007 NA MIRA DOS ASSASSINOS (1985)

(A View to a Kill)

3 Estrelas 

Videoteca do Beto #204

Dirigido por John Glen.

Elenco: Roger Moore, Christopher Walken, Grace Jones, Tanya Roberts, Patrick Macnee, Willoughby Gray, Patrick Bauchau, Robert Brown, Lois Maxwell, Desmond Llewelyn, Dolph Lundgren, David Yip, Fiona Fullerton, Maud Adams, Alison Doody e Walter Gotell.

Roteiro: Richard Maibaum e Michael G. Wilson, baseado em história de Ian Fleming.

Produção: Albert R. Broccoli e Michael G. Wilson.

007 Na Mira dos Assassinos[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Já contestado pelo peso da idade (na época, o ator estava com 57 anos), Roger Moore faria neste “007 Na Mira dos Assassinos” sua última aparição na pele de James Bond. Mesmo sem jamais alcançar o carisma de Sean Connery, o ator deixou sua contribuição para a franquia, criando um 007 mais cômico que seu antecessor e que, mesmo distante em tom e sem o mesmo charme, funcionava em muitos momentos. É uma pena, portanto, que os últimos trabalhos de Moore não estejam à altura de suas melhores aparições, nas quais ao menos o ator compensava as falhas da narrativa com atuações mais interessadas.

Escrito por Richard Maibaum e Michael G. Wilson novamente com base em história de Ian Fleming, “007 Na Mira dos Assassinos” narra à tentativa de James Bond (Roger Moore) de impedir que o milionário Max Zorin (Christopher Walken) controle o mercado de produção de chips através da execução de um plano que envolve a destruição de todas as indústrias do Vale do Silício, na Califórnia.

Em sua despedida da série, Roger Moore mais parece se divertir e relaxar na pele do personagem do que se preocupar em oferecer novas nuances a James Bond, saindo-se bem em alguns diálogos que denunciam seu tom quase sempre irônico, mas escancarando a flagrante falta de vigor nas lutas corporais. Claramente fora de forma e atuando quase no piloto automático, Moore oferece aqui sua pior atuação na pele de 007, numa despedida melancólica que dificulta a tarefa de apontar algum momento de destaque, com exceção dos comentários marcados por seu humor peculiar e pelo cavalheirismo na primeira noite com Sutton (Tanya Roberts), na qual Bond respeita o momento da moça e não dorme com ela – e a expressão de Moore evidencia esta abordagem respeitosa.

Entre gritos e expressões características da mocinha indefesa, Tanya Roberts oferece uma performance patética na pele de Stacey Sutton, não convencendo como uma moça rica e poderosa que decide bater de frente com Zorin e sequer conseguindo criar empatia com Moore, o que talvez explique a falta de cenas românticas entre os personagens. Já Grace Jones compõe May Day de maneira bastante caricata, mas a personagem ao menos funciona por representar alguma ameaça a Bond. Fechando os destaques femininos do elenco, “007 Na Mira dos Assassinos” marca também a última aparição de Lois Maxwell como a simpática Moneypenny – o que, com o perdão do infame trocadilho, é uma pena.

Roger Moore se diverte e relaxaMocinha indefesaMay DayVoltando ao elenco masculino, Patrick Macnee vive o simpático Tibbett, o amigo enviado para auxiliar Bond e que, passando-se por seu criado, vive alguns dos raros momentos bem humorados que realmente funcionam na narrativa. Repare, por exemplo, como Tibbett acaricia os cavalos após se esconder junto a eles no estábulo, num pequeno detalhe que demonstra o cuidado do ator na composição do personagem, já que para esconder-se ali por tanto tempo era necessário no mínimo que ele criasse alguma empatia com os animais.

Sorridente na frente de Bond e sério longe dele, Christopher Walken compõe um vilão interessante na pele de Max Zorin, demonstrando classe nas conversas em eventos públicos como a festa em seu palácio e evidenciando seu lado psicótico ao explicar seu plano para os parceiros. Aliás, a conversa com empresários para explanar o plano Main Strike remete diretamente a “007 Contra Goldfinger”, especialmente quando um deles se recusa a aceitar a proposta e é sumariamente assassinado.

Sublinhando a trama, a trilha sonora também convencional de John Barry surpreende apenas na sequência inicial em que o compositor ousa e insere um trecho de uma versão cover de “California Girls”, dos Beach Boys, fazendo uma brincadeira com as manobras radicais de James Bond sobre a neve e a água. Além disso, a dançante música tema do Duran Duran tem a cara dos anos 80 e traz uma boa energia para a série.

Tentando recuperar o tom mais sério após a piada “007 Contra Octopussy”, John Glen e seu diretor de fotografia Alan Hume ignoram o sol característico da Califórnia e apostam num visual mais obscuro que confere uma aura sombria a narrativa. Ainda assim, o diretor encontra espaço para criar belos planos, especialmente ao enquadrar toda a imponência da ponte Golden Gate em San Francisco e o charme de Paris, que finalmente é explorada na série. Além disso, o ótimo Peter Lamont capricha novamente no design de produção de ambientes como o luxuoso palácio de Zorin, a espaçosa e bem decorada casa de Sutton, a detalhada clínica que esconde o segredo do cavalo Pegasus e a impressionante mina que surge já no ato final.

