TOY STORY 4 (2019)

(Toy Story 4)

 

Lançamentos #3

Dirigido por Josh Cooley.

Elenco: Vozes de Tom Hanks, Bonnie Hunt, Laurie Metcalf, Joan Cusack, Tim Allen, Annie Potts, Jeff Garlin, Jodi Benson, Don Rickles, Estelle Harris, Blake Clark, Bud Luckey, Jeff Pidgeon, Lori Alan, Keanu Reeves, Christina Hendricks, Jordan Peele, Timothy Dalton, Wallace Shawn, Mel Brooks, Tony Hale, Madeleine McGraw, Patricia Arquette, Lila Sage Bromley, June Squibb, Kristen Schaal, Ally Maki e Jay Hernandez.

Roteiro: Andrew Stanton e Stephany Folsom.

Produção: Mark Nielsen e Jonas Rivera.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Quando a Pixar anunciou que lançaria “Toy Story 4”, confesso que fiquei preocupado. Não que eu duvide da capacidade do estúdio que hoje pertence a Disney de produzir filmes memoráveis, mas o fato é que “Toy Story 3” parecia uma conclusão perfeita para a trajetória dos brinquedos liderados por Woody, Buzz e Cia. Só que um olhar mais profundo revela que, na realidade, o longa anterior concluía a história do crescimento de Andy e não dos brinquedos em si, o que de fato abre espaço para novos filmes. Obviamente, existe também uma motivação comercial nisso tudo, mas o bom resultado alcançado demonstra que a Pixar tomou os devidos cuidados para não entregar apenas um caça-níquel.

Escrito por Andrew Stanton (diretor de “WALL·E”, um dos meus favoritos da Pixar) e Stephany Folsom, “Toy Story 4” tem início quando Bonnie (voz de Madeleine McGraw), abatida e deslocada no primeiro dia de aula, resolve criar um brinquedo a partir de materiais encontrados no lixo e o leva para casa. Só que “Garfinho” (voz de Tony Hale) demora a perceber sua natureza de brinquedo, o que cria grandes problemas para Woody (voz de Tom Hanks), especialmente quando a família de Bonnie decide viajar e o novo brinquedo acaba se perdendo pelo caminho, entristecendo a garota e dando origem a uma verdadeira missão de busca que envolverá Buzz (voz de Tim Allen), Jessie (voz de Joan Cusack) e ainda trará de volta a boneca Beth (voz de Annie Potts).

Auxiliado por seu montador Axel Geddes, o diretor Josh Cooley abre “Toy Story 4” com um prólogo que retorna nove anos no tempo e traz a separação de Woody e Beth, o que inicialmente soa deslocado e sem propósito, como algo forçado apenas para permitir a existência do quarto filme após “Toy Story 3” dar a sensação de que uma continuação era desnecessária. Felizmente, esta sensação lentamente é dissipada, apesar de alguns flertes com o perigo como ao sugerir que Beth sairia de cena ao recusar ajudar Woody, por exemplo, até que faça todo sentido e se justifique no encerramento tocante e coerente com o momento dos personagens.

Aliás, é curioso notar como a narrativa é conduzida de maneira a preparar o espectador para o desfecho sem que a plateia perceba muito o que está acontecendo. Assim, desta vez temos menos momentos engraçados que o de costume, ainda que haja espaço para o humor criativo tão marcante em todos os filmes da franquia, que explora as possibilidades criadas pelo universo dos brinquedos. Neste aspecto, o destaque claramente fica para os novatos bichos de pelúcia, que protagonizam algumas das cenas mais divertidas do filme, como a briga com Buzz, a solução simples e eficiente para a obtenção de uma chave e os hilários planos elaborados por eles.

O que não muda nada em relação ao passado é o carisma dos personagens. Demonstrando o entrosamento esperado após tantos anos, Woody, Buzz, Jessie e companhia continuam adoráveis. A devoção de Woody à sua vocação como brinquedo continua evidente, por exemplo, na conversa com Garfinho à beira da estrada, quando fala sobre Andy em tom nostálgico e resume perfeitamente como ele vê sua função no mundo. Enquanto isso, Buzz demonstra o mesmo misto de lealdade, autoconfiança exacerbada e heroísmo que fazem dele um personagem tão marcante, enquanto Jessie, com menos espaço desta vez, continua sendo a destemida heroína da turma – e são estes três personagens que agem em momentos cruciais do filme para tentar resolver o problema, confirmando sua condição de líderes. Já o novato Garfinho conquista o público com seu temor diante de tantas novidades e, principalmente, por sua justificada obsessão inicial pelo lixo, trazendo ainda um misto de inocência e curiosidade que remete a uma criança e cria empatia com o espectador de maneiras distintas.

É inegável, porém, que a mudança mais clara em “Toy Story 4” em relação aos personagens é o destaque que as figuras femininas ganham na narrativa. Contrariando a persona criada em filmes anteriores da mocinha apaixonada pelo caubói, Beth retorna como uma mulher forte, independente e líder de um grupo de nômades, sendo ainda a responsável por decisões importantes do grupo e, de quebra, a motivação da surpreendente decisão final de Woody. Jessie, por sua vez, assume o papel de liderar a turma que fica no veículo com Bonnie, enquanto Gabby Gabby (voz de Christina Hendricks) assume o papel da vilã e ainda protagoniza um emocionante desfecho em sua trajetória.

Apostando em muitas cenas noturnas e chuvosas, a fotografia de Patrick Lin realça a tensão em momentos como a sequência de abertura ou o ato final, enquanto o design de produção de Bob Pauley capricha em cenários como a loja de antiguidades, criando uma atmosfera que remete ao terror desde os primeiros instantes através das teias de aranha, dos móveis e da pouca iluminação do local. Filme mais melancólico dos quatro até então, “Toy Story 4” trabalha desde o início na construção desta atmosfera que sustentará a dolorosa despedida do ato final, com seu visual dominado pelas citadas cenas sombrias e a trilha sonora mais contida e triste de Randy Newman, na qual vale destacar também a preocupação com pequenos detalhes, como quando um acordeom embala a lembrança de Duke Caboom (voz de Keanu Reeves) e seu dono canadense, remetendo a influência francesa naquele país.

Esta abordagem mais melancólica não impede, no entanto, que Josh Cooley acelere o ritmo nos momentos necessários, como quando sua câmera fluída viaja pelos ambientes acompanhando Buzz e Woody indo do parque para a loja de antiguidades e, especialmente, quando acompanhamos quatro linhas narrativas distintas simultaneamente, com Woody na loja, Buzz indo atrás dele, Garfinho sob a custódia de Gabby Gabby e os brinquedos que ficaram no motor home – novamente, ponto para o montador Axel Geddes. Esta sequência mais frenética de ações nos leva a interessante reviravolta em que Woody, após escapar de Gabby Gabby, resolve voltar e tentar encontrar uma dona para ela, após o sofrido abandono que humaniza a personagem e torna mais aceitáveis suas motivações. No entanto, a grande surpresa ainda estava por vir.

Construído cuidadosamente durante toda a narrativa sem jamais escancarar esta intenção, o devastador momento em que Woody decide abandonar o grupo deixa personagens e espectadores em frangalhos, também pela carga emocional que naturalmente evoca após tantos anos. Ciente do impacto desta decisão, Cooley prepara o espectador para este momento tocante através das citadas trilha sonora e fotografia, que criam o clima ideal, e da condução da relação já distante entre Woody e Bonnie desde o início, revelando como ele já não era mais o protagonista daquele universo, o que torna sua decisão compreensível e coerente com sua essência. Certamente um dos mais queridos personagens não apenas da Pixar, mas do universo das animações em geral, Woody merecidamente angariou milhões de fãs de todas as idades ao redor do mundo e certamente levou muitos deles as lágrimas neste instante.

Além da catarse emocional, “Toy Story 4” volta a abordar a importância das crianças na vida dos brinquedos como um dos temas centrais da narrativa, trazendo ainda as tradicionais reflexões filosóficas sobre a natureza dos brinquedos e seu lugar no universo e, de quebra, promovendo outra interessante discussão através do novo personagem feito de lixo. O que é um brinquedo de fato? Uma bola de meia é um brinquedo? Sua função é divertir uma criança até inevitavelmente ser abandonado como Beth e tantos outros ou divertir crianças aleatórias sem jamais criar vínculo com nenhuma delas como fazem os brinquedos nos parques? Somente por isso o longa dirigido por Josh Cooley já vale a pena.

Ainda que o considere inferior ao primeiro e ao terceiro filme, “Toy Story 4” justifica sua existência através da introdução de novos personagens e novas reflexões sem perder características marcantes dos longas anteriores e nos reservando ainda um surpreendente e emocionante desfecho que pode significar o encerramento do ciclo de um dos mais emblemáticos personagens da curta e gloriosa trajetória da Pixar.

Ou seria o início de uma nova trajetória solo? Só o tempo dirá.

Texto publicado em 24 de Dezembro de 2019 por Roberto Siqueira

ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS (1951)

(Alice in Wonderland)

3 Estrelas 

Videoteca do Beto #153

Dirigido por Clyde Geronimi, Wilfred Jackson e Hamilton Luske.

Elenco: Vozes de Kathryn Beaumont, Richard Haydn, Ed Wynn, Sterling Holloway, Jerry Colonna, Verna Felton e Bill Thompson.

Roteiro: Winston Hibler, Ted Sears, Bill Peet, Erdman Penner, Joe Rinaldi, Milt Banta, Bill Cottrell, Dick Kelsey, Joe Grant, Dick Huemer, Del Connell, Tom Oreb e John Walbridge, baseado nos livros Alice no País das Maravilhas e Alice Através do Espelho de Lewis Carroll.

Produção: Walt Disney (não creditado).

Alice no país das maravilhas[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Adaptada diversas vezes para o cinema ao longo de décadas, “Alice no país das maravilhas” pertence a um grupo de obras literárias complexas e fascinantes que permitem as mais distintas interpretações, o que, consequentemente, transforma o livro de Lewis Carroll numa ótima oportunidade para cineastas mais ousados imprimirem sua visão particular daquele mundo onírico e repleto de simbolismos. Por isso, era de se esperar que o visionário Walt Disney quisesse aproveitar a excelente equipe técnica que possuía para dar vida aos personagens excêntricos daquele universo. O resultado é uma animação que, se não tem o encanto e a magia dos filmes da primeira era de ouro do estúdio, ao menos consegue nos divertir.

Baseado na obra de Carroll publicada em 1865, o roteiro de “Alice no país das maravilhas” (creditado para treze pessoas nesta versão da Disney) nos apresenta Alice (voz de Kathryn Beaumont), uma garota que, após seguir um misterioso e apressado coelho branco (voz de Bill Thompson), acaba se aventurando por um mundo fantástico, recheado de figuras inusitadas.

Apresentando pouco avanço tecnológico em relação aos filmes anteriores, “Alice” segue com fidelidade algumas das convenções narrativas das animações Disney, com seu visual multicolorido, a interação entre humanos e animais e, especialmente, as diversas músicas espalhadas pela narrativa que, aliadas a trilha sonora quase incessante de Oliver Wallace, fazem com que o som diegético quase não tenha espaço sozinho no filme. Entretanto, isto não seria um problema se o longa apresentasse o mesmo encanto dos primeiros filmes do estúdio, mas isto não acontece na mesma intensidade, o que apenas reforça o desgaste da fórmula de Walt Disney, tão evidente nesta irregular segunda era de animações na qual os únicos filmes realmente memoráveis são o impecável “A Dama e o Vagabundo” e “A Bela Adormecida”.

