TOY STORY 2 (1999)

(Toy Story 2)

5 Estrelas 

 

Videoteca do Beto #233

Dirigido por John Lasseter, Ash Brannon e Lee Unkrich.

Elenco: Vozes de Tom Hanks, Tim Allen, Joan Cusack, Don Rickles, Jim Varney, Kelsey Grammer, John Ratzenberger, Wallace Shawn, Annie Potts, John Morris, Laurie Metcalf, Estelle Harris, R. Lee Ermey, Andrew Stanton, Joe Ranft, Rodger Bumpass, Frank Welker e Robert Goulet.

Roteiro: Andrew Stanton, Rita Hsiao, Doug Chamberlin e Chris Webb, baseado em argumento de John Lasseter, Pete Docter, Ash Brannon e Andrew Stanton.

Produção: Karen Robert Jackson e Helene Plotkin.

toy-story-2[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Quatro anos após revolucionar a animação no cinema e inaugurar a quase impecável filmografia da Pixar, era inevitável que o mega sucesso de público e crítica “Toy Story” ganhasse uma continuação. O grande temor, no entanto, era que esta continuação fosse simplesmente uma mera desculpa para ganhar dinheiro, desperdiçando o enorme potencial dramático que o material original continha. Felizmente, a Pixar deixou claro desde então que, por mais que erre aqui ou ali, sua capacidade de acertar é infinitamente maior, entregando uma continuação admirável, superior tecnicamente e nivelada em termos narrativos ao seu antecessor.

Escrito a oito mãos por Andrew Stanton, Rita Hsiao, Doug Chamberlin e Chris Webb, “Toy Story 2” nos leva novamente ao quarto de Andy (voz de John Morris), onde seus divertidos brinquedos se preparam para o acampamento de verão em que Woody (voz de Tom Hanks) mais uma vez acompanharia seu dono. No entanto, após sofrer um acidente e ter seu braço direito rasgado, Woody é deixado para trás e acaba sendo sequestrado por um colecionador de brinquedos, levando Buzz (voz de Tim Allen), Rex (voz de Wallace Shawn) e companhia a partirem em busca de seu resgate.

Impecável tecnicamente, o trabalho dos animadores da Pixar se destaca logo nos primeiros instantes, numa sequência de abertura inspirada que nos leva pela pequena aventura de Buzz no espaço e culmina num final muito criativo, já prendendo a atenção da plateia desde o início e resgatando a relação de cumplicidade entre aqueles queridos personagens e o espectador. Claramente trazendo uma evolução gráfica em relação ao filme anterior, a qualidade da animação impressiona pela riqueza de detalhes, como quando os olhos de Rex se movem quando a mãe de Andy (voz de Laurie Metcalf) recolhe os brinquedos para colocar na venda de usados, refletindo sua aflição ao sentir a aproximação dela.

Ainda na parte técnica, a fotografia de Sharon Calahan traz uma abordagem mais sombria em alguns momentos ao adotar cores escuras, como no clímax no aeroporto ou no duelo entre Buzz e o Imperador Zurg (voz de Andrew Stanton, que viria a dirigir filmes da Pixar depois). Além disso, acerta em cheio na escolha do sépia para realçar a aura nostálgica do passado de Woody (e do western de maneira geral), contrastando com o colorido do quarto de Andy e o dourado que embala a sequência mais emocionante do filme (voltaremos a ela em instantes). Já a montagem de Edie Bleiman, David Ian Salter e Lee Unkrich, além de imprimir um ritmo empolgante à narrativa, acerta ainda em momentos delicados e elegantes, como a transição do desenho do “homem-galinha” da tela de um brinquedo para o homem real.

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Transitando muito bem entre a comédia e a melancolia, os diretores John Lasseter, Ash Brannon e Lee Unkrich adotam a mencionada abordagem mais sombria nesta continuação, trazendo novos personagens e elementos narrativos que fortalecem a trajetória de Woody, Buzz e os demais carismáticos brinquedos, tornando-os ainda mais próximos de todos nós. Apostando no infalível sentimento nostálgico que os brinquedos evocam nos adultos e em inspiradas gags que divertem as crianças, o longa não erra em praticamente nada nos aspectos narrativos e temáticos, graças a condução dos diretores e a qualidade do roteiro.

Entre os inúmeros momentos engraçados, gosto particularmente daquele em que o porquinho (voz de John Ratzenberger) troca de canais rapidamente para achar o “homem-galinha” com o Rex desesperado ao seu lado. A sequência na loja de brinquedos também é muito inspirada e aproveita praticamente todas as oportunidades que a situação oferece para nos fazer rir, passando pelo corredor do Buzz Lightyear, o imperador Zurg e principalmente na hilária passagem pelas Barbies. Aqui, aliás, acontece uma das diversas referências aos grandes clássicos do passado no plano que realça o T-Rex no retrovisor do carro exatamente como ocorria em “Jurassic Park”. Entre outras referências, temos ainda os arremessos com o pai em “Campo dos Sonhos”, as notas musicais da trilha de “2001” e a óbvia referência à “Star Wars Episódio V: O Império Contra-Ataca”. Vale destacar também as sequências de ação muito bem conduzidas pela câmera ágil dos diretores, como no empolgante ato final no aeroporto, desde quando passarmos junto com os personagens pelo check-in e iniciarmos a viagem pelas esteiras ao lado das malas até o dinâmico trecho que se passa na pista e no avião.

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Só que, curiosamente, as cenas mais marcantes de “Toy Story 2” não são recheadas de energia. Um verdadeiro capitulo a parte dentro do filme, a aparição do velhinho que conserta Woody é fabulosa, trazendo à tona um personagem carismático dos famosos curtas da Pixar de maneira peculiar e apaixonante, assim como a cena mais tocante do longa, que sequer envolve diretamente o protagonista. Exalando sensibilidade e delicadeza, o pequeno clipe que narra a história de Jessie (voz de Joan Cusack) é comovente e já anunciava ainda em 1999 a enorme capacidade da Pixar de tocar o espectador em poucos minutos (algo que voltaria a ocorrer, por exemplo, em “Up – Altas Aventuras”), além de ser visualmente belíssimo com seus tons dourados que remetem a melhor época da vida da boneca contrastando com o tom melódico e triste da linda canção que embala a sequência.

