DONNIE DARKO (2001)

(Donnie Darko)

 

 

Videoteca do Beto #246

Dirigido por Richard Kelly.

Elenco: Jake Gyllenhaal, Holmes Osborne, Maggie Gyllenhaal, Daveigh Chase, Mary McDonnell, James Duval, Arthur Taxier, Patrick Swayze, Beth Grant, Drew Barrymore, Jena Malone, Katharine Ross, Seth Rogen, Noah Wyle, Ashley Tisdale, Patience Cleveland e Lee Weaver.

Roteiro: Richard Kelly.

Produção: Adam Fields, Nancy Juvonen e Sean McKittrick.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Pode um filme que envolve pontes de Einstein-Rosen e a filosofia da viagem no tempo ser, em última instância, um estudo sobre sentimentos? É claro que sim. Ainda que o enigmático terceiro ato abra espaço para discussões filosóficas e científicas intermináveis que permitem ao espectador se deliciar criando teorias e debatendo sobre o significado de tudo aquilo, o fato é que o cult “Donnie Darko” ancora sua excepcional estrutura narrativa em sentimentos extremamente humanos, que, por sua vez, não deixam de ser um mistério tão fascinante quanto buracos de minhoca.

Escrito e dirigido por Richard Kelly, “Donnie Darko” tem início quando o personagem título, após uma discussão familiar no jantar, escapa milagrosamente da morte ao ouvir a orientação de um misterioso coelho gigante e sair de sua casa instantes antes de uma turbina de avião destruir completamente o seu quarto. À partir daí, ele passa a seguir as instruções do coelho que afirma que o mundo acabará em 28 dias e provocar o caos na escola em que estuda, ao mesmo tempo em que se apaixona pela nova aluna Gretchen (Jena Malone) e desafia o famoso Jim Cunningham (Patrick Swayze).

Estruturado como um quebra-cabeças que envolve conceitos complexos sobre viagem no tempo, o impecável roteiro de “Donnie Darko” jamais se entrega a soluções fáceis e mastigadas, preferindo jogar pistas ao longo da narrativa para que o próprio espectador procure formular suas teorias quando o terceiro ato jogar uma enorme interrogação em sua mente. Normalmente, filmes que ousam não entregar tudo mastigado sofrem preconceito por parte de espectadores acostumados a narrativas que explicam cada ponta solta do roteiro, mas curiosamente o longa de Richard Kelly conseguiu driblar este efeito e ganhar muitos fãs após seu fracasso nas bilheterias, justamente por que a força da narrativa vai além do aspecto científico (o que por si só já garantiria um bom filme), permeando aquele universo recheado de esquisitices e acontecimentos estranhos com sentimentos universais e de fácil identificação, o que ajuda a criar empatia.

A abertura envolta em mistério e que beira o onírico em que o garoto desce uma estrada sinuosa numa montanha já dá o tom da narrativa, passando por um primeiro ato dominado por cenas que refletem o estado de espírito do protagonista, deslocado tanto na escola quanto em sua própria família, algo refletido também nas roupas azuis que ele veste durante boa parte do filme e que simbolizam sua melancolia – o que é mérito dos figurinos de April Ferry, que também acerta na caracterização bizarra do gigante coelho que atormenta Donnie, criando um personagem icônico. Na medida em que Donnie Darko cumpre as orientações e avança no plano de Frank (James Duval), a fotografia de Steven Poster passa a adotar cores mais vivas e quentes, especialmente após o surgimento de Gretchen. Esta oscilação entre cenas mais sombrias e quentes reflete também a instabilidade emocional de Donnie, o que ajuda a criar uma atmosfera passivo-agressiva que casa muito bem com sua personalidade.