Para balancear a falta de agilidade de Moore nos confrontos físicos, Glen tenta criar cenas de ação ainda mais mirabolantes, como a perseguição que inicia na Torre Eiffel e segue pelas ruas de Paris. Só que o convencional segmento de abertura envolvendo uma perseguição de esqui na neve já deixa claro que “007 Na Mira dos Assassinos” não trará grandes novidades neste aspecto também. O diretor tenta ainda utilizar a câmera para ampliar a tensão, como quando uma arma surge em primeiro plano enquanto Bond entra na casa de Sutton ao fundo, sinalizando a presença dos capangas de Zorin para o espectador, que passa a saber mais do que o personagem – o que é sempre eficiente na criação de uma atmosfera tensa. E finalmente, a morte de Tibbett no lava rápido é conduzida de maneira interessante pelo diretor.

Zorin, vilão interessanteImpressionante minaArma em primeiro planoMas o destaque das cenas de ação fica mesmo para o incêndio na prefeitura seguido pela perseguição envolvendo um carro de bombeiros e, principalmente, para a impactante destruição da mina, na qual o diretor utiliza planos subjetivos que nos colocam na posição dos personagens em diversos instantes enquanto a água domina o local sob os tiros alucinados do impiedoso Zorin. Além delas, a luta no alto da ponte Golden Gate também é tensa e diverte, mas a gritante lentidão de Moore e os efeitos visuais datados prejudicam a cena, ainda que no segundo caso a evolução em relação aos filmes anteriores seja perceptível.

Perceptível também é a tentativa de melhorar a imagem da franquia depois de seguidas derrapadas, mas infelizmente “007 Na Mira dos Assassinos” não conseguiu este feito. Roger Moore perdia aqui a sua licença para matar (ainda que, em certos momentos, tenha nos matado de vergonha), mas, para a alegria dos inúmeros fãs, James Bond ainda teria vida longa nas telonas.

007 Na Mira dos Assassinos foto 2Texto publicado em 29 de Maio de 2014 por Roberto Siqueira

FORMIGUINHAZ (1998)

(Antz)

4 Estrelas 

Videoteca do Beto #184

Dirigido por Eric Darnell e Tim Johnson.

Elenco: Vozes de Woody Allen, Sharon Stone, Gene Hackman, Sylvester Stallone, Danny Glover, Jennifer Lopez, Anne Bancroft, Dan Aykroyd, Christopher Walken, Paul Mazursky, Jane Curtin e John Mahoney.

Roteiro: Chris Weitz, Paul Weitz e Todd Alcott.

Produção: Brad Lewis, Aron Warner e Patty Wooton.

Formiguinhaz[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Centrado num personagem desconfortável com sua posição na sociedade, questionador e até mesmo um pouco neurótico, “Formiguinhaz” poderia tranquilamente ter sido escrito por Woody Allen. Sendo assim, nada mais natural do que escolhê-lo para dublar a voz do protagonista, numa escolha não apenas inteligente, mas vital para que a narrativa funcione tão bem. Apostando ainda em outros astros e na qualidade da animação, a Dreamworks acertou em cheio nesta aventura divertida que, de quebra, ainda provoca reflexões interessantes no espectador.

Escrito pelo trio Chris Weitz, Paul Weitz e Todd Alcott, “Formiguinhaz” nos traz o cotidiano de um formigueiro a partir do ponto de vista de Z (Woody Allen), uma formiga operária que passa a questionar a falta de individualidade de seus semelhantes dentro da Colônia, chamando a atenção da bela princesa Bala (Sharon Stone) e gerando desconforto no general Mandíbula (Gene Hackman), que comanda o exército onde atua Weaver (Sylvester Stallone), um grande amigo de Z.

A imagem de abertura de “Formiguinhaz” emula o skyline de Nova York, revelando segundo depois que na verdade estamos vendo o contorno das folhas que enfeitam o exterior do formigueiro onde se encontra o protagonista, revelado num interessante movimento de câmera que vai ao seu encontro dentro do formigueiro. A simples menção à cidade, seguida pelo tom pessimista do monólogo de Z deitado num divã, deixa claro para o cinéfilo mais ligado que este é um filme com a cara de Woody Allen.

Esta sensação é reforçada pelas constantes reflexões do personagem sobre pensamentos já arraigados em seu povo, como o de que o indivíduo tenha que ser sacrificado em prol da Colônia, além é claro dos interessantes diálogos que se tornam ainda mais atraentes graças à maneira com que as vozes famosas do elenco se entregam aos seus respectivos papéis. Conferindo às formigas rostos que remetem diretamente aos seus dubladores sem jamais perder os traços cartunescos, os animadores da Dreamworks realizam um excelente trabalho, criando ainda ambientes impressionantes dentro e fora do formigueiro que nos sugam pra dentro da narrativa.

Skyline de Nova YorkDeitado num divãIntelectual complexadoÉ interessante notar também como cada personagem adota a persona cinematográfica do astro por trás dele. Assim, temos Woody Allen na pele de um intelectual complexado, Sharon Stone como a bela que rouba o coração do protagonista, Stallone como o fortão camarada e Hackman como o general viril e cruel, além das pequenas participações de Danny Glover como um soldado amigável, Jennifer Lopez como a sensual Azteca e Anne Bancroft como a sábia Rainha – Dan Aykroyd como a abelha Chip e Christopher Walken dublando o Coronel Cutter completam os destaques do elenco.

A belaFortão camaradaGeneral viril e cruelEstabelecendo muito bem a geografia do impressionante formigueiro concebido pelo design de produção de John Bell através de movimentos de câmera elegantes, os diretores Eric Darnell e Tim Johnson exploram muito bem aquele universo, aproveitando também o ambiente externo para criar lindos planos, como durante a marcha das formigas rumo ao combate e na fuga de Z e Bala. Por outro lado, este próprio combate nos traz uma triste e forte imagem dos corpos caídos no campo de batalha, realçada pelo plano distante e silencioso dos diretores e pela fotografia totalmente sem vida. Fotografia que investe numa paleta sem muita variação de cores dentro do formigueiro para sinalizar a vida sem graça de Z ali, provocando um forte contraste com o mundo colorido que ele encontra fora da Colônia.