E já que mencionei a cowgirl, vale dizer que a introdução de Jessie, Bala no Alvo (voz de Frank Welker) e Pete (voz de Kelsey Grammer) é extremamente eficiente e acrescenta muito a narrativa, trazendo elementos importantes para compreendermos o passado e a história de Woody e engrandecendo-o ainda mais como personagem. Remetendo aos tempos áureos do western e novamente abordando o conflito de gerações e a transição da época dos caubóis para a época dos astronautas no imaginário infantil após a corrida espacial, o conflito entre o velho e o novo também ganha mais força pela forma nostálgica que somos apresentados a história de Woody, através de fitas de videocassete, toca discos e brinquedos já anacrônicos, que soam como doces lembranças na memória dos espectadores mais velhos. Além disso, o roteiro encontra ainda um pequeno espaço para enviar uma mensagem de respeito as diversidades ao mostrar como Woody é simplesmente deixado de lado após ter seu braço rasgado e perder sua “perfeição”, reencontrando brinquedos abandonados que viveram seus dias de glória num passado não muito distante e sentindo na pele o quanto a rejeição é dolorosa.

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A música cantada por Wheezy (voz de Robert Goulet) encerra “Toy Story 2” no mesmo clima alegre que o primeiro filme encerrava, mas desta vez temos ainda os divertidos erros de gravação que, além de revelar a já latente criatividade da Pixar, também nos aproxima mais daqueles personagens ao torna-los críveis dentro do que é possível numa animação – e de quebra, revela bastidores das produções hollywoodianas de maneira bem humorada, como ao mostrar Pete paquerando as Barbies gêmeas e as brincadeiras de Woody com Buzz. Aliás, o próprio conceito de erros de gravação numa animação não deixa de ser uma situação hilária.

Resgatando a aura nostálgica que tornou “Toy Story” uma animação tão especial, “Toy Story 2” acerta ao trazer novidades para a trajetória do caubói e do astronauta mais queridos dos anos 90, preparando o terreno para seu terceiro e derradeiro capítulo que, como sabemos, seria responsável por uma verdadeira comoção em toda uma geração.

toy-story-2-foto-2Texto publicado em 31 de Janeiro de 2017 por Roberto Siqueira

SEVEN – OS SETE CRIMES CAPITAIS (1995)

(Se7en)

 

 

Videoteca do Beto #136

Dirigido por David Fincher.

Elenco: Brad Pitt, Morgan Freeman, Gwyneth Paltrow, R. Lee Ermey, Kevin Spacey, Daniel Zacapa, John Cassini, Richard Roundtree, John C. McGinley, Richard Portnow, Leland Orser, Andrew Kevin Walker, Richard Schiff e Charles S. Dutton.

Roteiro: Andrew Kevin Walker.

Produção: Phyllis Carlyle e Arnold Kopelson.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Logo em seu segundo filme na carreira (antes ele dirigiu “Alien 3”), David Fincher já demonstrava todo seu talento neste sufocante thriller policial, capaz de grudar os espectadores na cadeira com sua atmosfera constante de tensão. Narrando uma história intrigante de maneira impecável, a obra-prima “Seven” não apenas funciona perfeitamente como uma complexa investigação policial na busca de um misterioso serial killer, como vai além, mostrando também a decadência da nossa sociedade e questionando os valores contemporâneos.

Muito bem escrito por Andrew Kevin Walker, o roteiro perfeito de “Seven” narra a investigação dos detetives David Mills (Brad Pitt) e William Somerset (Morgan Freeman), que tentam impedir um assassino em série que utiliza os sete pecados capitais como motivação para seus crimes.

Conduzindo uma narrativa envolvente e bem construída, o diretor David Fincher imprime um ritmo ágil durante todo o tempo, contando obviamente com a colaboração de seu montador Richard Francis-Bruce, que já demonstra seu talento nos sensacionais créditos iniciais, acompanhados de uma agitada música eletrônica (que denuncia a origem de Fincher, na época ex-diretor de videoclipes famosos na MTV) e que revelam ainda o planejamento meticuloso do criminoso antes que o espectador perceba o que está acontecendo. Indicando a passagem dos dias através de letreiros (não dá pra deixar de citar a beleza temática envolvendo o número de dias e os pecados capitais), eles cobrem os acontecimentos de maneira envolvente, sem jamais perder o foco nas investigações, mas encontrando espaço também para Interessantes discussões filosóficas e existenciais entre o desiludido Somerset e o esperançoso Mills, que rendem debates a respeito da degradação de nossa sociedade (tema favorito de Fincher) e do ser humano de forma geral.

Apostando num visual obscuro e repleto de sombras, a fotografia de Darius Khondji cria a atmosfera pretendida pelo diretor através dos diversos ambientes fechados que predominam na narrativa, iluminados apenas por poucos pontos de luz até mesmo quando estamos dentro dos escritórios da policia ou de uma simples biblioteca. Observe ainda como quando as ações se passam nas ruas, ou as cenas são noturnas ou são banhadas pela forte chuva (que, aliás, só não aparece no último dia). A decoração dos ambientes também reforça esta atmosfera, revelando o excepcional trabalho de direção de arte de Gary Wissner em lugares como o simétrico escritório do advogado assassinado, o conturbado quarto da prostituta, a apertada casa do homem obeso e o sinistro apartamento de John Doe (Kevin Spacey). Seguindo a mesma lógica, a sombria trilha sonora de Howard Shore só aumenta a aflição, pontuando as cenas com precisão e alternando para um ritmo intenso nas cenas com mais ação física.

Inteligente, Fincher aproveita esta atmosfera perfeita para criar planos sombrios que aumentam o clima sufocante da narrativa, conduzindo as ações de maneira sempre eletrizante, seja através de momentos mais agitados que são capazes de nos fazer perder o fôlego ou através de instantes mais intimistas que acompanham o raciocínio dos detetives na busca de informações. Aliás, o diretor acerta ao envolver a plateia nestas investigações, nos permitindo acompanhar os estudos sobre os sete pecados de Dante, por exemplo, como se fossemos parceiros de Mills e Somerset na caça ao misterioso assassino. Vale destacar ainda a destreza de Fincher na construção do suspense. Observe, por exemplo, como ele estica ao máximo os momentos que precedem a revelação do corpo da primeira vitima, trabalhando o suspense com precisão através de planos escuros, iluminados apenas pelas lanternas dos detetives.