Assim, para desfrutar o encanto de “Alice no país das maravilhas” é preciso olhar com olhos de criança – algo que não é tão simples no mundo mais cínico em que vivemos atualmente, mas que na época talvez fosse mais plausível, mesmo tão pouco tempo depois do fim da Segunda Guerra. Isto ocorre porque os diretores Clyde Geronimi, Wilfred Jackson e Hamilton Luske transportam para a tela o espírito da obra que serviu de inspiração para o filme, criando uma sequência ininterrupta de momentos que não apresentam lógica alguma, seguindo apenas a fértil imaginação da protagonista. Curto e dinâmico como a maioria das animações do estúdio, “Alice” se beneficia da montagem ágil de Lloyd Richardson, que transita de um cenário ao outro de maneira orgânica, nos levando a lugares surreais como a casa rosa do Coelho Branco e a personagens igualmente surreais como as flores cantoras e a Lagarta fumante (voz de Richard Haydn), que hoje certamente seria criticada pelos chatos do politicamente correto.

Casa rosaFlores cantoras Lagarta fumanteTambém devido à natureza onírica da história, muitos diálogos não fazem muito sentido, o que realça ainda mais momentos marcantes como a famosa conversa entre o Gato Risonho (voz de Sterling Holloway) e Alice: “Aonde você quer ir?”, pergunta o gato; “Tanto faz”, responde Alice; “Então tanto faz o caminho que deve seguir”, finaliza ele. Esta abordagem surreal chega ao auge na conversa sem pé nem cabeça entre Alice e os divertidos Chapeleiro Louco (voz de Ed Wynn) e Lebre Maluca (voz de Jerry Colonna), que levam tanto a protagonista quanto o espectador a loucura durante um chá da tarde. Também existe espaço para histórias mais lineares, como a triste passagem em que as ostras são convidadas para um jantar, mas este universo fantasioso fará sentido de fato somente quando tivermos a confirmação de que Alice estava sonhando. Até lá, somos levados pela narrativa através do olhar da garota.

Conversa entre o Gato Risonho e AliceConversa sem pé nem cabeçaOstras são convidadas para um jantarRepleto de personagens criativos, “Alice” representava ainda uma oportunidade única para os talentosos animadores da Disney, que capricham na caracterização até mesmo de figuras secundárias que passam rapidamente pela narrativa, como os sapos instrumentos e o cavalo vassoura. Além disso, eles criam cenários impactantes e sequências belíssimas visualmente, dentre as quais vale destacar a chegada da temida Rainha de Copas (voz de Verna Felton) ao castelo, acompanhada de seu numeroso exército de cartas. E apesar das cores vivas que dominam grande parte do filme, a fotografia não se furta de carregar no tom pesado e sombrio quando Alice se perde na floresta, transmitindo para a plateia a mesma sensação melancólica da garota.

Sapos instrumentosCavalo vassouraAlice se perde na florestaQuanto aos simbolismos da narrativa, cabe dizer que, assim como no livro, é possível fazer diversas leituras diferentes de cada situação vivida por Alice. Dentre todas elas, existe uma vertente que me agrada mais, que acredita numa alusão a passagem da infância para a adolescência, onde cada transformação vivida pela garota ilustraria, numa escala exagerada e caricatural, as mudanças radicais que sofremos nesta fase. Por isso, temos as constantes mudanças de tamanho, os enigmáticos desafios, as dúvidas sobre qual caminho seguir e a introdução a novas sensações, que esboçariam nossa desorientação diante das decisões que precisamos tomar quando nos aproximamos da fase adulta da vida. No entanto, uma obra tão rica e subjetiva como esta permite inúmeras leituras aceitáveis.

Aventura surreal e repleta de simbolismos, “Alice no país das maravilhas” está longe de ser uma obra-prima, mas ao menos nos diverte enquanto somos apresentados aos cenários e personagens descritos no clássico livro de Lewis Carroll. Ou seja, trata-se de uma animação típica da Disney daquele período, com tudo de bom e de ruim que isto possa significar.

Alice no país das maravilhas foto 2Texto publicado em 13 de Janeiro de 2013 por Roberto Siqueira

A BELA E A FERA (1991)

(Beauty and the Beast)

 

Videoteca do Beto #119

Dirigido por Gary Trousdale e Kirk Wise.

Elenco: Vozes de Paige O’Hara, Bobby Benson, Richard White, Jerry Orbach, David Ogden Stiers, Angela Lansbury, Bradley Pierce, Rex Everhart, Jesse Corti, Hal Smith, Jo Anne Worley e Mary Kay Bergman.

Roteiro: Linda Woolverton, baseado em história de Roger Allens.

Produção: Don Hahn.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

A animação já fazia parte de um passado glorioso e distante quando os animadores da Disney injetaram ânimo no estúdio com “A Pequena Sereia”, que resgatava algumas das principais características das grandes animações. Baseado numa fábula e embalado pelo sucesso das músicas de Alan Menken, o longa preparou o terreno para que novas obras marcantes surgissem. E a primeira delas foi “A Bela e a Fera”, que também conta com a inspiração dos animadores e as canções de Menken para nos contar uma história encantadora, resgatando definitivamente a aura mágica dos filmes da era de ouro da Disney.

Inspirado no conto de fadas de Roger Allens, “A Bela e a Fera” conta a história de Bela (voz de Paige O’Hara), uma garota entediada com a vida provinciana de uma pequena cidade francesa, onde vive também o galã Gastón (voz de Richard White) que, apesar de derreter os corações das outras meninas, não consegue conquistá-la com seu jeito grosseiro. Seu pai Maurice (Rex Everhart) viaja para expor uma de suas invenções e acaba preso num castelo onde vive uma temível Fera (voz de Bobby Benson), que precisa encontrar o verdadeiro amor e ser correspondido para quebrar um feitiço e voltar a ser príncipe. A oportunidade surge quando, em troca da liberdade do pai, Bela aceita ficar presa no castelo.

Apostando nas características clássicas das animações Disney, “A Bela e a Fera” surge imponente ainda em sua introdução, quando uma narração envolvente nos conta a história do príncipe transformado em Fera enquanto vemos um belo vitral que retrata o ocorrido, prendendo nossa atenção imediatamente. Assim como o conto que o inspirou, o roteiro de Linda Woolverton aborda o tema da beleza interior de forma singela, tocando o coração da platéia com a mensagem de que o verdadeiro amor enxerga além das aparências, criando ainda uma galeria interessante de personagens, desde a destemida protagonista, passando por seu atrapalhado pai, pelo fortão Gastón e seu fiel parceiro LeFou (voz de Jesse Corti) e pelos encantadores objetos que habitam o amaldiçoado castelo. Com um roteiro enxuto, os diretores Gary Trousdale e Kirk Wise, auxiliados pela montagem de John Carnochan, empregam um ritmo dinâmico, evitando fugir do fio condutor da narrativa, que é a relação entre Bela e a Fera. Por isso, as cenas envolvendo Gastón na pequena vila acertadamente ocupam pouco espaço na narrativa.

Auxiliados pela direção de arte de Brian McEntee, os talentosos animadores criam lindos cenários, o que confere ao longa um visual esplêndido, repleto de cores e belas paisagens. Entre tantos locais de destaque, vale citar a charmosa cidade criada no interior da França e o sombrio castelo em que vive a Fera, com sua arquitetura gótica e seus imponentes cômodos. Além dos cenários, os próprios personagens mantêm a qualidade da animação, com Bela, por exemplo, seguindo o padrão das princesas Disney com suas bochechas rosadas e rosto angelical. E se os traços parecem simples, vale lembrar que a maioria dos desenhos foi feita no estilo tradicional, com tinta e papel e à mão, com apenas algumas seqüências sendo feitas com auxilio de tecnologia digital. O capricho nos detalhes torna tudo ainda mais real e faz o espectador imergir na história, e os animadores aproveitam a oportunidade para criar pequenos momentos geniais, como quando a vela de Lumiere (voz de Jerry Orbach) derrete diante de uma tocha e dá a sensação de que ele está suando frio.

Com uma equipe talentosa nas mãos, os diretores Gary Trousdale e Kirk Wise aproveitam para criar belos planos, como aquele que destaca a biblioteca do castelo ou os planos gerais que apresentam a fortaleza da Fera. Vale citar também o primeiro jantar de Bela no castelo, que é um espetáculo grandioso de música, luzes e cores, embalado pelo charme francês na hora de servir e pela ótima “Be Our Guest”. Este espetáculo de cores em muitos momentos tem função narrativa, como quando Gastón canta na taverna e a cor vermelha que predomina na tela reforça a aura demoníaca do vilão. Repare também a harmonia entre a roupa rosa de Bela e a cortina no café da manhã, simbolizando que ela estava se adaptando ao castelo, algo reforçado também pela própria fotografia, que se torna mais colorida e cheia de vida, com mais cenas diurnas que antes.

Como na maioria das animações, o som também é muito bom, algo notável, por exemplo, quando o cavalo de Maurice se assusta durante uma tempestade, onde percebemos cada detalhe, desde a cavalgada assustada do animal até os raios e a própria água que toca o chão. Praticamente incessante, a trilha sonora do ótimo Alan Menken recheia a narrativa com músicas envolventes, que colaboram para o andamento da trama e funcionam como uma espécie de número musical, assim como acontece nas peças de teatro da Broadway, de onde vieram alguns dos dubladores, como a própria Paige O’Hara. Entre tantas boas canções, vale destacar a citada “Be Our Guest”, “Belle”, que nos apresenta os personagens, “Something There”, que embala o momento em que Bela começa a se apaixonar pela Fera, e a música tema “Beauty and the Beast”, cantada por Angela Lansbury na mais linda cena do longa.

Um misto de touro e cão, a Fera surge assustadora, com sua voz imponente e olhar ameaçador, ainda que os objetos que vivem no castelo confiram certa magia ao local. Com temperamento explosivo, ela tem dificuldade em seu primeiro contato com Bela, o que, apesar de clichê, funciona perfeitamente e soa verdadeiro, já que uma aproximação rápida entre eles seria totalmente artificial. E apesar da aparência nada agradável, ao longo da narrativa o espectador cria empatia pelo personagem, após acompanhar seu sofrimento na sombria ala oeste, que guarda seu segredo e a rosa com as últimas pétalas de esperança. E neste local também que Bela verá parte de seu rosto humano num quadro rasgado, talvez sem entender bem do que se trata, pois jamais ela fica sabendo da história do feitiço. Ainda quando mal se entendiam, os dois brigam e ela foge em disparada pela floresta, sendo atacada por lobos. Após ser salva, Bela faz curativos na Fera com a lareira ao fundo, num plano simbólico que representa o momento em que a chama da paixão começa a nascer na garota. Deste momento em diante, a atmosfera sombria deixa a narrativa e o romance passa a tomar conta da tela.

Seguindo o perfil do vilão tradicional com suas roupas vermelhas que reforçam a aura vil do personagem, o forte Gastón é a paixão das moças da cidade, mas não consegue encantar Bela, uma garota culta, interessada em literatura e que está longe de compartilhar a idéia de mulher ideal do “macho” Gastón. Em sua concepção, a mulher ideal é aquela que adoraria fazer comida e massagear seus pés após seu retorno das caçadas, o que, obviamente, não passa pela cabeça da protagonista. O que Bela deseja é ser bem tratada, algo que acontece no local mais improvável. É no castelo que ela encontrará gentileza, primeiro através dos adoráveis objetos com vida, que se tornam ainda mais encantadores graças ao charme francês, tão bem representado pelo relógio Cogsworth (voz de David Ogden Stiers) e pelo candelabro Lumiere, sempre preocupados em prestar um serviço de primeira – com toques leves de acordeão, a própria trilha sonora que os acompanha servindo a moça reforça a origem francesa dos personagens. E após se estranharem, é da hostil Fera que Bela receberá o tratamento que procura, sendo respeitada e reforçando o tema principal da narrativa, de que a verdadeira beleza está no interior.