Impressionante formigueiroCorpos caídos no campo de batalhaMundo coloridoFinalmente, é interessante notar a bela e sutil homenagem prestada pelos diretores no quase beijo entre Z e Bala, através de um recurso técnico muito utilizado pelas atrizes da época de ouro do cinema. Trata-se do soft focus, uma distorção na lente que embaça levemente a imagem e não nos permite ver as imperfeições no rosto dela quando a câmera se aproxima, exatamente como ocorria no passado.

Outro aspecto técnico que merece destaque é o som. Observe, por exemplo, como o ótimo design de som ilustra perfeitamente o forte impacto que os pés de um ser humano provocam naquele universo, ampliando consideravelmente o volume quando ele se movimenta por ali. Já a trilha sonora também remete aos filmes de Woody Allen ao inserir um toque de jazz, mas também traz composições instrumentais interessantes, como a marcha triunfal que acompanha os soldados indo pra guerra ou a música acelerada que anuncia a presença humana em “Insetopia”.

Mas o que chama mesmo a atenção em “Formiguinhaz” são as reflexões que a narrativa provoca. Tomemos como exemplo o instante em que os operários, já inspirados por Z, questionam o trabalho e iniciam uma revolta, sendo rapidamente contidos por um discurso inflamado do general Mandíbula, numa abordagem corajosa e adulta que toca em feridas profundas da humanidade, como o nazismo, o fascismo e todos os regimes autoritários que já existiram e/ou ainda existem em nossa sociedade, provando como o povo pode facilmente ser manipulado quando não consegue pensar por si mesmo. Este ideal opressor fica ainda mais evidente no discurso em que o General fala sobre limpeza, afirmando que os mais fortes superariam os mais fracos e eliminariam o mal da Colônia. Somente este aspecto já seria suficiente para garantir pontos ao longa.

Quase beijoDiscurso inflamadoSequência final empolganteA sequência final eficiente e empolgante prende o espectador na cadeira e o último plano, além de trazer uma elegante rima narrativa com a abertura, ainda nos revela o skyline da verdadeira Nova York ao fundo e em primeiro plano o Central Park, que descobrimos ser o local onde se passa toda a narrativa. Mais Woody Allen que isso, impossível.

Apostando na temática favorita de Woody Allen, “Formiguinhaz” é uma aventura divertida, recheada de personagens carismáticos e que traz ainda reflexões interessantes provocadas pelo pensamento questionador de seu protagonista. Deslocado, inquieto e inconformado com sua posição na sociedade em que está inserido, Z pode até não ter sido criado por Woody Allen, mas se tivesse ele certamente não seria muito diferente.

Formiguinhaz foto 2Texto publicado em 10 de Fevereiro de 2014 por Roberto Siqueira

O FRANCO-ATIRADOR (1978)

(The Deer Hunter)

2 Estrelas 

Filmes em Geral #102

Vencedores do Oscar #1978

Dirigido por Michael Cimino.

Elenco: Robert De Niro, Christopher Walken, Meryl Streep, John Cazale, John Savage, Chuck Aspegren, Pierre Segui, George Dzundza, Shirley Stoler e Rutanya Alda.

Roteiro: Deric Washburn, baseado em argumento dele próprio ao lado de Michael Cimino, Louis Garfinkle e Quinn K. Redeker.

Produção: Michael Cimino, Michael Deeley, John Peverall e Barry Spikings.

O Franco-Atirador[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Criar expectativas é algo sempre negativo quando falamos de cinema. Quanto maior a expectativa criada, maiores são as chances de nos decepcionarmos com um filme, ainda que este apresente um resultado agradável. Mas como não se empolgar quando os créditos iniciais anunciam nomes como os de Robert De Niro, Meryl Streep e John Cazale, além do menos badalado, mas também competente Christopher Walken? No entanto, ainda que seja tecnicamente bem realizado e tente apostar numa interessante abordagem intimista, “O Franco-Atirador” se perde completamente em seus aspectos políticos e éticos, chegando a soar ofensivo e racista pela maneira desprezível que o diretor Michael Cimino retrata os rivais norte-americanos na guerra do Vietnã.

Escrito por Deric Washburn a partir de argumento dele próprio ao lado de Michael Cimino, Louis Garfinkle e Quinn K. Redeker, “O Franco-Atirador” narra a trajetória dos amigos Michael (De Niro), Nick (Walken) e Steven (John Savage), que são convocados para a Guerra do Vietnã e se veem obrigados a deixarem a família e os amigos para trás. Após viverem experiências traumáticas no conflito, dois deles conseguem regressar ao país, mas a vida de todos os envolvidos nunca mais será a mesma após eles terem experimentado os horrores da guerra.

Partindo da interessante premissa de nos apresentar as graves consequências psicológicas provocadas pela guerra naquele grupo de trabalhadores de uma pequena cidade no interior dos EUA, “O Franco-Atirador” se apoia ainda em seu excepcional elenco, repleto de nomes capazes de carregar qualquer narrativa com facilidade. Portanto, é uma pena que Cimino utilize um elenco de primeira qualidade num filme tão maniqueísta, que beira o jingoísmo pela forma como retrata os vietnamitas (voltarei ao tema em instantes).

Ainda assim, o longa apresenta um resultado agradável quando observamos somente os aspectos técnicos da produção. Observe, por exemplo, como a fotografia de Vilmos Zsigmond realça o clima melancólico daquela cidade industrial, apostando em cores frias que casam bem com a sujeira das ruas e os galhos secos das árvores, assim como fazem os figurinos sem vida de Eric Seelig e os ambientes poucos iluminados concebidos pelo design de produção de Ron Hobbs e Kim Swados. Da mesma forma, os tristes acordes da canção tema reforçam esta atmosfera, assim como as boas músicas escolhidas para a trilha sonora de Stanley Myers, com exceção apenas da trilha erudita que confere um tom épico à caçada dos cervos nas montanhas.