Esta atmosfera é reforçada pela maravilhosa trilha sonora de Michael Andrews, que pontua boa parte das cenas com composições melancólicas, mas intercala com deliciosas músicas populares da “new wave” que marcou os anos 80, que costumam trazer um misto de sentimentos alegres e tristes, o que é muito coerente com a proposta da narrativa – destaque para a sequência que apresenta praticamente todos os personagens importantes da escola embalada por “Head Over Heels”, do Tears for Fears, e que sem necessitar de palavras já evidencia características marcantes de suas personalidades e das relações entre eles. Da mesma forma, a montagem de Sam Bauer e Eric Strand alterna bem entre momentos empolgantes como os embates entre Donnie e professores na escola, os sinistros encontros com Frank e momentos mais calmos, ainda que igualmente interessantes, como a discussão dele com os amigos sobre os Smurfs.

Demonstrando domínio completo sobre a narrativa, Richard Kelly reforça a sensação de desconforto no espectador através da escolha de planos estranhos, como aquele que mostra o ônibus escolar na vertical, o que, aliado aos efeitos especiais que dão vida às alucinações de Donnie – como aquela que simboliza uma espécie de buraco de minhoca que indica o caminho que as pessoas seguirão nos segundos seguintes –, também serve para transmitir a inquietação da mente dele. O diretor é hábil ainda ao utilizar planos fechados que valorizam as excelentes atuações de seu elenco – especialmente de Jake Gyllenhaal, que discutiremos mais adiante. Antes disso, porém, vale ressaltar o bom trabalho de todo o elenco de apoio, a começar por Maggie Gyllenhaal, que compõe Elizabeth como uma irmã distante, que deixa claro os conflitos que tem com Donnie logo no início, mas que não hesita em demonstrar orgulho numa conversa com uma amiga em que comenta um confronto do irmão com uma professora na escola.

Da mesma forma, Mary McDonnell faz de Rose Darko uma mãe compreensiva, centrada e que demonstra compaixão pelo filho ao mesmo tempo em que sofre diante da condição psiquiátrica dele. Drew Barrymore, por sua vez, transmite a frustração da professora Karen naquele ambiente conservador, enxergando o potencial de alunos como Donnie e tendo a firmeza e coragem de questionar o sistema educacional ultrapassado e a falta de capacidade de se comunicar com os jovens daquela escola, ainda que isto custe seu emprego. Este questionamento dela, aliás, toca diretamente num dos temas centrais da narrativa.

Afinal, a hipocrisia da parcela conservadora da sociedade e a dificuldade que esta tem em aceitar o progresso e a complexidade dos sentimentos humanos são simbolizadas perfeitamente em personagens como Beth Grant, interpretada de maneira quase caricata por Kitty Farmer em momentos como quando expõe sua ignorância na discussão sobre livros numa reunião com outros pais e professores, além é claro de Jim Cunningham, o charlatão vivido por Patrick Swayze que protagoniza uma quente discussão com Donnie e que tem sua máscara retirada quando um incêndio em sua casa leva os policiais a descobrirem seu criminoso envolvimento com pornografia infantil. Ambos personificam um grupo enorme de pessoas que ainda hoje enxergam um mundo binário onde é possível classificar pessoas como boas ou más, ignorando toda a gama complexa de sentimentos, emoções, motivações e condições peculiares que nos tornam humanos. Fechando os destaques do elenco secundário, Jena Malone cria uma Gretchen graciosa e igualmente deslocada que sofre por razões diferentes de Donnie e, justamente por este sentimento de não pertencimento, combina perfeitamente com o rapaz.

Os problemas de Donnie Darko ficam evidentes logo no jantar que antecede o acidente, no qual Jake Gyllenhaal já demonstra claramente a insatisfação dele com sua família, ainda que, neste momento, não seja possível identificar ainda sua forte oscilação de humor. No entanto, assim que Frank surge, notamos facilmente as alterações vocais e faciais do psicótico protagonista, que aparece agora com um olhar penetrante, dominado por uma espécie de alucinação que transforma seu comportamento, quase como num transe para um mundo paralelo (olha a dica aí). Gyllenhaal demonstra talento ainda em pequenos detalhes da composição do personagem, como o lento caminhar enquanto sonâmbulo ou a tímida conversa inicial com Gretchen, na qual ambos parecem desconfortáveis, ainda que seja notável a empatia entre eles.

