DONNIE DARKO (2001)

(Donnie Darko)

 

 

Videoteca do Beto #246

Dirigido por Richard Kelly.

Elenco: Jake Gyllenhaal, Holmes Osborne, Maggie Gyllenhaal, Daveigh Chase, Mary McDonnell, James Duval, Arthur Taxier, Patrick Swayze, Beth Grant, Drew Barrymore, Jena Malone, Katharine Ross, Seth Rogen, Noah Wyle, Ashley Tisdale, Patience Cleveland e Lee Weaver.

Roteiro: Richard Kelly.

Produção: Adam Fields, Nancy Juvonen e Sean McKittrick.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Pode um filme que envolve pontes de Einstein-Rosen e a filosofia da viagem no tempo ser, em última instância, um estudo sobre sentimentos? É claro que sim. Ainda que o enigmático terceiro ato abra espaço para discussões filosóficas e científicas intermináveis que permitem ao espectador se deliciar criando teorias e debatendo sobre o significado de tudo aquilo, o fato é que o cult “Donnie Darko” ancora sua excepcional estrutura narrativa em sentimentos extremamente humanos, que, por sua vez, não deixam de ser um mistério tão fascinante quanto buracos de minhoca.

Escrito e dirigido por Richard Kelly, “Donnie Darko” tem início quando o personagem título, após uma discussão familiar no jantar, escapa milagrosamente da morte ao ouvir a orientação de um misterioso coelho gigante e sair de sua casa instantes antes de uma turbina de avião destruir completamente o seu quarto. À partir daí, ele passa a seguir as instruções do coelho que afirma que o mundo acabará em 28 dias e provocar o caos na escola em que estuda, ao mesmo tempo em que se apaixona pela nova aluna Gretchen (Jena Malone) e desafia o famoso Jim Cunningham (Patrick Swayze).

Estruturado como um quebra-cabeças que envolve conceitos complexos sobre viagem no tempo, o impecável roteiro de “Donnie Darko” jamais se entrega a soluções fáceis e mastigadas, preferindo jogar pistas ao longo da narrativa para que o próprio espectador procure formular suas teorias quando o terceiro ato jogar uma enorme interrogação em sua mente. Normalmente, filmes que ousam não entregar tudo mastigado sofrem preconceito por parte de espectadores acostumados a narrativas que explicam cada ponta solta do roteiro, mas curiosamente o longa de Richard Kelly conseguiu driblar este efeito e ganhar muitos fãs após seu fracasso nas bilheterias, justamente por que a força da narrativa vai além do aspecto científico (o que por si só já garantiria um bom filme), permeando aquele universo recheado de esquisitices e acontecimentos estranhos com sentimentos universais e de fácil identificação, o que ajuda a criar empatia.

A abertura envolta em mistério e que beira o onírico em que o garoto desce uma estrada sinuosa numa montanha já dá o tom da narrativa, passando por um primeiro ato dominado por cenas que refletem o estado de espírito do protagonista, deslocado tanto na escola quanto em sua própria família, algo refletido também nas roupas azuis que ele veste durante boa parte do filme e que simbolizam sua melancolia – o que é mérito dos figurinos de April Ferry, que também acerta na caracterização bizarra do gigante coelho que atormenta Donnie, criando um personagem icônico. Na medida em que Donnie Darko cumpre as orientações e avança no plano de Frank (James Duval), a fotografia de Steven Poster passa a adotar cores mais vivas e quentes, especialmente após o surgimento de Gretchen. Esta oscilação entre cenas mais sombrias e quentes reflete também a instabilidade emocional de Donnie, o que ajuda a criar uma atmosfera passivo-agressiva que casa muito bem com sua personalidade.

Esta atmosfera é reforçada pela maravilhosa trilha sonora de Michael Andrews, que pontua boa parte das cenas com composições melancólicas, mas intercala com deliciosas músicas populares da “new wave” que marcou os anos 80, que costumam trazer um misto de sentimentos alegres e tristes, o que é muito coerente com a proposta da narrativa – destaque para a sequência que apresenta praticamente todos os personagens importantes da escola embalada por “Head Over Heels”, do Tears for Fears, e que sem necessitar de palavras já evidencia características marcantes de suas personalidades e das relações entre eles. Da mesma forma, a montagem de Sam Bauer e Eric Strand alterna bem entre momentos empolgantes como os embates entre Donnie e professores na escola, os sinistros encontros com Frank e momentos mais calmos, ainda que igualmente interessantes, como a discussão dele com os amigos sobre os Smurfs.

Demonstrando domínio completo sobre a narrativa, Richard Kelly reforça a sensação de desconforto no espectador através da escolha de planos estranhos, como aquele que mostra o ônibus escolar na vertical, o que, aliado aos efeitos especiais que dão vida às alucinações de Donnie – como aquela que simboliza uma espécie de buraco de minhoca que indica o caminho que as pessoas seguirão nos segundos seguintes –, também serve para transmitir a inquietação da mente dele. O diretor é hábil ainda ao utilizar planos fechados que valorizam as excelentes atuações de seu elenco – especialmente de Jake Gyllenhaal, que discutiremos mais adiante. Antes disso, porém, vale ressaltar o bom trabalho de todo o elenco de apoio, a começar por Maggie Gyllenhaal, que compõe Elizabeth como uma irmã distante, que deixa claro os conflitos que tem com Donnie logo no início, mas que não hesita em demonstrar orgulho numa conversa com uma amiga em que comenta um confronto do irmão com uma professora na escola.

Da mesma forma, Mary McDonnell faz de Rose Darko uma mãe compreensiva, centrada e que demonstra compaixão pelo filho ao mesmo tempo em que sofre diante da condição psiquiátrica dele. Drew Barrymore, por sua vez, transmite a frustração da professora Karen naquele ambiente conservador, enxergando o potencial de alunos como Donnie e tendo a firmeza e coragem de questionar o sistema educacional ultrapassado e a falta de capacidade de se comunicar com os jovens daquela escola, ainda que isto custe seu emprego. Este questionamento dela, aliás, toca diretamente num dos temas centrais da narrativa.

Afinal, a hipocrisia da parcela conservadora da sociedade e a dificuldade que esta tem em aceitar o progresso e a complexidade dos sentimentos humanos são simbolizadas perfeitamente em personagens como Beth Grant, interpretada de maneira quase caricata por Kitty Farmer em momentos como quando expõe sua ignorância na discussão sobre livros numa reunião com outros pais e professores, além é claro de Jim Cunningham, o charlatão vivido por Patrick Swayze que protagoniza uma quente discussão com Donnie e que tem sua máscara retirada quando um incêndio em sua casa leva os policiais a descobrirem seu criminoso envolvimento com pornografia infantil. Ambos personificam um grupo enorme de pessoas que ainda hoje enxergam um mundo binário onde é possível classificar pessoas como boas ou más, ignorando toda a gama complexa de sentimentos, emoções, motivações e condições peculiares que nos tornam humanos. Fechando os destaques do elenco secundário, Jena Malone cria uma Gretchen graciosa e igualmente deslocada que sofre por razões diferentes de Donnie e, justamente por este sentimento de não pertencimento, combina perfeitamente com o rapaz.

Os problemas de Donnie Darko ficam evidentes logo no jantar que antecede o acidente, no qual Jake Gyllenhaal já demonstra claramente a insatisfação dele com sua família, ainda que, neste momento, não seja possível identificar ainda sua forte oscilação de humor. No entanto, assim que Frank surge, notamos facilmente as alterações vocais e faciais do psicótico protagonista, que aparece agora com um olhar penetrante, dominado por uma espécie de alucinação que transforma seu comportamento, quase como num transe para um mundo paralelo (olha a dica aí). Gyllenhaal demonstra talento ainda em pequenos detalhes da composição do personagem, como o lento caminhar enquanto sonâmbulo ou a tímida conversa inicial com Gretchen, na qual ambos parecem desconfortáveis, ainda que seja notável a empatia entre eles.

Da mesma forma, ele consegue transmitir bem a tensão sexual natural desta fase da adolescência em cenas como a conversa com a terapeuta em que conta sobre a viagem no tempo. Inteligente, questionador e cético quanto à religião, Donnie demonstra fascínio pela ciência e pelo tema viagem no tempo, mas é seu medo diante da solidão e da morte que evidencia sua principal característica: a melancolia. Ao ouvir que “toda criatura morre sozinha”, ele logo se apressa em dizer que não quer estar sozinho, demonstrando uma insegurança emocional que nada mais é que uma condição natural do ser humano, que pode ficar ainda mais latente em pessoas que tentam encontrar explicações lógicas para os mistérios da vida e não buscam conforto em alguma fé qualquer que simplifique a visão da natureza humana e seu papel no universo.

O que nos traz de volta ao sentimento mencionado anteriormente de desconforto causado no espectador que busca explicações mastigadas para os acontecimentos da narrativa. Assim como Donnie, cabe ao espectador não se ancorar em soluções fáceis e buscar aprofundar-se nos conceitos apresentados ao longo do filme para tentar encaixar as peças e compreender a complexidade de “Donnie Darko”. Se por um lado a condição de esquizofrênico paranoico dele poderia facilmente explicar boa parte das alucinações que vemos ao longo da narrativa, por outro o livro de Roberta Sparrow (Patience Cleveland), a menção à “De volta para o futuro”, as conversas com o professor Kenneth Monnitoff (Noah Wyle) e os efeitos visuais que evidenciam o buraco de minhoca no ato final indicam outro caminho para solucionar o enigma que se forma na cabeça do espectador no terceiro ato.

A morte de Gretchen em frente a casa de Roberta Sparrow associada ao surgimento de Frank vestido de coelho e o tiro que ele leva no olho esclarecem parte dos mistérios, levando a conclusão da narrativa em que Donnie desta vez é morto pela turbina, que irá abrir o leque de possibilidades de interpretação. Fica evidente, no entanto, que a viagem no tempo é a chave para solucionar a equação, ainda que você possa até mesmo argumentar que tudo não passa de sonhos do protagonista e dos outros personagens, já que os acontecimentos bizarros que se iniciam na queda da turbina surgem após ele ir para a cama (e a letra de “Mad World” que acompanha todos atormentados, como se despertassem de pesadelos, pode induzir a esta interpretação em seu refrão). Aliás, existem outras interpretações muito interessantes na internet como a de Rolandinho, que você pode acessar aqui.

No entanto, a interpretação que mais me agrada é a leitura convencional do artefato que viaja pelo buraco de minhoca após uma anomalia criar um universo tangente, cabendo ao receptor (no caso, Donnie Darko) a missão de corrigir o erro. Segundo esta teoria descrita no livro de Sparrow, ele tem então os 28 dias, 6 horas, 42 minutos e 12 segundos citados por Frank na conversa inicial deles para evitar o colapso do universo primário ao enviar de volta o artefato duplicado no universo tangente (neste caso, a turbina). O livro também explica conceitos como os manipulados mortos (Frank e Gretchen, que ganham o poder de viajar no tempo) e os manipulados vivos (todos os outros personagens que ajudam o receptor a cumprir sua missão), o domínio de Donnie sobre elementos como o fogo (o incêndio na casa de Jim) e a água (a inundação da escola), sua força descomunal (quando enfia o machado numa estátua) e a telecinesia (quando envia a turbina pelo buraco de minhoca no ato final). Além disso, são várias as dicas ao longo do filme que reforçam esta leitura, como quando Donnie afirma que a destruição é uma forma de criação (destruir aquele universo ajudaria a criar um futuro no universo primário), quando ele questiona Gretchen o que a faz pensar que ele não é um super-herói (afinal, naquele universo ele tem superpoderes) ou quando ele deixa o cinema e no letreiro temos “A Última Tentação de Cristo”, (cuidado, SPOILERS!) outro filme que aborda um universo paralelo, neste caso, criado na mente do protagonista.

Ao atingir seu objetivo, Donnie arquiteta também sua própria morte no universo primário, salvando Gretchen e todos os outros que morreram no universo tangente. A teoria explica ainda por que vários personagens de certa forma sentem os acontecimentos do universo tangente na bela sequência citada anteriormente que os mostra sofrendo e reforça de maneira tocante o sentimento que domina a narrativa, embalada pela bela “Mad World”, que tem total conexão com o tema do filme. Além disso, fica mais fácil compreender o medo de Donnie da solidão e da morte, sua obsessão pelo tema viagem no tempo, sua melancolia e até mesmo sua tensão sexual, afinal, ele sentia que não teria muito tempo de vida. Como fica claro naquele diálogo com Gretchen, ele, talvez de maneira inconsciente, sabia que era um tipo estranho de super-herói messiânico, fadado a entregar a vida para salvar todos os outros presentes no universo primário – o que, aliás, novamente remete à visão religiosa da missão de Jesus Cristo.