Montanhas que são captadas com elegância pelos belos enquadramentos de Cimino, que ainda apresenta um bom repertório de planos e movimentos de câmera interessantes. Por isso, mais uma vez é lamentável que o diretor utilize este talento para enviar mensagens nada sutis, como quando faz questão de focar por um longo tempo a bandeira dos Estados Unidos e a faixa com os dizeres “Servimos a Deus e a pátria com orgulho”. Além disso, em certo momento um homem pergunta para Michael se “nós ganhamos a guerra” e fica sem resposta, escancarando a grande fantasia norte-americana de ter vencido no Vietnã, que ficaria ainda mais evidente nas produções vindouras do país durante a “era Reagan”.

Apostando numa abordagem mais intimista na primeira metade do filme, Cimino investe um longo tempo no desenvolvimento das relações entre os personagens, mostrando o grupo bebendo no bar e se divertindo, o que ajuda a criar empatia com a plateia. No entanto, o pretensioso diretor se empolga e estende demais a sequência do casamento e da festa, que claramente poderia ser enxugada pelo montador Peter Zinner para melhorar o ritmo da narrativa. Ainda assim, esta longa sequência serve para nos aproximar daquelas pessoas, especialmente de Michael e Nick, que evidenciam suas fortes personalidades durante a caçada que precede o embarque para o Vietnã. Assim, quando este momento se aproxima, já nos sentimos mais íntimos daqueles jovens, o que confere um tom ainda mais melancólico à cena da despedida no bar, com as expressões tristes dos personagens, a música tocada no piano e o próprio travelling lento de Cimino que é abruptamente cortado pelas explosões das bombas já no Vietnã.

Clima melancólicoServimos a Deus e a pátria com orgulhoPovo do VietnãDemonstrando um maniqueísmo nojento desde o primeiro minuto no Vietnã em que um soldado local surge explodindo mulheres e crianças, Cimino não se envergonha de retratar a guerra como um conflito claramente dividido entre os norte-americanos bonzinhos que vieram pregar a paz e os cruéis vietnamitas que se aglomeram e pagam para ver pessoas explodindo as próprias cabeças, esquecendo-se das motivações políticas desprezíveis que levaram os EUA a intervir naquela guerra. Aliás, o povo do Vietnã é retratado como um bando de idiotas, numa coleção de seres da pior estirpe, como assassinos, jogadores sedentos por sangue e prostitutas que vendem o corpo diante dos próprios filhos. Além disso, as manifestações em massa sempre buscam deteriorar a imagem daquelas pessoas, como no primeiro plano da volta de Michael ao Vietnã que mostra o povo tentando desesperadamente invadir a embaixada norte-americana.

Ciente de que suas cenas de combate não impressionam, Cimino rapidamente salta do momento da chegada ao Vietnã para a sequência em que Michael, Nick e Steven estão presos. Assim, se num instante acompanhamos o grupo sofrendo um bombardeio, na cena seguinte eles já surgem enjaulados, em outro corte abrupto que desta vez depõe contra o trabalho dele e de seu montador. Ao menos, aqui Cimino consegue criar momentos de alta tensão, extraindo ainda excelentes atuações de seu elenco. Observe, por exemplo, como John Savage demonstra com precisão o desespero e a angústia de Steven enquanto aguarda para ser chamado pelos cruéis vietnamitas, ao passo em que De Niro transmite tranquilidade ao parceiro e ao espectador com seu tom de voz baixo e controlado. Durante o jogo da roleta russa, De Niro novamente se destaca, demonstrando muito bem sua ira e, ao mesmo tempo, sua compaixão pelo sofrimento do amigo.

Aliás, Christopher Walken também apresenta um desempenho excepcional nesta sequência eletrizante, com seu riso tenso e o olhar assustado demonstrando que Nick não sabe o que esperar diante daquela angustiante situação, segundos antes de Michael atirar nos vietnamitas e conseguir escapar. E se repito por diversas vezes a expressão “vietnamitas”, é porque Cimino faz questão de sequer dar nome aos habitantes locais, na mais perfeita confirmação de sua visão ufanista do conflito. Deste ponto em diante, o solitário Nick começa a se desapegar do passado e a perder o sentido na vida, perambulando pelo Vietnã até se reencontrar nos perigosos jogos de roleta russa promovidos por um grupo clandestino local. Após as torturas sofridas na guerra, viver ou morrer era indiferente, apenas uma questão de sorte que ele estava disposto a encarar.

Entre os que ficaram nos Estados Unidos, John Cazale encarna Stoch como alguém que parece sempre irritado e desconfiado, ao ponto de andar com uma arma na cintura e transmitir a constante sensação de que está sempre pronto para uma briga, ao passo em que George Dzundza pouco pode fazer com o tempo que tem com seu John. E finalmente, a grande Meryl Streep já demonstrava seu talento neste que é apenas o seu segundo papel na carreira. Mesmo com uma participação relativamente pequena, ela consegue conferir humanidade a Linda, equilibrando-se entre a felicidade ao ver Michael de volta e a tristeza por não reencontrar Nick.