O diretor também trabalha muito bem no desenvolvimento dos personagens, extraindo excelentes atuações de todo o elenco. Surgindo juntos inicialmente num plano baixo que os engrandece na tela, Mills e Somerset rapidamente estabelecem suas maneiras distintas de trabalhar. Transmitindo a segurança exigida por seu experiente personagem com incrível tranquilidade, Morgan Freeman revela-se a escolha ideal para viver o inteligente Somerset, um homem já acostumado a enfrentar diversas situações adversas e que, talvez por isso (e pelos crimes brutais que provavelmente investigou), já não acredita mais no futuro da humanidade. Entretanto, o ator demonstra com precisão que o caso dos pecados capitais é diferente de tudo que viu, transmitindo a crescente preocupação de Somerset através de seu semblante e de suas reações, que chamam a atenção do parceiro Mills (“Fala a verdade, você já viu algo assim antes?”, questiona Mills; Somerset responde: “Não”). Freeman consegue até mesmo a proeza de driblar com habilidade o velho clichê do policial prestes a se aposentar que decide encarar seu ultimo desafio, transmitindo o dilema de Somerset com enorme sensibilidade e de maneira verossímil, como quando reflete na cama sem conseguir dormir e, bastante abatido, joga seu metrônomo na parede, numa interessante rima com um dos primeiros planos do longa.

Por sua vez, Brad Pitt exala jovialidade demonstrando a ansiedade esperada de alguém que acaba de mudar do interior para uma metrópole e enxerga em sua nova posição a grande oportunidade de sua carreira, o que o leva, por exemplo, a aceitar sem hesitar todo e qualquer caso que apareça (“Dane-se ele, eu pego o caso!”). Transformando seu detetive Mills num personagem potencialmente tenso que raramente nos permite prever suas reações, o ator faz dele o contraponto ideal para o experiente e controlado Somerset. Observe, por exemplo, como ele praticamente desiste de investigar o caso na sala do advogado, mas rapidamente se empolga novamente quando Somerset descobre as digitais que revelam as palavras “Help me” escondidas na parede. Priorizando a ação física em detrimento do raciocínio lógico, Mills torna-se o ponto psicologicamente vulnerável da dupla – algo que o assassino não demora a perceber. Finalmente, ele consegue estabelecer boa química com sua esposa Tracy nos raros momentos em que eles surgem juntos.

Surgindo em raras ocasiões na primeira metade de “Seven”, Tracy lentamente passa a se aproximar de Somerset (e do espectador), convidando-o até mesmo para jantar em sua casa e, posteriormente, revelando sua gravidez ao experiente detetive (num ótimo momento de Paltrow), o que é essencial para aumentar o impacto do terceiro ato. Além disso, o divertido jantar na turbulenta casa dos Mills é responsável por um belo momento das atuações de Freeman, Pitt e Paltrow, num dos raros instantes de alivio cômico da narrativa. Além de Paltrow, vale destacar também R. Lee Ermey que, em seu segundo papel importante no ano (ele também estava em “Os últimos passos de um homem”), faz o chefe de polícia encarregado dos detetives.

Além de todas as qualidades citadas acima, Fincher ainda nos reserva cenas realmente espetaculares, daquelas que ficam gravadas por muito tempo na memória do espectador. A invasão da casa de Victor, por exemplo, é um destes grandes momentos conduzidos com precisão pelo diretor, que inicialmente emprega um ritmo ágil, mostrando as ações da SWAT com sua câmera agitada, mudando para um silêncio capaz de paralisar o espectador quando eles encontram o homem deitado na cama, quebrado somente pela tosse repentina do moribundo traficante – que, aliás, quase me matou de susto na primeira vez que assisti ao filme. Assustar, aliás, parece ser um dos prazeres de Fincher em “Seven”, como acontece também quando os detetives descobrem o apartamento de John Doe e, segundos depois, um homem surge no corredor, finge procurar a chave no bolso e atira repentinamente contra eles, iniciando uma sensacional sequência de perseguição na chuva, conduzida novamente num ritmo alucinante pela câmera agitada de Fincher, que só terminará quando o misterioso homem apontar uma arma para a cabeça de Mills – repare como o diretor evita revelar o rosto do criminoso, mantendo o suspense através das gotas que embaçam a câmera na chuva.

Após esta eletrizante sequência, a ligação de John Doe só confirma o quão respeitável ele é. De fala educada e polida, o assassino demonstra toda sua inteligência ao não provocar a ira dos policiais e demonstrar respeito por eles. Mesmo com a inesperada descoberta de seu apartamento, ele sabia que tinha o total controle da situação, sendo hábil para mudar a rota e continuar sua “obra”, o que o torna um vilão bastante temível, algo vital para que o espectador continue temendo pelo futuro dos detetives. A crueldade dos seus crimes também chama muito a atenção (e Fincher faz questão de não ocultar os resultados de seus atos violentos, o que é ótimo). Trabalhando nos mínimos detalhes para, como ele mesmo diz, virar o pecado contra seu pecador, Doe é capaz de torturar uma vítima por um ano, praticamente explodir outra ao alimentá-la à força e, naquele que considero o mais cruel dos cinco primeiros crimes, obrigar um homem a violentar uma prostituta com um artefato letal – e a atuação de Leland Orser como o desesperado homem encontrado na boate é digna de aplausos. Tudo isso ajuda na formação de um assassino realmente temível, capaz de deixar o espectador constantemente intrigado e tenso.

[Antes de seguir lendo o texto, vale repetir: só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme!]