Entre os momentos marcantes do casal, um merece destaque especial. Obviamente, me refiro à linda cena do jantar, seguida pela dança do casal com a música tema ao fundo. Com a ajuda de computadores, os travellings que passeiam pelo imponente salão, como aquele que inicia no lustre e vai até eles, a noite estrelada e a perfeita harmonia do casal fazem desta cena um momento marcante. Infelizmente, logo após a linda dança, Bela sente falta do pai e decide abandonar o castelo, num anticlímax que levará ao confronto entre Gastón e a Fera, além de servir como obstáculo final à concretização do amor do casal. Presa por Gastón junto com seu pai dentro de casa, ela acompanha o povo marchando para o castelo na chuva, com tochas na mão e gritos, em outra seqüência marcante, com seu visual belo e assustador, assim como é sombrio o esperado confronto entre Gastón e a Fera, que acontece à noite, sob chuva e raios e sob o olhar atento da protagonista, que consegue escapar de casa e chegar ao local.

Após a sangrenta batalha, a Fera surge praticamente morta e arranca lágrimas do espectador, num sintoma claro de que aquele romance nos conquistou. E enquanto a chuva cai, a Fera é transformada em príncipe através das palavras de amor de Bela, num final perfeito e feliz, tradicional das animações Disney e dos contos de fadas. Além disso, o espectador mata a curiosidade ao ver personagens adoráveis como Lumiere, Cogsworth e a Sra. Potts, agora como humanos, acompanhando a dança de Bela e seu príncipe. Por tudo isto, saímos com uma enorme sensação de felicidade, também porque acompanhamos uma animação que em nada deve aos grandes clássicos da Disney.

Embalado por lindas canções, “A Bela e a Fera” atinge o coração do espectador de maneira simples e eficiente, captando com competência a essência do conto de fadas que o inspirou. Com um visual lindo e personagens cativantes, foi o responsável pela restauração definitiva do tradicional departamento de animações da Disney, conseguindo levar prêmios importantes, além de uma inédita indicação ao Oscar de Melhor Filme. Por tudo isto, o longa merecidamente fez história.

Texto publicado em 02 de Novembro de 2011 por Roberto Siqueira

O REI LEÃO (1994)

(The Lion King)

 

 

Filmes em Geral #52

Videoteca do Beto #150 (Filme comprado após ter a crítica divulgada no site e transferido para a Videoteca em 06 de Janeiro de 2013)

Dirigido por Roger Allers e Rob Minkoff.

Elenco: Matthew Broderick, Rowan Atkinson, Whoopi Goldberg, Jeremy Irons, Nathan Lane, Niketa Calame, Jim Cummings, Robert Guillaume, James Earl Jones, Moira Kelly, Zoe Leader, Cheech Marin, Ernie Sabella, Madge Sinclair e Jonathan Taylor Thomas.

Roteiro: Irene Mecchi, Jonathan Roberts e Linda Woolverton, baseado em história de Jim Capobianco, Lorna Cook, Thom Enriquez, Andy Gaskill, Francis Glebas, Ed Gombert, Kevin Harkey, Barry Johnson, Mark Kausler, Jorgen Klubien, Larry Leker, Ricki Maki e Burny.

Produção: Don Hahn.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Apesar de alguns tropeços ao longo de sua história, os estúdios Disney se especializaram em produzir animações de grande qualidade, que utilizam uma estrutura narrativa simples e o talento de seus animadores para deixar mensagens marcantes tanto para crianças como para adultos. Mas existem alguns momentos em que este trabalho em conjunto se supera e alcança a perfeição, entregando filmes capazes de marcar gerações, como é o caso deste lindo “O Rei Leão”, que consegue narrar uma história vigorosa, utilizando como pano de fundo a deslumbrante paisagem da selva africana para ensinar valores fundamentais de maneira tocante. Em outras palavras, trata-se de um filme belo tematicamente e deslumbrante visualmente. Em resumo, uma obra-prima.

O rei leão Mufasa (voz de James Earl Jones) apresenta seu filhote Simba (voz de Matthew Broderick) aos animais do reino, provocando a ira de seu invejoso irmão Scar (voz de Jeremy Irons), que arquiteta um plano cruel na busca pelo trono. Aproveitando a inocência e a curiosidade do pequeno Simba, Scar consegue colocar em prática seu plano, mas, com o passar do tempo e a ajuda do astuto macaco Rafiki (voz de Robert Guillaume), Simba volta para ocupar o seu lugar de direito.

Por razões óbvias, a selva africana é um local dos sonhos para animadores, que podem criar (ou reproduzir) cenários capazes de tirar o fôlego de qualquer um. Felizmente, a equipe da Disney não perdeu a oportunidade, permitindo aos diretores Roger Allers e Rob Minkoff viajarem pelos belíssimos cenários, nos levando por deslumbrantes paisagens e, auxiliados pela excelente trilha sonora de Hans Zimmer (que remete aos sons típicos da África), nos ambientando ao local onde se passará à narrativa. Na realidade, o trabalho de criação de cenários e o som – que, por exemplo, permite distinguir nitidamente gotas da chuva, raios e os ruídos de cada animal – fazem mais do que ambientar o espectador, conseguindo uma verdadeira imersão no universo de “O Rei Leão”. Impressiona também a fidelidade com que a narrativa recria os hábitos dos animais, como quando Scar diz que “é função das leoas trazerem comida para o bando”, assim como os animadores retratam com perfeição os movimentos dos leões, como quando Simba caminha de um lado para o outro pensativo, da mesma forma que um leão real faria. Repare ainda como os movimentos felinos de caça são idênticos à realidade, assim como o movimento de praticamente todos os animais, reforçando a qualidade do trabalho dos animadores. Captando este visual rico e cheio de cores com competência, Allers e Minkoff criam planos belíssimos, que soam como um verdadeiro deleite visual, seja na chuva, seja no sol, fazendo com que diversos momentos do longa mais pareçam um quadro vivo. E até mesmo os locais mais sombrios têm sua beleza, como o obscuro cemitério dos elefantes, apresentado lentamente ao espectador através de um zoom e habitado pelas cinzentas hienas, que criam um contraste interessante com os pardos leões. Aliás, não são poucos os momentos em que um movimento de câmera nos revela algo deslumbrante, como nos elegantes travellings que passeiam pela selva, ou algo importante para a narrativa, como quando somos apresentados às centenas de gnus que pastam no monte próximo ao local onde Simba se encontra. Quando os gnus aparecem na tela, o espectador sente o perigo e praticamente prevê a tragédia – ainda que neste momento esteja mais preocupado com Simba do que com Mufasa -, que se consumará na impressionante cena do estouro dos gnus.

Mantendo a tradição Disney, a trama é interrompida algumas vezes por canções diegéticas que tem alguma função narrativa, como quando Timão e Pumba apresentam sua filosofia “Hakuna Matata”, no momento mais leve do filme, que aproveita para fazer a transição do jovem Simba para o Simba adulto. Aliás, já que citei a divertida dupla, vale ressaltar que a narrativa é preenchida por diversos personagens coadjuvantes fascinantes, como o sábio macaco Rafiki, o fiel Zazu e os próprios Timão e Pumba, que surgem após o momento mais intenso dramaticamente, funcionando como um alívio cômico perfeito. E ainda que seja o vilão, Scar, com sua juba preta, não deixa de ser um personagem interessante, amargurado por ser relegado ao segundo plano diante do poderoso irmão e seu legítimo herdeiro, o que o leva a arquitetar um plano diabólico, revelado num número musical sombrio, quando ele canta para as hienas – repare como a fotografia migra de tons esverdeados para o amarelo e, finalmente, para o vermelho, o que é coerente com as intenções demoníacas do invejoso leão.

Auxiliados pela montagem de Tom Finan, a dupla de diretores acertadamente investe boa parte da narrativa na relação entre Simba e Mufasa, estabelecendo a importância da figura paterna na formação do caráter daquele jovem. Além disso, Finan cria elegantes transições entre planos, como quando Rafiki está sentado e reflexivo durante a posse de Scar e, no plano seguinte, aparece dormindo numa árvore, assim como a imagem de Simba numa pedra se transforma no próprio leão, agora deitado e dormindo no deserto. Escrito por Irene Mecchi, Jonathan Roberts e Linda Woolverton, “O Rei Leão” aborda temas fortes e universais, como o amor, a inveja e a morte – este último de maneira profunda e tocante. Desde o seu nascimento, Simba é festejado e reverenciado pelos outros animais. Mas, como seu pai lhe ensinaria a seguir, ser rei não era uma tarefa tão simples assim. E é justamente nos ensinamentos de Mufasa que reside a grande mensagem do longa, ao abordar o chamado “ciclo da vida” e a natureza finita de todos nós. Num destes diálogos, Mufasa explica para seu filhote que da mesma forma que eles se alimentam de antílopes, um dia eles morreriam, virariam grama e serviriam de alimento para estes mesmos animais, num exemplo interessante da vida selvagem, onde todos são importantes no equilíbrio do ecossistema. Em outro momento, o sábio Mufasa ensina ao filho que “o tempo de um reinado se levanta e se põe como o sol”, numa bela metáfora para a própria vida – que serve também para preparar o espectador para a perda de Mufasa. Da mesma forma que viemos para o mundo, um dia partiremos, deixando o lugar para outro ser, que dará continuidade à nossa espécie. Nossos antepassados tiveram o seu tempo, depois vieram nossos pais e, finalmente, a nossa geração, que será sucedida pela dos nossos filhos e assim por diante. A lição, forte e direta, cai como uma bomba nos jovens espectadores (e afirmo isto porque assisti ao filme pela primeira vez com 13 anos de idade e lembro muito bem o quanto fiquei impressionado). Um dia, mais cedo ou mais tarde, teremos que assumir responsabilidades e ser como nossos pais.

Para que esta mensagem marcante funcione, é vital que a relação entre pai e filho conquiste a platéia, e felizmente o roteiro trata esta questão com carinho, criando um vinculo excepcional entre Mufasa e Simba. Desde os primeiros momentos, o pai pacientemente ensina tudo ao filho, sempre com muito carinho e amor, preparando seu pequeno para a vida. E mesmo quando precisa ser enérgico, Mufasa é sábio na condução da situação, como quando salva Simba no cemitério e pede para Zazu acompanhar Nala enquanto ele ensinaria uma lição ao filho. Misturando autoridade e amor, Mufasa transita do recado claro sobre os perigos da atitude de Simba para a brincadeira descontraída, numa cena linda e marcante. É nesta cena também que Mufasa fala sobre as estrelas e os reis, num diálogo que refletirá em outra cena emocionante, quando Simba, deitado na grama ao lado de Timão e Pumba, olha para as estrelas e lembra o pai (e observe como no momento em que Mufasa fala com o filho, o zoom out diminui os personagens em cena, refletindo a aflição de Simba ao pensar que um dia perderia seu pai). Assustado, o garoto encontra conforto em outra frase marcante de seu velho, que lhe ensina o quanto aquele sentimento era normal: “Os reis também têm medo”.