Angústia de StevenNick não sabe o que esperarHumanidade a LindaSentindo-se deslocado nesta volta ao país, Michael sequer consegue caçar e chega ao ponto de fazer a tal roleta russa com Stoch, num momento de pura insanidade que poderia tirar a vida do amigo. Demonstrando este incômodo com precisão, De Niro mais uma vez comprova sua enorme qualidade como ator, compondo outro personagem impactante através de suas expressões viscerais durante as torturas na guerra que se contrapõem diretamente aos olhares contidos em sua volta; que, por sua vez, refletem as graves consequências de tudo que ele sofreu.

Infelizmente, esta sequência da volta de Michael também é mais extensa do que deveria e quebra novamente o ritmo da narrativa, que só retoma o fôlego quando ele decide voltar ao Vietnã para resgatar o amigo perdido, nos levando a outra cena eletrizante envolvendo os jogos de roleta russa que culmina na impressionante morte de Nick – e aqui vale reparar como a fotografia se torna mais sombria, apostando na falta da luz para criar uma atmosfera sufocante. Após ver Steven ficar paralítico, Michael estava agora diante de um novo trauma, testemunhando a morte do amigo de maneira tão idiota.

Só que, aparentemente, nem mesmo os trágicos resultados da guerra fazem com que aquele grupo de pessoas questione as motivações de seu país, o que nos leva à deprimente cena que encerra “O Franco-Atirador”, com todos cantando “Deus abençoe a América” e confirmando a visão míope de Cimino. Assim, a longa extensão e o maniqueísmo exacerbado da narrativa acabam ofuscando a boa intenção de mostrar os trágicos resultados psicológicos e físicos da guerra.

O Franco-Atirador foto 2Texto publicado em 21 de Fevereiro de 2013 por Roberto Siqueira

NOIVO NEURÓTICO, NOIVA NERVOSA (1977)

(Annie Hall)

 

 

Videoteca do Beto #114

Vencedores do Oscar #1977

Dirigido por Woody Allen.

Elenco: Woody Allen, Diane Keaton, Christopher Walken, Tony Roberts, Carol Kane, Paul Simon, Shelley Duvall, Janet Margolin, Donald Symington, Mordecai Lawner, Jonathan Munk, Colleen Dewhurst, Helen Ludlam, Joan Newman, Beverly D’Angelo, Jeff Goldblum e Sigourney Weaver.

Roteiro: Woody Allen e Marshall Brickman.

Produção: Charles H. Joffe e Jack Rollins.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Woody Allen escreveu definitivamente o seu nome na história do cinema com este sensacional “Annie Hall” – me recuso a repetir a ridícula tradução do título para o português. Apresentando diálogos magníficos e afiados, um senso de humor cínico e sarcástico e uma montagem que só contribui na criação de cenas antológicas, o longa é uma comédia tão divertida quanto reflexiva, que expõe as complexidades dos relacionamentos humanos ao mesmo tempo em que funciona como um espelho da persona cinematográfica de Allen (o intelectual inseguro, apaixonado por Nova York, mulheres e jazz), apresentando as características marcantes dos melhores momentos do diretor/ator/roteirista no cinema.

Duas vezes divorciado, o humorista Alvy Singer (Woody Allen) se apaixona novamente, desta vez pela excêntrica cantora de boate Annie Hall (Diane Keaton). Rapidamente, eles decidem morar juntos, mas as crises conjugais aparecem e começam a desestabilizar a relação. Alvy, que faz análise há quinze anos, convence Annie a fazer o mesmo e a estudar, mas nada parece salvá-lo de mais uma separação.

Só mesmo Woody Allen para contar a história de um homem depressivo, cheio de complexos (seja por sua nacionalidade, seja por qualquer outra característica dele) e duas vezes divorciado de maneira tão divertida e encantadora. E só mesmo Allen para nos fazer sorrir o tempo todo ao mesmo tempo em que nos faz refletir sobre algumas das mais frustrantes constatações de nossa existência, como a de que o amor, para ser perfeito, deve permanecer em seu estado inicial de “idealização”. Ou seja, quando passamos a conviver com a pessoa amada, passamos também a descobrir os seus defeitos que, muitas vezes, podem provocar o fim do sentimento avassalador no/a parceiro/a. Não por acaso, Alvy, em certo momento, implora para que Annie não venda o apartamento dela, alegando que este funciona como um “porto seguro”, fazendo o casal lembrar que não é oficialmente casado.

Escrito pelo próprio Woody Allen, “Annie Hall” demonstra também sua enorme capacidade de construir diálogos primorosos, recheados com um humor ácido e auto-depreciativo, que expõe algumas verdades sobre nossas angústias. Da mesma maneira, a direção de Allen também é dinâmica e esbanja criatividade, criando momentos que não apenas fogem do realismo, como deixam claro que o diretor deseja mesmo brincar com a linguagem cinematográfica, como quando um homem cita as teorias do filósofo canadense Marshall McLuhan na fila do cinema e Alvy puxa o autor detrás de um pôster para rebater os comentários do tagarela (“Você não sabe nada da minha obra”, diz McLuhan). Estas brincadeiras ficam ainda mais evidentes quando ele quebra a quarta parede em diversos momentos, olhando para a câmera e falando diretamente com o espectador. Além disso, o diretor cria alternativas narrativas curiosas, como as legendas que expressam pensamentos dos personagens e a tela dividida. Conduzindo com vigor a narrativa, Woody Allen utiliza ainda sua cidade favorita como pano de fundo, algo que se repetiria muitas vezes em sua filmografia, onde Nova York normalmente é o palco das ações.