Só que, quando menos esperamos, um taxi para na porta da delegacia logo após a chegada dos detetives. Em seguida, um homem desce e caminha lentamente para dentro do local, dando início à épica aparição de John Doe, que surpreendentemente se entrega aos policiais, deixando a todos atônitos. Porque ele teria feito isto? Porque se entregaria antes de completar os sete crimes? A mente dos investigadores e do próprio espectador passa a fervilhar e a resposta virá de maneira cruel e ainda mais surpreendente. Surgindo de maneira simplesmente sensacional como o psicopata capaz de realizar crimes tão cruéis, Kevin Spacey está absolutamente perfeito com seu olhar penetrante, tom de voz controlado e sua ideologia capaz de minar qualquer um que tente interrogá-lo (e me arrisco a dizer que ele merecia o Oscar daquele ano, mas por este papel e não pela boa atuação em “Os Suspeitos”). Ainda durante o interrogatório na delegacia, ele já demonstra seu assustador controle emocional, aguardando tranquilamente enquanto os policiais tentam desvendá-lo – e vale notar também como após a sua prisão, Mills menciona a esposa duas vezes, num indicio sutil do que viria pela frente.

Chegamos então ao momento mais fantástico de “Seven” (e uma das melhores cenas dos anos 90) durante a conversa entre Mills, Somerset e Doe dentro do carro, onde os três atores demonstram todo seu talento num diálogo memorável, penetrante e perturbador, em que o assassino questiona os valores contemporâneos e se intitula um escolhido por Deus enquanto Mills espuma de raiva e Somerset demonstra sabedoria ao tentar decifrar a mente do criminoso (“Vemos um pecado capital em cada esquina e toleramos”, afirma Doe, tentando explicar sua filosofia distorcida ao mostrar o lado podre de suas vitimas). O tenso final, também sensacional, ainda reserva uma surpresa capaz de abalar a plateia, encerrando a obra-prima de John Doe e de David Fincher de maneira brilhante (e aqui vale destacar a atuação de Pitt, que demonstra toda a ira de seu personagem com precisão).

Contudo, engana-se quem pensa que grande parte do sucesso do longa está em seu impactante final. Com sua narrativa complexa e envolvente, roteiro perfeito, atuações competentes e direção impecável, “Seven” é um thriller espetacular, uma verdadeira obra-prima que merece um lugar de destaque entre os grandes filmes da história da sétima arte.

Texto publicado em 29 de Julho de 2012 por Roberto Siqueira

OS ÚLTIMOS PASSOS DE UM HOMEM (1995)

(Dead Man Walking)

 

Videoteca do Beto #133

Dirigido por Tim Robbins.

Elenco: Sean Penn, Susan Sarandon, Scott Wilson, Lois Smith, Jack Black, R. Lee Ermey, Celia Weston, Raymond J. Barry, Jon Abrahams, Robert Prosky, Clancy Brown, Kevin Cooney e Peter Sarsgaard.

Roteiro: Tim Robbins.

Produção: Jon Kilik, Tim Robbins e Rudd Simmons.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Poucos temas me deixam mais indeciso do que a pena de morte. Se por um lado entendo que nenhum ser humano tem o direito de tirar a vida de seu semelhante, por outro tenho a plena convicção de que esta visão seria automaticamente deixada de lado caso algo ocorresse com alguém próximo a mim. Por isso, fico sem saber o que responder diante da pergunta: “Você é a favor ou contra a pena de morte?”. Pois o soberbo “Os últimos passos de um homem” nos ajuda a compreender melhor o tema de maneira genial, sem jamais pender para qualquer lado, num trabalho excepcional tanto de Tim Robbins atrás das câmeras quanto de sua dupla de protagonistas diante delas. O resultado de tanto talento junto só poderia ser um: uma obra-prima do cinema.

Escrito pelo próprio Robbins baseado em livro da verdadeira Helen Prejean, “Os últimos passos de um homem” narra a tentativa da freira Helen (Susan Sarandon) de salvar o condenado a morte Matthew Poncelet (Sean Penn), poucos dias antes de sua execução. Logo após receber uma carta do prisioneiro, ela passa a ter dúvidas sobre as provas do crime e tenta recorrer na justiça ao mesmo tempo em que se transforma em sua conselheira espiritual, contrariando a opinião pública, chamando a atenção da imprensa e sendo pressionada pelos pais das vítimas e pela própria família.

Um dos aspectos mais interessantes do excelente roteiro de Robbins reside no fato de que ele nunca condena ou absolve Matthew pelo que fez, deixando esta decisão exclusivamente para o espectador, como se o diretor/roteirista tomasse uma posição neutra, de mediador mesmo, apresentando os dois lados da moeda e deixando que a plateia pense a respeito. Esta discrição se reflete também em sua direção, que evita chamar a atenção na maior parte do tempo, valorizando as atuações do elenco. Aliás, toda a parte técnica do longa segue o mesmo raciocínio, prezando pela elegância e eficiência em detrimento de exibicionismos, como podemos notar nas cores pouco chamativas da fotografia do mestre Roger Deakins e até mesmo na trilha sonora econômica de David Robbins, que pouco interfere na narrativa, deixando o som diegético predominar em momentos chave e surgindo apenas para pontuar uma ou outra cena de impacto.

Mas, apesar de parecer “invisível”, Robbins sabe os momentos exatos de empregar técnicas que transmitam mensagens somente através do visual, como quando a câmera se aproxima de Helen quando o padre avisa sobre a natureza violenta de Matthew, destacando os olhos arregalados da assustada freira. Observe ainda como no primeiro diálogo entre Matthew e Helen, a grade, inicialmente densa, gradualmente nos permite ver o rosto dele graças à mudança de foco da câmera, simbolizando a queda daquela barreira e o início da aproximação deles. Esta lógica visual se repete no segundo ato, quando eles se encontram e a câmera se posiciona lateralmente, eliminando a grade e simbolizando a aproximação total entre eles – e repare que até mesmo no tradicional plano/contraplano a grade já não aparece mais. Nesta cena, aliás, o ótimo roteiro nos brinda com um diálogo sensacional, onde Matthew demonstra seu preconceito contra negros e é questionado de maneira brilhante por Helen.