Conduzida com muita energia, a triste cena da morte de Mufasa provocará a fuga de Simba, impulsionado pelos gritos de seu tio Scar, que lhe aconselha a fugir, segundos antes de ordenar sua morte. Mas o jovem leão tinha o sangue dos grandes e consegue escapar, fugindo para a savana, num plano belíssimo onde podemos ver as hienas observando o pequeno leão que se perde no horizonte. E após viver bons momentos ao lado de Timão e Pumba, Simba, agora um leão adulto, reencontra sua amiga Nala quando ela pula em cima dele durante uma caçada, numa interessante rima narrativa que remete a “Bambi”, onde o personagem principal também reencontrava sua amada da mesma maneira que a conhecera na infância. Embalados pela bela “Can you feel the Love tonight”, Simba e Nala se apaixonam, só que a paixão não seria suficiente para levar o leão de volta ao seu lugar. Cabe então ao macaco Rafiki a árdua missão de convencê-lo, algo que ele consegue de maneira marcante, provando para Simba que Mufasa estava vivo. Simba, empolgado com a notícia, corre para o local apontado pelo macaco e vê, no reflexo da água, sua própria imagem, compreendendo que uma parte de seu pai existia dentro dele agora – confesso que, após esta bela cena, pensei imediatamente na frase “ter um filho é uma maneira de continuar vivo” e me emocionei. Ainda sentindo-se culpado pela morte do pai e demonstrando grande carência afetiva, Simba finalmente compreende seu lugar no ciclo da vida e decide voltar.

Chegamos então ao esperado confronto final entre “vilão” e “mocinho”, onde, após reencontrar o tio, Simba se vê na mesma situação em que seu pai morreu e descobre a verdade sobre a morte dele (repare novamente no tom vermelho da fotografia, que cria uma atmosfera tensa e violenta, remetendo ao sangue, à própria raiva de Simba e ao seu desejo de matar o tio). Buscando forças após a bombástica revelação, Simba manda o tio pelos ares, dando às hienas a oportunidade de se vingar de Scar, num exemplo claro da famosa lei da selva. E então, Simba assume seu posto, na mesma pedra em que foi apresentado aos outros animais e onde apresentará o seu filhote, que, da mesma maneira, dará seqüência ao ciclo da vida.

Com grandes ensinamentos, um visual rico e uma mensagem marcante, “O Rei Leão” é um lindo filme, capaz de emocionar sem ser melodramático. De maneira simples e direta, ensina valores importantes, conquistando o espectador com seus personagens graciosos e seu interessante conceito de continuidade da vida e inevitabilidade da morte. E já que a morte é inevitável, nada melhor do que aproveitar a vida da melhor maneira possível, amando, sendo amado, e assistindo a grandes filmes como este. Hakuna Matata!

Texto publicado em 09 de Abril de 2011 por Roberto Siqueira

PETER PAN (1953)

(Peter Pan)

 

Filmes em Geral #51

Dirigido por Clyde Geronimi, Wilfred Jackson e Hamilton Luske.

Elenco: Vozes de Bobby Driscoll, Kathryn Beaumont, Hans Conried, Bill Thompson, Heather Angel, Paul Collins, Tommy Luske, Candy Candido, Tom Conway, Tony Butala, Robert Ellis, Johnny McGovern, Jeffrey, Stuffy Singer, June Foray, Connie Hilton e Margaret Kerry.

Roteiro: Milt Banta, William Cottrell, Winston Hibler, Bill Peet, Erdman Penner, Joe Rinaldi, Ted Sears e Ralph Wright, baseado em peça teatral de J.M. Barrie.

Produção: Walt Disney.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Sob a capa de aventura jovial e alegre da peça escrita por J.M. Barrie, “Peter Pan” esconde aspectos sombrios que abordam questões universais como a passagem do tempo, a perda da inocência e o mundo mais triste e cruel que todos nós somos obrigados a enfrentar quando deixamos a deliciosa fase da infância para trás. Infelizmente, esta essência da obra do dramaturgo escocês não foi captada com perfeição pelos estúdios Disney, que demonstravam através desta adaptação da obra para o cinema os primeiros sinais de desgaste na tradicional e outrora infalível fórmula de sucesso do estúdio.

A jovem e sonhadora Wendy Darling (voz de Kathryn Beaumont) espera ansiosamente pela visita de Peter Pan (voz de Bobby Driscoll), ao lado de seus irmãos João (voz de Paul Collins) e Miguel (voz de Tommy Luske). Após seus pais saírem de casa para passear, o “garoto que se recusa a crescer” aparece, levando Wendy e seus dois irmãos para a Terra do Nunca (uma ilha encantada onde ninguém cresce), para viver deliciosas aventuras ao lado da fada Sininho e dos garotos perdidos, que lutam contra o Capitão Gancho (voz de Hans Conried), um pirata cruel que jurou vingança quando, após uma briga com Peter, teve sua mão comida por um crocodilo – que, por sua vez, engoliu um despertador.

“Peter Pan” é uma fábula maravilhosa sobre a perda da inocência, sobre o momento em que a criança passa a perceber os desafios que enfrentará na vida e começa a deixar para trás o mundo mágico da infância, algo inevitável e que aconteceu (ou acontecerá) com todos nós. De maneira inteligente, o texto de J.M. Barrie cria um universo fantástico, repleto de personagens interessantes, que ilustram diversos aspectos desta fase da vida, como podemos perceber, por exemplo, no principal vilão da trama, que simboliza os terríveis adultos, responsáveis por destruir as fantasias das crianças (algo que, no longa da Disney, é inteligentemente representado na voz de Hans Conried, que faz ao mesmo tempo o capitão Gancho e George, o pai de Wendy). Outro exemplo notável dos simbolismos da fábula é o crocodilo que engoliu um despertador, que funciona como uma metáfora para o monstro implacável chamado “tempo”, cruel inimigo da infância. Afinal de contas, é justamente por causa da passagem do tempo que pessoas como George deixam de acreditar na existência de personagens como Peter Pan, como fica evidente nas primeiras cenas do longa, na casa da família Darling em Londres.

Após a bela introdução do narrador, vemos o pai irritado (e atrapalhado) separando as crianças e o cachorro e preparando a pequena Wendy para um momento de mudança. Ao sair do quarto dos irmãos, Wendy estava encarando uma nova fase e o fim de uma era de sonhos, um período mágico onde nossa imaginação nos leva a lugares fantásticos, sem que nada possa nos impedir. Mas ela ainda tinha direito a uma última aventura, e assim que seus pais saem de casa, uma sombra no telhado indica a presença do aguardado Peter Pan, o menino que não queria crescer e que levaria Wendy e seus irmãos para a Terra do Nunca, a ilha onde ninguém cresce. Os simbolismos são mais que evidentes. Só que esta não é uma crítica do texto de J.M. Barrie e, infelizmente, o longa da Disney não consegue captar sua essência, criando um filme leve e descontraído, mas que jamais alcança o impacto da obra que o inspirou. Talvez o grande problema do longa dirigido pelo trio Clyde Geronimi, Wilfred Jackson e Hamilton Luske seja exatamente sua leveza exagerada, que não consegue criar, por exemplo, um capitão Gancho temível e acaba tornando-se uma aventura leve e despretensiosa que minimiza os aspectos mais sombrios da obra original.

Talvez por isso, o longa apresenta um visual alegre, através das coloridas animações e dos criativos movimentos de câmera empregados, por exemplo, durante o vôo para a ilha. Este visual repleto de cores quentes e dias ensolarados ajuda a manter a atmosfera leve na ilha, criando um interessante contraste com as seqüências que se passam em Londres, sempre à noite e com cores mais frias. Ainda assim, existe espaço para pequenos momentos de tensão, como quando a sombra do capitão aparece na parede antes dele atacar Peter, seguindo a tradição Disney (inspirada no expressionismo alemão) de utilizar as sombras para provocar suspense. Em outro momento, quando Sininho desaparece, o visual obscuro que toma conta da tela indica o momento tenso. Mas nada que interfira no clima quase permanente de descontração da narrativa, embalado pelo bom ritmo da montagem de Donald Halliday, que alterna entre as cenas de Peter e as crianças e as cenas do Capitão Gancho e seus planos supostamente cruéis.

Outra tradição Disney que “Peter Pan” segue à risca é a presença constante da trilha sonora de Oliver Wallace e as canções espalhadas pela narrativa, como a triste e melancólica “Mamãe”, cantada momentos antes de o Capitão Gancho capturar Peter Pan. E até mesmo o som do despertador do crocodilo, que serve para indicar sua presença, é sempre embalado por uma trilha sonora leve e descontraída. Felizmente, a qualidade das animações também mantém o padrão do estúdio, criando cenários interessantes – como a árvore que abriga Peter e as crianças – e movimentos perfeitos para os personagens – como quando Sininho voa pela floresta. E talvez seja justamente por seguir a fórmula da maioria dos filmes anteriores que “Peter Pan” apresente um resultado apenas razoável, evitando o tom melancólico e não compreendendo todos os aspectos da obra que o inspirou. Por outro lado, o tom leve da narrativa apresenta momentos divertidos, especialmente quando Peter engana o Capitão – e que, ainda que sejam engraçados, servem também para enfraquecer ainda mais o vilão diante do espectador.

Pelo menos, os simbolismos continuam presentes e transmitem, ainda que de maneira pouco contundente, a mensagem principal da narrativa. Repare, por exemplo, como Wendy afirma com tristeza que “amanhã irá crescer”, momentos depois de afirmar para sua mãe que não queria crescer. Não à toa, ela se identifica com Peter, que com seu jeito sempre destemido e alegre, é um símbolo perfeito da juventude, chamando a atenção não só de Wendy, como de muitas outras crianças – e é curioso notar que tanto Sininho como as Sereias sentem ciúmes de Peter, o que será essencial para a execução do plano do Capitão Gancho de capturar o herói. Aliás, o carrancudo capitão Gancho, com seu mau humor e planos cruéis, representa os adultos e toda a aura sombria que os cerca. E fechando a gama de personagens da trama, temos ainda os divertidos índios que aparecem rapidamente no segundo ato.

Toda esta aventura juvenil chega ao seu clímax no navio pirata do Capitão Gancho, que nos leva ao esperado duelo entre Peter e o vilão. E, como esperado, Peter vence o duelo com facilidade. Então, a montagem faz um interessante raccord da lua para o Big Bang e dele para o relógio da casa de Wendy, nos levando de volta para Londres e para a conclusão da narrativa. E ao ver o navio de Peter nas nuvens, George afirma ter a sensação de já ter visto este navio antes, ainda quando era criança, reforçando o tema da “perda da inocência” abordado pela narrativa.

Ainda que tenha bons momentos, “Peter Pan” jamais alcança a qualidade de filmes como “Pinóquio” e “Dumbo” e, principalmente, não consegue transmitir em toda sua complexidade a mensagem agridoce da obra que o inspirou. Com seu clima leve e extremamente descontraído, mais parece uma simples aventura juvenil do que uma amarga reflexão a respeito da inexorabilidade do tempo, que nos leva ao triste momento em que perdemos a inocência, nos trazendo para um universo menos alegre, menos fantasioso e muito mais cínico. Se este dia não tivesse chegado para mim, talvez eu gostasse mais do filme. Mas, infelizmente, ele chegou, há muito tempo.

Texto publicado em 08 de Abril de 2011 por Roberto Siqueira

BAMBI (1942)

(Bambi)

 

Filmes em Geral #50

Videoteca do Beto #149 (Filme comprado após ter a crítica divulgada no site e transferido para a Videoteca em 06 de Janeiro de 2013)

Dirigido por David Hand.