Utilizando uma narrativa não linear para abordar diversas fases da vida do protagonista, Allen e seus montadores Wendy Greene Bricmont e Ralph Rosenblum tentam refletir a mente agitada de Alvy Singer e do próprio diretor, além de constantemente brincarem com novas possibilidades, como, por exemplo, quando dividem a tela em dois planos para ilustrar as diferenças entre as famílias de Annie e Alvy. Além disso, em diversos momentos, quando alguém cita alguma passagem da vida dele, somos levados em seguida para aquele exato momento, como na engraçada cena do período escolar, onde o Alvy adulto reencontra o Alvy criança (Jonathan Munk) e dialoga com seus colegas. Desta forma, somos envolvidos por suas complexidades e compartilhamos de muitos dos seus dilemas. Utilizando cores fortes em muitas lembranças, a fotografia do excepcional Gordon Willis alterna entre uma atmosfera naturalista e momentos hiper-realistas, como quando vemos desenhos animados ou quando os personagens passeiam pelas lembranças de Annie, nos colocando dentro de sua mente enquanto ela apresenta seus ex-namorados.

Entre os vários dilemas que assolam o pobre Alvy, o sexo tem destaque especial (“Masturbação é sexo com alguém que amo”, diz ele). Como explica, “ele não gostaria de fazer parte de um clube que o aceitaria como sócio”. Por isso, qualquer mulher que demonstre interesse por ele passa, imediatamente, a perder o encanto. Ainda assim, Alvy consegue se apaixonar por Annie, o que não o impede de ter problemas com a garota, seja por que ela tem hábitos estranhos pra ele, como fumar maconha antes de transar, seja por outra razão qualquer. O sexo, aliás, explica muito sobre as diferenças do casal. Enquanto Annie diz ao analista que faz sexo sempre, “pelo menos três vezes por semana”, Alvy afirma que quase nunca faz sexo, “no máximo três vezes por semana”. Interpretando uma versão de si mesmo, Woody Allen está muito a vontade no papel, vivendo um personagem ansioso (algo refletido em sua fala rápida) e depressivo. Diane Keaton, por sua vez, está leve e encantadora como Annie Hall, protagonizando muitos momentos divertidos, como o diálogo após um jogo de tênis com Alvy, que resulta no primeiro encontro deles, e o brilhante monólogo em que ela apresenta sua família e conta como seu tio George morreu. Atrapalhada, ela nos faz rir e também se diverte com os trejeitos de seu pretendente. Auxiliada pelos figurinos de Ralph Lauren e Ruth Morley, a atriz cria uma personagem marcante, que nos encanta da mesma maneira como encanta Alvy, o que é essencial para que o espectador compartilhe ainda mais das aflições do protagonista, preso entre suas dúvidas e seu sentimento por esta mulher.

Vale destacar ainda a pequena participação de futuros astros, como Christopher Walken, na pele do irmão de Annie, Duane Hall, Shelley Duvall como Pam, uma das namoradas de Alvy, e Jeff Goldblum e Sigourney Weaver, que surgem rapidamente como figurantes. Walken, aliás, protagoniza uma das muitas cenas engraçadas ao falar que gostaria de bater o carro na estrada, momentos antes de dar carona para Alvy e Annie – e a feição aflita de Allen nesta cena é impagável.

Tentando ser adulto, Alvy age naturalmente quando Annie propõe uma separação. Mal sabia ele (ou talvez soubesse) que estava dando o primeiro passo para perder de vez o amor de sua vida. Sua reflexão final é marcante: nós sempre estamos à procura do amor, ainda que seja doloroso e proporcione experiências ruins. Divertido, bem atuado e bastante original, “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa” (que tradução hein?!) consegue ser ao mesmo tempo leve e crítico, revelando as angústias e inseguranças de seu protagonista de maneira inapelável. De quebra, o longa ainda brinca deliberadamente com muitas regras da linguagem cinematográfica. E o melhor, o faz com incrível competência.

Apostando no humor afiado e na identificação do espectador com muitas das situações narradas, “Annie Hall” é a obra-prima de um dos maiores autores que Hollywood já produziu. Contando ainda com uma atuação inspirada da ótima Diane Keaton, o filme faz o espectador deixar a projeção com sentimentos conflitantes. Ao mesmo tempo em que saímos alegres por termos gargalhado em muitos momentos, saímos preocupados por saber que estas risadas surgiram ao reconhecermos vários aspectos falhos de nossa natureza humana.

Texto publicado em 14 de Setembro de 2011 por Roberto Siqueira

PULP FICTION – TEMPO DE VIOLÊNCIA (1994)

(Pulp Fiction)

 

Videoteca do Beto #105

Dirigido por Quentin Tarantino.

Elenco: John Travolta, Samuel L. Jackson, Uma Thurman, Bruce Willis, Harvey Keitel, Tim Roth, Ving Rhames, Eric Stoltz, Rosanna Arquette, Christopher Walken, Maria de Medeiros, Steve Buscemi, Quentin Tarantino, Amanda Plummer e Joseph “Joe” Pilato.

Roteiro: Quentin Tarantino, baseado em história de Roger Avary e Quentin Tarantino.

Produção: Lawrence Bender.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Goste ou não de Quentin Tarantino, todo cinéfilo concorda: seu estilo de fazer cinema é bastante original. Profundo conhecedor e amante da sétima arte, o diretor investe na subversão de gêneros (ao mesmo tempo em que os homenageia), revelando a influência de grandes diretores do passado em seu trabalho. Além disto, Tarantino trouxe a tona o culto ao popular, ousando misturar elementos narrativos clássicos com referências à cultura pop, sempre com uma abordagem que varia entre o realista e o hiper-realista, recheada por diálogos deliciosos e espontâneos. E esta nova forma de fazer cinema chegou ao auge logo em seu segundo longa-metragem, o excelente “Pulp Fiction”, que ainda resgatou o astro John Travolta após anos de ostracismo.