Da mesma forma, ele consegue transmitir bem a tensão sexual natural desta fase da adolescência em cenas como a conversa com a terapeuta em que conta sobre a viagem no tempo. Inteligente, questionador e cético quanto à religião, Donnie demonstra fascínio pela ciência e pelo tema viagem no tempo, mas é seu medo diante da solidão e da morte que evidencia sua principal característica: a melancolia. Ao ouvir que “toda criatura morre sozinha”, ele logo se apressa em dizer que não quer estar sozinho, demonstrando uma insegurança emocional que nada mais é que uma condição natural do ser humano, que pode ficar ainda mais latente em pessoas que tentam encontrar explicações lógicas para os mistérios da vida e não buscam conforto em alguma fé qualquer que simplifique a visão da natureza humana e seu papel no universo.

O que nos traz de volta ao sentimento mencionado anteriormente de desconforto causado no espectador que busca explicações mastigadas para os acontecimentos da narrativa. Assim como Donnie, cabe ao espectador não se ancorar em soluções fáceis e buscar aprofundar-se nos conceitos apresentados ao longo do filme para tentar encaixar as peças e compreender a complexidade de “Donnie Darko”. Se por um lado a condição de esquizofrênico paranoico dele poderia facilmente explicar boa parte das alucinações que vemos ao longo da narrativa, por outro o livro de Roberta Sparrow (Patience Cleveland), a menção à “De volta para o futuro”, as conversas com o professor Kenneth Monnitoff (Noah Wyle) e os efeitos visuais que evidenciam o buraco de minhoca no ato final indicam outro caminho para solucionar o enigma que se forma na cabeça do espectador no terceiro ato.

A morte de Gretchen em frente a casa de Roberta Sparrow associada ao surgimento de Frank vestido de coelho e o tiro que ele leva no olho esclarecem parte dos mistérios, levando a conclusão da narrativa em que Donnie desta vez é morto pela turbina, que irá abrir o leque de possibilidades de interpretação. Fica evidente, no entanto, que a viagem no tempo é a chave para solucionar a equação, ainda que você possa até mesmo argumentar que tudo não passa de sonhos do protagonista e dos outros personagens, já que os acontecimentos bizarros que se iniciam na queda da turbina surgem após ele ir para a cama (e a letra de “Mad World” que acompanha todos atormentados, como se despertassem de pesadelos, pode induzir a esta interpretação em seu refrão). Aliás, existem outras interpretações muito interessantes na internet como a de Rolandinho, que você pode acessar aqui.

No entanto, a interpretação que mais me agrada é a leitura convencional do artefato que viaja pelo buraco de minhoca após uma anomalia criar um universo tangente, cabendo ao receptor (no caso, Donnie Darko) a missão de corrigir o erro. Segundo esta teoria descrita no livro de Sparrow, ele tem então os 28 dias, 6 horas, 42 minutos e 12 segundos citados por Frank na conversa inicial deles para evitar o colapso do universo primário ao enviar de volta o artefato duplicado no universo tangente (neste caso, a turbina). O livro também explica conceitos como os manipulados mortos (Frank e Gretchen, que ganham o poder de viajar no tempo) e os manipulados vivos (todos os outros personagens que ajudam o receptor a cumprir sua missão), o domínio de Donnie sobre elementos como o fogo (o incêndio na casa de Jim) e a água (a inundação da escola), sua força descomunal (quando enfia o machado numa estátua) e a telecinesia (quando envia a turbina pelo buraco de minhoca no ato final). Além disso, são várias as dicas ao longo do filme que reforçam esta leitura, como quando Donnie afirma que a destruição é uma forma de criação (destruir aquele universo ajudaria a criar um futuro no universo primário), quando ele questiona Gretchen o que a faz pensar que ele não é um super-herói (afinal, naquele universo ele tem superpoderes) ou quando ele deixa o cinema e no letreiro temos “A Última Tentação de Cristo”, (cuidado, SPOILERS!) outro filme que aborda um universo paralelo, neste caso, criado na mente do protagonista.

