(The Kid)
Filmes em Geral #16
Dirigido por Charles Chaplin.
Elenco: Charles Chaplin, Edna Purviance, Jackie Coogan, Baby Hathaway, Carl Miller, Granville Redmond, Tom Wilson e May White.
Roteiro: Charles Chaplin.
Produção: Charles Chaplin.
[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].
O genial Charles Chaplin demonstra toda sua sensibilidade e talento neste belo “O Garoto”, misturando com perfeição o humor e o drama, demonstrando controle absoluto sobre a narrativa e, como anunciado ainda nos primeiros segundos do longa, provocando no espectador o riso e a lágrima.
Após deixar um hospital de caridade com seu filho recém-nascido, uma jovem mãe solteira (Edna Purviance), temendo não poder cuidar do filho, abandona o garoto no banco de trás de um luxuoso carro, junto com um bilhete. Em seguida, o carro é roubado e os bandidos, desesperados, largam o garoto numa esquina, onde o bebê ficará até ser encontrado pelo vagabundo (Chaplin), que fazia o seu passeio matinal tranquilamente. Após tentar, sem sucesso, se livrar do bebê, o vagabundo decide criá-lo, enquanto a mãe, com o passar dos anos, se arrepende e decide partir em busca do filho abandonado, ainda que com pouca esperança de realmente encontrá-lo.
Como de costume, Chaplin conduz a narrativa com segurança e confirma seu talento ao apresentar uma narrativa extremamente bem estruturada, coesa e com um ritmo excelente. É sempre impressionante notar o talento de Chaplin para envolver o espectador com brilhantismo, misturando humor e drama de maneira extremamente humana. O diretor é competente também nos diversos momentos engraçados do longa, com destaque para o hilário “serviço 13”, em que Carlitos se encanta com a mulher do guarda e foge em disparada pela cidade ao se deparar com o marido dela. Mas o diretor também é sutil na criação de planos simbólicos, como no emocionante encontro casual entre mãe e filho, onde a agora famosa atriz não sabe que está diante de seu filho abandonado há cinco anos. A tristeza estampada em seu rosto some temporariamente quando ela presenteia o garoto, sem saber que estava diante de seu próprio filho. Alguns temas recorrentes da filmografia de Chaplin aparecem também em “O Garoto”, como os constantes problemas com guardas e a fome (Chaplin passou fome na infância e costumeiramente mostrava isso em seus filmes).
Curiosamente, o pai do garoto também se tornara alguém famoso, mostrando claramente que se eles tivessem tentando ficar juntos, poderiam ter sucesso na criação do menino. Por outro lado, pode-se argumentar que ambos não teriam tanto tempo para se dedicar à carreira, pois obviamente cuidar de uma criança é uma tarefa que demanda tempo e dedicação. No acidental encontro entre pai e mãe numa festa, a tristeza toma conta de ambos e a montagem (também mérito de Chaplin) durante a conversa do casal mostra que o livro do passado e das lembranças foi aberto na vida de ambos. Este estilo de montagem (a chamada montagem semântica, onde uma cena complementa o sentido da outra, mas sozinhas não tem o mesmo significado) é usual no cinema de Chaplin, que costumava jogar imagens não diegéticas (ou seja, não pertencentes ao universo daquela narrativa) para complementar o sentido da cena anterior ou seguinte, como quando ele intercala os trabalhadores e as ovelhas em “Tempos Modernos”. Em outro momento, após a frase “uma mulher cujo pecado foi a maternidade”, Chaplin corta inteligentemente para a imagem de Cristo na cruz, simbolizando o peso que aquela criança representava na vida daquela moça sem condições de criá-la e abandonada pelo marido. Chaplin também cria um plano que reforça este peso no momento em que a mãe para com a criança no colo na frente de uma igreja e, ao fundo, podemos ver outra cruz. Segundos depois a mãe se retira e a câmera foca na cruz enquanto a tela escurece.
O roteiro escrito por Chaplin exibe coragem ao abordar as dificuldades de uma mãe solteira para criar uma criança e confirma isto ao mostrar tanto a mãe quanto os bandidos abandonando o bebê à própria sorte, o que revela também uma crítica às desigualdades sociais já existentes naquele período. Outro tema interessante abordado pelo longa que merece reflexão refere-se à verdadeira natureza da paternidade/maternidade. Afinal de contas, quem é o verdadeiro pai/mãe de uma criança? Como o filme demonstra através da relação de afeto e carinho entre Carlitos e o garoto, o verdadeiro pai é aquele que cria (e eu, particularmente, compartilho desta opinião). O excepcional roteiro mostra ainda como era o “tratamento apropriado” dado às crianças abandonadas pela instituição responsável (Asilo para crianças órfãs), reforçando o aspecto crítico de “O Garoto”.