Elenco: Vozes de Bobby Stewart, Donnie Dunagan, Hardie Albright, John Sutherland, Stan Alexander, Sterling Holloway, Sam Edwards, Peter Behn, Tim Davis, Cammie King, Ann Gillis, Mary Lansing, Margaret Lee, Thelma Boardman, Will Wright, Paula Winslowe, Fred Shields, Janet Chapman, Jack Horner, Dolyn Bramston Cook, Marion Darlington e Bobette Audrey.

Roteiro: Perce Pearce e Larry Morey, baseado em livro de Felix Salten.

Produção: Walt Disney.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Os primeiros anos da Walt Disney Pictures no cinema foram impressionantes. Após a bem sucedida estréia de “Branca de Neve e os Sete Anões”, os estúdios comandados por Walt Disney emplacaram um sucesso atrás do outro, conseguindo agradar público e crítica e dando a sensação de que eles eram simplesmente incapazes de errar. E entre as marcantes obras daquele período está “Bambi” (que na realidade só se confirmou como um sucesso cinco anos depois, em seu relançamento), a encantadora história do “príncipe” da floresta, que mantém o alto padrão de qualidade dos filmes do estúdio, conseguindo agradar jovens e adultos.

Momentos após o seu nascimento, o filhote de cervo “Bambi” já chamava a atenção dos outros animais, sendo chamado de “Príncipe da Floresta”. Com o passar do tempo, ele aprende a andar, correr, faz amizade com outros animais e descobre, ao lado de sua carinhosa mãe, como sobreviver na floresta e, principalmente, como amar. Mas esta relação fraternal acaba no dia em que caçadores chegam ao local, obrigando o jovem cervo a se tornar tão corajoso quanto o seu pai, o mais respeitado cervo da região, e liderar sua espécie na busca por um local mais seguro.

Se a qualidade da narrativa de “Bambi” mantém o padrão Disney estabelecido em filmes como “Pinóquio” e “Dumbo”, o mesmo pode ser dito das animações em si, que também apresentam um trabalho bastante crível e realista, notável desde os primeiros planos que nos levam pelas árvores, sob o som dos pássaros e da bela trilha sonora de Edward H. Plumb e Frank Churchill, nos ambientando a floresta. Em seguida, o nascimento do príncipe Bambi marca o início da bela trajetória do protagonista, num evento que chama a atenção de muitos animais que, com seu visual colorido, trazem vida à tela. E estas deliciosas imagens permanecerão até que, aos 5 minutos de filme, a primeira fala aconteça, dando inicio ao processo de desenvolvimento do jovem cervo que será acompanhado de perto pelo espectador, deixando claro desde o início o interessante paralelo traçado pela narrativa entre a formação de “Bambi” e a de um ser humano. Como todos nós, ele aprenderá a andar e falar, sempre demonstrando muita curiosidade, da mesma maneira que qualquer “criança” faria (repare como Bambi se destaca dos demais por causa de sua cor, numa estratégia visual inteligente). Esta curiosidade será responsável por aproximar os laços entre Bambi e sua mãe, que pacientemente ensina os caminhos da vida ao filho, numa relação que é desenvolvida com muito cuidado, preparando o espectador para o trágico momento em que o cervo será obrigado a seguir sozinho, deixando uma lição de vida emblemática que as crianças dificilmente esquecerão. Só que o roteiro escrito por Perce Pearce e Larry Morey, baseado em livro de Felix Salten, não se resume a demonstrar o ciclo natural da vida apenas sob o aspecto da relação entre pais e filhos, mostrando também como os jovens se comportam diante do sexo oposto, numa aproximação que será essencial para perpetuar a espécie. Repare, por exemplo, a reação tímida de Bambi em seu primeiro contato com Faline, ainda quando era “criança”, e compare com a reação típica da maioria dos garotos, normalmente mais arredios diante do sexo oposto do que as meninas na infância. O propósito do longa é claro: ensinar as diversas etapas da vida que cada “bambino” deverá enfrentar, mais cedo ou mais tarde. E para evitar que esta jornada soe cansativa ou aborrecida, o roteiro inteligentemente insere alguns personagens que acompanharão Bambi, como o divertido e preguiçoso gambá Flor e o teimoso coelhinho Tambor, que é responsável pelos momentos de alivio cômico da narrativa.

Também como na maioria das animações da Disney, a trilha sonora de Edward H. Plumb e Frank Churchill preenche boa parte da narrativa, assim como os diversos números musicais, dentre os quais merece destaque o que acontece quando Bambi acompanha a primeira chuva de sua vida. Aliás, em “Bambi” o clima tem importante função narrativa, indicando a passagem do tempo através das estações, como o rigoroso inverno que “parece cumprido” e a colorida primavera que traz de volta a alegria à narrativa, após um momento melancólico. E já que citei a passagem do tempo, vale ressaltar que o longa, com apenas uma hora e dez minutos de duração, tem um bom ritmo, o que é mérito da montagem, essencial também nas cenas mais tensas, principalmente quando o homem começa a interferir na vida dos animais. Tensa também é a tempestade que assusta o protagonista, numa das seqüências que ilustram a boa condução de David Hand (sem trocadilhos), que cria uma atmosfera sombria através dos raios que iluminam a tela momentaneamente, voltando à escuridão em seguida e, após o fim da tempestade, estabelecendo um belo contraste através dos pássaros que repousam num galho com a luz do sol ao fundo. E são os pássaros (e a trilha agitada) que indicam a chegada de um temível predador, assustando o restante dos animais, que saem em disparada – e a tristeza é inevitável ao constatar que este predador é o homem quando o som dos tiros surge. Aliás, todas as cenas que envolvem a figura humana são tensas, justamente por causa do ritmo empregado pelo diretor, que mantém o espectador atento e sempre torcendo pelos animais através da alternância entre os planos que ilustram o desespero de todos com a presença daquele invasor. Por isso, quando Bambi pergunta “Porque todos nós corremos, mamãe?”, a resposta, triste e verdadeira, soa como uma facada no coração do espectador: “Porque o homem esteve na floresta”. Finalmente, vale destacar a bela composição de alguns planos, como o zoom que destaca o líder dos cervos ou quando Bambi e sua mãe caminham pela floresta, com suas imagens refletindo na água do rio.

Numa destas caminhadas, Bambi encontra um pouco de grama pra comer no meio da neve. Enquanto o filhote se delicia, a mamãe atentamente escuta algo que se aproxima. E quando ela ergue a cabeça e a trilha sombria volta a tocar, sentimos a tragédia iminente. Mamãe grita para Bambi correr, os dois saem em disparada e a cena caminha em ritmo alucinante até o emblemático plano em que vemos Bambi passando correndo e, em seguida, a tela vazia, segundos após outro som de tiro. A fotografia sombria da cena seguinte, que chega a deixar Bambi completamente cinza, dá o tom do momento em que o grande cervo anuncia: “Sua mãe não pode mais ficar com você, meu filho”. A lágrima dele e a trilha sonora melancólica encerram a eficiente cena, que emociona sem ser exageradamente melodramática.

Após o trauma, a vida segue e Bambi continua crescendo. Seus belos chifres simbolizam a chegada da adolescência, uma fase onde a vaidade está em alta e por isso ele se mostra orgulhoso de seu novo visual. Seus amigos Tambor e Flor também crescem e passam a escutar atentamente os ensinamentos da velha coruja, que fala aos jovens sobre como é se apaixonar, em outra cena bela. Cheios de orgulho, os três afirmam que isto nunca vai acontecer com eles, mas, obviamente, se apaixonam logo em seguida, afinal de contas, esta é a vida. E numa interessante rima narrativa, o segundo encontro entre Faline e Bambi acontece da mesma forma que o primeiro (quando eles ainda eram filhotes), com ambos se olhando através do reflexo na água. Mas desta vez a timidez de Bambi não impedirá que ela se aproxime e lamba o rosto dele, fazendo com que o casal se sinta nas nuvens, como ilustrado nas belas imagens seguintes, num momento único que pode ser comparado ao primeiro beijo de um adolescente. Apaixonado, Bambi lutará o quanto for preciso para defender a amada, o que nos leva à outra cena marcante, em que ele luta com outro cervo sob um visual sombrio, graças às cores escuras que predominam na tela.

Mas certamente as cenas mais sombrias acontecem no ato final, quando o homem parte para a caçada e Bambi finalmente assume o posto de líder do grupo, conduzindo os cervos para um local seguro ao mesmo tempo em que enfrenta o homem (e seus cachorros) no caminho, quando volta para salvar Faline. É verdade que Bambi não sairá ileso deste confronto, mas o tiro que leva felizmente não será fatal como o de sua mãe. Vale destacar ainda que toda a seqüência da fuga apresenta um visual deslumbrante, também por causa do incêndio (provocado pelo homem) que assola a floresta, que confere um aspecto infernal à cena, graças ao predomínio do vermelho e do amarelo, e serve como uma forte crítica à interferência do homem na natureza. Somos os demônios responsáveis por aquela tragédia e a cena ilustra isto – e a triste imagem dos animais tentando se recuperar na beira do rio, com a floresta destruída, reforça esta sensação. Mas a vida recomeça para todos e a natureza mais uma vez se renova com vigor, com a chegada dos novos príncipes cervos que recomeçam o ciclo da vida, ilustrado no zoom out que encerra o longa, destacando o agora poderoso Bambi, um adulto formado e com sua própria família, como fora seu pai um dia.

Além do belo visual e da narrativa coesa, “Bambi” aborda as diversas etapas da formação de seu jovem cervo, numa interessante metáfora para os próprios seres humanos. Acompanhamos Bambi aprendendo a andar, a falar, a brincar, a comer, a se proteger do perigo, a se apaixonar, constituir uma família e se tornar, com o passar do tempo, o que seus pais eram quando ele nasceu, assim como todos nós provavelmente fizemos ou faremos um dia.

Texto publicado em 07 de Abril de 2011 por Roberto Siqueira

DUMBO (1941)

(Dumbo)

 

Filmes em Geral #49

Videoteca do Beto #148 (Filme comprado após ter a crítica divulgada no site e transferido para a Videoteca em 06 de Janeiro de 2013)

Dirigido por Ben Sharpsteen.

Elenco: Verna Felton, Cliff Edwards, Herman Bing, Billy Bletcher, Edward Brophy, Jim Carmichael, Hall Johnson Choir e Noreen Gammill.

Roteiro: Joe Grant e Dick Huemer.

Produção: Walt Disney (não creditado).

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Apesar da qualidade de seus primeiros filmes, os estúdios Disney enfrentavam grande dificuldade financeira na época do lançamento de “Dumbo”. Em meio à forte crise provocada pela guerra mundial, as pessoas não freqüentavam mais o cinema como antes e nem mesmo o inovador “Fantasia” e a obra-prima “Pinóquio” conseguiram reverter este quadro, deixando “Branca de Neve e os Sete Anões” como o único sucesso efetivo de bilheteria do estúdio até então. Além disso, Walt empregou seus melhores recursos na produção de “Bambi”, que seria lançado apenas em 1942, após longos 6 anos em produção. Sobrou para “Dumbo” a equipe dos “velinhos” do estúdio, que ficou com a responsabilidade de criar um filme menor, mais barato e que, ironicamente, salvou o estúdio, tornando-se um grande sucesso de bilheteria.

Escrito por Joe Grant e Dick Huemer, “Dumbo” conta a história de um bebê elefante que nasceu com orelhas enormes e, por isso, é alvo do preconceito dos outros animais e até mesmo de seres humanos no circo onde vive. Após ser separado de sua mãe, que, desesperada para defender o filho, atacou um grupo de meninos, ele encontra o ratinho Timóteo, que o ajuda a recuperar a auto-estima perdida e dar a volta por cima, transformando-se no grande astro do circo.