Interpretada com brilhantismo pela excepcional Susan Sarandon (esposa de Tim Robbins), Helen surge demonstrando desde o início o peso da criação católica na formação de sua personalidade – algo que Robbins ressalta através do close do crucifixo que ela carrega no peito. Alternando entre uma assustadora postura confiante diante de situações nada convencionais e momentos de clara fragilidade e vulnerabilidade, Sarandon cria uma personagem ambígua, humana e extremamente cativante, extremamente fiel àquilo que acredita e com sabedoria suficiente para questionar até mesmo alguns valores pregados por sua própria igreja. Vestindo sempre roupas sóbrias e sem cor (figurinos de Renée Ehrlich Kalfus), sua Helen é compreensiva, inteligente e firme quando necessário, mas também é dona de uma compaixão extrema e genuína, o que é essencial para conquistar a confiança do desconfiado Matthew. Pra completar, a atriz ainda demonstra muito bem os conflitos de Helen, questionando em diversos momentos o que faz ao lado daquele homem, saindo-se bem ainda nos interessantes confrontos verbais propostos pelo roteiro, como aquele em que ela debate versículos bíblicos com o chapelão Farlely (Scott Wilson), mostrando como a Bíblia oferece diversas interpretações divergentes para um mesmo tema – algo que volta a acontecer num diálogo com um policial.

A verdadeira aula de interpretação continua durante as visitas de Helen, primeiro no destruído lar dos Delacroix e depois na casa dos amargurados Percy. Interpretado por Raymond J. Barry, o Sr. Earl Delacroix é responsável por uma das frases mais cruéis de “Os últimos passos de um homem”, quando afirma que “setenta por cento dos pais que perdem um filho se separam” após anunciar que se separaria da esposa, dimensionando o tamanho desta tragédia na vida de uma família. Igualmente comovente é o diálogo com os Percy, que demonstram toda a dor que sentem diante da perda da filha, num momento excelente do ótimo R. Lee Ermey (o sargento Hartman de “Nascido para Matar”) e de Celia Weston. Só que a dor não é um “privilégio” dos pais do jovem casal assassinado, já que a mãe de Matthew também sofre profundamente com a situação do filho, algo que Roberta Maxwell demonstra com grande sensibilidade em diversos momentos, como logo após a confirmação da sentença na junta do perdão. E fechando o elenco, vale citar a participação de Jack Black – ainda nos primeiros anos de carreira – como um dos irmãos de Matthew.

Chegamos então ao grande pivô de toda a situação. Certamente um dos mais talentosos atores de sua geração, Sean Penn oferece um desempenho absolutamente impecável na pele do condenado Matthew Poncelet, criando um personagem amargo, ambíguo e pouco carismático. Demonstrando com precisão a natureza explosiva do personagem, Penn surge constantemente tenso, na defensiva e sempre prestes a esbravejar contra tudo e contra todos. No entanto, o ator consegue a proeza de evitar que a plateia sinta repulsa por Matthew ao demonstrar a vulnerabilidade de um homem que participou de um crime horrível, mas que nem por isso deixou de ser humano. Por isso, mesmo condenando seu crime, o espectador por vezes se sente comovido ao constatar que aquele “monstro” também sente medo, aflição, angústia e dor, como qualquer outra pessoa sentiria.

De maneira inteligente, Robbins (e Penn, obviamente) evita cair na armadilha de transformar Matthew num coitado, mostrando seu lado negativo quando ele tenta “cantar” Helen e quando demonstra simpatia por Hitler, por exemplo. Além disso, os flashes da cena do crime que surgem repentinamente durante a projeção nos lembram do que ele fez, confirmando a perfeita estratégia do diretor e de seus montadores Lisa Zeno Churgin e Ray Hubley. Por outro lado, o sofrimento da mãe e dos irmãos humaniza Matthew Poncelet, proporcionando momentos igualmente comoventes, como a conversa dele com os familiares e a tocante despedida momentos antes da execução. Só que Robbins reequilibra novamente a balança, comprovando que evita a todo custo tomar partido, ao mostrar fotos do assassino e das vítimas quando crianças, o choro da mãe dele e dos pais dos jovens assassinados, entre outros momentos tocantes. Pra finalizar, o próprio Matthew confirma a complexidade da questão ao afirmar que “iria querer matar quem fizesse isso” ao responder como reagiria a um suposto crime contra seus familiares.

O terceiro ato se concentra nas angustiantes horas que antecedem a execução (ressaltadas através de inúmeros planos do relógio), aproximando ainda mais o assassino de Helen e do espectador, especialmente ao vê-lo chorando quando se despede da mãe por telefone. E então, as atuações sensacionais dos dois chegam ao auge na cena em que Matthew confessa o crime diante de Helen, num momento inspiradíssimo de ambos que torna quase impossível a missão de conter as lágrimas. Penn está estupendo, corroído pelo medo e pelo arrependimento, enquanto Susan demonstra toda a compaixão de Helen com perfeição. Mas se momentaneamente nos comovemos com o sofrimento dele, Robbins novamente confirma a genialidade de sua estratégia ao intercalar as fortes imagens de sua morte com as cenas brutais do crime que ele cometeu, lembrando ao espectador o que ele fez e deixando que este decida se a pena capital é valida ou não.

Talvez Robbins deixe escapar levemente sua visão nas últimas palavras de Matthew: “Matar é errado, não importa quem faça, eu, você ou o governo”. A frieza com que ele conduz a cena da execução assusta e o impacto é ainda maior por acompanharmos aquele homem tremendo, chorando como uma criança e com o olhar tomado pelo medo da morte eminente. Após sua morte, dois planos idênticos em plongèe nos mostram os corpos de Matthew e dos jovens namorados, como se representassem a visão divina daqueles dois assassinatos. Um lamento? Talvez.

Tratando este tema polêmico com a seriedade que ele merece e contando com uma direção e duas atuações soberbas, o longa se estabelece como um complexo e profundo estudo não apenas da pena capital, mas também da própria natureza humana. Não posso dizer que “Os últimos passos de um homem” me ajudou a encontrar uma resposta para a pergunta do primeiro parágrafo deste texto, mas certamente a obra-prima de Tim Robbins me fez compreender melhor tanto os que defendem a pena de morte quanto os que são contra ela.

Texto publicado em 09 de Julho de 2012 por Roberto Siqueira

TOY STORY 3 (2010)

(Toy Story 3)

 

 

Filmes em Geral #87

Dirigido por Lee Unkrich.

Elenco: Vozes de Tom Hanks, Tim Allen, Michael Keaton, Joan Cusack, Bonnie Hunt, Timothy Dalton, R. Lee Ermey, John Ratzenberger, John Morris, Laurie Metcalf, Wallace Shawn, Don Rickles, Jodi Benson e Ned Beatty.

