(Meet John Doe)
Filmes em Geral #106
Dirigido por Frank Capra.
Elenco: Gary Cooper, Barbara Stanwyck, Walter Brennan, Edward Arnold, Spring Byington, Gene Lockhart, Sterling Holloway, James Gleason, Rod La Rocque e Regis Toomey.
Roteiro: Robert Riskin, baseado em história de Richard Connell e Robert Presnell Sr.
Produção: Frank Capra e Robert Riskin (não creditados).
[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].
Reconhecido pela capacidade de conduzir filmes com mensagens otimistas que ilustravam como poucos o sonho norte-americano daquela época, Frank Capra era um diretor popular, é verdade, mas que tinha também o reconhecimento da crítica justamente pela maneira como utilizava estas características marcantes para realizar bons filmes. Infelizmente, isto não é o que acontece em “Adorável Vagabundo”, longa sofrível estrelado por Gary Cooper e Barbara Stanwyck que, além de narrar uma história extremamente previsível, ainda peca pela abordagem exageradamente melodramática do diretor.
O roteiro escrito por Robert Riskin com base em história de Richard Connell e Robert Presnell Sr. até parte de uma premissa interessante: após ser demitida pelo novo editor do jornal onde trabalhava, Ann Mitchell (Barbara Stanwyck) publica sua última matéria contando a história de John Doe, um homem amargurado que iria suicidar-se na noite do natal como um protesto contra o que ele achava que estava errado na sociedade. A coluna chama a atenção do público e de toda a mídia, mas o problema é que Ann tinha inventado toda a história e, diante da enorme repercussão da matéria, ela é chamada de volta ao jornal. Após decidirem levar a farsa adiante, eles passam a procurar por alguém que personifique este personagem inventado e escolhem John Willoughby (Gary Cooper), que assume a nova personalidade e passa a rodar o país levando adiante a ideologia criada para o personagem.
Nos primeiros planos de “Adorável Vagabundo”, Capra faz questão de mostrar centenas de pessoas felizes trabalhando ou servindo ao exército, passando a ideia que será à base da narrativa: a força do cidadão comum. Em seguida, a simples troca de uma placa com dizeres sobre a imprensa livre já anuncia a mudança no comando de um jornal que culminará na demissão de todos os 40 funcionários e levará Ann a escrever a matéria que revolucionará o país. E então os diversos problemas do longa vem à tona, a começar por piadas nada inspiradas como no embaraçoso monólogo de Bert (Regis Toomey) na prefeitura e na chegada de John ao jornal, quando um dos presentes diz que não se suicidaria no natal por ser supersticioso.
Capra também erra a mão quando tenta colocar peso dramático na narrativa, apelando para a trilha sonora de Dimitri Tiomkin em diversos momentos desnecessários e acertando em raras ocasiões, como quando a trilha inspiradora embala o momento em que a mãe de Ann entrega o diário do pai contendo o texto que inspiraria o discurso de esperança de John Doe. Aliás, esta abordagem melodramática ganha força no próprio visual do filme. Repare, por exemplo, como Capra e seu diretor de fotografia de George Barnes procuram valorizar os rostos das pessoas comuns, expondo suas imperfeições através da maneira como iluminam as cenas e forçando nossa identificação com eles, até por contrastar diretamente com as cenas dominadas pelos tons mais escuros que acompanham os homens poderosos como Norton (Edward Arnold), o dono do jornal.
Por outro lado, “Adorável Vagabundo” também tem sua parcela de acertos. É interessante, por exemplo, acompanhar a guerra nos bastidores da imprensa e os interesses de Norton naquela manifestação popular. Repare também como os instantes que antecedem o primeiro discurso de John Doe são tensos justamente pela maneira que Capra conduz a sequência, não permitindo que o espectador antecipe qual dos dois textos ele vai ler – e aqui vale notar o trabalho de Cooper, que gagueja no início, como se não soubesse exatamente o que fazer, mas com o passar do tempo ganha confiança e começa a gostar da reação das pessoas àquelas palavras, falando com mais firmeza e empolgação. Seria uma grande cena, não fosse o conteúdo da mensagem, que joga para o próprio povo a responsabilidade de buscar soluções para a resolução de seus problemas, praticamente isentando os políticos de seus deveres diante da sociedade.