Portanto, por mais que seja extremamente instigante estudar os complexos conceitos da filosofia da viagem no tempo, formular interpretações e tentar conectar as pontas soltas de “Donnie Darko” (e sim, é muito divertido e estimulante fazer isso), o fato é que os sentimentos nada binários abordados ao longo da narrativa são igualmente complexos e merecedores de serem estudados, com a diferença de que eles não demandam grande esforço do espectador para se identificar com aquilo.

Texto publicado em 31 de Julho de 2020 por Roberto Siqueira

DIA DE TREINAMENTO (2001)

(Training Day)

 

Videoteca do Beto #245

Dirigido por Antoine Fuqua.

Elenco: Ethan Hawke, Denzel Washington, Eva Mendes, Scott Glenn, Harris Yulin, Tom Berenger, Raymond J. Barry, Snoop Dogg, Dr. Dre, Nick Chinlund, Peter Greene, Jaime Gomez, Cliff Curtis, Noel Gugliemi, Raymond Cruz, Samantha Esteban, Charlotte Ayanna, Macy Gray, Denzel Whitaker e Terry Crews.

Roteiro: David Ayer.

Produção: Robert F. Newmyer e Jeffrey Silver.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

A profissão de policial certamente figura entre as mais difíceis e admiráveis do mundo. Responsáveis por manter a ordem e proteger os cidadãos, estes profissionais são preparados (ou deveriam ser) para enfrentar todo tipo de adversidade, seja em funções de menor risco como no controle do trânsito, seja nas divisões mais complicadas como as que tentam enfrentar o crime organizado. No entanto, a proximidade com o mundo do crime, a falta de treinamentos adequados, os complexos problemas sociais a sua volta e diversos outros fatores podem levar alguns destes profissionais a cruzar uma linha tênue e transformá-los naquilo que eles juraram combater. É precisamente neste dilema que “Dia de Treinamento” baseia boa parte de sua narrativa, apresentando dois personagens complexos, distintos e igualmente interessantes, ainda que aqui não reste dúvida sobre quem é o vilão e quem é o mocinho quando os créditos preenchem a tela no final.

Escrito por David Ayer, “Dia de Treinamento” acompanha Jake Hoyt (Ethan Hawke), um policial recém promovido a divisão de narcóticos que tem 24 horas para decidir se deseja ficar na equipe liderada por Alonzo Harris (Denzel Washington), um veterano que conhece todos os caminhos do crime organizado em Los Angeles e que tem um impressionante currículo de apreensões. No entanto, na medida em que o dia avança, ele descobre que a diferença entre o crime organizado e a polícia pode muitas vezes ser bem menor do que imaginava.

Partindo de uma premissa promissora, o diretor Antoine Fuqua consegue criar uma narrativa instigante e, auxiliado pela montagem de Conrad Buff, intercala entre travellings, muitos close-ups, câmera lenta e câmera agitada para manter um ritmo dinâmico que nos dá a constante sensação de que algo importante irá acontecer a qualquer momento, mantendo a tensão sem permitir que o espectador relaxe. Além disso, o diretor é hábil em criar um ambiente realista e coerente com o universo em que se passa a narrativa, algo reforçado, por exemplo, pela trilha sonora de Mark Mancina, que oscila entre o rap, a música latina e acordes mais pesados, jogando o espectador pra dentro daquela realidade de maneira competente. Da mesma forma, os figurinos de Michele Michel indicam desde o início a dualidade de Alonzo, que surge vestindo o preto típico dos vilões mesmo sendo vendido inicialmente como o tutor experiente e admirado que guiaria Jake.

Ainda na parte técnica, a fotografia de Mauro Fiore acompanha a evolução natural do dia com o sol surgindo no horizonte no início, preenchendo boa parte do segundo ato e desaparecendo no fim, o que gradualmente torna o longa mais sufocante e nos prepara para o ato final. Vale citar ainda como o jogo de luzes e sombras cobre parcialmente o rosto de Alonzo quando ele pede para Jake executar um traficante, demonstrando visualmente sua faceta criminosa que naquela altura já estava evidente. Tensa, esta cena é crucial para entender o funcionamento daquele submundo e o diálogo que surge a seguir tem igual importância para compreender o questionável código moral de Alonzo.

Abordando diversos problemas sociais dos Estados Unidos, “Dia de Treinamento” falha pela forma caricata que retrata as comunidades e os latinos que cruzam o caminho de Jake, por exemplo, quando ele é abandonado por Alonzo para ser assassinado, numa cena, aliás, que é conduzida de forma muito realista por Fuqua, mas na qual infelizmente a solução para o conflito soa bastante artificial pela maneira simplista como a garota é convencida pelo tio a contar a verdade sobre a tentativa de estupro. Igualmente, quando o enfurecido Jake parte em busca de Alonzo na “Selva”, a comunidade que havia sido retratada como um dos locais mais perigosos da cidade anteriormente, impressiona negativamente como mesmo com os dois brigando, quebrando diversos objetos e atirando para todo lado, os moradores locais demoram uma eternidade para sair de suas casas. Para piorar, o comportamento destes diante do confronto não soa convincente, confirmando como o terceiro ato é de longe o mais fraco segmento do filme.

Felizmente, o realismo de diversas outras cenas compensa estes deslizes, como quando Alonzo utiliza um mandato falso para fazer uma busca numa casa e é obrigado a fugir dali sob os tiros dos moradores locais ou quando Jake sai em disparada para salvar a garota de um estupro e luta sozinho contra seus agressores. Vale citar ainda os diversos diálogos entre os dois policiais que contrapõem visões muito diferentes de mundo e que provocam boas reflexões.

No entanto, é mesmo nas atuações que “Dia de Treinamento” garante seu sucesso. Demonstrando o desconforto de Jake desde o início em sua casa e na primeira conversa com Alonzo num café, Ethan Hawke consegue a difícil tarefa de encarar de frente a excepcional atuação de Denzel Washington sem jamais soar inferior por estar vivendo um novato e, o que é ainda melhor, ampliar o impacto dela ao expor os reflexos das atitudes do veterano em seu personagem com destreza. Com suas expressões minimalistas, Hawke humaniza o personagem, transmitindo seus medos e dúvidas com precisão e, de quebra, saindo-se muito bem em momentos que exigem mais expressividade, como quando surge chapado após consumir as drogas roubadas pelo parceiro. Aliás, a forma como Hawke nos convence de que Jake será capaz de suportar as provações às quais é submetido é crucial para o sucesso da narrativa.

Ameaçador, descolado e já muito à vontade naquele universo, o Alonzo de Washington é o típico policial corrupto que já sabe todos os caminhos que pode percorrer e, mais do que isso, imagina que sabe até mesmo como lidar com jovens idealistas como Jake, apostando na dureza de seu comportamento e no choque como forma de convencer o jovem a aceitar seus métodos controversos, uma vez que, na visão dele, somente assim é possível vencer o crime organizado – e seus números impressionantes reforçam sua visão, já que por mais questionáveis que sejam, estes métodos levaram-no a prender muitos criminosos poderosos ao longo dos anos. Por outro lado, ele parece não dar a mínima para eventos cotidianos que não possam impulsionar sua carreira, o que o leva a pacientemente acender um cigarro e fumar enquanto Jake se engalfinha com dois criminosos numa rua defendendo uma jovem que estava prestes a ser estuprada. O que mais impressiona, no entanto, é como Alonzo acredita de fato no que diz e na forma que age, como fica explícito na conversa em que explica o conceito dos lobos e ovelhas para Jake ou quando, de forma irônica, pede ao jovem que recolha as provas recolhidas ilegalmente do traficante Blue, vivido pelo icônico Snoop Dogg. Para ele, os fins justificam os meios e aquela era a única forma de sobreviver naquele ambiente. A energia de Washington no papel é contagiante, conquistando o espectador mesmo diante de diversas atitudes reprováveis – e seu sorriso quando Jake utiliza um de seus bordões contra ele chega a ser comovente, evidenciando o quanto acreditava em seus próprios métodos.

Insinuando a corrupção policial logo de cara quando Jake diz para a esposa que ela deveria ver as casas que eles têm, referindo-se aos chefes de divisão da Polícia, “Dia de Treinamento” não hesita em questionar os riscos intrínsecos ao poder concedido a estes profissionais nos Estados Unidos, onde, por exemplo, existe o malfadado excludente de ilicitude proposto recentemente em nosso Brasil, que permite um policial matar em serviço, algo escancarado na citada cena do assassinato de um traficante, minuciosamente planejado por Alonzo. “Só por que temos distintivos é diferente?”, questiona Jake após o crime. A conversa a seguir dentro do carro expõe as visões opostas dos personagens, com Jake transtornado pelo que viu enquanto Alonzo demonstra compreensão pela reação dele e, estrategicamente, elogia o parceiro, numa tentativa de elevar a autoestima do rapaz para ganhar sua empatia e atraí-lo para aquele mundo. Só que Fuqua não deixa margem para interpretações e evidencia que reprova o comportamento de Alonzo, punindo o personagem na conclusão da narrativa e ratificando Jake como herói, o que não deixa de ser decepcionante pela forma ambígua que ambos foram desenvolvidos até ali.

De toda forma, os questionamentos levantados em “Dia de Treinamento” são muito válidos e ainda atuais, sendo aplicáveis não somente nos Estados Unidos, mas em outros países como o Brasil. Como deve agir um policial para sobreviver num ambiente em que está sob constante ameaça e no qual criminosos não hesitarão um segundo sequer antes de tirar-lhe a vida? Por outro lado, até onde este mesmo policial pode ir? Certamente não é aceitável roubar suspeitos e utilizar estes objetos roubados em negociações com informantes, atuar como juiz e não apenas condenar suspeitos como assassiná-los por interesses próprios ou consumir as mesmas drogas que busca retirar das ruas – e é relevante refletir sobre isso numa sociedade que muitas vezes confunde a busca por segurança com sede por vingança. Ao mesmo tempo em que é preciso oferecer proteção aos cidadãos e aos próprios policiais, também é preciso refletir sobre os riscos inerentes ao excesso de poder que por vezes é conferido a eles. Esta é a melhor discussão que o filme de Fuqua pode fomentar e é por isso que o terceiro ato decepciona ao transformar Alonzo num monstro unidimensional e afastá-lo do espectador.

Mesmo com estes deslizes, “Dia de Treinamento” funciona bem como um retrato da corrupção policial e da complexa situação vivida por quem é jogado na guerra ao tráfico, sejam policiais, sejam cidadãos comuns. Sedimentado em duas atuações brilhantes, funciona como bom entretenimento sem que por isso deixe de provocar reflexão, ainda que um terceiro ato melhor trabalhado pudesse elevar sua complexidade temática e narrativa. Imperfeito como Alonzo, num primeiro momento o longa de Antoine Fuqua conquista o espectador da mesma forma magnética com que o veterano policial faz com todos ao seu redor e, posteriormente, nos afasta da mesma maneira como Jake se afasta dele.

“Você quer ir para a cadeia ou ir para casa?”. Jake preferiu ir para casa. Sorte dele.

Texto publicado em 09 de Junho de 2019 por Roberto Siqueira

CIDADE DOS SONHOS (2001)

(Mulholland Dr.)

 

 

Videoteca do Beto #244

Dirigido por David Lynch.

Elenco: Naomi Watts, Laura Harring, Justin Theroux, Ann Miller, Lee Grant, Melissa George, Robert Forster, Brent Briscoe, Dan Hedaya, Monty Montgomery, Katharine Towne, Lori Heuring, Billy Ray Cyrus, James Karen, Chad Everett, Geno Silva, Jeanne Bates, Mark Pellegrino, Patrick Fischler e Michael Cooke.

Roteiro: David Lynch.

Produção: Neal Edelstein, Tony Krantz, Michael Polaire, Alain Sarde e Mary Sweeney.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Famoso por construir narrativas surrealistas povoadas por personagens bizarros envoltos numa atmosfera sufocante, David Lynch já tinha pavimentado uma carreira de sucesso através de filmes como “O Homem Elefante”, “Veludo Azul” e “Coração Selvagem” quando a obra-prima “Cidade dos Sonhos” chegou aos cinemas. Aclamado pela crítica, o longa ganhou status de cult ao longo dos anos, chegando a liderar a lista dos melhores filmes do século da BBC de Londres e sendo alvo durante anos de minuciosos debates entre cinéfilos na internet em busca de desvendar as pistas deixadas na narrativa para embasar suas interpretações. Ciente disso, Lynch jamais caiu na tentação de explicar maiores detalhes sobre seu filme, deixando aos fãs a deliciosa missão de interpretar tudo aquilo segundo suas próprias visões e experiências.