Tecnicamente, vale destacar ainda a direção de fotografia de Roland Totheroh e Jack Wilson, que utiliza o foco da câmera para destacar o que interessa à narrativa e até mesmo brinca com o formato dele, como na cena do casamento em que a sombra em volta da tela forma um coração no centro. Vale notar também como no momento em que Carlitos sai pela noite à procura do garoto, a fotografia obscura reflete sua enorme angústia. Por outro lado, durante o seu sonho (um momento mágico, que utilizou truques para fazer Chaplin voar muito tempo antes da invasão dos efeitos visuais no cinema) a fotografia e os figurinos destacam a cor branca, simbolizando aquele que seria o mundo ideal do vagabundo Carlitos. Os figurinos, aliás, também simbolizam a clara desigualdade social, notável através do contraste entre as roupas rasgadas da dupla e as roupas dos ricos da cidade. E até mesmo a fotografia reflete esta diferença, adotando cores menos escuras quando a ação se passa na casa da família da famosa atriz. Finalmente, vale dizer que a passagem do tempo através de letreiros na tela e nuvens no fundo (“5 anos depois”) hoje é deselegante, mas na época funcionava perfeitamente e Chaplin, excepcional diretor que era, sabia disto.
E se o talento de Chaplin como diretor era enorme, sua qualidade como ator era simplesmente insuperável. Sua facilidade em expressar sentimentos através da expressão facial e corporal é incrível, provocando o riso mais genuíno no espectador. Além das inúmeras gags engraçadas, vale observar também sua reação quando encontra o garoto abandonado e o seu olhar desconfiado para o bueiro e para a câmera quando senta na calçada com o bebê. Destaque também para sua engraçada reação às palavras do pai de um garoto que apanhou na rua (“Se ele apanhar, eu vou bater em você”), além é claro das inúmeras cenas potencialmente cômicas, como a do citado “serviço 13”. Edna Purviance transmite muito bem o sofrimento da mãe através de sua expressão triste e melancólica, como podemos notar quando ela aparece pensativa na ponte e no tocante reencontro com seu filho na delegacia. Colabora também com o sentimento de tristeza que acompanha a moça a trilha sonora melancólica, composta pelo próprio Chaplin. Fechando os destaques do elenco, temos a fantástica atuação de Jackie Coogan como o garoto, conquistando o espectador com sua simpatia. Seu entrosamento com Chaplin é perfeito. Repare como Coogan olha discretamente para o prato de Carlitos antes de fazer a oração e comer, somente para checar se as quantidades de comida se equivalem. A dupla demonstra uma química tão forte que se torna impossível não torcer pelo sucesso de ambos, ainda que eles não ganhem seu dinheiro da forma mais “honesta” possível. Afinal de contas, não podemos dizer que quebrar vidraças e oferecer conserto em seguida seja a mais correta das atividades, mas até mesmo isto funciona como crítica à falta de oportunidades do capitalismo (algo que Chaplin voltaria a criticar em sua filmografia, especialmente na obra-prima “Tempos Modernos”).
Quando a mãe finalmente reencontra o bilhete há tempos deixado junto com o garoto, numa cena de arrepiar, sabemos que o emocionante momento do reencontro está prestes a acontecer. E neste instante, a mistura de sentimentos é inevitável no espectador. Ao mesmo tempo em que gostaríamos de ver aquela mãe sofrida finalmente reencontrar seu filho, sabemos que este reencontro também pode significar o fim da relação entre o garoto e Carlitos. E o reencontro é mesmo emocionante, ainda mais porque também podemos testemunhar a solidão do vagabundo, abandonado depois de perder seu garoto (e a câmera faz questão de diminuí-lo na tela neste instante). Felizmente, Chaplin arranca o sorriso do espectador novamente no final, quando podemos ver o reencontro do vagabundo com o garoto, já na casa da famosa atriz. Mas o que aconteceu depois? Fica a cargo de cada espectador imaginar à sua maneira. O mais importante é a mensagem deixada por Chaplin, sobre a importância da proximidade do adulto na vida de qualquer criança. Como diz o batido ditado popular: “Não basta ser pai, tem que participar”.
Chaplin emociona novamente ao narrar a história do vagabundo que, acidentalmente, se torna pai de um lindo garoto após encontrá-lo abandonado na rua. Com seu costumeiro talento para divertir e emocionar, ele brinda os cinéfilos com outra jóia preciosa. Mas ao contrário do vagabundo de “O Garoto”, que encontrou a felicidade por acidente numa esquina, nós sabemos que este belo presente não é um mero fruto do acaso, mas sim resultado do trabalho de um talentoso diretor, ator, roteirista e compositor, o genial Charles Chaplin.
Texto publicado em 18 de Outubro de 2010 por Roberto Siqueira
nao a nada de errado em considerar esse filme uma obra prima
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Grande filme.
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Que belíssima crítica, Beto. Seu texto está ficando muito aprimorado. Parabens!
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Muito obrigado Achilles!
Abraço.
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