Os criminosos profissionais Jules (Samuel L. Jackson) e Vicent Vega (John Travolta) saem para fazer uma cobrança em nome do traficante Marcellus (Ving Rhames). Vicent está preocupado, porque a noite deverá acompanhar a esposa do chefe, Mia (Uma Thurman). Enquanto isso, o boxeador Butch (Bruce Willis) deverá perder uma luta, para cumprir um acordo com Marcellus e sair rico da cidade.

“Pulp Fiction” começa num pequeno restaurante, com um casal conversando sobre a vida criminosa que pretende abandonar. Em instantes, eles anunciam um assalto, e a trilha sonora indica o começo do filme. Este interessante prólogo é então deixado de lado, e voltará à tona somente nos instantes finais da narrativa. Misturando com perfeição os elementos narrativos que já utilizara em seu filme de estréia (“Cães de Aluguel”), Quentin Tarantino alcança o ápice neste “Pulp Fiction”, com seus costumeiros diálogos ágeis e deliciosos sobre coisas do cotidiano, que nem sempre colaboram para o andamento da trama, mas sempre chamam a atenção do espectador, como na conversa entre Vicent e Jules sobre as diferenças entre EUA e Europa e sobre o McDonald’s. Tarantino também aborda a vida criminosa de maneira diferente do usual, auxiliado pela trilha sonora pop e empolgante, pela montagem não cronológica e dividida em capítulos – que prende a atenção da platéia – e pela narrativa que foge da tradicional causa e efeito que normalmente motiva os personagens, mantendo o foco na situação em que os eles estão envolvidos em detrimento dos objetivos de cada um. Em “Pulp Fiction”, a força do acaso em nossas vidas também ganha destaque, através de situações inesperadas que alteram o destino de todos envolvidos, como o fato de Marcellus cruzar o farol bem na frente do carro de Butch, que levará os dois a serem seqüestrados por estupradores e à redenção de Butch diante do traficante.

Obviamente, Tarantino conta muito com o excelente trabalho da montadora Sally Menke, que divide a narrativa em capítulos bem definidos, em ordem não cronológica, ajudando a criar a atmosfera mais realista pretendida pelo diretor através de cenas extensas, com poucos cortes, que confirmam a preferência dele já indicada no filme anterior. Além disso, Menke e Tarantino mostram inteligência ao esticar as histórias que envolvem Vicent e Jules, encurtando a trama que envolve Butch, claramente a menos atraente do roteiro. Escrito pelo próprio Tarantino (baseado em história dele com Roger Avary), o roteiro de “Pulp Fiction” usa artifícios interessantes, como o “macguffin” representado pela maleta de Marcellus, que, seguindo o mais puro sentido do termo popularizado por Hitchcock, não tem função narrativa alguma a não ser guiar os personagens na trama. Personagens, aliás, que falam a linguagem das ruas, cheia de palavrões e até mesmo preconceito contra estrangeiros, confirmando a abordagem realista que aproxima o espectador. E não posso deixar de citar os maravilhosos diálogos que se espalham pela narrativa, confirmando a criatividade de Tarantino, que cria situações muito interessantes, por exemplo, ao discutir algo banal como uma massagem no pé.

O longa ainda aborda com naturalidade o uso de drogas, mostrando os personagens usando cocaína e heroína, sem aliviar também nos efeitos deste uso, como quando Vicent vai buscar Mia, com os olhos praticamente fechados e um largo sorriso no rosto, claramente transformado (a trilha e a câmera lenta ilustram a sensação de relaxamento do personagem). Tudo isto, somado à fotografia natural de Andrzej Sekula, reforça a abordagem realista e ambienta o espectador ao mundo do crime. Sekula até chega a criar um visual estilizado, por exemplo, quando Butch visita Marcellus no bar, indicando através do tom vermelho a violência que predomina naquele meio, mas, em geral, a fotografia é mais crua e próxima da realidade. Realidade que nem sempre está presente, pois Tarantino também foge da abordagem realista, por exemplo, quando Mia faz um quadrado no ar e um efeito visual representa o quadrado na tela.

Além do excelente roteiro, Tarantino também mostra talento na condução da narrativa, conferindo um visual rico ao longa, além de constantemente fazer referências ao passado, seja dele próprio (o plano de dentro do porta-malas quando Vicent e Jules pegam as armas remete ao plano de “Cães de Aluguel” em que o policial é retirado do carro), seja do cinema em geral (na fuga de Butch, Tarantino homenageia uma velha técnica, o back projection, com o carro parado e as imagens movendo ao fundo). Além disso, o plano-seqüência que acompanha Vicent pelo “Jackrabbit Slim’s” serve como homenagem às estrelas do cinema dos anos 50, revelando os cartazes e as próprias atendentes locais, em outro momento de imersão na cultura pop, reforçado pela trilha sonora diegética com clássicos do período. Em outros momentos, Tarantino usa a handycam para conferir realismo às cenas, como quando Marcellus atira em Butch em plena luz do dia e quando Butch se dirige ao apartamento onde matará Vicent. Aliás, impressiona também a ausência de policiais e a predominância de cenas diurnas, o que confirma a subversão do cinema de gênero pretendida pelo diretor (nos filmes de crime, normalmente o visual é mais obscuro e os policiais estão no encalço dos criminosos). Finalmente, Tarantino não desvia a câmera nos momentos violentos e nem mesmo quando Mia confunde heroína com cocaína, mostrando o resultado trágico da droga na moça. O desespero toma conta da tela, Vicent sai em disparada para tentar salvá-la e o hiper-realismo novamente entra em cena. Neste momento, o espectador sente um misto de euforia e angústia, provocado pela mistura de humor negro e realismo, reforçado pela handycam utilizada na casa de Lance (Eric Stoltz). Quando Mia levanta gritando após a injeção de adrenalina, o hiper-realismo volta e o espectador ri. Este é o cinema de Tarantino. Por outro lado, este estilo cinematográfico dificilmente envolve a platéia emocionalmente, pois os personagens são praticamente caricaturas, o que é um ponto negativo em sua filmografia, mas que em “Pulp Fiction” funciona bem, dada a abordagem afastada da realidade em diversos momentos, como a citada “ressurreição” de Mia.