Ao atingir seu objetivo, Donnie arquiteta também sua própria morte no universo primário, salvando Gretchen e todos os outros que morreram no universo tangente. A teoria explica ainda por que vários personagens de certa forma sentem os acontecimentos do universo tangente na bela sequência citada anteriormente que os mostra sofrendo e reforça de maneira tocante o sentimento que domina a narrativa, embalada pela bela “Mad World”, que tem total conexão com o tema do filme. Além disso, fica mais fácil compreender o medo de Donnie da solidão e da morte, sua obsessão pelo tema viagem no tempo, sua melancolia e até mesmo sua tensão sexual, afinal, ele sentia que não teria muito tempo de vida. Como fica claro naquele diálogo com Gretchen, ele, talvez de maneira inconsciente, sabia que era um tipo estranho de super-herói messiânico, fadado a entregar a vida para salvar todos os outros presentes no universo primário – o que, aliás, novamente remete à visão religiosa da missão de Jesus Cristo.

Portanto, por mais que seja extremamente instigante estudar os complexos conceitos da filosofia da viagem no tempo, formular interpretações e tentar conectar as pontas soltas de “Donnie Darko” (e sim, é muito divertido e estimulante fazer isso), o fato é que os sentimentos nada binários abordados ao longo da narrativa são igualmente complexos e merecedores de serem estudados, com a diferença de que eles não demandam grande esforço do espectador para se identificar com aquilo.

Texto publicado em 31 de Julho de 2020 por Roberto Siqueira

DANÇA COM LOBOS (1990)

(Dances with Wolves)

 

Videoteca do Beto #72

Vencedores do Oscar #1990

Dirigido por Kevin Costner.

Elenco: Kevin Costner, Mary McDonnell, Graham Greene, Rodney A. Grant, Floyd “Red Crow” Westerman, Tantoo Cardinal, Robert Pastorelli, Charles Rocket, Maury Chaykin, Jimmy Herman, Nathan Lee Chasing Horse, Michael Spears, Jason R. Lone Hill, Tony Pierce e Tom Everett.

Roteiro: Michael Blake, baseado em livro de Michael Blake.

Produção: Kevin Costner e Jim Wilson.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Em plena ascensão na carreira no final dos anos 80, após estrelar “Os Intocáveis”, “Sem Saída”, “Sorte no Amor” e “Campo dos Sonhos”, Kevin Costner finalmente chegava ao topo com este belo “Dança com Lobos”. E logo em sua primeira experiência na direção, o então astro de Hollywood entrega um resultado belíssimo, num épico tocante, humano e repleto de imagens deslumbrantes, que trata os índios com respeito e utiliza a guerra civil americana como pano de fundo para mostrar a incrível trajetória de seu personagem principal.

Durante a guerra civil norte-americana, John Dunbar (Kevin Costner) é um soldado gravemente ferido que, ao tentar o suicídio, acaba motivando os outros soldados a iniciarem um combate. Considerado herói, ele ganha a oportunidade de servir no posto de sua escolha, o que se revela uma oportunidade única para que realize seu sonho de conhecer a fronteira “antes que ela desapareça”. O problema é que a região é dominada pelos índios Sioux e será questão de tempo para que eles percebam sua presença em seu território.

