros personagens interessantes, o longa sinalizava claramente que um grande diretor estava chegando para ficar, confirmando ainda o enorme talento de atores como Mark Wahlberg, Julianne Moore, John C. Reilly, William H. Macy e Philip Seymour Hoffman, além é claro do veterano Burt Reynolds.

Escrito pelo próprio Anderson, “Boogie Nights” narra a trajetória de ascensão e queda de Eddie Adams (Mark Wahlberg), um jovem que é descoberto pelo grande cineasta pornô Jack Horner (Burt Reynolds) e acaba se tornando o grande astro do meio, já sob o nome artístico de Dirk Diggler. Lá, ele conhece a famosa Amber Waves (Julianne Moore), uma das muitas pessoas extravagantes que frequentam as agitadas festas recheadas com muito álcool e cocaína, além é claro do próprio sexo. Mas esta vida de excessos obviamente não permitiria que eles saíssem ilesos daquilo tudo.

O primeiro grande desafio de “Boogie Nights” começa no próprio roteiro, que consegue a proeza de criar uma estrutura narrativa interessante e desenvolver bem seus muitos personagens através de linhas narrativas paralelas que eventualmente se cruzam durante a trama. Além disso, Anderson tem o mérito de criar empatia com a plateia mesmo num universo claramente distante da maioria dos espectadores e que normalmente é visto com reservas pelo público através de personagens que fogem de estereótipos e se tornam mais humanos aos nossos olhos graças também ao talento dos atores.

Mas se o roteiro chama a atenção, atrás das câmeras Anderson não fica atrás, dando um show de direção com seus movimentos elegantes como o belíssimo plano-sequência que passeia pelos personagens espalhados na casa noturna e nos ambienta àquele submundo logo na abertura do longa. Movimento de câmera sempre chamativo, o plano-sequência (que viria a se tornar uma marca registrada do diretor) surge em outros diversos momentos de “Boogie Nights”, como na primeira festa na casa de Jack e na excelente sequência em que acompanhamos a trajetória de Bill (William H. Macy) na noite em que ele mata sua mulher e se suicida. O diretor é competente também na utilização de técnicas mais simples, como os closes em objetos que muitas vezes enfatizam a sensibilidade aguçada daqueles personagens, os inúmeros planos que trazem o uso explícito de cocaína e ilustram a trajetória de autodestruição daquele grupo e os planos fechados que realçam o espanto das pessoas diante dos atributos físicos de Eddie que garantem seu sucesso na indústria pornográfica.

Passeia pelos personagensPrimeira festa na casa de JackNoite em que ele mata sua mulherContando com a ajuda do diretor de fotografia Robert Elswit, Anderson cria um universo colorido que, além de ilustrar a intensidade com que aquelas pessoas viviam e enxergavam o mundo, ainda mostra-se coerente com a época em que se passa à narrativa. No entanto, o diretor e seu diretor de fotografia são inteligentes o bastante para mudar este aspecto quando necessário, como na briga de Eddie com sua mãe em que os personagens surgem mergulhados nas sombras, ampliando a sensação sufocante do momento. Repare ainda como a imagem surge granulada em alguns instantes, especialmente quando vemos as filmagens dos controversos longas dirigidos por Jack – numa alusão a natureza “B” destas produções -, e compare com as cenas ultra coloridas e repletas de luzes na casa noturna e nas festas.

Briga de Eddie com sua mãeFilmagens dos controversos longasLuzes na casa noturnaColoridos também são os figurinos de Mark Bridges, que reforçam o visual bem anos 70, assim como a fantástica trilha sonora de Michael Penn é muito coerente com a época, com suas músicas animadas e chamativas. Realçando traços da personalidade de Eddie através da decoração de seu quarto repleto de pôsteres de carros, mulheres e Bruce Lee, o design de produção de Bob Ziembicki mantém a coerência na nova casa dele, com cômodos chamativos e nada discretos como o quarto oriental que escancara sua admiração pelo ícone das artes marciais, inteligentemente demonstrada anteriormente e que refletiria também em sua carreira como ator depois que ele viesse a ganhar poder e passasse a interferir na trama das produções.

Coloridos figurinosPôsteres de carros, mulheres e Bruce LeeQuarto orientalEssencial num filme com tantas linhas narrativas paralelas, a montagem de Dylan Tichenor consegue evitar que a narrativa se torne confusa, mantendo o espectador interessado no que acontece mesmo com tantos personagens e ainda nos brindando com elegantes transições como aquela que sai de Jack sentado na cadeira observando o desempenho de Eddie e vai para a mãe do garoto sentada na cadeira esperando sua chegada.

