BOOGIE NIGHTS – PRAZER SEM LIMITES (1997)

(Boogie Nights)

5 Estrelas 

Videoteca do Beto #170

Dirigido por Paul Thomas Anderson.

Elenco: Mark Wahlberg, Burt Reynolds, Julianne Moore, Heather Graham, Don Cheadle, John C. Reilly, Luis Guzmán, William H. Macy, Alfred Molina, Philip Seymour Hoffman, Melora Walters, Thomas Jane, Philip Baker Hall e Joanna Gleason.

Roteiro: Paul Thomas Anderson.

Produção: Paul Thomas Anderson, Lloyd Levin, John Lyons e Joanne Sellar.

Boogie Nights – Prazer sem Limites[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Paul Thomas Anderson tinha apenas um filme no currículo quando “Boogie Nights – Prazer sem Limites” chegou aos cinemas, chamando a atenção não apenas pelos virtuosismos técnicos e narrativos do diretor/roteirista, mas também por seu elenco igualmente numeroso e talentoso. Abordando um universo nada convencional e trazendo inúmeros personagens interessantes, o longa sinalizava claramente que um grande diretor estava chegando para ficar, confirmando ainda o enorme talento de atores como Mark Wahlberg, Julianne Moore, John C. Reilly, William H. Macy e Philip Seymour Hoffman, além é claro do veterano Burt Reynolds.

Escrito pelo próprio Anderson, “Boogie Nights” narra a trajetória de ascensão e queda de Eddie Adams (Mark Wahlberg), um jovem que é descoberto pelo grande cineasta pornô Jack Horner (Burt Reynolds) e acaba se tornando o grande astro do meio, já sob o nome artístico de Dirk Diggler. Lá, ele conhece a famosa Amber Waves (Julianne Moore), uma das muitas pessoas extravagantes que frequentam as agitadas festas recheadas com muito álcool e cocaína, além é claro do próprio sexo. Mas esta vida de excessos obviamente não permitiria que eles saíssem ilesos daquilo tudo.

O primeiro grande desafio de “Boogie Nights” começa no próprio roteiro, que consegue a proeza de criar uma estrutura narrativa interessante e desenvolver bem seus muitos personagens através de linhas narrativas paralelas que eventualmente se cruzam durante a trama. Além disso, Anderson tem o mérito de criar empatia com a plateia mesmo num universo claramente distante da maioria dos espectadores e que normalmente é visto com reservas pelo público através de personagens que fogem de estereótipos e se tornam mais humanos aos nossos olhos graças também ao talento dos atores.

Mas se o roteiro chama a atenção, atrás das câmeras Anderson não fica atrás, dando um show de direção com seus movimentos elegantes como o belíssimo plano-sequência que passeia pelos personagens espalhados na casa noturna e nos ambienta àquele submundo logo na abertura do longa. Movimento de câmera sempre chamativo, o plano-sequência (que viria a se tornar uma marca registrada do diretor) surge em outros diversos momentos de “Boogie Nights”, como na primeira festa na casa de Jack e na excelente sequência em que acompanhamos a trajetória de Bill (William H. Macy) na noite em que ele mata sua mulher e se suicida. O diretor é competente também na utilização de técnicas mais simples, como os closes em objetos que muitas vezes enfatizam a sensibilidade aguçada daqueles personagens, os inúmeros planos que trazem o uso explícito de cocaína e ilustram a trajetória de autodestruição daquele grupo e os planos fechados que realçam o espanto das pessoas diante dos atributos físicos de Eddie que garantem seu sucesso na indústria pornográfica.

Passeia pelos personagensPrimeira festa na casa de JackNoite em que ele mata sua mulherContando com a ajuda do diretor de fotografia Robert Elswit, Anderson cria um universo colorido que, além de ilustrar a intensidade com que aquelas pessoas viviam e enxergavam o mundo, ainda mostra-se coerente com a época em que se passa à narrativa. No entanto, o diretor e seu diretor de fotografia são inteligentes o bastante para mudar este aspecto quando necessário, como na briga de Eddie com sua mãe em que os personagens surgem mergulhados nas sombras, ampliando a sensação sufocante do momento. Repare ainda como a imagem surge granulada em alguns instantes, especialmente quando vemos as filmagens dos controversos longas dirigidos por Jack – numa alusão a natureza “B” destas produções -, e compare com as cenas ultra coloridas e repletas de luzes na casa noturna e nas festas.