Roteiro: Michael Arndt.

Produção: Darla K. Anderson.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Antes mesmo de assistir ao último filme da impecável trilogia “Toy Story”, fui tomado por um sentimento nostálgico somente ao imaginar que, após acompanharmos a trajetória de Andy e seus queridos brinquedos nos excepcionais filmes anteriores, aquela seria a minha despedida de Woody, Buzz e companhia. Se me emocionei em “Toy Story” e quase não contive as lágrimas em “Toy Story 2” – especialmente no clipe que conta a história de Jesse e sua dona -, era muito provável que as lágrimas seriam inevitáveis em “Toy Story 3”. Mas eu não estava preparado para esta verdadeira catarse. A verdade é que a obra-prima dirigida por Lee Unkrich mexe em nossos sentimentos mais profundos, remetendo a mais nostálgica fase de nossas vidas.

Desta vez escrito por Michael Arndt, “Toy Story 3” traz Andy (voz de John Morris) já com 17 anos e prestes a ir para a Faculdade. Enquanto arruma seu quarto, ele decide levar apenas o cowboy Woody (voz de Tom Hanks) e deixar todos seus outros brinquedos no sótão, entre eles Buzz Lightyear (voz de Tim Allen), Jessie (voz de Joan Cusack) e o Sr. Cabeça de Batata (voz de Don Rickles). Mas, por engano, sua mãe confunde o saco que ele separou para os brinquedos e eles acabam no lixo. O grupo consegue escapar, se infiltra numa caixa onde está Barbie (voz de Jodi Benson) e acaba sendo levado para a creche Sunnyside, onde eles conhecerão novos brinquedos como Ken (voz de Michael Keaton) e o urso Lotso (voz de Ned Beatty).

Esbanjando criatividade, o roteiro de Arndt traz Woody novamente numa situação complicada, tendo que salvar os amigos antes da partida de Andy, o que nos leva a novas e empolgantes aventuras. Remetendo em alguns instantes a estrutura narrativa do primeiro filme (a reunião entre os brinquedos, a “fuga involuntária” da casa), Arndt tem ainda o cuidado de revelar o destino de personagens marcantes como Wheezy, a boneca de porcelana Beth e os soldados de plástico, num indício sutil do clima nostálgico que permeia a narrativa, acertando também nos momentos bem humorados, como ao “resetar” Buzz e trazer de volta sua adorável dedicação ao “comando estelar”, além da hilária mudança de seu idioma para o espanhol. Abordando temas como a inexorabilidade do tempo (como atestam o gordo e cansado Buster e o rosto adolescente de Andy) e a importância da amizade verdadeira, “Toy Story 3” emociona não apenas as crianças, mas também (e especialmente!) os adultos.

A espetacular seqüência de abertura dá o tom da narrativa, iniciando com a empolgante aventura (que descobriremos existir apenas na cabeça de Andy) envolvendo os principais personagens da trilogia e terminando nas gravações que mostram o crescimento do garoto. Esta oscilação entre a euforia e a nostalgia é uma das marcas de “Toy Story 3”, graças à direção firme de Unkrich que transforma o capítulo final da trilogia num festival de sensações. Contando com o bom trabalho do montador Ken Schretzmann, a narrativa transita muito bem entre emoções extremas, passando pela adrenalina das aventuras, pela tensão dos momentos de suspense e pela delicadeza de cenas tocantes, como o melancólico e sublime final, intercalando tudo isso com momentos de bom humor. Além disso, o trabalho de montagem se destaca também pela fluidez em diversos momentos, como na citada abertura e na apresentação do sistema de segurança de Lotso, que transforma Sunnyside numa prisão.

Tecnicamente, mais uma vez a qualidade das animações impressiona pela riqueza de detalhes, sendo capaz de dar vida aos brinquedos através da leveza de seus movimentos e da expressividade deles – observe a expressão de desaprovação de Woody quando chega a Sunnyside, por exemplo. Além disso, chega a ser quase inacreditável a capacidade de criação dos animadores da Pixar, que desenvolvem uma enorme variedade de brinquedos (muitos deles remetem diretamente a minha infância, aliás), assim como o roteiro novamente aproveita a oportunidade para criar gags divertidas baseadas nas características deles, como no sensacional encontro entre Ken e Barbie e no divertido desfile que ele faz pra ela, nas constantes piadas sobre a origem dele (“Não sou brinquedo de menina!”) e no corpo improvisado pelo Sr. Cabeça de Batata.

Ainda na parte técnica, vale destacar mais uma vez o excepcional design de som, que dá vida ao mundo criado pelos animadores e nos insere dentro dele com precisão. E se desta vez a bela “You’ve got a friend in me” soa ainda mais nostálgica devido às circunstâncias, a trilha sonora de Randy Newman se destaca também por pontuar com precisão as cenas de aventura e suspense, injetando adrenalina e tensão sempre na medida certa, além de mostrar criatividade nos acordes tipicamente espanhóis que embalam a divertida dança “caliente” de Buzz.

Voltando aos aspectos visuais, vale observar como a fotografia colorida e cheia de vida na chegada dos brinquedos à creche Sunnyside cria uma expectativa totalmente contrária à realidade do lugar, evidenciada somente pela reação dos brinquedos locais segundos antes da invasão das agitadas crianças que detonam todos eles. Esta subversão de expectativa, aliás, também acontece com o personagem Lotso, que surge como um urso tranqüilo e amigável – e a voz contida de Ned Beatty é essencial para isto -, mas lentamente se revela como o grande vilão da trama. Será ele o agente da mudança brusca da fotografia, que troca as cores vivas pelos tons obscuros durante todo o segundo ato após Woody ouvir a história de Lotso, em outra cena que transita de tons dourados para cores sombrias e sufocantes que, realçadas pela chuva, ilustram os sentimentos do urso abandonado.