“De todos os caminhos desta vida, existe um que realmente importa. É o caminho para o verdadeiro ser humano”. As belas palavras de Pássaro Esperneante (Graham Greene) resumem perfeitamente a jornada de John Dunbar, o homem que partiu para conhecer a fronteira e acabou encontrando a si mesmo. Conduzido com extrema sensibilidade por Kevin Costner, “Dança com Lobos” é um filme espiritualista, que nos transporta numa bela viagem pelo interior do coração humano. Auxiliado pela montagem de Neil Travis, Costner emprega um ritmo lento, contemplativo, que casa perfeitamente com o espírito de Dunbar e permite ao espectador desfrutar aquelas imagens belíssimas em sua plenitude – e é marcante a imagem recorrente daquele homem solitário, perdido em meio a tanta exuberância e beleza da natureza. A excepcional direção de fotografia de Dean Semler ajuda a captar com precisão estas lindas imagens, como o sol nascendo e se pondo ao final das longas planícies das pradarias, que se perdem no horizonte distante. A coleção de belos planos é enorme, especialmente durante a viagem de Dunbar até o forte, onde, por exemplo, Costner emprega um zoom out que ilustra perfeitamente a insignificância do homem diante da magnitude da natureza. O diretor também sabe utilizar a câmera para transmitir sensações, como quando Dunbar está assustado no forte e a movimentação da câmera revela que a ameaça na verdade era o cavalo Cisco andando do lado de fora, além de utilizar novamente o zoom out pra revelar toda a sujeira dos arredores do forte e em volta do lago. Além disso, utiliza a câmera lenta com precisão, por exemplo, quando Dunbar corre para evitar o roubo de Cisco, mostrando suas pernas intercaladas com as patas dos cavalos que se aproximam, além de caprichar nos enquadramentos, criando planos belíssimos que mostram a comunhão entre a natureza e o homem, como no plano geral que revela a aldeia Sioux. Finalmente, o diretor é inteligente ao indicar certas coisas sutilmente, como no plano em que Dunbar sai do forte e esquece a agenda na cama, que será vital para o futuro da narrativa e justificará seu retorno ao local, quando ele finalmente confrontará o seu passado e confirmará sua mudança completa.

Além da direção clássica, Costner conta ainda com os figurinos de Elsa Zamparelli, que colaboram para ilustrar a gradual transformação de Dunbar, lentamente transformado de soldado em índio Sioux (e até mesmo seu corte de cabelo e barba reflete esta mudança). A ótima direção de arte de William Ladd Skinner ambienta perfeitamente o espectador através das cabanas espalhadas pela aldeia, dos adereços e artefatos indígenas e até mesmo do abandonado forte Sedgwick, repleto de detalhes como os objetos deixados pelos soldados que ali estiveram. O trabalho de Skinner também é vital em momentos simbólicos, como na primeira aparição de Cisco, que, com sua coloração mais clara, revela-se um cavalo diferente dos demais, numa alusão ao próprio Dunbar, um soldado diferente de todos os outros naquela situação, e que, justamente por não ter grandes expectativas, tenta o suicídio (“Perdoe-me Senhor!”) ao cruzar o campo de batalha com os braços abertos, numa cena linda conduzida em câmera lenta por Costner. Finalmente, devemos destacar a trilha sonora simplesmente espetacular de John Barry, que cria, além do lindo tema principal, diversas melodias belíssimas, como o tema para os momentos entre Dunbar e o lobo ou o tema para seu relacionamento com “De Pé com Punho” (Mary McDonnell), além do tom mais sombrio para momentos tensos, como o confronto com os Pawnees.