Briga de Eddie com sua mãeFilmagens dos controversos longasLuzes na casa noturnaColoridos também são os figurinos de Mark Bridges, que reforçam o visual bem anos 70, assim como a fantástica trilha sonora de Michael Penn é muito coerente com a época, com suas músicas animadas e chamativas. Realçando traços da personalidade de Eddie através da decoração de seu quarto repleto de pôsteres de carros, mulheres e Bruce Lee, o design de produção de Bob Ziembicki mantém a coerência na nova casa dele, com cômodos chamativos e nada discretos como o quarto oriental que escancara sua admiração pelo ícone das artes marciais, inteligentemente demonstrada anteriormente e que refletiria também em sua carreira como ator depois que ele viesse a ganhar poder e passasse a interferir na trama das produções.

Coloridos figurinosPôsteres de carros, mulheres e Bruce LeeQuarto orientalEssencial num filme com tantas linhas narrativas paralelas, a montagem de Dylan Tichenor consegue evitar que a narrativa se torne confusa, mantendo o espectador interessado no que acontece mesmo com tantos personagens e ainda nos brindando com elegantes transições como aquela que sai de Jack sentado na cadeira observando o desempenho de Eddie e vai para a mãe do garoto sentada na cadeira esperando sua chegada.

E já que falamos em desempenho, a grande atuação de praticamente todo o elenco de “Boogie Nights” dificulta muito a tarefa de apontar destaques. Mesmo atores com participações menores chamam a atenção, como é o caso de William H. Macy na pele de Bill, o pobre homem constantemente humilhado pela esposa que encontra uma maneira trágica de solucionar a situação. John C. Reilly confirma seu talento como o acelerado Reed e Philip Seymour Hoffman está excelente como o afeminado Scotty J., demonstrando com sutileza sua atração por Dirk através do olhar e da expressão corporal quanto está diante dele, destacando-se ainda na cena do carro novo em que tenta beijar o amigo a força e se arrepende logo em seguida.

Bill constantemente humilhado pela esposaAcelerado ReedAfeminado Scotty J.Entre os personagens com mais tempo em cena, Burt Reynolds tem presença marcante como o centrado Jack Horner, o cérebro que faz toda aquela engrenagem funcionar e que sonha em realizar um filme pornográfico significante, mas que tem dificuldade para compreender os caminhos que a indústria seguiria após tantos anos de sucesso. Quase sempre ao seu lado, Julianne Moore dá vida a doce e sensual Amber com muita competência, comovendo a plateia quando assume sua verdadeira identidade e demonstra o quanto Maggie sofre por não poder ver seu filho, especialmente na cena da audiência que culmina em seu choro devastador. Tanto ela quanto a Patinadora vivida por Heather Graham são pessoas carentes que encontram consolo uma na outra, mas Amber é mais complexa, exalando este lado terno e maternal com a mesma naturalidade com que lida com o vício em cocaína e o sexo profissional. E no centro de todo este turbilhão está Mark Wahlberg, que constrói o astro Dirk com precisão, passando do garoto simpático e carismático que conquista as pessoas em volta para um egocêntrico e nojento superstar de maneira convincente.

Centrado Jack HornerDoce e sensual AmberAstro DirkNum momento brilhante, Anderson expõe a decadência geral daquelas pessoas através de duas ações paralelas que dialogam entre si, com Jack e a Patinadora espancando um homem na rua exatamente da mesma forma que um grupo de jovens faz com Dirk, como se fosse um acerto de contas entre os pilares da discussão que levou a destruição da bem sucedida parceria entre eles – um momento, aliás, que exemplifica bem a violência gráfica que permeia a narrativa. Além disso, o diretor também brinda a plateia com cenas extremamente tensas, como o assalto à loja de Donut´s e especialmente a angustiante negociação na casa de um traficante, na qual a música alta, os explosivos e os próprios diálogos deixam personagens e plateia com os nervos à flor da pele. E finalmente, a conversa de Dirk com o espelho exatamente como fez Jake La Motta em “Touro Indomável” faz uma referência óbvia à outra trajetória de ascensão e queda.