Além de imprimir um ritmo delicioso à narrativa, Unkrich se destaca, por exemplo, na condução de seqüências empolgantes e visualmente belíssimas como a primeira fuga de Woody de Sunnyside, a acrobática saída de Buzz da sala Lagarta e a segunda fuga da creche, capaz de grudar o espectador na cadeira, especialmente quando os personagens são deixados no assombroso depósito de lixo – e confesso que cheguei a temer pelo destino dos heróis nesta sombria seqüência, que é certamente o momento mais tenso da narrativa. Através destes interessantes movimentos de câmera que acompanham as peripécias dos personagens, Unkrich confere agilidade e dinamismo ao longa, o que é essencial numa aventura infantil. Mas “Toy Story 3” está longe de direcionar seus esforços apenas para a fatia mais jovem do público. Por isso, quando os personagens escapam da difícil situação no depósito e conseguem voltar para casa, o final devastador se aproxima e o espectador já sabe o que esperar.

Quando Andy brinca pela última vez com seus queridos brinquedos e apresenta cada um deles para a garota, nós sabemos que também estamos nos despedindo daqueles personagens adoráveis. Sabemos ainda que, para Andy, não se trata apenas de deixar aqueles brinquedos legais para trás, mas também de despedir-se definitivamente dos áureos tempos da infância, época em que o mundo era filtrado pela pureza do olhar de uma criança. Por isso, a identificação do espectador adulto é inevitável e fica difícil segurar as lágrimas. Após o carro perder-se no horizonte e Andy deixar tudo isto para trás, aqueles momentos mágicos sobreviverão apenas na memória – e quem já passou por esta fase sabe bem o que é isto. Finalmente, esta cena final é ainda mais emblemática para aqueles que eram crianças no lançamento do primeiro “Toy Story”, já que, devido a distancia de 15 anos entre os filmes, estes jovens provavelmente também estavam na faculdade em 2010 e, portanto, o crescimento de Andy reflete a própria trajetória deles.

Ao contrário de Andy, que foi obrigado a deixar seus brinquedos para trás, as novas gerações podem comemorar, pois os filmes da trilogia “Toy Story” são brinquedos que podemos guardar eternamente e até mesmo voltar a “brincar” com eles sempre que quisermos. Esta é a magia do cinema. Esta é a magia da Pixar, que provou nesta trilogia ter o poder de – com o perdão do trocadilho – ir “ao infinito e além!”.

Texto publicado em 24 de Fevereiro de 2012 por Roberto Siqueira

NASCIDO PARA MATAR (1987)

(Full Metal Jacket)

 

Videoteca do Beto #58

Dirigido por Stanley Kubrick.

Elenco: Matthew Modine, Adam Baldwin, Vincent D’Onofrio, R. Lee Ermey, Dorian Harewood, Arliss Howard, Kevyn Major Howard, Ed O’Ross, John Terry, Kieron Kecchinis, Kirk Taylor, Jon Stafford, Ian Tyler, Papillon Soo e Bruce Boa.

Roteiro: Michael Herr e Stanley Kubrick, baseado em livro de Gustav Hasford.

Produção: Stanley Kubrick.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido o filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Após dirigir uma seqüência incrível de grandes filmes entre 1960 e 1980, o genial Stanley Kubrick fez uma pausa de sete anos, voltando em grande estilo com este “Nascido para Matar”, visão peculiar do diretor sobre a guerra do Vietnã, conflito que inspirou tantas obras sensacionais na história recente do cinema. Apesar do ótimo resultado alcançado, o longa de Kubrick é claramente inferior aos excepcionais “Platoon”, lançado um ano antes, e à obra-prima “Apocalypse Now”, de 1979. Ainda assim, consegue ser um filme acima da média, que foca boa parte de sua narrativa em outro aspecto pouco explorado nos filmes do gênero, que é o treinamento que transforma jovens em verdadeiras máquinas de matar.

O rígido sargento Hartman (R. Lee Ermey) é o responsável pelo treinamento cruel, e por vezes até mesmo sádico, de jovens soldados norte-americanos que serão enviados para a guerra do Vietnã. Os métodos nada suaves do sargento transformarão aqueles jovens em combatentes impiedosos, mas nem todos eles têm estrutura psicológica para agüentar a pressão, o que leva a um resultado trágico. Após chegar ao Vietnã, os soldados terminarão seu processo de transformação total ao se deparar com os horrores da guerra. E aqueles que conseguirem voltar pra casa, já estarão mudados para sempre.

Se o espectador busca em “Nascido para Matar” um filme repleto de ação, com explosões e tiroteios ensandecidos, vai se decepcionar. O roteiro de Michael Herr e Stanley Kubrick, baseado em livro de Gustav Hasford, desenvolve os personagens com calma, permitindo ao espectador conhecer muitas de suas características durante o treinamento e acompanhar a completa transformação deles. Além disso, divide claramente a narrativa em duas partes: o treinamento e a guerra. Portanto, durante metade da projeção somos apresentados aos métodos cruéis utilizados para formar jovens soldados e somente na segunda metade é que os conflitos realmente entram em cena. Curiosamente, é na primeira metade que está a melhor parte da narrativa. É extremamente cativante acompanhar personagens fascinantes como o sargento Hartman e os soldados Pyle (Vincent D’Onofrio) e Hilário (Matthew Modine) durante a fase de treinamento. Ironicamente, o maior problema de “Nascido para Matar” acontece no ponto de virada entre o treinamento e a guerra, quando os dois melhores personagens do longa saem tragicamente de cena, o que claramente enfraquece a segunda metade do filme. Este problema poderia ser amenizado pela montagem de Martin Hunter, caso as duas histórias fossem contadas simultaneamente. Desta forma, o impacto da narrativa seria muito maior no espectador, que tentaria descobrir porque Pyle não seguiu com os outros para a guerra. “Teria ele desistido?” poderíamos pensar, e a surpresa viria no final com o impactante desfecho do treinamento. Infelizmente, este chocante final do treinamento é apresentado ainda na primeira metade do filme e deixa o espectador “órfão” dos melhores personagens até então. Apesar disto, a montagem trabalha muito bem durante toda a empolgante seqüência do treinamento, que segue num ritmo intenso e agradável, e também é competente nas seqüências no Vietnã, cheias de energia e realismo.