Como de costume escrito pelo próprio Lynch, “Cidade dos Sonhos” acompanha a trajetória de Betty (Naomi Watts), que deixa o Canadá e parte para Los Angeles em busca de realizar o sonho de ser atriz. Ao chegar na casa de sua tia, ela depara-se com outra jovem garota (Laura Harring) que acaba de sobreviver a um acidente de carro e está totalmente desorientada, incapaz de lembrar o próprio nome. Comovida com a situação, Betty tenta ajudá-la a recordar sua própria história enquanto tenta emplacar na concorrida indústria cinematográfica de Hollywood. Enquanto isso, o diretor de cinema Adam Kesher (Justin Theroux) é coagido pela máfia a contratar a atriz Camilla Rhodes (Melissa George) para estrelar seu próximo filme.

Logo após a pequena introdução que antecede o letreiro da rua Mulholland Drive que inspira o nome original do filme, Lynch mergulha sua câmera em um travesseiro, num movimento chave para que, mais cedo ou mais tarde, o espectador compreenda um pouco melhor o universo onírico para o qual será sugado durante quase toda a projeção. Apoiado em um roteiro bastante complexo que bebe diretamente na fonte noir, “Cidade dos Sonhos” nos transporta pelo pesadelo de uma jovem angustiada pelo que fez e que parece condenada a não mais acordar (aliás, existe alguma “tradução” mais spoiler que essa?). Assim, em diversos instantes nos deparamos com personagens que parecem impotentes, paralisados diante de algo sem saber como reagir, exatamente como nos sentimos nos sonhos. Repare também como logo após o cowboy ordenar que a protagonista acorde, diversos personagens surgem em papéis diferentes do que tínhamos até então, evidenciando uma confusão também comum quando sonhamos. Da mesma forma, as cenas noturnas trazem constantemente os faróis dos carros e as luzes da cidade com intensidade maior que o normal, num uso do flare que reforça a atmosfera onírica pretendida pelo diretor, ampliada pelas misteriosas composições da trilha sonora de Angelo Badalamenti (que faz uma ponta no filme) e pelos momentos surreais como o assassinato de três pessoas num escritório envolvendo um aspirador de pó.

Repleto de diálogos estranhos, como aquele entre Adam e o cowboy (Monty Montgomery) sobre a escolha de uma atriz, o longa é repleto de momentos desconfortáveis para o espectador, tornando a experiência mais inquietante e confirmando que “Cidade dos Sonhos” é muito mais um filme para sentir do que propriamente para entender, ainda que uma coisa não exclua a outra. Apostando em movimentos de câmera cheios de estilo como o travelling pelo letreiro famoso de Hollywood que nos leva a mansão onde Betty encontraria Rita e que nos permite contemplar o local onde se passaria a narrativa, além de realçar a importância da cidade na interpretação daquilo tudo – afinal, estamos falando de uma terra onde as pessoas vão em busca de sonhos –, Lynch utiliza muitas vezes o close-up para realçar as reações dos personagens diante do universo perturbador que cria, repleto de imagens assustadoras como aquelas que acompanham a visita a casa número 17 onde a jovem Diane surge imóvel numa cama ou na sequência fantasmagórica que se passa no clube “Silêncio”, passando ainda pela pesada cena em que Betty se masturba com muito mais dor que prazer, já próximo à conclusão do filme.

Apostando num visual dominado pela noite no primeiro ato, a fotografia de Peter Deming realça o vermelho em diversos instantes (a toalha que cobre Rita e a cor de seu batom, diversas roupas de Rita e de outros personagens como Coco, etc.), o que não apenas simboliza a paixão que motivaria o crime cometido pela protagonista como também reflete o intenso sentimento de culpa dela. E se as cores sem vida do apartamento de Diane refletem seu estado de espírito após descobrirmos a razão de seu sofrimento, os figurinos de Amy Stofsky também ilustram a evolução da personagem durante a narrativa, refletindo a falta de brilho de sua vida no ato final, quando ela abandona de vez a blusa rosa e passa a usar cores opacas. Além disso, repare como Rita surge vestida de preto na cena em que abre a caixa azul e é sugada por ela, num claro simbolismo de sua morte.

Inicialmente imprimindo um ritmo mais lento e contemplativo, Lynch acelera a narrativa progressivamente até que, com o auxílio de sua montadora Mary Sweeney, construa uma sequência final que nos transporta por lugares aparentemente desconexos, mas já conhecidos pelo espectador e que ganham significados completamente diferentes na segunda ou terceira aparição, assim como ocorre com vários diálogos que ganham novos significados quando repetidos em outro contexto, como o teste de Betty para um papel, que começa numa brincadeira da montagem que simula uma discussão entre ela e Rita somente para, segundos depois, revelar que era apenas um ensaio e que torna-se infinitamente mais dramático e pesado quando ela contracena com outro ator em busca de conseguir o papel. Finalmente, vale destacar as diversas transições interessantes como o raccord sonoro que nos leva de um jantar para uma negociação numa mesa de um restaurante através de pratos que quebram.

Aliás, vale destacar como o design de som é vital para o funcionamento da narrativa justamente pela ausência do som, por exemplo, quando acompanhamos Betty andando pela casa da tia e mal conseguimos ouvir seus passos ou quando o diretor traído briga com a esposa e, enquanto ela grita e esbraveja, ele apenas age sem pronunciar palavra alguma. O silêncio, que surge no nome do clube e que é a palavra que encerra a narrativa, preenche boa parte do longa de maneira proposital, o que também remete aos mais terríveis pesadelos, quando por vezes somos incapazes de gritar ou chamar alguém próximo para nos socorrer.

Por tudo isso, “Cidade dos Sonhos” é um filme em que a sensação de estranhamento tem presença constante, fazendo com que o espectador não se sinta como alguém que pertence aquele universo (e como poderia?), o que é amplificado pelas atuações propositalmente exageradas em muitas cenas, especialmente na primeira metade do filme, quando temos reações quase caricatas de personagens como a sinistra senhora Louise (Lee Grant). No entanto, Lynch é sábio o suficiente para não permitir que seus atores passem do ponto e estraguem a experiência que ele pretende nos proporcionar, balanceando estes instantes de maneira eficiente com outros em que o realismo das atuações impressiona, especialmente nos minutos finais da projeção.

Em atuação impactante, Naomi Watts conclui a brutal transição da alegre e entusiasmada Betty para a transtornada e agressiva Diane com muita competência, convencendo em ambos os casos. A atriz transmite com precisão, por exemplo, o deslumbramento de Betty ao chegar em Los Angeles (“Agora estou neste local de sonhos”, diz ela), mostrando-se feliz por estar ali e empolgada com as portas que poderiam se abrir naquela cidade, agindo quase que de maneira infantil em boa parte do tempo, mas crescendo bastante quando necessário, como no citado teste para um desejado papel. Assim, o contraste entre a ingênua Betty e a devastada Diane do ato final chama bastante a atenção, quando Watts encarna a angústia de uma personagem atormentada pelo que fez de maneira visceral.

Com menor intensidade, Laura Harring convence tanto como a mulher que escapa de um acidente e parte em busca da identidade perdida quanto como a atriz bem sucedida que curte a fama e parece ter certo prazer em desprezar a amiga e ex-amante que faz questão de manter próxima, alternando do olhar perdido e distante de Rita para o olhar penetrante e levemente arrogante de Camilla, assim como transita de uma postura corporal assustada e defensiva para uma atitude muito mais confiante e desenvolta, que faz jus a alguém que chegou ao sucesso profissional. Obviamente, não podemos deixar de citar o bom desempenho das duas atrizes ao exalar a tensão sexual latente desde o início entre as personagens até finalmente se concretizar num ato físico quando Betty convida Rita para dormir com ela.

Espalhando pistas por toda o longa, como o close-up no nome dos funcionários do restaurante Winkle’s, Lynch constrói uma narrativa envolvente e totalmente aberta a interpretações, que estimula o espectador a formular suas próprias teorias e alimenta uma vontade quase imediata de rever o filme logo após sua conclusão, o que é sempre um bom sinal. Teria o pesadelo que inicia no travesseiro de fato se encerrado nas palavras do cowboy ou estaríamos diante de um pesadelo sem fim, viajando pela mente perturbada de uma alma condenada? Diane realmente se suicidou ou seria apenas mais um devaneio da mente perturbada da garota? A reviravolta abre diversas possibilidades e permite que cada espectador construa sua própria visão daquele universo, o que geralmente está muito mais relacionado a sua experiência de vida, as suas memorias afetivas e aos estímulos sensoriais que sentiu durante o longa do que a alguma lógica inquestionável que amarre todas as pontas do roteiro. Não é exatamente o que acontece quando tentamos compreender um sonho ao despertar? A minha visão segue a leitura mais comum entre cinéfilos, de que Diane, corroída pelo ciúme, encomenda o assassinato da ex-namorada Camilla após esta anunciar seu casamento com o diretor Adam Kesher numa festa, dorme, tem um pesadelo (que no caso domina boa parte da narrativa e embaralha diversas pessoas e acontecimentos da vida real de Diane), acorda atormentada pela culpa e comete suicídio, mas é claro que esta é apenas uma entre as inúmeras possibilidades de leitura desta obra-prima.

Sendo assim, o espectador não precisa se martirizar caso não consiga encaixar todas as peças do complexo quebra-cabeças e compreender totalmente aquele universo onírico. Nem era isso que Lynch pretendia, aliás. O diretor não é destes que gostam de entregar explicações fáceis e mastigadas, preferindo deixar o espectador livre para permitir-se levar pelas sensações e criar suas próprias interpretações. Nada daquilo precisa obrigatoriamente fazer sentido. O importante é que a experiência vivida represente alguma forma de absorção e aprendizado, ainda que deixe nossas mentes fervilhando, confusas e envolvidas num longo processo de assimilação que geralmente vem acompanhado dele…

O silêncio.

Texto publicado em 03 de Junho de 2019 por Roberto Siqueira

A VIAGEM DE CHIHIRO (2001)

(Sen to Chihiro no Kamikakushi)

 

 

Videoteca do Beto #243

Dirigido por Hayao Miyazaki.

Elenco: Vozes de Rumi Hiiragi, Miyu Irino, Yumi Tamai, Mari Natsuki, Bunta Sugawara, Ryunosuke Kamiki, Takashi Naitô, Yasuko Sawaguchi, Akio Nakamura, Koba Hayashi, Tatsuya Gashuin, Yo Oizumi, Tsunehiko Kamijô, Takehiko Ono, Ken Yasuda, Michiko Yamamoto, Kaori Yamagata, Shirô Saitô, Shigeyuki Totsugi e Yayoi Kazuki.

Roteiro: Hayao Miyazaki.

Produção: Toshio Suzuki.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Após o sucesso de “Princesa Mononoke”, o talentoso diretor japonês Hayao Miyazaki chegou a anunciar sua aposentadoria, tamanho era seu esgotamento físico e mental, mas felizmente ele desistiu da ideia. Ironicamente, seu filme seguinte se tornaria seu maior sucesso comercial, angariando grande bilheteria ao redor do mundo e conquistando prêmios de prestígio internacional como o Oscar de Melhor Animação e o Urso de Ouro em Berlim. Mas tamanho hype em torno do filme se justifica? A resposta é sim. Nos transportando para um universo fantástico repleto de figuras estranhas e imagens belíssimas, “A Viagem de Chihiro” aborda em suas diversas camadas temas muito interessantes como a família, o relacionamento entre os seres humanos e o sempre doloroso processo de amadurecimento de uma criança.

Como de costume em sua carreira, Miyazaki acumula as funções de diretor e roteirista para narrar a história de Chihiro (voz de Rumi Hiiragi), uma garota de 10 anos que muda de cidade com seus pais. Ao se aproximarem da nova casa, eles descobrem um parque aparentemente abandonado, mas a existência de um enorme banquete indica que ainda existia atividade ali. Seus pais então resolvem comer e, ao cair da noite, são transformados em porcos, levando a garota a se aventurar por um mundo desconhecido e, com a ajuda de Haku (voz de Miyu Irino), encontrar uma forma de reverter o ocorrido, mas para isso ela terá de trabalhar na casa de banho de Yubaba (voz de Mari Natsuki) onde deuses vão para relaxar.