E já que falamos em desempenho, a grande atuação de praticamente todo o elenco de “Boogie Nights” dificulta muito a tarefa de apontar destaques. Mesmo atores com participações menores chamam a atenção, como é o caso de William H. Macy na pele de Bill, o pobre homem constantemente humilhado pela esposa que encontra uma maneira trágica de solucionar a situação. John C. Reilly confirma seu talento como o acelerado Reed e Philip Seymour Hoffman está excelente como o afeminado Scotty J., demonstrando com sutileza sua atração por Dirk através do olhar e da expressão corporal quanto está diante dele, destacando-se ainda na cena do carro novo em que tenta beijar o amigo a força e se arrepende logo em seguida.

Bill constantemente humilhado pela esposaAcelerado ReedAfeminado Scotty J.Entre os personagens com mais tempo em cena, Burt Reynolds tem presença marcante como o centrado Jack Horner, o cérebro que faz toda aquela engrenagem funcionar e que sonha em realizar um filme pornográfico significante, mas que tem dificuldade para compreender os caminhos que a indústria seguiria após tantos anos de sucesso. Quase sempre ao seu lado, Julianne Moore dá vida a doce e sensual Amber com muita competência, comovendo a plateia quando assume sua verdadeira identidade e demonstra o quanto Maggie sofre por não poder ver seu filho, especialmente na cena da audiência que culmina em seu choro devastador. Tanto ela quanto a Patinadora vivida por Heather Graham são pessoas carentes que encontram consolo uma na outra, mas Amber é mais complexa, exalando este lado terno e maternal com a mesma naturalidade com que lida com o vício em cocaína e o sexo profissional. E no centro de todo este turbilhão está Mark Wahlberg, que constrói o astro Dirk com precisão, passando do garoto simpático e carismático que conquista as pessoas em volta para um egocêntrico e nojento superstar de maneira convincente.

Centrado Jack HornerDoce e sensual AmberAstro DirkNum momento brilhante, Anderson expõe a decadência geral daquelas pessoas através de duas ações paralelas que dialogam entre si, com Jack e a Patinadora espancando um homem na rua exatamente da mesma forma que um grupo de jovens faz com Dirk, como se fosse um acerto de contas entre os pilares da discussão que levou a destruição da bem sucedida parceria entre eles – um momento, aliás, que exemplifica bem a violência gráfica que permeia a narrativa. Além disso, o diretor também brinda a plateia com cenas extremamente tensas, como o assalto à loja de Donut´s e especialmente a angustiante negociação na casa de um traficante, na qual a música alta, os explosivos e os próprios diálogos deixam personagens e plateia com os nervos à flor da pele. E finalmente, a conversa de Dirk com o espelho exatamente como fez Jake La Motta em “Touro Indomável” faz uma referência óbvia à outra trajetória de ascensão e queda.

Jack e a Patinadora espancando um homemGrupo de jovens agride DirkAssalto à loja de Donut´sApós tantas menções ao órgão sexual do garoto, Paul Thomas Anderson finalmente revela a razão de seu sucesso naquela indústria, numa cena explícita que poderia soar gratuita, mas que neste caso – com o perdão do trocadilho – se encaixa perfeitamente à narrativa. Mas se a superficialidade é algo inerente às produções pornográficas, “Boogie Nights” tem muito mais a dizer do que sua embalagem chamativa faz parecer, trazendo reflexões a respeito de questões delicadas como a dependência química e o abuso de menores, além de tratar os excessos dos personagens e suas consequências de maneira ambígua.

Se por um lado temos a maneira preconceituosa como a sociedade vê aquele mundo na audiência de Maggie e na tentativa frustrada de conseguir crédito para abrir uma loja de aparelhos de som de um ator pornô (Don Cheadle), por outro vemos como aquela vida de excessos pode realmente ser muito prejudicial – e o momento mais emblemático neste sentido é quando Maggie é acusada em juízo de usar drogas e prontamente nega, sabendo que a verdade neste caso só a afastaria ainda mais do filho. É como se “Boogie Nights” erguesse um painel com os prós (glamour, dinheiro, carrões, sexo fácil, festas) e contras (baixa escolaridade, preconceito, afastamento da família, dificuldade para sair do ramo, vício em drogas) deste complexo e desconhecido universo.

Angustiante negociação na casa de um traficanteTentativa frustrada de conseguir créditoMaggie é acusada em juízo de usar drogasClaramente influenciado por cineastas geniais como Martins Scorsese (no aspecto visual) e Robert Altman (na estrutura narrativa), Paul Thomas Anderson fincou de vez o pé na indústria de Hollywood com o belíssimo trabalho feito em “Boogie Nights”, demonstrando capacidade para conduzir um grande elenco e extrair excelentes atuações de praticamente todos eles. O resultado é um filme simultaneamente delicioso e sombrio, que aborda um segmento polêmico da indústria sem jamais soar panfletário ou careta, mas que nem por isso esconde os riscos que oferece para aqueles que decidem se aventurar nele.