O problema do roteiro está justamente em seu discurso previsível e apelativo, que dificulta bastante o trabalho dos atores, ainda que o elenco tenha gente talentosa como Gary Cooper e Barbara Stanwyck. Vivendo a esperta e ambiciosa Ann, Stanwyck oscila entre bons momentos, como quando se emociona ao ouvir as palavras de seu pai sendo lidas por Doe, e cenas embaraçosas, como aquela que encerra o longa (voltaremos a ela em instantes). Já a atuação mais contida de Gary Cooper cai bem no personagem, um homem simples que é lentamente sugado pra dentro daquele turbilhão e acaba se envolvendo sem perceber exatamente o que estava acontecendo. Repare, por exemplo, como Cooper olha para a comida com desejo e para os objetos de decoração com deslumbramento quando chega ao jornal, saindo-se bem numa das raras vezes em que o longa consegue nos fazer rir, quando Doe está distraído mexendo na estatua de uma mulher nua e se assusta ao ouvir um empolgado “Olá!”, sem notar que Ann havia chegado ao local.
No restante do elenco, Edward Arnold compõe um Norton imponente com sua voz grave e em tom sempre controlado, destacando-se em momentos especiais como o jantar em que presenteia uma desconfiada Ann e anuncia seu plano eleitoral, provocando a mesma reação nela e na plateia: “Uau!”. Além disso, tanto Arnold quanto Cooper têm um bom desempenho na forte discussão entre John e Norton durante a reunião do poderoso dono do jornal com importantes homens da cidade que precede o clímax da narrativa. Mas o grande destaque do elenco vai mesmo para a atuação de James Gleason na cena em que Connell revela o plano de Norton para Doe num bar, soando convincente como um homem amargurado diante de tudo que estava prestes a acontecer e emocionando quando menciona a morte do pai. No entanto, o problema desta cena reside no teor nacionalista e recheado pelo idealismo norte-americano tão comum na filmografia de Capra, evidenciado nas diversas menções do personagem ao “país livre” e à liberdade de expressão.
Essencial para o sucesso de sequências como aquela que acompanha as viagens de John sobrepondo planos e imagens do mapa dos EUA num ritmo empolgante, a montagem de Daniel Mandell é responsável também pela sensação de desconforto causada no tumulto durante a “Convenção John Doe”, obtida através da rápida justaposição de planos e dos próprios enquadramentos confusos de Capra – que, se soam deselegantes, ao menos tem função narrativa. Além do rápido plano geral empregado por Capra que revela o grande número de pessoas no local, o que impressiona durante a “Convenção John Doe” é o design de som, que capta com precisão o burburinho da plateia, a chuva e a distorção do microfone, além da revolta que explode na multidão após os homens comandados por Norton cortarem os microfones e incentivarem as vaias.
Infelizmente, Capra pesa demais a mão no ato final e, além do visual exageradamente escuro da última cena no alto do prédio, o tom carregado pelo melodrama excessivo e a atuação over de Stanwyck criam um dramalhão típico das novelas mexicanas.
Conhecido como um grande defensor dos ideais norte-americanos, o ítalo-americano Frank Capra desta vez pesou a mão e fez deste “Adorável Vagabundo” um longa decepcionante, com uma mensagem óbvia demais e incrivelmente piegas.
PS: A ideologia associada a John Doe torna o assassino de “Seven” ainda mais especial pela ironia que a escolha de seu nome naturalmente carrega.
Um comentário sobre “ADORÁVEL VAGABUNDO (1941)”