Jack e a Patinadora espancando um homemGrupo de jovens agride DirkAssalto à loja de Donut´sApós tantas menções ao órgão sexual do garoto, Paul Thomas Anderson finalmente revela a razão de seu sucesso naquela indústria, numa cena explícita que poderia soar gratuita, mas que neste caso – com o perdão do trocadilho – se encaixa perfeitamente à narrativa. Mas se a superficialidade é algo inerente às produções pornográficas, “Boogie Nights” tem muito mais a dizer do que sua embalagem chamativa faz parecer, trazendo reflexões a respeito de questões delicadas como a dependência química e o abuso de menores, além de tratar os excessos dos personagens e suas consequências de maneira ambígua.

Se por um lado temos a maneira preconceituosa como a sociedade vê aquele mundo na audiência de Maggie e na tentativa frustrada de conseguir crédito para abrir uma loja de aparelhos de som de um ator pornô (Don Cheadle), por outro vemos como aquela vida de excessos pode realmente ser muito prejudicial – e o momento mais emblemático neste sentido é quando Maggie é acusada em juízo de usar drogas e prontamente nega, sabendo que a verdade neste caso só a afastaria ainda mais do filho. É como se “Boogie Nights” erguesse um painel com os prós (glamour, dinheiro, carrões, sexo fácil, festas) e contras (baixa escolaridade, preconceito, afastamento da família, dificuldade para sair do ramo, vício em drogas) deste complexo e desconhecido universo.

Angustiante negociação na casa de um traficanteTentativa frustrada de conseguir créditoMaggie é acusada em juízo de usar drogasClaramente influenciado por cineastas geniais como Martins Scorsese (no aspecto visual) e Robert Altman (na estrutura narrativa), Paul Thomas Anderson fincou de vez o pé na indústria de Hollywood com o belíssimo trabalho feito em “Boogie Nights”, demonstrando capacidade para conduzir um grande elenco e extrair excelentes atuações de praticamente todos eles. O resultado é um filme simultaneamente delicioso e sombrio, que aborda um segmento polêmico da indústria sem jamais soar panfletário ou careta, mas que nem por isso esconde os riscos que oferece para aqueles que decidem se aventurar nele.

Boogie Nights – Prazer sem Limites foto 2Texto publicado em 09 de Junho de 2013 por Roberto Siqueira

DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE (1995)

(The Basketball Diaries)

 

Videoteca do Beto #127

Dirigido por Scott Kalvert.

Elenco: Leonardo DiCaprio, Lorraine Bracco, Mark Wahlberg, James Madio, Patrick McGaw, Juliette Lewis, Michael Imperioli e Ernie Hudson.

Roteiro: Bryan Goluboff, baseado em romance de Jim Carroll.

Produção: Liz Heller e John Bard Manulis.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Freqüentemente, Leonardo DiCaprio é acusado por cinéfilos desavisados de ser apenas um rostinho bonito que explodiu após o sucesso avassalador de Titanic, como se as excelentes escolhas que ele faz na carreira e o óbvio talento demonstrado não significassem nada. Entretanto, basta assistir aos filmes anteriores ao sucesso de James Cameron para constatar como ele já demonstrava talento muito antes da fama, como comprova este “Diário de um Adolescente”, drama inspirado na história real do músico e poeta Jim Carroll.