Escrito por Michael Blake, baseado em seu próprio livro, “Dança com Lobos” aborda a civilização às avessas, ou seja, o homem branco aprendendo a cultura indígena, além de ilustrar as mudanças no interior de Dunbar através da deliciosa e muito bem escrita narração em off. Blake demonstra profundo respeito e sensibilidade para com a cultura Sioux, fazendo questão de desmistificar a imagem de homens selvagens ao mostrar um povo digno e honesto. Inicialmente, os índios até parecem violentos, como quando discutem o sinal de fumaça em sua terra e matam o camponês que levou Dunbar ao forte (numa cena, aliás, bastante violenta) – saberemos depois que estes são os Pawnees, uma tribo rival dos Sioux. Mas ainda assim, Blake evita o maniqueísmo ao mostrar que mesmo entre os Pawnees existem opiniões distintas, quando um deles diz que eles deveriam ignorar aquele sinal e partir. O contrário acontece entre os Sioux, retratados em sua maioria como pessoas boas, mas também com personalidades muito distintas, como o passional “Vento no Cabelo” (Rodney A. Grant), o inteligente “Pássaro Esperneante”, o sábio “Dez Ursos” (Floyd Westerman) e o índio que encontra o chapéu de Dunbar e se recusa a devolvê-lo, mostrando um lado egoísta que evita a “santificação” dos Sioux. Blake também mostra características marcantes dos índios, como o respeito à hierarquia, representado na obediência à palavra sempre decisiva de “Dez Ursos”. E nem mesmo os unidimensionais soldados estragam o roteiro, já que Blake faz questão de ressaltar a opinião divergente do líder deles em relação à Dunbar. O roteiro conta ainda com momentos de alivio cômico, como quando Dunbar acorda atordoado com o barulho dos índios que roubam Cisco e bate a cabeça na porta, só se levantando no dia seguinte, e com uma pitada de romance, através da aceitável e coerente relação entre “Dança com Lobos” e “De Pé com Punho”, duas pessoas que, como lembrado pela mulher de “Pássaro Esperneante”, têm a mesma origem (“Faz sentido, os dois são brancos”). Mas o roteiro de Blake acerta principalmente na condução do arco dramático de Dunbar, indicando sua lenta transformação através de pequenas atitudes, como quando ele morde um coração de búfalo após a caçada, quando troca o uniforme de soldado por adereços indígenas, a emblemática cena da dança em volta da fogueira (em que Costner, aliás, se sai muito bem), quando os instintos mais primitivos começam aflorar em Dunbar, e, obviamente, a “dança com o lobo”, que explica seu novo nome e finaliza o processo de transformação. Nas palavras de “Dez Ursos”, agora Dunbar já não existia mais, ele era um índio Sioux chamado “Dança com Lobos”. Após sua transformação, até mesmo “Duas Meias” passa a comer em sua mão, como se o lobo soubesse que aquele era um homem já completamente integrado à natureza – algo que o lobo pressentia antes mesmo da transformação, e por isso, rodeava o forte.