Apesar da boa qualidade da animação, “Dumbo” apresenta um trabalho claramente mais rústico que “Pinóquio”, o que é reflexo da crise financeira que a Disney enfrentava na época, que forçou a redução do orçamento de “Dumbo”. Para compensar o menor nível de detalhes, o longa aposta inicialmente num visual alegre, repleto de cores fortes, além dos belos planos do diretor Ben Sharpsteen, notáveis, por exemplo, quando o trem viaja durante a noite ou na montagem do circo sob forte chuva. Além disso, “Dumbo” é repleto de momentos tocantes, sempre embalados pela linda trilha sonora de Frank Churchill e Oliver Wallace, como quando as cegonhas trazem os filhotes dos animais logo no início, conquistando o espectador imediatamente. A trilha sonora, aliás, é um dos destaques do filme, mantendo a tradição Disney de espalhar diversas canções pela narrativa, além de pontuar muito bem as cenas, como quando muda para um tom triste após as cegonhas irem embora, ilustrando o sentimento da elefanta que não recebeu seu bebê. E é justamente nestes momentos que tocam o coração e na simplicidade da narrativa que reside o sucesso do longa.

Observe, por exemplo, a linda cena do “nascimento” de Dumbo. Após acompanharmos o sofrimento da mamãe elefanta, a desajeitada e atrasada cegonha chega para entregar seu filhote, provocando a emoção genuína no espectador, que já partilhou com ela o sofrimento por não ter o seu bebê e agora é agraciado pela chegada de Dumbo. Pequeno e frágil, o personagem título conquista o espectador rapidamente, o que será essencial para o sucesso da narrativa (observe, por exemplo, que, assim como Bambi, Dumbo também tem medo dos raios e se protege da chuva embaixo de sua mãe). Por isso, quando suas enormes orelhas aparecem e provocam o espanto das outras elefantas, o espectador até pode estranhar, mas já foi conquistado pelo pequeno elefante e torcerá por ele até o final. Neste momento, aliás, tem inicio o tema principal do filme, que é o respeito (ou a falta dele) ao diferente. Para aqueles que acusam a Disney de ser conservadora, pode ser surpreendente constatar que Walt já debatia o preconceito naquela época.

Independente do que as pessoas pensam e de qualquer tipo de preconceito, uma mãe sempre amará seu filho (estou me referindo às mães de verdade, não a estes monstros que vemos nos telejornais hoje em dia). Por isso, é compreensível (e até mesmo previsível) que mamãe elefanta se revolte (repare o olho vermelho dela) e ataque os meninos que caçoam de Dumbo no circo, o que ocasionará sua prisão, acusada de ser louca. Na prisão, vale observar a composição visual dos planos que ilustram a sintonia entre mãe e filho, com as sombras da grade formando listras na elefanta, da mesma forma que a lona do circo aparece atrás de Dumbo. Esta conexão é reforçada ainda pelo movimento do corpo deles, que é idêntico. Solitário e abandonado, Dumbo encontrará auxilio no animado Timóteo, personagem que funciona como alívio cômico numa narrativa que caminhava para um clima pesado demais. Suas intervenções, como quando assusta as elefantas fofoqueiras, são sempre divertidas e quebram o ritmo denso da narrativa. E até mesmo o jovem Dumbo contribui para esta atmosfera bem humorada, quando destrói o circo ao participar de um número, mas este acidente acaba aumentando seu drama e iniciando o conflito principal da narrativa, o que traz de volta o clima pesado para a história. Transformado em palhaço, ele faz enorme sucesso, mas chora de tristeza. O longa alterna com eficiência entre os momentos divertidos e dramáticos, nos fazendo sorrir em cenas como esta do circo e nos emocionando em momentos belíssimos, como quando Dumbo visita a mãe na cela, momentos antes dos palhaços afirmarem que “elefantes não têm sentimentos”. Eles não podiam estar mais errados.

Ainda que na maior parte do tempo Ben Sharpsteen apresente uma direção discreta, ele é competente na condução de cenas marcantes, como a interessante seqüência em que Dumbo e o ratinho ficam bêbados, seguida por imagens psicodélicas de elefantes cor-de-rosa que simulam a bebedeira da dupla, confirmando novamente a ousadia de Walt Disney (lembre-se que em “Pinóquio” ele já havia mostrado os garotos fumando e jogando sinuca). E da mesma maneira que o ritmo da narrativa alterna entre momentos divertidos e dramáticos, a fotografia alterna das cores fortes do início para cores mais tristes no segundo ato, refletindo a tristeza de Dumbo e sua mãe até mesmo através do maior número de cenas noturnas, voltando para tons mais alegres no final. Se “Dumbo” não é um filme perfeito, seus pequenos problemas podem até passar despercebido diante da beleza da história narrada. É verdade que animais se comunicando verbalmente com seres humanos é algo que soa irreal mesmo num universo fantasioso (como acontece quando o ratinho conversa com o dono do circo). Além disso, é difícil acreditar no número que “empilha” sete elefantes no circo. Mas são problemas pequenos demais para atrapalhar um filme tão belo.

Quando Dumbo parece desolado e perdido, o sermão de Timóteo para os corvos serve também para atingir a platéia, num momento que resume a bela mensagem do filme. Através da pena mágica (um artifício usado para dar confiança ao protagonista), ele e os corvos conseguem devolver a auto-estima para o elefante, que aprende a voar. Pra finalizar, a seqüência ainda apresenta a melhor música do filme, a empolgante “When I See an Elephant Fly”, que em português tem o delicioso refrão: “fiquei um mês sem poder falar ao ver elefante voar”. Dumbo volta para o circo, faz sucesso, fica rico e recebe sua mãe de volta. Um final feliz, para um filme idem, que ainda consegue deixar uma bela mensagem para o espectador.

Com simplicidade e muita imaginação, “Dumbo” consegue agradar, mostrando que uma história simples pode ser tão eficiente quanto qualquer outra, dependendo da forma como é contada. É interessante que o filme que fala sobre o preconceito tenha tido pouco investimento do estúdio e poucos recursos técnicos, pois reafirma a mensagem de que a forma é menos importante do que o conteúdo. E não é o caso de dizer que ficarei um mês sem poder falar, mas de fato foi uma delícia ver este elefantinho voar.

Texto publicado em 06 de Abril de 2011 por Roberto Siqueira

FANTASIA (1940)

(Fantasia)

 

Filmes em Geral #48

Videoteca do Beto #147 (Filme comprado após ter a crítica divulgada no site e transferido para a Videoteca em 06 de Janeiro de 2013)

Dirigido por James Algar, Samuel Armstrong, Ford Beebe, Hamilton Luske, Jim Handley, Norman Ferguson, T. Hee, Wilfred Jackson, Bill Roberts, Paul Sattersfield.

Elenco: Leopold Strokowski, Deems Taylor, James Macdonald, Paul J. Smith, Walt Disney (Mickey Mouse – voz) e Julietta Novis (Soloist – voz).

Roteiro: Joe Grant e Dick Huemer (sequências de orquestra); Lee Blair, Elmer Plummer e Phil Dike (“Toccata and Fugue in D Minor”); Sylvia Moberly-Holland, Norman Wright, Albert Heath, Bianca Majolie e Graham Heid (“The Nutcracker Suite”); Perce Pearce e Carl Fallberg (“The Sorcerer’s Apprentice”); William Martin, Leo Thiele, Robert Sterner e John McLeish (“Rite of Spring”); Otto Englander, Webb Smith, Erdman Penner, Joseph Sabo, Bill Peet e George Stallings (“The Pastoral Symphony”); Campbell Grant, Arthur Heinemann e Phil Dike (“Night on Bald Mountain/Ave Maria”).

Produção: Walt Disney.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Walt Disney gostava de desafios. Não fosse assim, jamais teria lançado o primeiro longa metragem de animação da história, o clássico “Branca de Neve e os Sete Anões”. Felizmente, sua ousadia era acompanhada de uma genialidade ímpar, que lhe permitiu acertar em praticamente todos os projetos seguintes, como a obra-prima “Pinóquio”, “Bambi” e “Dumbo”. Mas em 1940, “Walt” ousou ainda mais, decidindo misturar animação e música clássica neste excelente “Fantasia”, que nos leva numa viagem belíssima e inesquecível.

“Fantasia” apresenta uma série de histórias distintas acompanhadas por grandes obras da música clássica, numa mistura bastante original e até mesmo ousada para a época (poucos anos antes, as pessoas sequer acreditavam que seria possível produzir um longa metragem de animação). Até por isso, “Fantasia” foi mal recebido pela crítica na época, mas acabou sendo merecidamente reconhecido com o passar dos anos, ainda que hoje, mais de 70 anos depois de seu lançamento, seu ritmo soe um pouco irregular. Basicamente, a narrativa apresenta pequenas histórias animadas, separadas pelas intervenções da orquestra da Filadélfia, que toca as seguintes canções: “Toccata and Fugue in D Minor”, de Johann Sebastian Bach, “The Nutcracker Suite”, de Peter Llich Tchaikovsky, “The Sorcerer’s Apprentice”, de Paul Dukas, “Rite of Spring”, de Igor Stravinsky, “Symphony No. 6”, de Ludwing Van Beethoven (na história “The Pastoral Symphony”), “Dance of the Hours”, de Almicare Ponchielli, “A Night on Bald Mountain”, de Modest Mussorgsky e “Ave Maria”, de Franz Schubert.

Com seu festival de sons e cores, “Fantasia” é uma verdadeira festa para os sentidos. Desnecessário dizer que a qualidade das animações é excepcional, já que estamos falando de uma produção com o padrão Disney, assim como não precisamos reafirmar a qualidade das músicas que embalam cada seqüência. Ainda assim, o longa não é perfeito, pois as interrupções da orquestra, necessárias na época até para explicar à platéia o que estava acontecendo, claramente quebra o ritmo da narrativa. Mas este pequeno deslize não tira o brilho deste grande filme, que corajosamente enfrentou o desafio de misturar animação e música clássica ainda nos anos 40, como fica evidente logo em seu início, quando as imagens da orquestra (com tonalidades fortes em vermelho, azul e amarelo) se transformam numa série de imagens abstratas sob o som da música “Toccata and Fugue in D Minor” de Sebastian Bach. Lentamente, saímos do concerto e passamos a viajar nos desenhos da turma de “Walt”, numa introdução correta, que funciona como apresentação do que veremos a seguir. Ainda assim, este primeiro número é claramente o mais fraco do longa e não consegue empolgar.

Já no segundo número, “The Nutcracker Suite” (música de Pyotr Ilyich Tchaikovsky), destacam-se a dança dos cogumelos, uma divertida alusão aos chineses, e a dança das flores, um verdadeiro deleite visual. Um pouco melhor que o número de abertura, “The Nutcracker Suite” atinge seu grande momento na valsa das folhas e termina preparando o espectador para os novos e empolgantes “curtas” que ele vai presenciar. Daqui pra frente, cada seqüência é uma verdadeira jóia, com exceção da chata e burocrática apresentação da “trilha sonora”, que serve apenas para separar os quatro primeiros números dos últimos. Antes dela, temos ainda duas seqüências fascinantes. “Aprendiz de Feiticeiro” (“The Sorcerer’s Apprentice”, de Paul Dukas), o terceiro número do longa, apresenta Mickey Mouse num dos papéis mais famosos de sua longa jornada, deixando uma lição sobre os perigos da ambição e trazendo seqüências visuais de tirar o fôlego, como quando as vassouras invadem o local para jogar água ou quando Mickey sonha controlar tudo com o chapéu do feiticeiro. O quadro seguinte é “Rite of Spring” (música de Igor Stravinsky), uma viagem deliciosa pela evolução da terra com imagens belíssimas, ousada tematicamente para um filme infantil (por mostrar a lei da vida sem maquiar a realidade), que apresenta animais se alimentando uns dos outros para sobreviver, como na aterrorizante chegada do T-Rex sob forte chuva (repare o visual sombrio da cena), em que ele mata outro dinossauro. O emblemático plano em que o sol queima as caveiras de dinossauros encerra a seqüência e simboliza o fim de uma era na Terra.