Boogie Nights – Prazer sem Limites foto 2Texto publicado em 09 de Junho de 2013 por Roberto Siqueira

EMBRIAGADO DE AMOR (2002)

(Punch-Drunk Love)

 

Filmes em Geral #41

Dirigido por Paul Thomas Anderson.

Elenco: Adam Sandler, Emily Watson, Philip Seymour Hoffman, Luis Guzmán, Mary Lynn Rajskub e Lisa Spector.

Roteiro: Paul Thomas Anderson.

Produção: Paul Thomas Anderson, Daniel Lupi e Joanne Sellar.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Após dirigir os maravilhosos “Boogie Nights” e “Magnólia”, o talentoso diretor Paul Thomas Anderson decidiu escrever, dirigir e produzir este interessante “Embriagado de Amor”, uma estranha comédia romântica que se destaca pelos personagens e situações pouco convencionais. E ainda que jamais alcance o resultado formidável dos dois filmes citados, o longa consegue ao menos cumprir o seu propósito e diverte o espectador, fugindo completamente dos clichês tão comuns neste tipo de filme.

O pequeno empresário Barry Egan (Adam Sandler) passa por dificuldades financeiras, mas encontra uma falha numa promoção de uma grande companhia aérea e vê nela a chance de garantir milhas para o resto de sua vida. Único homem de uma casa onde convive com sete irmãs, ele demonstra claro desconforto na presença das mulheres, algo que fica evidente quando ele conhece Lena (Emily Watson), a misteriosa mulher por quem se apaixona. O problema é que para ficar com ela, ele terá de superar uma gangue que entrou em sua vida após uma infeliz ligação feita por ele, um homem carente e solitário.

Escrito pelo próprio Paul Thomas Anderson, o criativo roteiro de “Embriagado de Amor” aborda temas universais como a solidão e a busca pelo amor verdadeiro, além de conter frases muito interessantes, que ajudam a definir a personalidade dos personagens (“Eu não sei se existe um problema, porque não sei como as outras pessoas são”, diz Barry, logo após quebrar o vidro da sala diante de suas irmãs). Mostra ainda como a carência afetiva pode levar o ser humano a correr riscos desnecessários, como fornecer dados pessoais por telefone, simplesmente para saciar a ânsia de finalmente ter companhia, nem que seja através da voz de uma mulher contratada para este tipo de serviço. Na direção, Anderson mantém sua característica principal, utilizando elegantes movimentos de câmera, como o freqüente uso da panorâmica e dos travellings. Além disso, suas tomadas geralmente são longas, ou seja, têm poucos cortes, o que é mérito também da boa montagem de Leslie Jones e Dylan Tichenor. Seus tradicionais planos-seqüência (tão marcantes em “Boogie Nights” e “Magnólia”) também aparecem em diversos momentos, como na saída do casal do restaurante, na chegada de Barry em casa com suas irmãs à espera e no jantar romântico do casal no Havaí. Observe ainda como Anderson também utiliza o segundo plano, como num dos momentos em que Barry faz suas peculiares compras no mercado, onde podemos notar uma pessoa vestida de vermelho ao fundo e, ainda que apareça totalmente fora de foco, podemos presumir que é Lena.

Outro plano emblemático é aquele em que Barry, solitário e carente, espera ansiosamente pela ligação da moça do tele sexo. Aqueles segundos parecem horas para Barry e para o espectador, graças ao silêncio da cena, que evita utilizar a trilha sonora, refletindo a sensação de angústia e solidão do personagem. Quando finalmente o telefone toca, Barry se mostra arredio às palavras sensuais da moça, preferindo simplesmente conversar com ela, o que evidencia ainda mais sua carência afetiva, algo também notável através da pilha de diferentes jornais em sua mesa. Não que seja algo anormal ter vários jornais na mesa, mas neste caso fica evidente que o rapaz procura toda e qualquer forma de distração para amenizar sua solidão. Observe o nervosismo de Barry durante esta conversa telefônica, especialmente no momento em que ele diz que sua “namorada” está fora da cidade. No dia seguinte, quando fala com a garota novamente pela manhã, ele começa a andar pra trás, tenso com o desenrolar da conversa. Desesperado e arrependido, Barry cancela o cartão, mas seus problemas haviam apenas começado. O nervosismo e a timidez de Barry são quase palpáveis, o que demonstra a qualidade da boa atuação de Adam Sandler. Repare sua revolta incontida ao responder para Lena que sua irmã era uma mentirosa durante um jantar, dando claros indícios da veracidade da história. Sandler alterna muito bem os momentos dóceis de Barry, especialmente ao lado de Lena, e os momentos explosivos, como quando soca um objeto até se machucar ou quando destrói o banheiro de um restaurante. Único homem da casa, Barry é constantemente sufocado pela pressão de suas sete irmãs, como podemos perceber quando tenta atender um cliente em seu trabalho e é constantemente interrompido por chamadas telefônicas de irmãs diferentes. “Quantas irmãs você tem?”, pergunta o cliente após a terceira ligação. “Sete”, responde ele, provocando o desespero no cliente e o riso no espectador. Em outro momento, o close de Anderson em seu rosto, durante uma discussão com uma de suas irmãs na loja, reflete o sentimento de sufoco de Barry. Finalmente, vale destacar também que Emily Watson se sai muito bem na pela da igualmente estranha Lena. Também tímida, como podemos notar nas conversas do casal, ela se revela o par perfeito para Barry, um jovem com claras dificuldades para se relacionar.