Mais uma vez, Kubrick extrai de sua equipe um trabalho técnico impecável que resulta no belíssimo visual do longa, como podemos notar através dos figurinos de Keith Denny e da direção de arte de Keith Pain, Nigel Phelps, Rod Stratfold e Leslie Tomkins, que ambientam com competência o espectador ao clima do filme tanto nos treinamentos quanto no combate, através dos uniformes de guerra e, principalmente, do excepcional visual dos destroços da cidade, já no terceiro ato. Vale ressaltar também a boa direção de fotografia de Douglas Milsome, que destaca o verde, cada vez menos vivo – assim como a esperança dentro daqueles corações endurecidos – misturado ao cinza, que simboliza a tristeza daqueles jovens soldados. Finalmente, vale destacar a boa trilha sonora de Vivian Kubrick, composta por excelentes canções.

Entre o elenco, vale destacar o citado trio de personagens, muito bem interpretados por Ermey, D’Onofrio e Modine. Kubrick costumava ser extremamente exigente com seus atores, repetindo tomadas inúmeras vezes até alcançar o resultado que desejava. Aqui, novamente o resultado é bastante competente. O close durante o corte de cabelo dos soldados, seguido por outro close, agora no tenente Hartman, serve como apresentação dos personagens e permite ao espectador se familiarizar com todos eles. E entre tantos interessantes personagens, o maior destaque vai mesmo para o sargento Hartman. A incrível capacidade de criar frases repletas de diversos palavrões deixam claro logo de cara o estilo durão do sargento, interpretado magnificamente por R. Lee Ermey, que utilizou seu conhecimento (ele era sargento de verdade) para improvisar todas aquelas frases. Firme e determinado a transformar aqueles jovens em soldados completos, o sargento não dá trégua para ninguém e busca enrijecer o coração de cada um deles. Hartman alcança seu objetivo, mas o resultado é trágico, principalmente pra ele. Outro interessante personagem é o recruta Hilário (Joker em inglês), que mostra sua capacidade de liderança durante o treinamento, conseguindo extrair melhores resultados do engraçado Pyle. Hilário, interpretado por Matthew Modine, será o fio condutor da narrativa e, apesar da boa atuação de Modine, claramente é um personagem sem a mesma força de Pyle e Hartman. Ainda sim, consegue a empatia do espectador. Finalmente, vale destacar a grande atuação de Vincent D’Onofrio na pele do gordinho Pyle (D’Onofrio teve que engordar muitos quilos para viver o personagem). Inicialmente tranqüilo e até mesmo inocente, o recruta vai lentamente sendo degradado pelo ambiente hostil e sua transformação se consuma quando é atacado de madrugada pelos companheiros, revoltados com as punições sofridas por sua culpa – observe como durante a surra dos soldados em Pyle, a fotografia azulada reflete a frieza de todos eles naquele momento. A partir deste instante, ele para de falar, muda o olhar e demonstra claramente sua revolta, numa atuação inspirada de Vincent D’Onofrio, acentuada ainda mais pela câmera de Kubrick, como no zoom em seu olhar raivoso, que simboliza sua completa transformação. O resultado daquele treinamento pesado foi trágico para Pyle, que enlouqueceu, e ainda mais trágico para Hartman.

Stanley Kubrick mantém em “Nascido para Matar” o seu costumeiro preciosismo na direção, com enquadramentos milimétricos e planos perfeitos. Mas o diretor também mostra competência nas cenas de combate, como podemos observar, por exemplo, durante uma invasão no Vietnã em que a câmera acompanha os soldados, conferindo bastante realismo à cena. Kubrick também estiliza o visual durante a morte de “Bola 8” (Dorian Harewood), utilizando a câmera lenta para aumentar o impacto do ataque enquanto o sangue jorra do corpo do soldado. O diretor cria ainda um belo plano, sob o ponto de vista de um atirador escondido num prédio, seguido por um zoom que nos aproxima da vítima segundos antes do tiro fatal. Além disso, demonstra sua competência também na condução das duas melhores seqüências do longa. A primeira delas, a sensacional seqüência dentro do banheiro (“7,62 milímetros, full metal jacket!”), é a melhor do filme, resultando na impactante morte de Hartman seguida pelo suicídio de Pyle. Infelizmente, acontece muito cedo e de certa forma esvazia o restante da narrativa. Mas o último ato reserva para o espectador outra grande seqüência, durante a tensa invasão do prédio em meio às chamas, que culmina com a execução da atiradora vietnamita em câmera lenta, num balé muito bem dirigido por Kubrick. Neste momento, Hilário encara sua hora da verdade e consuma sua completa transformação, assassinando a sangue frio a vítima indefesa. E seu pensamento final só confirma sua mudança, ratificando o único interesse de qualquer pessoa que se envolva desta maneira na guerra (“Estou num mundo de merda, mas estou vivo”), num contraponto excelente a frase dita por Pyle momentos antes de se suicidar (“Estou num mundo de merda!”) – o que reforça a tese de que se a montagem alternasse as duas histórias de forma paralela, o final seria ainda mais marcante.

Kubrick, assim como outros importantes cineastas ao longo da história do cinema, também fez seu estudo da guerra e dos efeitos que ela provoca na mente do ser humano. A insanidade da guerra levou, por exemplo, um fuzileiro a atirar em crianças e mulheres nos campos do Vietnã, em outra cena chocante do longa. Na visão do diretor, a distância entre a paz e a extrema violência é pequena na mente do ser humano. Basta que ele seja provocado e preparado para se transformar numa máquina assassina. Este pensamento é ilustrado no principal personagem do filme, através do broche da paz no peito e do capacete escrito “Nascido para Matar”, que simboliza perfeitamente a dualidade do homem, como o próprio Hilário diz em certo momento. Kubrick aborda também, de maneira mais sutil, a visão norte-americana do conflito, através da interessante entrevista dos soldados para uma televisão (“Estamos morrendo por eles…”).

“Nascido para Matar” mostra como o exército transforma jovens em verdadeiras máquinas de matar, assim como a guerra endurece seus corações, alterando sua visão do mundo para sempre. Dirigido e interpretado com competência, não deixa de ser um ótimo filme, mas poderia ser ainda melhor com alguns pequenos ajustes. De qualquer forma, deixa sua mensagem, ainda que não seja tão contundente como outras obras do excepcional diretor.

Texto publicado em 15 de Maio de 2010 por Roberto Siqueira