Com suas linhas simples e belas no tradicional formado em 2D, “A Viagem de Chihiro” traz todas as características clássicas do Anime, como os olhos grandes que conferem mais expressão aos personagens, misturadas aos elementos fantasiosos que permeiam praticamente toda a carreira de Miyazaki. Hábil em nos provocar simultaneamente desconforto e fascínio, o diretor sabe exatamente onde quer nos levar desde os primeiros planos em que acompanhamos a garota entediada discutindo com os pais a caminho da nova casa. A hesitação da tímida garota antes de acompanha-los quando param o carro e a forma como ela é sempre deixada para trás indicam que aparentemente eles não dão muita atenção à ela, que parece assustada com tamanha mudança. Indícios de solidão? Talvez, mas o fato é que aquele comportamento nos deixa desconfortáveis e isso é crucial para a sequência que virá a seguir.

Assim, quando os pais dela passeiam pelo parque e sentam-se para desfrutar do banquete deixado no balcão do restaurante, as reações de Chihiro rapidamente nos levam a desconfiar que algo estava errado ali e, neste momento, a trilha sonora de Joe Hisaishi indica que algo ruim iria acontecer – e de fato acontece, para desespero da garota, agora largada a própria sorte após a transformação dos pais. O belo visual do parque dá lugar então às imagens assustadoramente fantasmagóricas e aos tons sombrios que chegam com a noite, indicando o caminho que a narrativa seguiria dali em diante e dando início ao festival de personagens sobrenaturais, como fantasmas, bruxas, espíritos divinos e animais que caminham como humanoides, entre outros.

Passamos então a viajar pelos ambientes extremamente bem detalhados e criativos da mente de Miyazaki – e do seu designer de produção Norobu Yoshida – sob a ótica assustada da garota e, assim como ela, sentimos segurança apenas quando Haku surge para ajudá-la a sobreviver naquele mundo bizarro. Misturando ambientes caóticos com outros formados por linhas retas características da arquitetura japonesa, como o quarto onde Chihiro dorme, o diretor nos leva por cenários ameaçadores como a longa escada que Chihiro desce cuidadosamente até cair e provocar um susto no espectador, amplificado pela trilha sonora que sobe o tom neste instante. A fotografia sombria de Atsushi Okui realça a tensão do momento enquanto ela se dirige as caldeiras onde encontrará o enigmático Kamaji (Bunta Sugawara) e o visual seguirá assim até que ela se adapte ao lugar e finalmente tenha a oportunidade de visitar os pais num chiqueiro, quando finalmente temos cores vibrantes através das flores do campo que ela cruza e das luzes do sol que preenchem a tela, ilustrando o sentimento de empolgação da garota por finalmente poder ver onde eles estavam.

Conduzindo a narrativa com tranquilidade e diversos momentos contemplativos, Miyazaki e seu montador Takeshi Seyama também sabem a hora de acelerar e de provocar medo, criando uma verdadeira obra-prima do terror infantil que funciona também para adultos, ainda que fugindo das convenções do cinema ocidental. Assim, não são poucos os momentos que causam desconforto. Seja pelos cenários assustadores, pelas pessoas transformadas em animais, pelas cabeças que andam sozinhas ou pelo bebê gigante, a sensação que temos é de estar viajando por um universo completamente desconhecido. Seria tudo fruto da imaginação de Chihiro ou de fato ela foi transportada para um exótico plano espiritual como indica o título em inglês e o laço em seu cabelo no final? Não sabemos e nem precisamos saber, pois neste caso o mais importante é a jornada que esta fábula nos proporciona.

Existem diversas camadas de apreciação em “A Viagem de Chihiro”, que funciona tanto como uma aventura sombria quanto como uma narrativa repleta de reflexões interessantes. Não são poucos os momentos em que Miyazaki questiona, por exemplo, a nossa cultura consumista, como quando os pais de Chihiro se entregam ao banquete disponível na cidade abandonada e são punidos por isso ou quando os funcionários da casa de banho se aglomeram e oferecem comida em troca do ouro de Sem Rosto (voz de Akio Nakamura). A busca por aceitação é outro tema muito presente no longa, evidenciado pelo próprio Sem Rosto que busca desesperadamente chamar a atenção de Chihiro enquanto ela, ao contrário de tantos outros, não se vende ao seu ouro. Da mesma forma, o bebê gigante de Yubaba queria apenas a atenção da mãe, que parece entender que amor e carinho podem ser substituídos por presentes e luxo, assim como a jornada de Chihiro em busca dos pais não se restringe ao plano fantasioso, já que no mundo real nós sabemos que a relação entre eles era distante.

E já que mencionei Yubaba, é importante ressaltar como apesar do visual assustador dela e de sua irmã Zeniba (voz de Mari Natsuki), Miyazaki evita vilanizar as personagens e acaba fazendo com que o espectador compreenda o universo delas e suas motivações, assim como Kamaji e seus vários braços que remetem a uma aranha provocam mais estranheza do que medo, servindo também para ilustrar como ele era explorado por ser o mais dedicado funcionário do local. Existem ainda muitos momentos escatológicos, como quando Sem Rosto vomita os seres que havia engolido ou quando o nojento espírito do mau cheiro entra na casa de banho – repare como a fotografia amplia nossa sensação de angústia com seus tons marrons para então dar lugar ao verde das ervas, que não apenas simboliza a esperança agora que o rio estava limpo, como confere uma sensação de alívio ao espectador ao ver toda aquela sujeira ir embora. A mensagem contra a destruição causada pela poluição dos rios é assimilada com facilidade por crianças e adultos nesta passagem que liberta o espírito do rio (voz de Koba Hayashi), reforçando a visão ambientalista tão presente nos filmes de Miyazaki.

As belas imagens durante a viagem de trem até a casa de Zeniba são marcadas pelo silêncio dos personagens que nos permite contemplar o visual e assimilar o que assistimos até então. Estas pequenas pausas eram muito valorizadas pelo diretor, que entendia que o espectador, assim como os personagens, precisava de tempo para respirar (se quiser saber mais sobre o tema, sugiro o excepcional vídeo de Max Valarezo no canal “Entre Planos”). Instantes depois, Haku, que havia adotado a forma de um dragão com rosto de cachorro que surge do mar, volta para ajudar Chihiro e protagonizar a linda cena do voo – outra marca da carreira de Miyazaki –, que traz uma importante revelação sobre a conexão entre eles no passado. A aceitação procurada por ambos finalmente se concretizava e Chihiro estava pronta para deixar aquele mundo e voltar ao seu lar.

Existe ainda uma teoria que defende um subtexto muito mais pesado em “A Viagem de Chihiro”, que seria facilmente identificado pelos japoneses e não tanto por pessoas da cultura ocidental. Segundo esta leitura, o letreiro da casa de banho (que significa “água quente”) remete aos locais onde jovens japonesas ajudavam nos banhos dos homens e também se prostituíam durante o período Edo da história do Japão. Da mesma forma, as mulheres que dirigiam estes locais eram chamadas de Yubaba (algo como “velha da água quente”), exatamente como a personagem que comanda a casa de banho no filme. Some a isso o fato de Chihiro mudar de nome quando chega lá, a forma como Yubaba pede para que ela atenda bem seu cliente e a insistência de Sem Rosto em oferecer dinheiro à ela e temos uma interpretação incrivelmente mais densa da fábula de Miyazaki, que inclusive teria confirmado em entrevistas que de fato era uma crítica à indústria do sexo e a prostituição infantil tão forte na cultura japonesa (procurei estas entrevistas e não encontrei, mas fica o registro do que li e ouvi em fontes confiáveis como o Podcast do Cinema em Cena alguns anos atrás).

Através de imagens poderosas e seres fascinantes, “A Viagem de Chihiro” nos transporta pela jornada de amadurecimento de uma garota tímida e assustada diante de uma fase de transição em sua vida de maneira mágica, nos permitindo desfrutar de um mundo fantástico e de quebra provocando reflexões. Passando ainda por críticas ao consumismo exagerado e a tradicional defesa do meio ambiente que caracteriza sua obra, Miyazaki justificava brilhantemente o retorno da aposentadoria e construía uma ponte com o ocidente que permitiria a muitos cinéfilos terem acesso à sua maravilhosa obra – o que não deixa de ser mais uma jornada bem sucedida de aceitação.

Texto publicado em 12 de Maio de 2019 por Roberto Siqueira

 

X-MEN: O FILME (2000)

(X-Men)

 

Videoteca do Beto #242

Dirigido por Bryan Singer.

Elenco: Hugh Jackman, Patrick Stewart, Ian McKellen, Famke Janssen, James Marsden, Halle Berry, Anna Paquin, Tyler Mane, Ray Park, Rebecca Romijn, Bruce Davison, Shawn Ashmore, Shawn Roberts e Aron Tager.

Roteiro: David Hayter.

Produção: Lauren Shuler Donner e Ralph Winter.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

É verdade que o cinema já tinha exportado dos quadrinhos para a telona a história de personagens como o Superman ou o Batman quando “X-Men: O Filme” foi lançado, ainda na virada do século, mas o fato é que o longa dirigido por Bryan Singer representa um marco na história dos filmes baseados em HQ’s. Até então, a relação entre filmes e HQ’s era marcada por altos e baixos, atingindo o fundo do poço no terrível “Batman & Robin”, de Joel Schumacher, que quase sepultou as chances dos grandes estúdios voltarem seus olhos para personagens dos quadrinhos novamente. Foram precisos 3 anos para que um grande estúdio abrisse as portas outra vez para uma adaptação. Felizmente, o excelente trabalho de Singer não apenas restaurou a imagem arranhada das adaptações de HQ’s diante da crítica e do público como ainda marcou o início de uma era de enorme sucesso para filmes do gênero que dura até hoje.

Escrito por David Hayter, “X-Men: O Filme” tem início quando um grupo de mutantes se vê ameaçado pelo projeto de lei do senador conservador Kelly (Bruce Davison) que, caso aprovado, obrigaria todos a revelarem suas identidades. Liderados pelo professor Xavier (Patrick Stewart), parte deles busca pacificamente manter sua dignidade diante de uma sociedade que tem enorme dificuldade em aceitá-los, supostamente por conta de seus poderes especiais e os riscos que eles poderiam representar. Outra parte, liderada por Magneto (Ian McKellen), entende que a única forma de sobreviver é através do confronto com os seres humanos, o que leva o primeiro grupo a defender os mesmos que tanto preconceito demonstram por eles.

Investindo mais tempo nos dilemas dos personagens do que nas cenas de ação em si, Singer e seus montadores Steven Rosenblum, Kevin Stitt e John Wright acertam ao focar naquilo que o longa realmente traz como diferencial, explorando questões políticas e sociais universais como a perseguição as minorias por uma maioria autoritária e influente – substitua os mutantes por judeus, negros, gays ou mulheres e a discussão será a mesma. Ao inserir um subtexto político contemporâneo, “X-Men: O Filme” consegue não apenas a empatia de muitos espectadores como deixa claro que a abordagem será bem diferente do que era usual em filmes baseados em HQ’s, demonstrando ambição temática sem por isso deixar de funcionar como filme de ação.

Esta opção fica clara já nos minutos iniciais quando acompanhamos a traumática infância de Magneto num campo de concentração nazista, numa sequência que torna-se ainda mais pesada pela escolha da paleta acinzentada da fotografia de Newton Thomas Sigel, que contrasta com as cores mais quentes que dominarão o filme posteriormente. Em seguida, somos apresentados aos temas centrais da narrativa, como o preconceito gerado pelo medo do que é diferente, a intolerância, os temores da raça humana diante dos poderes dos mutantes e os dilemas dos próprios mutantes, que temem serem segregados por conta de seu DNA evoluído. Pois sim, “X-Men: O Filme” claramente trata o conceito de mutação como uma evolução da espécie através de frases como “Nós somos o futuro”, ao mesmo tempo que escancara sua crítica ao preconceito em frases como “Não somos todos assim” ou diálogos entre os próprios mutantes como:

– “Você odeia os humanos?”

– “Sim.”

– “Por que?”

– “Acho que tenho medo deles.”

É interessante notar também como os poderes dos mutantes são apresentados não como algo divertido, mas como um fardo que traz dilemas para muitos deles. Assim, ao contrário de muitos filmes de super-heróis em que simplesmente acompanhamos os personagens utilizando seus poderes para vencer a clássica luta entre o bem e o mal, aqui o que temos são reflexões sobre como de fato seria caso existissem seres tão poderosos em nosso meio e como eles próprios se sentiriam diante de tanto poder e da desconfiança dos seres humanos em relação a isso.