E se tem total domínio da narrativa e noção exata do que quer na direção, Costner também se sai bem como ator, iniciando sua atuação de maneira contida, o que é coerente com o sentimento de Dunbar, estarrecido diante de tanta beleza e paz. Aliás, o ator se sai bem desde a primeira cena, quando transmite com exatidão a dor do personagem ao recolocar a bota na perna ferida e, com seu olhar desolado diante da imagem de um soldado com a perna amputada, demonstra seu estado de espírito. Dunbar era um homem completamente sem perspectiva na vida naquele momento. Observe também a aflição no rosto de Costner quando os índios encontram os búfalos mortos por homens brancos, refletindo o sentimento angustiado do personagem. Ele sabia que, diante de interesses conflitantes, era inevitável o conflito entre brancos e índios no futuro. E o que dizer dos belos momentos em que Dunbar tenta se comunicar através de gestos e mímicas com os índios, que, por sua vez, se esforçam para entendê-lo? É tocante a dedicação daquelas pessoas diante de tamanha adversidade. Aliás, o fato dos Sioux falarem seu próprio dialeto confere veracidade e realismo à narrativa e ajudam a ambientar o espectador. Desta forma, os primeiros contatos entre Dunbar e os Sioux expressam de maneira orgânica a dificuldade extrema de comunicação entre aquelas pessoas, separadas pela barreira do idioma. Mas Costner não está sozinho entre os destaques do elenco. Mary McDonnell e Graham Greene também têm grandes atuações, como podemos notar na primeira conversa do trio numa cabana, onde eles demonstram com perfeição a enorme dificuldade de comunicação, através dos olhares ansiosos, do gaguejar de “De Pé com Punho”, já há muito tempo sem falar o inglês, e da irritação de “Pássaro Esperneante” diante da situação, repreendendo a moça diversas vezes. Fica evidente que eles gostariam de dizer muito mais do que foi dito, mas a barreira do idioma ainda existe. McDonnell ainda transmite muito bem a aflição da personagem diante da presença do homem branco, algo que lhe recordava sua origem e lhe tirava daquele mundo, como explicado através de um flashback, que revela como Christine se transformou em “De Pé com Punho”. Já Graham Greene está estupendo como “Pássaro Esperneante”, um homem sensato e inteligente que conduz a aproximação entre os Sioux e Dunbar. A amizade dos dois, aliás, chega a emocionar, sem que o roteiro jamais apele para clichês ou que Costner exagere no sentimentalismo para alcançar este resultado. A emoção é genuína, provocada simplesmente pela pureza daquela amizade, simbolizada no momento da despedida, quando ambos trocam presentes. Assim como é genuíno também o grito de dor de “Vento no Cabelo”, interpretado por Rodney A. Grant, ao ver seu amigo partir, na última e emocionante cena do filme. Vale destacar ainda a atuação de Floyd “Red Crow” Westerman como “Dez Ursos”, conferindo um peso enorme ao respeitado líder dos Sioux.

“Dança com Lobos” tem ainda dois momentos empolgantes, que destoam do ritmo contemplativo da narrativa. Certamente uma das melhores seqüências do longa, a caçada de búfalos joga o espectador pra dentro da cena através da alternância de planos gerais e closes, do som que capta com precisão a corrida dos búfalos e cavalos e da empolgante trilha sonora, numa cena extremamente bem conduzida por Costner. A outra grande cena é a guerra entre os Sioux e os Pawnees, que termina no impressionante plano em que os Sioux massacram um dos índios rivais. Estas duas cenas balanceiam muito bem a narrativa com seus momentos tocantes, como quando “Vento no Cabelo” diz que seu melhor amigo morreu porque Dunbar estava vindo, declarando de maneira sincera a sua amizade, ou quando os soldados matam Cisco e atiram em “Duas Meias”, simbolizando o corte da ligação de Dunbar com aquele mundo que tanto amava. A partir daquele momento, ele sabia que não poderia ficar ali e colocar em risco toda a aldeia, o que motiva sua decisão de deixar a tribo. Esta decisão nos leva então ao final triste e realista de “Dança com Lobos”, com o lobo uivando, “Vento no Cabelo” gritando e o casal deixando a tribo, num momento de partir o coração. O texto cruel que encerra o longa decreta o fim da cultura eqüina das pradarias e a trilha arrebatadora encerra a nossa maravilhosa viagem.

“Dança com Lobos” é um filme lindo, que nos apresenta com muita sensibilidade a busca do homem por sua verdadeira identidade. Se a megalomania derrubou Costner nos anos seguintes, este momento de muita inspiração certamente justificou sua carreira com brilhantismo, entregando um filme tocante e sensível, que sabe exatamente a mensagem que pretende deixar. Dunbar viu mais sentido na vida entre os índios do que em tudo que vivera até então, mas, infelizmente, os caminhos do progresso impediram que ele vivesse esta descoberta em sua plenitude. Repetindo as palavras de Pássaro Esperneante, “o caminho para o verdadeiro ser humano é o que realmente importa nesta vida”. Pena que tão poucos encontram este caminho.

Texto publicado em 28 de Novembro de 2010 por Roberto Siqueira