Após a desnecessária apresentação da “trilha sonora”, temos o sensacional “The Pastoral Symphony”, talvez o melhor número de “Fantasia”, que apresenta uma interessante história repleta de personagens da mitologia grega no Monte Olimpo sob o som da “Symphony No. 6”, de Beethoven. Aqui, novamente a ousadia temática aparece durante o “sensual” namoro dos centauros, seguida pela festa do vinho e pelo castigo de Zeus. Os raios que castigam aqueles “pecadores”, simbolizados pelos meninos com chifres que enchem os tanques de vinho, são seguidos por uma forte tempestade, mas a calmaria chega, o arco-íris aparece e a noite recai sobre todos, num número marcante e inesquecível. Vale observar alguns detalhes, como a cor azul dos centauros solitários, que ilustra a tristeza que eles sentiam, e o local onde eles se encontram após a “ajuda” dos anjos (uma referencia ao “Templo do Amor”, em Versalhes), além do coração que fecha a seqüência com toques de romantismo. Repare ainda como durante a chuva, o visual sombrio é reforçado pela parte tensa da música de Beethoven enquanto Zeus castiga a todos com raios.

Chegamos então ao penúltimo número do longa. “Dance of the Hours”, com música de Amilcare Ponchielli, é claramente inferior aos dois anteriores, mas não chega a decepcionar. Vale notar como a cor e até mesmo os animais escolhidos remetem à passagem do dia, iniciando com o inofensivo Avestruz branco, passando pelos hipopótamos marrons, pelos elefantes mais escuros e fechando com os temíveis jacarés. E finalmente, o último número, acompanhado pelas músicas “A Night on Bald Mountain”, de Modest Mussorgsky, e “Ave Maria”, de Franz Schubert, comprova toda a ousadia de Walt Disney, tanto na escolha do projeto quando nos temas abordados, mostrando o confronto entre o demônio e seus seguidores e a igreja. O demônio, aliás, ainda hoje é aterrorizante, com um visual imponente e um olhar penetrante, mas ainda assim cai diante dos sinos que anunciam a chegada dos “religiosos” e nos levam ao final de toda esta bela viagem chamada “Fantasia”.

“Fantasia” é um grande filme, sem dúvida, mas seu ritmo lento, constantemente quebrado pelas interrupções da orquestra para apresentar o próximo número, pode desagradar às platéias mais jovens. Em todo caso, Walt Disney comprovou mais uma vez sua genialidade e sua coragem ao abraçar um projeto tão diferente e entregar um resultado agradável.

Texto publicado em 05 de Abril de 2011 por Roberto Siqueira

BRANCA DE NEVE E OS SETE ANÕES (1937)

(Snow White and the Seven Dwarfs)

 

Filmes em Geral #47

Dirigido por David Hand.

Elenco: Adriana Caselotti, Harry Stockwell, Lucille La Verne, Moroni Olsen, Billy Gilbert, Pinto Colvig, Otis Harlan, Scotty Mattraw, Roy Atwell e Stuart Buchanan.

Roteiro: Dorothy Ann Blank, Richard Creedon, Merrill De Maris, Otto Englander, Earl Hurd, Dick Rickard, Ted Sears e Webb Smith, baseado em história de Jacob Ludwig Carl Grimm e Wilhelm Carl Grimm.

Produção: Walt Disney.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Como já abordei na semana especial “Inovação”, a história do cinema é marcada por diversos momentos importantes, com o lançamento de filmes que influenciaram muitos outros e colaboraram para a evolução da linguagem cinematográfica. E entre tantos filmes importantes que podem ser encaixados nesta categoria, um dos meus favoritos é “Branca de Neve e os Sete Anões”, o primeiro longa-metragem de animação da história, responsável por esta técnica tão querida, que nos delicia todos os anos com lançamentos de ótima qualidade. Se hoje podemos assistir obras-primas como “Wall.E” ou “Toy Story” é porque um dia Walt Disney teve a coragem de desafiar o pessimismo geral e lançar um longa totalmente feito em animação.

Uma bela rainha (voz de Lucille La Verne) decide matar sua enteada quando descobre que ela é a mais linda de todas as mulheres. Mas o carrasco (voz de Stuart Buchanan) escolhido para executá-la desiste da idéia e permite que ela fuja. A jovem, chamada Branca de Neve (voz de Adriana Caselotti), encontra abrigo numa cabana, onde vivem sete anões que trabalham numa mina. Mas a rainha descobre seu paradeiro, se transforma numa bruxa e vai atrás dela, numa última tentativa de concretizar seu plano e se tornar a mais bela de todas as mulheres.

Contrariando a crença da época de que era impossível realizar um longa-metragem totalmente feito em animação, “Branca de Neve e os Sete Anões” foi um enorme sucesso de crítica e público e alavancou muitos dos projetos seguintes dos estúdios Walt Disney. Aliás, o longa fez mais do que isso, lançando uma técnica que faz sucesso até hoje e que até mesmo é, erroneamente, confundida como um gênero. Por isso, é bom deixar claro: animação não é gênero, é técnica. Um filme de animação pode ser um drama, uma comédia, uma aventura, um romance, ou até mesmo tudo isto ao mesmo tempo. No caso de “Branca de Neve”, temos um conto de fadas clássico (baseado na história dos irmãos Grimm, do século XIX), responsável por estabelecer alguns clichês do gênero (gênero “contos de fadas”, que fique claro), como a introdução através das páginas de um livro, a rainha malvada, a bela princesa, o príncipe encantado e o final em que “todos viveram felizes para sempre”. Além disto, o longa estabeleceu a estrutura narrativa ideal para animações (rápida e objetiva), graças à montagem fluída e a curta duração, prendendo a atenção de uma platéia normalmente dominada por crianças. Finalmente, a narrativa estabelece com clareza quem é a grande vilã, fazendo o espectador torcer pela mocinha e sofrer junto com ela até o final.

Além da estrutura narrativa, “Branca de Neve” também representou o passo inicial das animações tecnicamente falando. Por isso, é normal que a qualidade das imagens (excelente para a época) seja inferior aos filmes seguintes, como “Pinóquio” ou “Bambi”. Ainda assim, vale destacar o belo trabalho dos animadores da Disney e do diretor David Hand, que cria cenas de grande beleza plástica, como a primeira aparição da casa dos anões, a marcha da volta pra casa e a obscura perseguição à bruxa na chuva, que contrasta com o visual colorido predominante até então. E mesmo com uma direção econômica sob o ponto de vista técnico, vale destacar alguns movimentos de câmera interessantes, como o travelling que sai de Branca de Neve e vai até a rainha enquanto o príncipe canta pra ela no jardim ou o zoom out que nos distancia de Branca de Neve enquanto ela varre a frente da casa dos anões. Escrito por oito pessoas, baseado na citada história dos irmãos Grimm, “Branca de Neve” foi responsável por algumas frases clássicas da história da animação, como o inesquecível “Espelho, espelho meu, existe alguém mais bela do que eu?” da malvada rainha, além de mostrar coragem ao abordar sem floreios a inveja cruel da rainha e as conseqüências drásticas de sua maldade, o que pode impressionar as crianças. Aliás, é engraçado como a Disney, costumeiramente acusada de ser conservadora, demonstrava grande ousadia temática em seus primeiros anos, como podemos notar em “Pinóquio”, com os meninos fumando e jogando sinuca, e neste “Branca de Neve”, quando a rainha ordena a morte da enteada.

Estabelecendo o padrão Disney que duraria por muitas décadas, a narrativa é constantemente interrompida por canções, que felizmente sempre tem alguma função narrativa, como a famosa (e deliciosa) música cantada pelos anões no fim do dia de trabalho (“Eu vou, eu vou, pra casa agora eu vou…”) ou quando eles são “obrigados” a lavar as mãos antes de comer. Além disso, a trilha sonora de Frank Churchill, Leigh Harline, Paul J. Smith e Larry Morey preenche grande parte da narrativa, alternando entre momentos melódicos e agitados, como quando a protagonista foge para a floresta, sob um visual sombrio, com árvores escuras que mais parecem monstros, morcegos e troncos que parecem jacarés. Este contraste entre momentos obscuros e alegres também reforça a qualidade do trabalho dos animadores. Repare, por exemplo, a iluminação perfeita dentro da casa dos anões, que muda quando a luz se apaga, além da movimentação das sombras e do reflexo da luz que é alterado conforme os personagens se movimentam na casa. E, assim como em “Bambi”, os animais que rodeiam Branca de Neve na floresta trazem vida ao plano e devolvem o clima leve à narrativa, principalmente quando ajudam à donzela, dividindo as tarefas durante a limpeza da casa.

Charmosa por fora e sem vida por dentro, a casa dos anões reflete a personalidade deles através da bagunça, ganhando vida após a limpeza – o que provoca a irritação de quase todos eles. Aliás, assim como seus nomes, os anões são personagens graciosos, que conquistam o espectador desde o momento em que entram em cena. Como não se divertir quando eles se organizam para expulsar o invasor, mandando Dunga (tremendo) para o quarto? E depois, quando ele se assusta com o “fantasma” e sai correndo, sendo confundido com o invasor e agredido por todos? Os sete anões são personagens tão marcantes que até mesmo quem nunca assistiu ao filme (ou leu o conto) provavelmente sabe seus nomes. Mestre, Feliz, Atchim, Zangado, Dunga, Soneca e Dengoso são realmente fascinantes. Com inteligência, o roteiro aproveita os curiosos nomes dos personagens para criar gags divertidas, especialmente com Atchim, Dengoso e Soneca. E até mesmo Zangado consegue nos divertir, mostrando que não é tão zangado assim quando ganha um beijo da princesa, que, com sua beleza, encanta a todos eles. Aliás, o primeiro contato entre Branca de Neve e os anões só acontece com 35 minutos de filme e, mesmo com tão pouco tempo de relacionamento, eles conseguem criar empatia e fazer com que o espectador acredite no sofrimento dos anões após a tragédia.

Mas nem só de personagens graciosos vive “Branca de Neve” e a rainha malvada é certamente uma vilã temível e um dos personagens marcantes da história das animações. Mesmo em sua forma mais bela, a rainha consegue intimidar o espectador, com seu olhar penetrante e sua voz firme. Após sua transformação numa bruxa, ela se torna ainda mais ameaçadora e, acompanhada de terríveis urubus, parte para visitar a donzela e oferecer-lhe a maçã (sempre a maçã!) envenenada. E nem mesmo o aviso dos pássaros evita que Branca de Neve morda a maça e desmaie, numa seqüência sombria, reforçada pela chuva e pela noite, que cria a atmosfera perfeita para a morte da donzela. Desta forma, quando os anões chegam ao local e choram pela protagonista, nós também sofremos por ela e acreditamos na tragédia, sob influência do peso dramático da cena e do visual obscuro que predomina na tela. E a imagem de Branca de Neve sendo velada reforça a coragem da narrativa, com alguns momentos pesados dramaticamente para sua época e, principalmente, para o seu público alvo. Só que, felizmente, este é um conto de fadas (talvez o maior deles) e o tão aguardado príncipe encantado (voz de Harry Stockwell) aparece para beijar a donzela e devolvê-la à vida, ao mesmo tempo em que o sol volta a brilhar e nos leva ao clássico final em que “todos viveram felizes para sempre”.