Escrito por Bryan Goluboff baseado em romance do próprio Carroll, “Diário de um Adolescente” mostra a trajetória nada agradável de seu protagonista (Leonardo DiCaprio) rumo ao fundo do poço, após conhecer e se encantar pelo mundo das drogas. Mas, se por um lado o envolvimento pessoal do verdadeiro Carroll confere peso à narrativa – os trechos narrados por DiCaprio, por exemplo, foram gravados pelo próprio poeta -, por outro a forma exagerada que estes fatos são apresentados distancia o longa da realidade, ainda que Goluboff acerte ao retratá-lo como um jovem talentoso, já que Carroll, além de liderar a banda “The Jim Carroll Band”, é responsável por seis livros que vão de poemas a autobiografias.

Responsável por captar em imagens esta alma romântica do protagonista e, ao mesmo tempo, retratar a degradação física e psíquica do personagem, Scott Kalvert se sai razoavelmente bem na direção, mas falha na condução de aspectos relevantes da narrativa que abordaremos em instantes. Entretanto, o diretor é competente na criação de cenas de impacto, especialmente quando retrata os efeitos do uso das drogas, errando em raros momentos como a pouco convincente briga dos garotos na saída de um restaurante. O diretor acerta também na condução dos jogos de basquete, imprimindo um bom ritmo e transmitindo o calor da partida com eficiência ao colocar a câmera na linha de visão dos jogadores – colabora também o bom design de som, que cria o ambiente ideal para os jogos. Caprichando também na estilização de muitas cenas, como no sonho do massacre na escola em que Jim entra em câmera lenta atirando nos alunos, o diretor reequilibra a balança ao exagerar em outros instantes, como no jogo de basquete embalado pela clássica “Riders on the Storm”, do The Doors, em que os garotos mal conseguem pegar na bola. E são justamente estes exageros que distanciam a mensagem transmitida pela narrativa da realidade e reduzem o impacto do filme sobre o espectador.

Kalvert conta também com o apoio técnico de sua equipe para transmitir algumas das sensações dos personagens, através das ruas sujas da escola e do bairro onde Jim vive que contrastam com as ruas limpas e largas que cercam o ginásio de esportes, ilustrando onde ele se sentia feliz (mérito da direção de arte de Christopher Nowak). Da mesma forma, a trilha sonora agitada de Graeme Revell, composta por algumas músicas da banda do próprio Jim, funciona em muitos momentos ao transmitir a adrenalina daqueles jovens, assim como a fotografia de David Phillips acerta ao iluminar os momentos iniciais, quando os garotos se divertem jogando basquete e pulando no rio, contrastando diretamente com a escuridão da fase decadente do grupo, notável após a morte de Bobby (Michael Imperioli), com a noite fria e chuvosa e os figurinos pesados dos personagens ilustrando a dor de Jim (figurinos de David C. Robinson). Aliás, o próprio diretor se encarrega de ilustrar esta diferença, filmando inicialmente com a câmera levemente inclinada em ângulo baixo enquanto acompanha os personagens saindo da escola, sob a luz do sol e embalados pela trilha agitada, transmitindo a sensação de poder que aqueles jovens estavam sentindo, o que contrasta com os closes freqüentes que realçam a degradação deles no terceiro ato e transmitem a sensação claustrofóbica pretendida por Kalvert.

Infelizmente, Kalvert e seu montador Dana Congdon erram ao acelerar demasiadamente a transformação de Jim de um garoto normal em viciado, apresentando uma droga após a outra rapidamente, como se quisessem levá-lo logo ao fundo do poço, o que soa forçado e pouco convincente (repare como ele salta da cocaína para a heroína e as drogas sintéticas em poucos minutos). Por outro lado, a montagem demonstra elegância em algumas transições, como quando a imagem da mãe de Jim é substituída pela imagem da virgem Maria. E se erra na velocidade com que conduz o processo de degradação de Jim, Kalvert acerta na maneira cadenciada com que desenvolve o relacionamento dos quatro amigos, aproximando aquele grupo do espectador e fazendo com que este se importe com eles.