Com seu visual sensacional (figurinos de Betsy Heimann), que faz alusão aos anos 50, Vicent Vega – e suas roupas descoladas – e Jules – com seu cabelo “black power” – são personagens fascinantes, interpretados com grande carisma por John Travolta e Samuel L. Jackson. Apresentando um impressionante entrosamento, eles formam uma adorável dupla de criminosos, que tem um curioso código moral, revelado no diálogo que antecede a invasão de um apartamento. Para eles, é vital seguir o horário combinado, como se um ou dois minutos fossem extremamente importantes. Para Vicent, uma simples massagem no pé soaria como desrespeito ao chefe. Mas, para ambos, matar um inimigo de Marcellus a queima roupa é simplesmente normal. Travolta também demonstra com competência a aflição de Vicent por ter que sair a noite com Mia, aflição que só aumenta ao ouvir as risadas dos amigos quando ele pergunta se ela é bonita. As risadas se justificam quando surge a sensual e divertida Mia, interpretada pela ótima Uma Thurman. Demonstrando empatia com Travolta, Thurman está bem solta no papel. Na memorável cena em que eles dançam twist, além do desempenho marcante da dupla e da música empolgante (“Never can tell”, de Chuck Berry), o espectador que conhece um pouco da história do cinema sente uma ponta de nostalgia ao ver novamente John Travolta dançando, num momento que extrapola o filme e deixa a platéia em êxtase. Recheada de músicas marcantes, a trilha sonora ainda apresenta a bela “Girl, you’ll be a woman soon”, de Bruce Springsteen, numa cena em que Thurman novamente se destaca, dançando solta e cantarolando a música desafinada, ao mesmo tempo em que Travolta também dá um show, olhando para o espelho e treinando o autocontrole para evitar se envolver com a mulher do chefe.

Citar todos os nomes do elenco é até desnecessário diante de tantos bons atores que aparecem no longa. Mas alguns merecem destaque especial, como Christopher Walken, que tem uma pequena e estupenda participação ao contar a história do “Relógio de Ouro”. Já Bruce Willis, com seu jeito bruto e ameaçador, se sai muito bem como o boxeador Butch, se destacando em alguns momentos especiais, como a revolta de Butch ao saber que Fabienne (Maria de Medeiros) esqueceu o relógio de ouro, o olhar frio antes de matar Vicent, seu espanto ao ver Marcellus cruzar o farol e, principalmente, o momento surreal em que ele escolhe a arma antes de salvar Marcellus. Butch ainda é o autor de uma das frases marcantes do excelente roteiro – só que o seu “Zack is dead, baby” soa bem em inglês, mas perde a graça em português. E apesar de curtas, as participações de Tarantino, como Jimmy, e principalmente de Harvey Keitel, como Wolf, são excelentes, com o segundo exibindo a costumeira segurança e uma expressão ameaçadora, que confere credibilidade e respeito ao personagem.

Keitel e Tarantino surgem no último capitulo da narrativa. Repleto de humor negro e diálogos sarcásticos, “A situação de Bonne” conta com a cena mais violenta e engraçada do longa, que é o tiro acidental de Vicent em Marvin, mas é também o capitulo em que Jules escapa milagrosamente da morte, o que promove uma transformação no criminoso, que passa a acreditar na “intervenção divina” em sua vida. Esta interessante visão contrasta com a de seu colega Vicent, que vê no acaso a explicação para o que aconteceu. Bastante polêmica, esta discussão ideológica deixa a cargo de cada espectador tirar alguma conclusão. Após acompanhar todas estas histórias paralelas, o espectador se vê novamente no mesmo restaurante do início. Novamente, o grito de Honey Bunny (Amanda Plummer) ecoa em todo local e Pumpkin (Tim Roth) começa a recolher as carteiras, aterrorizando quase todas as pessoas presentes. “Quase” todas, porque o agora regenerado Jules está lá, sentado, com a arma na mão e a misteriosa maleta de Marcellus Wallace na mesa, enquanto Vicent está no banheiro, lendo uma revista tranqüilamente. E apesar de exagerar em alguns momentos anteriormente, Samuel L. Jackson está perfeito na cena final, demonstrando segurança e autoridade enquanto conversa com os assaltantes e explica a razão de sua regeneração. E assim como Leone fazia com maestria no western spaghetti, Tarantino conduz a cena com a costumeira habilidade, mantendo a tensão simplesmente ao prorrogar ao máximo o confronto (que, neste caso, sequer acontece), com os personagens mantendo as armas apontadas uns para os outros, como ele também fizera em “Cães de Aluguel”. Nada acontece de fato, mas a tensão que domina a cena é suficiente para nos deixar em transe.

Com seu visual estilizado, diálogos inesquecíveis, narrativa envolvente e cenas marcantes, “Pulp Fiction” marcou época e confirmou que Tarantino era o sopro de criatividade que faltava em Hollywood. Embalado por uma trilha sonora empolgante e por atuações inspiradas de um elenco excepcional, o longa revigorou o cinema dos anos 90, inspirando muitos trabalhos que surgiriam a seguir. Não foi apenas Jules que saiu regenerado, a própria Hollywood parece ter escapado milagrosamente de alguns tiros a queima roupa.

Texto publicado em 15 de Julho de 2011 por Roberto Siqueira