A apresentação do universo dos X-Men e dos personagens em si também é muito bem conduzida pelo diretor, que não precisa de muitos minutos para estabelecer questões importantes como a incapacidade de Vampira (Anna Paquin, muito bem por sinal) de ter contato físico e o efeito psicológico que isso gera nela, além de trabalhar bem a expectativa dos fãs em momentos como a apresentação de Wolverine (Hugh Jackman), que surge inicialmente de costas, para somente depois demonstrar sua força através da expressão raivosa, do olhar compenetrado e, claro, da potência de seus golpes – e Jackman se sai muito bem na tarefa de encarnar um dos mais icônicos ex-humanos. A lamentar, apenas a forma infantil como ele e Ciclope (James Marsden) passam o tempo todo se alfinetando.

Outros mutantes não demoram a surgir e, de maneira eficiente e econômica, Singer introduz um a um na narrativa, estabelecendo rapidamente a divisão entre os que buscam conviver pacificamente com os humanos e os que buscam o conflito, numa abordagem unidimensional que, acredito eu, segue a tradição dos quadrinhos (e aqui deixo claro que não sou grande conhecedor de HQ’s), mas que não prejudica o desenvolvimento dos personagens centrais. Um dos grandes méritos, aliás, reside justamente no desenvolvimento de um vilão que não apenas tem um passado trágico como ainda apresenta motivações bastante plausíveis. Afinal de contas, como podemos julgar o temor de alguém que já sofreu na pele os horrores da segregação racial? Assim, Ian McKellen compõe um personagem que rivaliza em inteligência com o centrado professor Xavier vivido com serenidade por Patrick Stewart, ganhando o respeito do espectador e de quebra protagonizando uma das cenas mais emblemáticas do longa, quando controla os carros e armas da polícia e demonstra todo seu poder.

Com tantos personagens interessantes e um subtexto dramático mais profundo, “X-Men: O Filme” nem precisaria, mas até que funciona bem nas sequências de ação, ainda que não traga lutas tão bem coreografadas e que seus efeitos visuais hoje soem datados, com exceção daqueles que demonstram como funciona o localizador cerebral de Xavier. Datada também é a trilha sonora de Michael Kamen, com notas rápidas que destoam da composição principal em boa parte do tempo. Por sua vez, o design de produção de John Myhre e os figurinos de Louise Mingenbach conseguem dar vida aquele universo, apesar do exagero no aspecto visual de personagens como Dentes-de-Sabre (Tyler Mane), Groxo (Ray Park) e principalmente Mística (Rebecca Romijn). Vale destacar ainda a empolgante escola dos mutantes administrada pelo professor Xavier e explorada com calma por Singer, permitindo ao espectador se familiarizar com os personagens e acompanhar o interessante processo de aprendizagem deles.

Encerrando a narrativa com um simbólico jogo de xadrez entre os dois amigos e rivais Xavier e Magneto, “X-Men: O Filme” cumpre muito bem a missão de estabelecer um universo que serviria como base para os próximos filmes da série sem por isso deixar de amarrar suas pontas e ter uma conclusão satisfatória para sua própria narrativa. Mais do que isso, conseguiu resgatar a confiança de Hollywood num gênero até então subestimado, elevando o patamar das produções sobre super-heróis e estabelecendo um padrão que seria seguido desde então. Os inúmeros grandes filmes que surgiram nestas quase duas décadas seguintes devem muito a Wolverine e companhia.

Texto publicado em 01 de Maio de 2019 por Roberto Siqueira

TRAFFIC (2000)

(Traffic)

 

 

Videoteca do Beto #241

Dirigido por Steven Soderbergh.

Elenco: Benicio Del Toro, Jacob Vargas, Tomas Milian, Clifton Collins Jr., Don Cheadle, Luis Guzmán, Miguel Ferrer, Catherine Zeta-Jones, Steven Bauer, Dennis Quaid, Michael Douglas, Amy Irving, Erika Christensen, Topher Grace, James Brolin, Albert Finney, Benjamin Bratt, Yul Vazquez, Salma Hayek e Peter Riegert.

Roteiro: Stephen Gaghan.

Produção: Laura Bickford, Marshall Herskovitz e Edward Zwick.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Entrelaçar várias linhas narrativas não era exatamente uma novidade quando “Traffic” chegou aos cinemas na virada do milênio. Vários cineastas de peso já haviam feito algo parecido até então. Também não tinha nada de novo em abordar o tráfico de drogas e seus trágicos efeitos sociais. Diversos filmes tentaram, sob diferentes pontos de vista e com maior ou menor sucesso, fazer isso. No entanto, a razão do sucesso do longa dirigido com maestria por Steven Soderbergh reside exatamente na mistura das duas coisas. Dando vida a um roteiro ambicioso que trazia nada menos que 110 personagens, o diretor conseguiu traçar um complexo painel sobre o tema, fugindo de estereótipos e maniqueísmos e deixando claro que trata-se de uma questão muito mais ampla, profunda e difícil do que sugerem as soluções prontas e simplistas que ainda hoje ouvimos por aí.

Escrito por Stephen Gaghan, “Traffic” nos apresenta ao juiz Robert Wakefield (Michael Douglas) quando este se prepara para assumir o cargo de chefe da luta contra o tráfico de drogas em Washington enquanto sua filha Caroline (Erika Christensen) se aprofunda no vício, algo que sua esposa Barbara (Amy Irving) já sabia há algum tempo. Em San Diego, o figurão do tráfico Carlos Ayala (Steven Bauer) é preso, para surpresa de sua esposa Helena (Catherine Zeta-Jones) que se sente obrigada a inteirar-se dos negócios do marido e acaba envolvendo-se em busca da manutenção do padrão de vida que tinha, sem saber que está sendo monitorada pelos policiais Ray (Luis Guzmán) e Montel (Don Cheadle), que também têm a missão de manter o pequeno traficante Eduardo Ruiz (Miguel Ferrer) sob custódia, pois ele é parte chave da investigação contra Ayala. Enquanto isso, o policial mexicano Javier Rodriguez (Benicio Del Toro) acompanha o trabalho do general Salazar (Tomas Milian), que supostamente tenta desmontar o cartel de Tijuana.

Como fica evidente no parágrafo anterior, “Traffic” se propõe a analisar a questão das drogas em suas várias camadas de maneira contundente, abordando desde a dificuldade de controlar as fronteiras e de rastrear os poderosos que controlam o tráfico até a forma como as drogas estão disseminadas em todas as classes sociais. Neste sentido, é interessante como o longa jamais cai na tentação de colar rótulos, mostrando como um traficante de armas como Francisco Flores (Clifton Collins Jr.) pode perfeitamente morar em San Diego nos Estados Unidos e, ainda assim, ter influência no tráfico do outro lado da fronteira. Da mesma forma, podemos acompanhar jovens ricos que abusam das drogas enquanto discutem um tema qualquer, ao passo em que nas periferias muitas vezes a venda ilegal dos narcóticos representa uma oportunidade que muitos dali raramente teriam de obter lucros altíssimos, algo que boa parte da fatia rica da população certamente faria se estivesse naquela situação, como fica evidente no excelente diálogo entre Seth (Topher Grace) e Robert num carro sobre a realidade do tráfico de drogas que provoca esta reflexão.

Conduzindo esta intricada narrativa de maneira firme, Soderbergh nos brinda com momentos de alta tensão como a negociação entre Ray, Montel e Ruiz logo no início que desencadeia um tiroteio e uma perseguição pelas ruas de San Diego. Abusando da câmera de mão, o diretor confere um ar documental ao longa que se encaixa muito bem no tom proposto e aumenta a sensação de realismo e a imersão do espectador naquele universo. Também é muito interessante a forma como os personagens se cruzam fisicamente em vários instantes de maneira orgânica e natural, evidenciando com sutileza como todos estão de alguma forma interligados. Obviamente, a montagem de Stephen Mirrione é crucial neste processo, mantendo o espectador igualmente interessado nas três linhas narrativas através da forma que alterna entre elas, sem jamais parecer se estender demais em alguma delas.

Ainda mais impactante é a fotografia do próprio Steven Soderbergh (que usa o pseudônimo Peter Andrews), que além de ajudar o espectador a se situar através dos diferentes filtros, de quebra traz também funções narrativas. Assim, enquanto o visual amarelado reforça o calor e o clima seco do México, fazendo com que o espectador sinta-se sufocado naquele ambiente hostil, os tons azulados em Washington servem não apenas para realçar a frieza do universo político onde decisões que custarão milhares de vidas são tomadas, mas também para transmitir o desconforto crescente de Robert ali. Já em San Diego, as cores naturais simbolizam o ponto de equilíbrio entre os tons predominantes daqueles dois universos distantes, já que naquele ambiente os efeitos das ações de ambos se cruzam, como fica evidente quando dois agentes norte-americanos se encontram com Javier numa piscina, onde o brilho do sol mistura-se ao azul da piscina. Fechando a parte técnica, vale destacar também a trilha sonora de Cliff Martinez, que com suas notas longas e uso de sintetizadores, amplia a tensão em diversos momentos.

O outro grande mérito de Soderbergh reside nas excelentes atuações que ele consegue extrair de seu vasto elenco, a começar por Tomas Milian, que confere dualidade ao general Salazar em momentos como quando ele se aproxima de Flores, dando a entender que iria protegê-lo das desumanas torturas apenas para, em seguida, obter a informação que precisava. Ainda no México, Benicio Del Toro oferece uma atuação estupenda como Javier, um personagem complexo que precisa se adaptar e sobreviver num ambiente extremamente hostil, algo que faz com maestria graças a sua habilidade de ler o cenário em que está inserido e agir de acordo com o que cada situação exige.

Catherine Zeta-Jones também está muito bem como Helena, vivendo um arco dramático interessante na pele da esposa que não sabia (ou não queria saber) a natureza real dos negócios do marido e que acaba assumindo as rédeas, chegando a viajar para o México para negociar diretamente com os fornecedores. Esta mudança começa a ficar evidente, por exemplo, durante o julgamento de Carlos, quando a câmera que foca constantemente nela ao invés do marido realça a importância daquela ocasião para a personagem. Em certo momento, ela diz que seu filho não irá viver na pobreza que ela viveu, evidenciando que seria capaz de fazer qualquer coisa para manter o status que tinha atingido. Ciente desta característica de Helena, Arnie (Dennis Quaid) se aproveita da situação e se envolve com a esposa de seu sócio, reforçando como não existem inocentes neste verdadeiro jogo de interesses. Do lado de fora da mansão, Luis Guzmán e Don Cheadle nos divertem com os diálogos entre Ray e Montel, como aquele em que falam sobre o vício de um deles no cigarro e quando Ray afirma que sonhava com o momento em que pegaria figurões, ricos e brancos cometendo um crime.

Núcleo dramaticamente mais pesado da narrativa, a família Wakefield simboliza perfeitamente a hipocrisia da chamada guerra ao tráfico, como fica evidente quando a Barbara de Amy Irving menciona a própria juventude para contrapor os argumentos do marido e lembrá-lo que ela também já usou drogas ou quando joga na cara dele o seu vício em bebidas – e repare como ele reage negativamente afirmando que não pode ser considerado alcóolatra, como se o vício dele fosse diferente dos demais. Por sua vez, Erika Christensen rouba a cena com sua ótima atuação na pele da viciada Caroline, destacando-se em diversos momentos, como quando demonstra sua resignação no primeiro encontro com outros viciados, deixando evidente que não estava preparada para aquilo, mas principalmente nas crises provocadas pelas drogas, quando surge com olhar arregalado e a boca entreaberta, praticamente nos fazendo sentir o prazer e a dor da personagem com suas expressões. E finalmente, Michael Douglas compõe com sutileza e sensibilidade um homem que, entre um copo e outro de uísque, tenta conciliar a árdua tarefa profissional que lhe foi atribuída com a ainda mais difícil missão de compreender o universo da filha viciada, completando seu arco dramático em dois momentos comoventes, primeiro num quarto de hotel e depois quando interrompe um discurso pré-fabricado para dizer o que realmente pensa, abandonar o cargo e escancarar a posição antiguerra às drogas do filme.