Obviamente, esta aproximação conta também com o talento do ator responsável por viver o problemático protagonista. Com uma atuação eficiente e alguns momentos realmente marcantes, DiCaprio carrega o papel com facilidade, numa atuação que já dava sinais do grande ator que ele viria a ser – algo, aliás, que já havia acontecido antes em filmes como “Gilbert Grape, aprendiz de sonhador” e “O Despertar de um Homem”. Repare, por exemplo, sua convincente reação após usar cocaína, tremendo, fungando e mexendo a língua como quem tem a boca seca, mal conseguindo abrir os olhos enquanto procura por remédios no banheiro. Transitando com naturalidade do dócil Jim do início para o agressivo garoto que encerra o longa, o ator contorna os problemas causados pela citada transformação acelerada do personagem e convence no papel. Entre os momentos impressionantes de sua atuação, certamente a forte crise de abstinência na casa de Reggie (Ernie Hudson) e a comovente cena em que volta pra casa e implora pela ajuda da mãe (Lorraine Bracco) se destacam, com o ator transmitindo a dor do personagem de maneira muito convincente.

Também demonstrando talento precocemente, Mark Wahlberg convence como o valentão Mickey, o mais conturbado dos amigos de Jim, saindo-se bem em momentos difíceis como nas duas vezes em que eles precisam abandonar a cena de um crime – repare sua voz ofegante num bar após abandonar Pedro, indicando seu cansaço pela corrida e sua tensão. Vale destacar ainda a boa atuação de Ernie Hudson, que confere firmeza e carisma ao ex-viciado Reggie, e Juliette Lewis que, como sempre, se sai muito bem no papel de drogada, mas a redenção de sua Diane soa artificial, especialmente pela rapidez com que esta transformação acontece. Fechando o elenco, James Madio vive o inseguro Pedro e Patrick McGaw interpreta Neutron, o único dos quatro amigos que não se afunda nas drogas.

De certa maneira, “Diário de um Adolescente” tenta forçar uma mensagem moralista, falhando justamente por se distanciar da realidade através de alguns exageros. Por isso, dificilmente alguém evitará o mundo das drogas após assisti-lo. Em todo caso, se falha em seu propósito de “ensinar” os jovens sobre os perigos das drogas, ao menos sua narrativa tem força suficiente para nos envolver.

A cena final, com Jim falando diretamente para a câmera, comprova a intenção de doutrinar a platéia de “Diário de um Adolescente”, mas este excesso de moralismo não arruína completamente a experiência graças à ótima atuação do elenco e a profundidade dramática da história que o inspirou.

Texto publicado em 21 de Maio de 2012 por Roberto Siqueira

O VENCEDOR (2010)

(The Fighter)

 

Filmes em Geral #86

Dirigido por David O. Russell.

Elenco: Mark Wahlberg, Christian Bale, Amy Adams, Melissa Leo, Jack McGee, Melissa McMeekin, Bianca Hunter, Erica McDermott, Jill Quigg, Dendrie Taylor, Kate B. O’Brien, Jenna Lamia, Mickey O’Keefe, Frank Renzulli, Caitlin Dwyer e Ross Bickell.

Roteiro: Scott Silver, Paul Tamasy e Eric Johnson.

Produção: Dorothy Aufiero, David Hoberman, Ryan Kavanaugh, Todd Lieberman, Paul Tamasy e Mark Wahlberg.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

É sempre interessante ver um bom filme de boxe – não fosse assim, este esporte não teria inspirado tantos filmes de sucesso ao longo da história do cinema. Ainda mais interessante é quando o esporte funciona apenas como pano de fundo para um complexo estudo de personagens, como é o caso deste “O Vencedor”, que, além de trazer a história real de dois irmãos boxeadores e sua complicada família, ainda nos apresenta um elenco afinado, liderado pelo ótimo Mark Wahlberg e que conta ainda com a excepcional atuação de Christian Bale.

Escrito por Scott Silver, Paul Tamasy e Eric Johnson, “O Vencedor” conta a história real dos irmãos Dicky Eklund (Christian Bale) e Micky Ward (Mark Wahlberg), quando o primeiro, famoso por ter derrotado o campeão mundial Sugar Ray e hoje viciado em drogas, está treinando o segundo na pequena cidade de Lowell, sob o olhar atento da mãe e empresária Alice (Melissa Leo). Só que os problemas do irmão e a influência de sua namorada Charlene (Amy Adams) fazem Micky buscar uma alternativa para levar a carreira de forma mais profissional, criando um conflito com seus familiares.