E assim como os personagens, os fãs de cinema também viveram felizes para sempre graças a “Branca de Neve e os Sete Anões”, o filme responsável pelo surgimento de uma técnica tão bela, que nos brindou com inúmeros filmes marcantes desde então.

Texto publicado em 04 de Abril de 2011 por Roberto Siqueira

PINÓQUIO (1940)

(Pinocchio)

 

 

Videoteca do Beto #66

Dirigido por Hamilton Luske e Ben Sharpsteen.

Elenco: Vozes de Dickie Jones, Mel Blanc, Walter Catlett, Don Brodie, Christian Rub, Evelyn Venable, Cliff Edwards e Frankie Darro. 

Roteiro: Carlo Collodi (história), Ted Sears (adaptação), Otto Englander (adaptação), Webb Smith (adaptação), William Cottrell (adaptação), Joseph Sabo (adaptação) e Erdman Penner (adaptação).

Produção: Walt Disney (não creditado).

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Após revolucionar o cinema com seu filme de estréia “Branca de Neve e os Sete Anões”, contrariando todas as expectativas e provando ser possível realizar um longa-metragem de animação, Walt Disney conseguiu, já em seu segundo filme, alcançar a perfeição. “Pinóquio” é um triunfo cinematográfico belíssimo, com uma estrutura narrativa perfeita, que se estabeleceu como o padrão a ser seguido pelo gênero animação até os dias de hoje. Além dos triunfos técnicos, o longa consegue ainda ser extremamente emocionante, tocando de maneira uniforme os corações de crianças e adultos.

Um grilo falante (voz de Cliff Edwards) invade uma velha casa numa cidade pequena para se esconder do frio. Lá encontra o velho Gepeto (voz de Christian Rub) e suas únicas companhias, o gato Fígaro e a peixe Cleo (ambos, voz de Mel Blanc). Após Gepeto construir um boneco de madeira e desejar que este se torne um menino de verdade, uma bela fada azul (voz de Evelyn Venable) invade a casa durante a noite e dá vida ao boneco chamado Pinóquio (voz de Dickie Jones), prometendo lhe transformar num menino de verdade se ele demonstrasse coragem e altruísmo.

“Pinóquio” fala para crianças de todas as idades, mas certamente sua mensagem é direcionada diretamente aos meninos. O menino de madeira, como qualquer garoto, é inocente ao ponto de acreditar numa promessa de um estranho (“Vou ser ator famoso”, diz eufórico para o grilo) e curioso o suficiente para colocar o dedo no fogo ou atrapalhar o sono do “pai” com suas perguntas (“Por quê? Por quê? Por quê?”) – repare a divertida irritação de Fígaro neste momento. Por isso, o roteiro (adaptado da história de Carlo Collodi) não perde a oportunidade e deixa diversas lições, como não confiar em estranhos (raposa João Honesto), saber escolher as amizades (Espoleta), não mentir (nariz crescendo) e sempre suspeitar do caminho fácil para o sucesso (Stromboli). Por mais que sejam óbvias, é inegável que são mensagens sempre eficientes e atuais. Além disto, a narrativa flui de maneira muito agradável, graças à estrutura harmoniosa que acompanha todo o arco dramático do menino de madeira, transformado de garoto curioso e inocente em herói corajoso e altruísta. Outra sacada interessante do roteiro, inexistente no conto original de Collodi, é o grilo falante, um personagem chave para o sucesso da narrativa, que funciona como elo entre o espectador e o universo do longa. Além de narrador, o grilo serve também como alivio cômico numa trama repleta de momentos nebulosos, como quando lê a carta entregue por uma pomba ou quando ameaça brigar com Espoleta (voz de Frankie Darro). Inicialmente, ele não confia muito nos conselhos que dá, como quando testemunha o sucesso de Pinóquio e se retira, dizendo que “atores não precisam de consciência”. No entanto, assim como Pinóquio aprende muitas coisas ao longo da narrativa, o grilo também aprende a ser mais incisivo e confiar nos seus princípios.

Mas “Pinóquio” impressiona também pela qualidade da animação em si. Vale lembrar, em tempos de animação digital, que o desenho foi criado a partir de pinturas feitas à mão por dezenas de artistas que trabalhavam para Walt Disney. O lindo visual, repleto de detalhes como as ranhuras na madeira ou o correto deslocamento das sombras quando a fada aparece ou em cenas iluminadas por velas, é resultado do trabalho manual destes grandes artistas, o que engrandece ainda mais a qualidade do que vemos na tela. Observe a riqueza de detalhes, como os olhos imóveis de Pinóquio, quando ainda era um boneco de madeira, contrastando com o vivo e inquieto olhar do mesmo Pinóquio após receber “o dom da vida”. Repare também a qualidade das imagens no fundo do mar, simulando a dificuldade para caminhar no oceano. Este cuidado extremo com cada detalhe, sempre misturando um rico universo de cores e tons, inevitavelmente conquista a empatia de crianças e adultos. Os movimentos de câmera também são extremamente ousados para uma animação de 1940, como quando a câmera simula os pulos do grilo enquanto ele se aproxima da casa de Gepeto ou no impressionante travelling que nos leva por toda a cidade até chegar à porta da casa onde Pinóquio se prepara para o seu primeiro dia de aula. Os diretores Hamilton Luske e Ben Sharpsteen confirmam o conhecimento da linguagem cinematográfica quando empregam um zoom para aumentar o impacto da cena, quando Pinóquio, após salvar Gepeto, aparece caído na água. Além disso, alteram o foco para transmitir sensações, como quando Pinóquio fuma e, em seguida, vê a bola 8 e o grilo completamente distorcidos. Finalmente, os diretores mostram talento até mesmo para situar o espectador em ações que acontecem fora de campo, como na tensa seqüência da perseguição da baleia Monstro, onde mesmo sem ver a baleia no plano, o espectador sente sua aproximação somente através das reações de Pinóquio e Gepeto.

O festival de sensações provocadas no espectador é ainda mais forte graças à bela trilha sonora, que além de pontuar muito bem as cenas (observe o tom sombrio da música que acompanha a terrível transformação de Espoleta e Pinóquio em burros), ainda contém excelentes canções, algo tradicional nos filmes da Disney e que certamente facilita a comunicação com as crianças. E o mais interessante é que as canções são sempre orgânicas, fazendo a narrativa andar através da mensagem de cada letra, além de utilizar o som diegético como parte da música, como na divertida “Give a little whistle”, cantada pelo grilo falante, onde os pequenos sons produzidos na casa de Gepeto contribuem com a canção. E o que dizer então da belíssima “When you wish upon a star”, composta por Leigh Harline e Ned Washington, que de tão encantadora, ultrapassou os limites do filme e tornou-se a música tema da própria Disney? Além da linda melodia, a letra resume perfeitamente a mensagem do longa. Ainda no aspecto sonoro, o belo trabalho de efeitos sonoros fica evidente através dos relógios, do som da batida na madeira de Pinóquio e da água do mar na perseguição da baleia Monstro.

E se Pinóquio acaba perseguido pela baleia Monstro, é porque quando finalmente volta pra casa, ele a encontra vazia e abandonada, e os tons azulados da imagem refletem sua imensa tristeza. Estes momentos sombrios não faltam no longa, como a cena em que Gepeto procura por Pinóquio sob um clima chuvoso e obscuro, o momento em que Pinóquio é preso, onde a tempestade representa a angústia dele, e a transformação de Espoleta em burro, com a sombra refletida na parede que remete às perturbadoras imagens do expressionismo alemão (repare a engraçada reação de Pinóquio jogando a cerveja e o cigarro fora, num excelente exemplo de alivio cômico eficiente). Além disso, o próprio visual da Ilha dos Prazeres após a prisão dos garotos é capaz de provocar calafrios em qualquer espectador. E por falar na Ilha dos Prazeres, o parque de diversões idealizado pelo cocheiro (que se transforma em demônio ao revelar seus planos para João Honesto), repleto de doces e sorvetes, mas que conta também com tabaco, cerveja, e locais como a “casa da briga” ou a “casa modelo” para ser destruída, revela-se um verdadeiro lugar de sonhos para meninos travessos como Espoleta. E não demora muito para que Pinóquio perceba o fascínio desta vida, o que faz com que diga para seu mais novo amigo que “ser malvado é divertido”. A imagem dos garotos bebendo, fumando e jogando sinuca chega até mesmo a ser chocante, mas consegue perfeitamente transmitir a idéia de rebeldia, resumida na frase de Espoleta citada por Pinóquio (“Só se vive uma vez”). Obviamente, o roteiro se encarrega de pregar outra lição nos meninos teimosos, ensinando o perigo das más companhias, simbolizado na terrível transformação dos meninos em burros. Finalmente, não poderiam faltar cenas marcantes neste verdadeiro clássico da Disney, como a dança de Pinóquio com as marionetes, a perseguição da baleia Monstro e, principalmente, a histórica cena em que seu nariz cresce. Até mesmo quem nunca assistiu ao filme sabe a conseqüência da mentira do garoto.

O boneco Pinóquio representava a chegada da alegria naquele lar. Gepeto, solitário e carente de crianças, investia o tempo em seu hobby favorito, criando diversos e interessantes bonecos de madeira. Mas o menino-marionete era a sua maior criação, e até mesmo o gato Fígaro sabia disto, o que justifica seu ciúme imediato, ao imaginar que o menino substituiria o seu lugar no coração do velho homem. No fundo, “Pinóquio” não trata simplesmente de deixar mensagens educativas para as crianças (algo que faz muito bem). Ilustra também, de forma tocante, a imensa alegria que um homem (e uma mulher) sente quando é presenteado com a chegada de uma criança, enchendo o lar com a mais pura alegria. E Gepeto sabia que esta alegria lhe faltava, tanto que quando tem a oportunidade de fazer um desejo, não hesita em pedir que o seu menino seja um “menino de verdade”. A transformação em sua vida é tão grande que jamais o velho Gepeto culpa Pinóquio pela tragédia que se abateu em sua vida e, mesmo engolido por uma baleia, é capaz de dizer “Pobre Pinóquio, era um garoto tão bom”. E no fundo, Gepeto tinha razão, porque na realidade, Pinóquio sempre foi um menino de verdade, inocente, curioso, às vezes atentado, mas sempre com um coração puro e a alegria encantadora de uma verdadeira criança. Portanto, quando a fada finalmente lhe transforma num menino de carne e osso (provocando uma explosão de alegria nos personagens, incluindo Fígaro, e no espectador), está apenas oficializando algo que na prática, no coração dele, já existia. E então, a bela trilha sonora surge apenas para fechar com chave de ouro esta obra-prima da história do cinema.

“Pinóquio” pode parecer um filme destinado a ensinar valores para as crianças, mas como indica a canção principal, sua verdadeira mensagem atinge mesmo o coração dos adultos, ao ensinar a importância de acreditarmos em nossos sonhos. E o que mais poderia representar o sonho de um adulto do que a chegada de uma criança em seu lar? Walt Disney sabia disto, assim como sabia tocar no coração do espectador, e provou isto mais uma vez nesta verdadeira obra-prima, que ainda hoje soa atual e emociona.

Texto publicado em 29 de Setembro de 2010 por Roberto Siqueira