A tristeza do personagem principal é refletida até mesmo através dos aspectos técnicos do longa, como a direção de fotografia de Robert Elswit que, apesar de utilizar bastante o branco, destaca claramente o azul, normalmente associado à tristeza, algo reforçado pelo próprio terno constantemente utilizado por Barry (mérito também dos figurinos de Mark Bridges). Por isso, quando Lena surge em sua vida, sua roupa vermelha simboliza a paixão que se aproxima, dando vida aquele ambiente pouco colorido. E até mesmo o presente deixado por ela serve para alegrar a vida de Barry, introduzindo um pouco de música em seu triste cotidiano (Lena nunca assume explicitamente que deu o piano para Barry, mas uma conversa do casal sutilmente sugere que foi ela). E já que citamos a música, repare como a trilha sonora de Jon Brion adota um tom de urgência, principalmente nas discussões do rapaz com suas irmãs, transmitindo bem a aflição do personagem. Por outro lado, nos momentos em que ele está feliz, a trilha muda completamente, adotando um tom mais leve e descontraído. Já quando Barry é perseguido por uma caminhonete, sua fuga desesperada é embalada por uma trilha repleta de sons estranhos, refletindo sua confusão mental naquele instante. Esta fuga amedrontada, aliás, servirá de contraponto para o melhor momento do longa, quando Barry, agora fortalecido pelo amor que encontrara no Havaí, reage violentamente contra seus agressores da caminhonete. A câmera girando junto com o carro atordoa o espectador, que se choca com a explosiva reação de Barry. Por outro lado, o temperamento do rapaz já havia deixado indícios de que ele poderia, a qualquer momento, ter uma reação como aquela. Esta mudança de atitude também faz com que Barry viaje em busca da empresa que lhe provocou tantos problemas, o que resulta em outra cena fabulosa, que o coloca frente a frente com o cínico Dean Trumbell (Philip Seymour Hoffman, sempre ótimo). A expressão dissimulada de Trumbell contrasta com suas fortes palavras no telefone quando este discute com Barry, revelando o quanto aquele homem era imprevisível, mas ainda assim ele não se atreve a enfrentar a fúria do rapaz.

Obviamente, os momentos bem humorados não poderiam faltar numa comédia romântica, e eles aparecem, por exemplo, quando Lena diz para Barry que quis beijá-lo, fazendo com que ele saia correndo pelo prédio para encontrá-la (e neste momento, a montagem dinâmica colabora muito para o sucesso da cena). Além disso, a própria descoberta de Barry a respeito de uma promoção revela-se uma divertida sacada do rapaz (algo que Paul Thomas Anderson retirou de uma história real, acontecida nos EUA). O romantismo fica por conta da bela cena do beijo, embalada pela linda trilha sonora, que consolida o amor verdadeiro destas duas pessoas diferentes e que, justamente por isso, são encantadoras.

Paul Thomas Anderson utiliza seu talento como diretor para narrar a surreal história do estranho Barry neste divertido “Embriagado de Amor”, que apesar de eficiente, jamais alcança o resultado magnífico das outras obras do diretor. Mas nem por isso o resultado final deve ser depreciado, pois se trata de um filme imprevisível, repleto de personagens igualmente estranhos e encantadores, que cumpre muito bem o que se propõe a fazer e diverte o espectador. E assim como os personagens, o filme também parece estranho, mas satisfaz justamente por não repetir as desgastadas fórmulas de um gênero incapaz de se renovar.

Texto publicado em 28 de Janeiro de 2011 por Roberto Siqueira