Apresentando uma família disfuncional – um tema apreciado pelo cinema “alternativo” de Hollywood -, a narrativa de “O Vencedor” trabalha cuidadosamente no estabelecimento das relações entre os personagens durante o primeiro ato, preparando o espectador para os conflitos que surgirão, o que, por exemplo, aumenta o impacto da reação de Micky após a prisão de Dicky, que delata sua intenção de abandonar o apoio da família e buscar uma alternativa para a carreira. Quando isto ocorre, o espectador pode até se surpreender pela forma ríspida como Micky responde o irmão, mas compreende perfeitamente sua decisão justamente por já estar familiarizado com seus problemas. Da mesma forma, a platéia se surpreende novamente com a reaproximação deles no terceiro ato, exatamente pela maneira realista que a narrativa aborda o conturbado relacionamento entre eles, o que também é bastante interessante.

Ao priorizar (corretamente) o conturbado relacionamento de Micky e sua família, a montagem de Pamela Martin abre pouco espaço para as cenas de luta, que ainda assim surgem intensas e realistas, graças à câmera movimentada de Russel e ao excepcional design de som, que nos ambienta perfeitamente através do barulho dos golpes, gemidos, gritos da torcida e vozes dos narradores. Vale destacar também como Martin e Russel cobrem as primeiras vitórias de Micky com dinamismo, saltando na narrativa de maneira elegante, e contando ainda com a agitada trilha sonora de Michael Brook, que ilustra a euforia do personagem em seu momento de virada na carreira. Variando entre músicas agitadas, que combinam perfeitamente com a natureza destrutiva do boxe, e canções melancólicas como “Strip my mind” (dos Chili Peppers), a trilha ilustra perfeitamente o carrossel de emoções enfrentado pelo protagonista.

Utilizando imagens de arquivo da verdadeira luta entre Dicky e Sugar Ray, a fotografia de Hoyte Van Hoytema busca manter o realismo através do uso de uma paleta natural, que chega a ser crua em diversos momentos, conferindo um ar documental ao longa. Esta abordagem é confirmada também na direção segura de David O. Russell, que utiliza a câmera de mão constantemente, buscando justamente reforçar a atmosfera realista que a narrativa pede, como na conturbada cena da prisão de Dicky, que ganha ainda mais adrenalina em sua câmera agitada. Além disso, o diretor busca nos aproximar de seus personagens ao abusar dos closes, como nas intensas discussões entre Charlene, Micky e sua conturbada família e na forte cena da crise de abstinência de Dicky.

Apresentando um impressionante emagrecimento que chega perto do inacreditável resultado alcançado no ótimo “O Operário”, Bale interpreta o despojado Dicky com intensidade, movimentando-se constantemente e até mesmo soando um pouco freak, mas se destaca mesmo ao demonstrar muito bem os efeitos do crack através do olhar arregalado, da fala acelerada e da falta de sincronismo quando conversa com alguém – repare como ele mal consegue olhar diretamente para as pessoas, como quando discute com Micky na casa de sua mãe, mas ainda assim é capaz de prestar atenção na conversa. Sempre agitado e em constante movimento, Dicky vive da histórica vitória contra Sugar Ray, talvez porque sua própria família parece não perceber que o tempo passou e o boxeador vitorioso do passado foi substituído por um homem problemático que necessita de ajuda.

Inicialmente mais contido que o irmão, Micky lentamente se rebela contra a família opressora e conquista seu espaço, algo que Wahlberg ilustra muito bem demonstrando confiança no tom de voz e no olhar, como em sua discussão com Dicky dentro do presídio. Esta mudança é perfeitamente compreensível diante da situação complicada em que ele vive. Rodeado por sete irmãs e uma mãe superprotetora, Micky ainda sente a pressão de ter que ser vencedor no boxe assim como foi seu irmão – e novamente, o ator transmite esta aflição do personagem muito bem em seu comportamento inicialmente retraído. Além disso, a amargura de sua ex-esposa indica que eles tiveram sérios problemas no passado, o que só piora sua situação. Talvez por isso ele encontre conforto em Charlene, que representa a tão desejada paz que ele procura e não consegue encontrar em sua família.