Instantes antes de seu personagem ser envenenado, Miguel Ferrer tem seu grande momento na pele de Ruiz ao oferecer uma visão muito interessante sobre a inutilidade do trabalho daqueles policiais que, digamos, estão apenas enxugando gelo, num dos inúmeros instantes em que “Traffic” critica abertamente a falida guerra às drogas – e a cena do envenenamento, aliás, também é muito bem conduzida pelo diretor, fazendo com que o previsível desfecho soe verossímil. A belíssima sequência final em que crianças mexicanas jogam basebol sob as luzes que iluminam o campo exatamente como sonhado por Javier, que contempla tudo aquilo embalado pela bela trilha sonora, evoca uma certa esperança sem soar como uma solução fácil para um problema extremamente complexo. Afinal, não custa sonhar com um futuro onde jovens de periferia possam passar suas noites divertindo-se e praticando esportes ao invés de lutarem para sobreviver diante do medo provocado por políticas míopes criadas por pessoas distantes daquela realidade.

Ambicioso e extremamente bem conduzido, “Traffic” é um libelo contra a inútil guerra ao tráfico, traçando um amplo painel político e social sobre um tema tantas vezes tratado de maneira simplista. Ao contrário do que pregam pessoas com pensamento binário e, pior ainda, poderosos que vivem de frases de efeito para ganhar projeção, a questão das drogas não tem solução fácil e, como fica evidente no longa, atinge todas as camadas da sociedade em maior ou menor grau, com resultados trágicos para muitas delas – sejam os que sofrem os efeitos do vício, sejam aqueles que são diretamente afetados não pelas drogas em si, mas pela imbecil guerra que traz o conflito para dentro das periferias, enquanto os que realmente faturam com aquilo dormem tranquilos em seus bairros de elite em países como os Estados Unidos ou o Brasil.

Texto publicado em 22 de Março de 2019 por Roberto Siqueira

SABOR DA PAIXÃO (2000)

(Woman on Top)

 

 

Videoteca do Beto #240

Dirigido por Fina Torres.

Elenco: Penélope Cruz, Murilo Benício, Harold Perrineau, Mark Feuerstein, John de Lancie, Anne Ramsay, Ana Gasteyer, Lázaro Ramos, Wagner Moura, Carlos Gregório, Daniele Suzuki, Cléa Simões e Otávio Martins.

Roteiro: Vera Blasi.

Produção: Alan Poul e Nancy Paloian-Breznikar.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Uma das coisas que sempre evito fazer ao assistir um filme é criar expectativas, pois, como sabemos, a expectativa é a mãe da decepção. Sendo assim, o fato de “Sabor da Paixão” ter Penélope Cruz, Murilo Benício, Lázaro Ramos e Wagner Moura em seu elenco não interferiu na avaliação que fiz do longa – se assim fosse, teríamos o primeiro caso de nota negativa da história do Cinema & Debate. Pois o fato é que o filme dirigido pela venezuelana Fina Torres é tão fraco, mas tão fraco, que para ser ruim teria que melhorar bastante.

Escrito pela brasileira Vera Blasi, “Sabor da Paixão” conta a trajetória de Isabella (Penélope Cruz), a dona de um restaurante em Salvador que, após descobrir a traição de seu marido Toninho (Murilo Benício), decide abandonar o país e tentar uma nova vida em San Francisco. Já nos Estados Unidos, ela é convidada a assumir o comando de um programa televisivo sobre culinária, apoiada pelo amigo travesti Monica Jones (Harold Perrineau), enquanto no Brasil Toninho busca encontrar formas de reconquistar sua esposa, com a ajuda dos amigos Rafi (Wagner Moura) e Max (Lázaro Ramos).

Não chega a surpreender que uma produção norte-americana sobre o Brasil seja repleta de clichês e estereótipos, ainda que a direção de uma venezuelana e o roteiro escrito por uma paulistana pudessem trazer pontos de vista diferentes e tornar a narrativa mais rica, o que infelizmente não é o caso. Dentre o festival de estereótipos sobre o Brasil que desfilam ininterruptamente durante os quase insuportáveis 92 minutos de projeção, ao menos a trilha sonora de Luis Bacalov traz alguns bons momentos recheados de bossa nova antes de tornar-se enjoativa pela falta de variação e excessiva repetição. E não é exagero dizer que os pontos positivos do longa param por aí. Com muito boa vontade, podemos dizer que a fotografia de Thierry Arbogast consegue estabelecer alguma diferença entre os tons coloridos da nova vida da protagonista nos EUA e o tom pasteurizado na Bahia, que remetem ao estado de espírito dela, assim como a montadora Leslie Jones (que incrivelmente trabalhou em ótimos filmes como “Além da Linha Vermelha” e “Embriagado de Amor”) demonstra alguma inspiração através de elipses que utilizam o céu e um outdoor de Isabella. Os efeitos visuais ruins, notáveis nas sequências exotéricas, completam a parte técnica do longa.

Errando em praticamente todas as decisões, a diretora Fina Torres jamais consegue manter o espectador interessado na narrativa, o que é ainda mais grave se levarmos em conta o talentoso elenco que ela tinha em mãos. Para começar, a decisão de trazer atores brasileiros falando em inglês mesmo no Brasil, obviamente visando agradar ao público norte-americano, nos tira completamente do ambiente e torna tudo muito artificial e pasteurizado. Esta intenção é reforçada pela transmissão da ideia de um Brasil que vive de sol, sexo e água de coco, imagem esta que muitos estrangeiros ainda tem do país. No entanto, para o papel principal, Torres aposta na espanhola Penélope Cruz, na época uma estrela em ascensão, mas inegavelmente uma escolha bastante duvidosa que tenta se passar por brasileira sem pronunciar uma palavra em português, o que poderia ser amenizado se ao menos sua personagem fosse interessante.

Apostando em sua inegável sensualidade, Cruz não consegue contornar os graves problemas do roteiro, vivendo uma Isabella sem personalidade, que abandona sua cidade, sua profissão e seu restaurante e, mesmo assim, ainda corta o dedo durante uma aula pensando no marido que a traiu. Chega a ser vergonhosa, por exemplo, a sequência em que ela o aceita em seu programa com enorme facilidade, como se nada tivesse ocorrido até então. Da mesma forma, soa completamente artificial a maneira como ela rapidamente se transforma de talentosa cozinheira em âncora de um programa de TV, surgindo de repente com plena desenvoltura na frente da tela, como se fizesse isso há décadas. Por sua vez, Murilo Benício não fica atrás, criando um Toninho histérico e sem carisma, que representa o verdadeiro mala e jamais justifica a atração que a protagonista sente por ele, protagonizando ainda cenas pavorosas como aquela em que canta na cadeia acompanhado de um som não diegético que torna tudo ainda mais artificial. Ao menos, Harold Perrineau nos diverte com sua simpática atuação na pele do travesti Monica, enquanto Mark Feuerstein quase salva o tímido produtor Cliff, mas acaba sendo demonizado pelo roteiro.

Chega a ser curioso como um longa com tantas mulheres no processo produtivo pode ser tão machista. Vejamos: Toninho trai a mulher por que, acredite se quiser, ele não consegue dominar a relação sexual – o que explica o título original do filme. Poderia ser mais ridículo? Calma que tem mais. Frases carregadas de machismo como “Homem que ama sua mulher não se deixa ser pego com outra” e o famoso “Mas eles são homens” que tenta justificar o injustificável surgem a todo momento, o que já seria imperdoável num roteiro escrito por um homem, mas torna-se ainda mais embaraçoso vindo de uma mulher. Para piorar, o roteiro estereotipa completamente a mulher brasileira e o Brasil em geral, vendendo uma imagem feita sob medida para agradar estrangeiros que nunca tiveram o trabalho de buscar se informar sobre o país – e, justiça seja feita, até mesmo brasileiros costumeiramente criam imagens totalmente desconexas da realidade de outras regiões que, normalmente, nunca conheceram. Praticamente todos os clichês brasileiros estão presentes no péssimo roteiro de Blasi, que traz ainda um final exotérico, previsível e nada original.

Nem mesmo como comédia romântica “Sabor da Paixão” funciona, trazendo momentos embaraçosos como quando o produtor de TV é convencido pelo aroma de um alimento a mudar de ideia, quando obviamente o aroma não consegue ultrapassar a tela. Em resumo, o longa não tem momentos engraçados – nem mesmo Wagner Moura e Lázaro Ramos salvam -, os personagens não são carismáticos e o casal não tem química.

Ironicamente, uma cena de “Sabor da Paixão” exemplifica perfeitamente muitos de seus graves problemas. Em certo momento, os produtores estragam o programa de culinária de Isabella ao retirar a liberdade criativa de sua âncora e pasteurizá-lo para a grande massa, retirando sua espontaneidade da mesma forma como ocorre no próprio longa, que vende um Brasil totalmente pasteurizado e repleto de clichês, feito sob medida para agradar a parcela do público norte-americano que enxerga o país como um paraíso exótico e fonte de turismo sexual.

Texto publicado em 13 de Março de 2019 por Roberto Siqueira

MISSÃO: IMPOSSÍVEL 2 (2000)

(Mission: Impossible II)

 

 

Videoteca do Beto #239

Dirigido por John Woo.

Elenco: Tom Cruise, Dougray Scott, Thandie Newton, Ving Rhames, Richard Roxburgh, John Polson, Brendan Gleeson, Rade Serbedzija, William Mapother, Dominic Purcell, Anthony Hopkins, Daniel Roberts e Patrick Marber.

Roteiro: Robert Towne.

Produção: Tom Cruise e Paula Wagner.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Quatro anos após o enorme sucesso de “Missão: Impossível”, a franquia de Tom Cruise inspirada na série de TV criada por Bruce Geller estava de volta aos cinemas. Após iniciar a trajetória do agente Ethan Hunt sob a direção do autoral Brian de Palma, desta vez o astro resolveu apostar no chinês John Woo, já estabelecido em Hollywood como um bem sucedido diretor de filmes de ação. Ainda que a característica peculiar e o talento de Woo na direção das sequências de ação sejam notáveis, o resultado é claramente inferior ao seu antecessor, mas eficiente o bastante para garantir a continuidade da franquia e a alegria dos fãs.

Mais uma vez escrito por Robert Towne, desta vez sem a colaboração de David Koepp, “Missão: Impossível 2” nos traz o agente secreto Ethan Hunt (Tom Cruise) sendo resgatado durante suas férias com a missão de recuperar e destruir um vírus letal desenvolvido para impulsionar as vendas do remédio capaz de curá-lo fabricado pela empresa de John C. McCloy (Brendan Gleeson), chamando a atenção do ex-agente Sean Ambrose (Dougray Scott), que enxerga no vírus uma grande oportunidade de fazer fortuna. Hunt é então convocado a montar sua equipe com uma única condição: encontrar e recrutar a ladra profissional Nyah (Thandie Newton), que é também ex-namorada de Sean.

Apostando num relacionamento amoroso que visa complicar o sempre interessante trabalho de investigação dos agentes secretos, o roteiro do experiente Towne ao menos sabe que o que o espectador busca de fato ao assistir “Missão: Impossível 2” são as mirabolantes estratégias da equipe da IMF, os aparatos tecnológicos envolvidos no processo e as coreografadas cenas de ação, investindo pouco tempo no citado caso de Ethan e em conflitos sentimentais. Por outro lado, talvez preocupado com as críticas sobre os furos do primeiro filme, o roteirista insere diversos diálogos expositivos que visam explicar as absurdas tecnologias utilizadas e as estratégias dos espiões, como se quisesse certificar-se de que o espectador está compreendendo a trama.

Ainda assim, sobra espaço suficiente para Woo se preocupar em fazer o que sabe melhor, comandando sequências de tirar o fôlego desde a eficiente abertura que já prende o espectador enquanto narra o roubo do vírus Quimera durante um voo de Sidney a Atlanta. Em seguida, reencontramos Ethan em outra pequena sequência simples e eficiente na qual acompanhamos o agente escalando uma montanha, recheada com uma dose de tensão que é minimizada pelo fato de sabermos que Ethan sobreviverá (mas admirável por sabermos que Tom Cruise dispensou o uso de dublês). Auxiliado pelos montadores Steven Kemper e Christian Wagner, o diretor mantém a narrativa sempre dinâmica, permitindo poucos momentos de relaxamento, como no primeiro encontro amoroso de Ethan e Nyah em Sevilha – e aqui vale notar como a trilha sonora de Hans Zimmer encontra espaço para composições inspiradas na música espanhola, que contrastam com as enérgicas variações baseadas na música-tema criada por Lalo Schifrin.