Sensual e bastante direta, a Charlene de Amy Adams surge confiante desde o instante em que aceita o convite de Micky para sair, crescendo ao longo da narrativa ao enfrentar a família do boxeador sem medo, o que leva a um inevitável confronto na frente de sua casa que chega às vias-de-fato – numa cena tensa e bem conduzida por Russel. Adams se sai maravilhosamente bem nos afiados diálogos que precedem o conflito, jamais se intimidando diante da resistência das ciumentas irmãs dele, e sua personagem ainda protagoniza um momento curioso, quando reclama de filmes legendados, mostrando uma característica do povo americano (e, infelizmente, que aos poucos está dominando o espectador brasileiro também). Também despojada e até mesmo intrometida, a falastrona Alice de Melissa Leo é a típica mãe superprotetora que não enxerga o quanto interfere na vida de seus filhos – e o fato de fechar os olhos para o problema de Dicky só ressalta seu medo de “perder” a proximidade que tem com eles. Mas, apesar de tudo, ela realmente ama os filhos e expressa isto de corpo e alma, vibrando em cada luta de Micky – ainda que arranje lutas desiguais apenas por dinheiro – e acompanhando Dicky numa canção com uma voz tremula que reflete sua tristeza diante da situação do filho. Por isso, chega a ser tocante o momento em que ela, após ver as filhas brigando com Charlene, demonstra não compreender porque Micky se afasta dela, evidenciando sua cegueira quanto ao próprio comportamento superprotetor.

Além de fazer um belo estudo dos irmãos Dicky e Micky, “O Vencedor” ainda acerta ao mostrar os devastadores efeitos do crack, resumidos no momento em que a HBO transmite um filme sobre Dicky e toda a sua família se envergonha do que está vendo – incluindo o próprio ex-boxeador. Ao levar a questão a sério sem jamais julgar o viciado e, especialmente, ao mostrá-lo como um ser humano normal, capaz de vencer um título mundial no passado e de ajudar o irmão no presente, o filme aborda o vício de maneira adulta, estimulando a discussão e a reflexão a respeito do tema.

Apesar de discutir rispidamente com o irmão, Micky ouve seus conselhos e acaba vencendo a luta contra Sanchez por causa disto. Mas nem por isso ele aceita o irmão de volta quando ele sai da prisão e revela sua insatisfação batendo nele num treinamento, o que gera outra discussão forte que culmina no rompimento de Micky com a namorada e o treinador Mickey O’Keefe (o próprio). E, vejam só, é justamente Dicky quem trata de reatar as relações, confirmando a ambigüidade dos personagens de “O Vencedor”. Aqui não existe certo e errado, pois todos pensam estarem agindo corretamente, por mais absurdas que pareçam suas atitudes. Esta ambigüidade chega ao auge na luta pelo título mundial, quando mesmo contrariados eles se juntam em torno de um único objetivo: fazer Micky ser campeão. Sugando o espectador pra dentro do ringue desde o canto entoado pelos irmãos ao lado do treinador O’Keefe, a luta final é marcante e repleta de energia, impressionando ainda por revelar a incrível mudança física de Wahlberg, que surge musculoso e bem diferente do homem barrigudo que acompanhamos em determinado momento da narrativa. E novamente subvertendo nossa expectativa, Dicky se confirma como peça fundamental na vitória do irmão, estimulando-o com palavras e gritos de incentivo o tempo todo.

Após a vitória, todos sobem juntos no ringue e deixam os problemas pelo menos por um instante para trás, num momento emblemático que fecha muito bem “O Vencedor”. Contando com excelentes atuações e trazendo uma história real, o longa dirigido por David O. Russell entra para a galeria dos bons filmes de boxe, para a alegria dos fãs do esporte – e dos cinéfilos também.

Texto publicado em 23 de Fevereiro de 2012 por Roberto Siqueira