Abusando do uso da câmera lenta e dos movimentos circulares característicos de sua direção, Woo nos brinda com cenas eletrizantes como a perseguição de carros na montanha na qual Ethan convence Nyah a entrar para o grupo, nos colocando dentro dos carros em alta velocidade em planos que se alternam sem jamais soarem confusos, assim como ocorre na longa perseguição de motos que culmina num coreografado embate braçal entre Ethan e Sean que remete as lutas marciais. Outra sequência carregada de tensão é a que se passa no jóquei, onde o jogo de câmeras e a narração diegética da equipe de Ethan criam uma escala de suspense crescente quase palpável, assim como vale destacar a absurda e divertida entrada no prédio da Biocyte, que encontra espaço até mesmo para homenagear o primeiro filme com a clássica parada de Ethan pendurado pelo cabo há centímetros do chão.

Repare ainda como a bela fotografia de Jeffrey L. Kimball alterna entre as cores quentes na Espanha e na Austrália e as cores frias dentro da empresa farmacêutica, quebrando a regra apenas nos tons de vermelho que dominam a tela instantes antes da chegada de Sean ao local, sinalizando o perigo que Ethan corre antes do tiroteio dentro da Biocyte que termina no ato heroico e inteligente de Nyah. E se normalmente o design de som chama a atenção pelo volume dos tiros e o ronco dos motores nas cenas de ação, aqui sua importância é realçada por contraste na sequência em que Ethan invade o local da negociação entre Sean e McCloy, na qual o agente utiliza as pombas (também características do cinema de Woo) para abafar seus próprios movimentos.

Outra vez criando empatia com o espectador ao nos colocar dentro da equipe de Ethan, nos fazendo sentir-se parte do grupo durante todo o processo de investigação, “Missão: Impossível 2” acerta também ao trazer uma nova gama de aparatos tecnológicos curiosos e as instalações modernas concebidas pelo design de produção de Tom Sanders tanto na casa de Sean quanto na sede da Biocyte. No entanto, o maior destaque vai mesmo para a introdução do absurdamente divertido conceito das máscaras que transformam os espiões em outra pessoa, abrindo um enorme leque de possibilidades, mas infelizmente perdendo a força ao longo da narrativa pelo uso excessivo do recurso, o que quase estraga o melhor momento do filme, num plot twist inteligente conduzido com calma por Woo, que revela a artimanha através de um simples dedo ferido – e que espectadores mais atentos podem antecipar justamente pelo uso abusivo das máscaras até ali.

Os personagens continuam rasos, ainda que a boa química entre Ethan e Nyah, a convincente discussão em Sevilha que de certa forma humaniza ambos e a inédita vulnerabilidade do agente que coloca em risco sua missão consigam ao menos conferir um pouco mais de densidade aos dois, por mais que a forma em que ele a convence a aceitar a missão seja pouco crível. Mais uma vez encarnando Ethan com uma intensidade alucinante, Tom Cruise carrega com facilidade a narrativa, apesar do excesso de sorrisos que chega a motivar uma piada do interessante vilão composto por Dougray Scott, que torna-se ainda mais perigoso justamente por ser um ex-agente e conhecer muito sobre a IMF. Thandie Newton também consegue sucesso ao balancear a sensualidade latente de sua Nyah com a faceta humana já citada e Brendan Gleeson completa os destaques do elenco vivendo o inescrupuloso dono da Biocyte.

Divertido e recheado de ótimas cenas de ação, “Missão: Impossível 2” curiosamente escorrega ao tentar conferir mais humanidade e tridimensionalidade ao seu protagonista, quebrando levemente o ritmo da narrativa e enfraquecendo-o como agente secreto ao inserir uma história de amor que o torna mais vulnerável. Nada que atrapalhe a diversão.

Texto publicado em 30 de Maio de 2018 por Roberto Siqueira

GLADIADOR (2000)

(Gladiator)

 

 

Videoteca do Beto #238

Vencedores do Oscar #2000

Dirigido por Ridley Scott.

Elenco: Russell Crowe, Joaquin Phoenix, Connie Nielsen, Oliver Reed, Richard Harris, Djimon Hounsou, Ralf Moeller, Tommy Flanagan, Spencer Treat Clark, Tomas Arana, Derek Jacobi, David Schofield, John Shrapnel, David Hemmings, Sven-Ole Thorsen, Giannina Facio, Giorgio Cantarini, Omid Djalili, David Bailie e Tony Curran.

Roteiro: David Franzoni, John Logan e William Nicholson.

Produção: David Franzoni, Branko Lustig e Douglas Wick.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Quando foi lançado no início dos anos 2000, “Gladiador” rapidamente tornou-se sucesso de público e crítica, tornando-se um legítimo representante dos grandes épicos e coroando sua trajetória na noite do Oscar, quando venceu o prêmio de melhor filme. No entanto, nos anos seguintes o longa rapidamente entrou para o rol dos filmes vencedores do prêmio da Academia que passam de queridinhos a odiados, sendo tratado de forma pejorativa entre muitos cinéfilos. Felizmente, o distanciamento histórico permite constatar que o filme de Ridley Scott não é a obra-prima que se dizia em seu lançamento e muito menos a porcaria que outros afirmaram ser nos anos seguintes. Trata-se de um épico digno, com belíssimos momentos e uma boa dose de cenas impactantes, que merece o reconhecimento dentro daquilo que se propõe a fazer.

Escrito a seis mãos por David Franzoni, John Logan e William Nicholson, o roteiro de “Gladiador” é uma salada histórica repleta de acertos e erros desnecessários, que desenvolve seus personagens de maneira irregular, mas consegue achar um fio condutor no arco dramático de seu protagonista, o general romano Maximus (Russell Crowe) que, após anos sendo o homem de confiança do imperador Marcus Aurelius (Richard Harris), acaba sendo condenado à morte por Commodus (Joaquin Phoenix), o filho do imperador que assassina o pai para herdar o comando do império. Após sobreviver e fugir, Maximus é capturado, vendido como escravo e retorna a Roma para lutar como gladiador.

Se acerta ao mostrar como a política romana era movida por interesses pessoais, traições e o desejo pelo poder, o que nada difere do cenário político atual em muitas partes do planeta, “Gladiador” escorrega ao fazer desnecessárias alterações na história que não agregam a narrativa e nem reforçam o impacto emocional que o longa naturalmente carrega, como ao ocultar o fato de Marcus Aurelius ter preparado o filho para ser seu sucessor em seus últimos anos de vida e, o que é pior, transformar Commodus no assassino do pai, quando na verdade ele de fato exilou e mandou executar alguém de sua família, mas foi a irmã Lucilla (Connie Nielsen), algo que é ignorado pelo roteiro, que ainda traz a irmã discursando sobre o corpo do egocêntrico imperador morto no Coliseu (o que também não ocorreu, já que ele foi estrangulado enquanto tomava banho).

É verdade que Commodus adorava as lutas e chegou mesmo a entrar na arena como gladiador (ele se considerava o novo Hércules), assim como o Imperador sabia da força política do pão e circo como forma de controle da população – e seu pai jamais proibiu os jogos, ao contrário do que é dito no filme. Da mesma forma, o roteiro acerta ao retratar Lucilla articulando politicamente com o Senado para assassinar o irmão, o que motivou sua morte na história real. Nota-se, portanto, que as alterações no roteiro não precisavam existir, já que a história verdadeira é impactante e funcionaria muito bem, sendo perfeitamente possível inserir a trajetória fictícia de Maximus neste contexto.

Igualmente responsável pela versão nada fiel da história que retrata, já que é um diretor que quase sempre teve direito ao “final cut”, Ridley Scott ao menos compensa este deslize com uma direção vigorosa nos momentos mais importantes do longa. Focando muito mais na trajetória de Maximus do que na articulação política em volta dele, Scott e seu montador Pietro Scalia acertam em momentos importantes como as batalhas no Coliseu e imprimem um ritmo interessante que não deixa jamais a narrativa tornar-se cansativa. Além disso, o diretor consegue extrair boas atuações de praticamente todo seu elenco, mesmo diante de personagens desenvolvidos de maneira tão irregular.

Obviamente, o mais completo deles é o protagonista Maximus, interpretado pelo talentoso Russell Crowe, que se impõe compondo um homem sério e que transmite a virilidade exigida tanto de um general quanto de um gladiador, mas que encontra espaço para demonstrar valores caros ao personagem como a lealdade ao imperador que servia e o amor a família que deixou para trás, assim como o desejo de vingança que exala em momentos como quando ele anuncia seu verdadeiro nome para Commodus em pleno Coliseu. O raro momento em que as expressões rígidas de Maximus se quebram quando encontra a família assassinada é também aquele que comprova a capacidade de Crowe, que carrega “Gladiador” com enorme facilidade.

 

Já o Juba de Djimon Hounsou não conta com a mesma atenção do roteiro, surgindo de maneira arbitrária e rapidamente sendo transformado no grande amigo de Maximus, sendo descartado com a mesma facilidade com que aparece na trajetória do protagonista. Ainda assim, consegue criar empatia com ele, demonstrando força e lealdade até o momento final, ainda que, diferentemente da forma como é mostrado no longa, os gladiadores não faziam amizade justamente por saber que poderiam se enfrentar numa batalha em que apenas um sobreviveria.

Commodus, por sua vez, faz a completa transição do inicialmente cansado e até mesmo frágil Imperador sugado pela politicagem ao redor para o sociopata cruel e desprovido de traquejo político que não hesita em usar o sobrinho como ferramenta para ameaçar a irmã, pela qual era apaixonado. Dissimulado e exagerando nas lamentações que enfraquecem o Imperador, Joaquin Phoenix se recupera no ato final, transmitindo a insanidade de um homem que era tão egocêntrico que chegou a mudar o nome de Roma para Commodiana – algo que “Gladiador” também oculta.

Extremamente política, a Lucilla de Connie Nielsen sabe que a loucura do irmão jamais lhe permitiria conquistar o respeito do Senado e enxerga na morte dele a chance de assumir o comando do império, enquanto o Proximo de Oliver Reed é um personagem confuso, que hora parece motivado apenas pelo lucro que sua atividade lhe traz e, em outros momentos, assume um código moral incoerente com sua postura até então. Finalmente, Richard Harris completa o elenco principal vivendo um Marcus Aurelius complexo, que transmite sabedoria em seus poucos minutos em cena.

Ao contrário da irregularidade de seus personagens, a parte técnica de “Gladiador” é extremamente coesa em sua competência, a começar pela direção de fotografia de John Mathieson que realça os tons áridos da província, transmitindo a angústia do protagonista escravizado que nem mesmo na imponente Roma se dissipa, com seus tons dourados que reforçam o poderio econômico da capital do império, concluindo seu coerente trabalho no sombrio ato final que realça o sentimento de Commodus durante a tensa conversa com o sobrinho na qual ele descobre a traição da irmã. Da mesma forma, o design de produção de Arthur Max também merece destaque pela forma detalhista em que trabalha desde pequenos objetos até a decoração das imponentes construções, assim como os impecáveis figurinos de Janty Yates que complementam o ótimo trabalho de ambientação.

E enquanto a solene trilha sonora de Lisa Gerrard e Hans Zimmer cria composições que, além de belas e coerentes com a época em que se passa a narrativa, permanecem na memória do espectador por um longo período, o design de som transforma os gritos dos romanos ainda mais impactantes dentro da arena, assim como nos permite distinguir o barulho das armas, dos cavalos e o eco dos gritos na batalha que abre o longa. Por outro lado, a batalha em si não impressiona e empalidece diante de tantas outras marcantes, como a de Stirling no quase contemporâneo “Coração Valente”, lançado 5 anos antes de “Gladiador”, talvez por que Scott abuse dos planos fechados e crie uma confusão mental no espectador, que não compreende muito bem o espaço geográfico onde ocorre a cena, além da falta de planos gerais que impede que tenhamos noção da magnitude do conflito.

Planos gerais que quando surgem nos permitem contemplar a esplendorosa Roma recriada com efeitos visuais impressionantes, nos levando de volta aos anos de glória do império. Dentre as inúmeras construções grandiosas da imponente capital, é claro que o Coliseu é a grande estrela (ainda hoje, diga-se) e o trabalho de recriar a gigantesca arena é digno de aplausos. Ciente disso, na primeira vez que o adentramos, Ridley Scott nos coloca num plano baixo que acompanha os gladiadores e engrandece ainda mais o local, reforçando o impacto dele sobre os personagens e o espectador. Aliás, a primeira batalha no Coliseu é muito interessante, especialmente pelas escolhas do diretor, que desta vez acerta ao abusar de planos gerais que realçam a estratégia militar adotada por Maximus e seguida pelos companheiros. Além disso, mais uma vez o design de som colabora para nos jogar dentro da arena e tornar tudo aquilo ainda mais empolgante.

Trazendo ainda momentos emocionantes como o citado retorno de Maximus para encontrar a família cruelmente assassinada, a bela cena do beijo entre ele e Lucilla e a tocante sequência final em que deixa este mundo e reencontra sua família em outro plano qualquer, não há como negar a força deste épico grandioso, mesmo com erros históricos facilmente evitáveis. Talvez se você for frio ou cruel como Commodus. 

Texto publicado em 25 de Maio de 2018 por Roberto Siqueira

CONTOS PROIBIDOS DO MARQUÊS DE SADE (2000)

(Quills)

 

 

Videoteca do Beto #237

Dirigido por Philip Kaufman.

Elenco: Geoffrey Rush, Kate Winslet, Joaquin Phoenix, Michael Caine, Amelia Warner, Billie Whitelaw, Patrick Malahide, Jane Menelaus, Stephen Moyer, Tony Pritchard, Michael Jenn, Danny Babington, George Antoni, Stephen Marcus, Elizabeth Berrington, Bridget McConnell, Pauline McLynn, Ron Cook, Rebecca R. Palmer e Diana Morrison.

Roteiro: Doug Wright.

Produção: Julia Chasman, Peter Kaufman e Nick Wechsler.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Em certo momento de “Contos proibidos do Marquês de Sade”, o personagem título diz a seguinte frase após comandar a encenação de uma peça teatral que reconstituía, em tom bem humorado, um fato recente ocorrido na vida de um importante personagem presente na plateia: “Só erguemos um espelho, aparentemente ele não gostou do que viu”. Esta frase escancara não apenas a base da obra literária incendiária do polêmico autor francês que inspira o longa, mas também permite discussões ainda mais profundas sobre o papel da arte – o que, confesso, se torna um debate ainda mais irresistível no contexto atual que infelizmente nosso país está lentamente sendo inserido.

Escrito com habilidade por Doug Wright com base em sua própria peça teatral, o longa baseia-se em alguns fatos reais ocorridos na vida de Sade (Geoffrey Rush), acompanhando seus últimos dias de vida num sanatório comandado pelo padre Coulmier (Joaquin Phoenix), de onde ele segue escrevendo seus livros e, com a ajuda da lavadeira local Madeleine (Kate Winslet), consegue publicá-los, chamando a atenção até mesmo do imperador Napoleão Bonaparte (Ron Cook), que envia o Dr. Royer-Collard (Michael Caine) para curá-lo de sua suposta insanidade.

Conseguindo a proeza de humanizar um dos personagens mais controversos da história, o roteiro de Wright destaca-se pela qualidade de seus diálogos, intercalando momentos de acidez, leveza e refinamento e trazendo ainda diversos questionamentos interessantes, seja nas palavras cortantes do Marquês ou nas reflexões dos demais personagens. Obviamente, o foco principal está no questionamento da hipocrisia e do falso moralismo predominante em boa parte da sociedade, que finge ter aversão às histórias narradas por ele quando estão diante de outras pessoas, mas esgotam o estoque de seus livros minutos após o lançamento destes ou, quando escutam alguém relatando alguma passagem, se dizem horrorizados somente para, quando questionados se o interlocutor deve parar a leitura, responderem: “continue!”. E não se trata aqui de defender a pessoa de Sade, extremamente controversa e repugnante até, mas de defender a liberdade artística e escancarar o duplo padrão moral que reina em nossa civilização há séculos.

Associando prazer e dor, os conceitos básicos da obra de Sade, logo no plano inicial que terá um desfecho distinto do que imaginamos, Philip Kaufman conduz a narrativa com destreza, sem jamais permitir que Sade ou os demais personagens virem caricaturas. Limitando o espaço físico da narrativa ao sanatório onde ele está internado e a pequenos momentos fora dali, o diretor nos transmite a sensação de clausura do protagonista e, de quebra, nos faz mergulhar em sua mente criativa progressivamente, sem jamais romantizar demais o personagem ou ocultar seu lado sombrio. Este mergulho conta com o excelente design de produção de Martin Childs que, além de ajudar na reconstrução de época, ainda ressalta a obsessão de Sade pelo sexo através dos objetos que enfeitam seus aposentos, demonstrando também sua inquietação através da caótica disposição de seus pertences.

Da mesma forma, os figurinos de Jacqueline West são importantes não apenas para a ambientação à época, mas por dizer muito sobre cada personagem. Enquanto o Marquês adota roupas extravagantes, Coulmier e o Dr. Royer-Collard estão sempre em roupas comportadas e Madeleine usa um vestido simples, mas que não deixa de exalar sensualidade, especialmente quando está na presença do Marquês, ilustrando a dualidade natural de uma mulher que se comporta de uma maneira diante da sociedade e de outra quando está sozinha com seus pensamentos eróticos.

Enquanto isso, o diretor de fotografia Rogier Stoffers investe num visual mais vivo inicialmente, que lentamente se transforma numa paleta mais sombria e sufocante, até chegar ao inquietante momento em que Sade sussurra seu último conto, sob uma forte tempestade que acentua seu caráter transgressor e ainda antecipa o trágico final que se aproxima, tudo isso pontuado pela tensa trilha sonora de Stephen Warbeck, que até então apostava num tom mais alegre que ameniza o eventual peso que uma narrativa sobre Sade poderia ter.

Outro mérito de Kaufman, Wright e do montador Peter Boyle está na maneira bem sucedida em que a narrativa desenvolve seus quatro personagens centrais sem a necessidade de recorrer a recursos pouco elegantes como diálogos expositivos ou flashbacks, permitindo que conheçamos suas motivações de maneira clara e orgânica – e até personagens periféricos como Simone (Amelia Warner) são bem desenvolvidos mesmo com poucas cenas. É claro que a qualidade das atuações também é crucial neste processo e, felizmente, o elenco é recheado de talentos. A começar por Michael Caine que encarna muito bem o papel de falso moralista, destes que usam o nome de Deus para empregar métodos violentos de “tratamento” para as supostas aberrações da natureza, numa marca do obscurantismo que infelizmente não ficou apenas nos livros de história. Como ainda ocorre nos dias de hoje, estes supostos tratamentos escondem grandes interesses econômicos por trás, como fica evidente em sua conversa com a angustiada esposa de Sade (Jane Menelaus) e no terceiro ato, quando o Dr. Royer-Collard lucra com livros do autor que criticava e, pior, através do trabalho escravo dos pacientes do sanatório. E não deixa de ser curioso notar como para frear o impulso de um escritor que, entre outras coisas, escrevia sobre a tortura como maneira de obter prazer sexual, o médico utilize como método para a suposta cura justamente…a tortura!

Assim, ele é capaz de criticar Sade pelo conteúdo explícito de sua obra e, ao mesmo tempo, buscar a jovem Simone aos 16 anos num convento para casar-se e forçá-la a fazer sexo com ele por ser o “dever” noturno da esposa. Não à toa, ela se interessa pela obra obscena de Sade ao ponto de memorizar o livro que lia secretamente e o abandona, fugindo com outro rapaz que compreende muito melhor a alma feminina. Igualmente moralista, mas por uma razão mais genuína, o padre Coulmier é inteligente ao ponto de conseguir a amizade de Sade mesmo com uma visão de mundo completamente oposta, atraindo ainda o interesse de Madeleine por sua delicadeza e sensibilidade, numa composição muito interessante de Joaquin Phoenix. Seu padre realmente acredita que pode mudar o Marquês através do diálogo e da compreensão, sendo muito mais fiel a fé que propaga que boa parte dos puritanos da sociedade que o cerca. Observe, por exemplo, sua apreensão durante a exibição da peça citada anteriormente, segurando o crucifixo como um último refúgio de quem antevê o que irá acontecer ali. Sua fé, não apenas na religião, mas também no ser humano chega a ser tocante.

No entanto, a convivência com o Marquês serve para abalar alguns pilares de suas convicções, levando-o a ceder ao desejo por Madeleine, questionar alguns de seus dogmas e a acordar angustiado após um cruel pesadelo em que ressuscita a amada num ato de necrofilia. A morte dela e do próprio Sade levam o padre a perder a fé e abraçar de vez a insanidade. A razão para isso vai além da convivência com Sade. Obrigado a viver sob o questionável celibato que o impede de desfrutar o mais lindo sentimento que o ser humano pode sentir, o padre vê sua fé ser abalada ao descobrir a atração que Madeleine sentia por ele, numa revelação que soa natural também pela competente atuação de Kate Winslet, que cria uma personagem inocentemente sensual, o que explica a forte atração e inspiração que o próprio Marquês sentia na presença dela. Mesmo devorando cada texto de Sade, Madeleine jamais soa vulgar e ilustra muito bem a natureza humana, tão preocupada com as aparências que não se permite viver seus desejos mais secretos longe das páginas de um livro.

Já o Marquês não tinha problema algum com isso. Escancarando em palavras (e na vida real em atos, alguns deles criminosos) seus desejos e pensamentos mais obscenos, Sade chacoalhou a sociedade de sua época com histórias que exploram as mais diversas formas de sexualidade sem concessões, de tal forma que seu nome é usado em psicanálises até hoje. Mas o Marquês de Geoffrey Rush apenas sugere a crueldade do original, encarnando o personagem de uma maneira mais humana, ao ponto de soar bem humorado e sedutor em diversos instantes, o que é crucial para compreender a atração de Madeleine por suas histórias e a amizade dele com o padre. E é justamente nesta humanização que reside o grande mérito do ator, que consegue fazer com que o espectador torça pelo personagem mesmo quando este não concorda com o que ele diz, também por que o roteiro acerta em cheio ao separar o autor de sua obra, focando mais em seu direito à liberdade de expressão do que no julgamento da qualidade de sua literatura. Gostando ou não do teor de seus livros ou de sua personalidade polêmica, não iremos concordar com a censura que ele sofre e o roteirista sabe disso.

Assim, quando os métodos rígidos impostos pelo Dr. Royer-Collard entram em cena, Sade torna-se ainda mais carismático, já que o espectador tende a torcer por quem está inferiorizado na maioria das vezes. Espalhando alfinetadas no autoritarismo, nos códigos morais e até mesmo na religião através de frases cortantes como “Em condições adversas o artista floresce” ou “Este seu Deus retalhou seu filho como uma vitela, tenho medo do que faria comigo”, Sade vai sendo levado a loucura completa quando lhe privam de sua pena (daí o título em inglês Quills), usando de formas cada vez mais criativas para seguir escrevendo. Rush demonstra bem esta transformação em momentos hilários como a dança em cima da mesa com os pacientes em volta, mas também demonstra uma faceta humana, por exemplo, ao saber que Madeleine morreu virgem, sofrendo por talvez imaginar o quanto de vida ela poderia desfrutar e não pôde devido as travas impostas socialmente. Na última conversa entre eles, aliás, a pequena abertura na porta que os separa ilustra que ambos estavam aprisionados, mas de maneiras distintas. Ao menos ela desfrutou de alguma liberdade através das fantasias despertadas pela obra dele.

E aí residem outros questionamentos interessantes de “Contos proibidos do Marquês de Sade”. Teria a arte o poder de provocar reações tão fortes nas pessoas ao ponto de levá-las a cometer um crime, por exemplo, como muito tentou-se imputar aos filmes ou aos jogos de videogame nos massacres ao longo dos anos? Ou a arte serve justamente para permitir que as pessoas vivam fantasias que jamais viveriam de fato, num escapismo que influenciaria de forma positiva a sociedade? O próprio Sade questiona o padre se caso um paciente resolva andar sobre a água e morra afogado, ele culparia a Bíblia? E, diante das polêmicas recentes no Brasil, não posso deixar de questionar. Seria a controversa obra de Sade considerada arte? Eu não tenho dúvida alguma que sim. Goste ou não do conteúdo dela, é inegável que provoca reações nas pessoas e abala os pilares morais regidos por dogmas religiosos – e o ótimo longa de Philip Kaufman deixa isso bem claro.

Simultaneamente contestador e divertido, “Contos proibidos do Marquês de Sade” aborda um tema polêmico e levanta o espelho citado por Sade diante de toda a sociedade. As reações de cada um podem indicar em qual personagem da trama cada espectador se encaixa. E o mais importante é que, mesmo perseguida, polêmica e contrariando todos os questionáveis padrões morais da época (e até atuais), a obra de Sade continua viva. Esta é a beleza da arte. Não importa quanto os conservadores e falso moralistas tentem sufocá-la, ela sempre irá resistir ao tempo. Ainda bem.

Texto publicado em 01 de Novembro de 2017 por Roberto Siqueira