FESTIM DIABÓLICO (1948)

(Rope)

 

 

Filmes em Geral #55

Dirigido por Alfred Hitchcock.

Elenco: James Stewart, Farley Granger, John Dall, Cedric Hardwicke, Constance Collier, Douglas Dick, Edith Evanson, Dick Hogan e Joan Chandler.

Roteiro: Hume Cronyn e Arthur Laurents, baseado em peça de Patrick Hamilton.

Produção: Alfred Hitchcock e Sidney Bernstein.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Até onde pode chegar a criatividade de um grande cineasta? No caso de Hitchcock, esta pergunta dificilmente poderá ser respondida, especialmente se observarmos a qualidade de sua celebrada filmografia e o número de soluções criativas que ele encontrava em seus filmes. Mas existiam momentos em que o mestre simplesmente se superava, brindando os cinéfilos com verdadeiras jóias, capazes de empolgar o mais cético dos críticos. Filmada em longos takes com cortes quase imperceptíveis, a obra-prima “Festim Diabólico” é um destes momentos fantásticos, em que o diretor emprega sua impressionante técnica para conduzir uma narrativa envolvente, recheada de grandes atuações e momentos eletrizantes.

Os amigos Brandon (John Dall) e Phillip (Farley Granger) matam o colega de escola David Kentley (Dick Hogan), apenas para sentir a sensação de cometer um assassinato. Na busca pelo crime perfeito, eles promovem uma festa com os amigos e a família do rapaz, servindo a comida em cima do baú onde está escondido seu corpo. Mas um dos convidados é o esperto professor Rupert Cadell (James Stewart), que começa a desconfiar de tudo na medida em que a festa se torna cada vez mais estranha.

Narrado em tempo real, durante um fim de tarde e num único cenário (o apartamento de Brandon), “Festim Diabólico” apresenta um caráter extremamente realista, reforçado pela técnica empregada por Hitchcock, que filma as cenas em oito tomadas, com pequenos cortes quase imperceptíveis a cada 10 minutos – e que só existem porque este era o tempo máximo que uma bobina podia filmar na época -, nos dando a sensação de estarmos vendo um único plano-seqüência (normalmente, Hitchcock dava um close num personagem ou objeto para poder inserir o corte). Na realidade, apenas em um momento o corte é perceptível, quando Phillip discute com Brandon e grita que “é mentira!” ao ser acusado de matar galinhas – um corte seco nos mostra a reação de Rupert em seguida. Mas, por estar prestando atenção na calorosa discussão, o espectador pode nem perceber este corte. Desta forma, somos sugados pra dentro da história de maneira única, como se estivemos dentro daquele cenário, vivendo a narrativa com incrível intensidade.

Escrito por Hume Cronyn e Arthur Laurents, baseado em peça de Patrick Hamilton, o roteiro de “Festim Diabólico” apresenta muitos diálogos marcantes, além de desenvolver a trama lentamente e com cuidado, tornando possível, por exemplo, que Rupert perceba, através de gestos sutis, o que está acontecendo, como quando Phillip fala sobre os livros mal amarrados e ele olha para a corda, já bastante desconfiado. Assim, na medida em que percebemos que o astuto convidado começa a captar o que se passa, o suspense aumenta e o longa se torna mais tenso. Obviamente, a condução excepcional de Hitchcock também é responsável por isso, desde o momento em que vemos uma rua tranqüila, com pessoas caminhando (Hitchcock é uma delas), e um movimento de câmera nos leva a janela do apartamento onde a narrativa se passará, interrompendo o silêncio com um grito antes de termos a imagem de David sendo enforcado por Brandon e Phillip. Hitchcock sabia que, ao nos mostrar o assassinato e onde o corpo de David estaria durante a festa, ficaríamos inquietos e apreensivos. Seguindo sua cartilha, o mestre faz o espectador saber mais do que a maioria dos personagens em cena, o que só aumenta a tensão e o suspense.

E ainda que comece tranqüilo durante a preparação para a festa, o relacionamento entre Brandon e Phillip já dá indícios das diferenças de temperamento entre eles, que será vital no grande clímax da narrativa. Se Brandon é mais sádico e controlado, Phillip se apresenta mais humano e, por conseqüência, assustado com tudo aquilo. Aliás, John Dall se sai muito bem na pele do cruel Brandon, um personagem extremamente racional, que parece não sentir emoção, a não ser quando acha que seu plano maquiavélico está saindo conforme planejou. Seu humor negro e sarcástico garante boas piadas a respeito da morte de David e de sua presença na festa, como quando Janet (Joan Chandler) diz que David pode chegar e surpreendê-la no quarto com Kenneth (Douglas Dick) e ele responde que seria “um choque” – e Dall tem mérito nisto, ao conferir um ar de cinismo na fala do personagem. Mas, no interessante diálogo sobre assassinatos, que faz referências a Nietzsche e Hitler, Brandon começa a dar sinais de seu plano diabólico e o astuto Rupert começa a perceber o que está acontecendo. Já Farley Granger está um pouco exagerado, mas funciona na pele do assustado Phillip, balanceando bem o destempero de seu personagem com o autocontrole absurdo de Brandon. Vale registrar também que na peça original de Patrick Hamilton, Brandon e Phillip eram homossexuais, mas devido ao controle rígido do Código Hays, Hitchcock foi obrigado a amenizar este aspecto da relação entre eles, tornando-o perceptível, mas de maneira muito sutil (a peça foi inspirada no caso dos jovens Leopold e Loeb, que, em 1924, raptaram e mataram o garoto Bobby, de 14 anos, na cidade de Chicago). Fechando os destaques do coeso elenco, James Stewart, sempre excelente, tem uma atuação muito boa, que cresce na medidaem que Rupert aumenta sua desconfiança diante do que vê. Repare com o ator consegue nos convencer de que o personagem está preocupado através de pequenos gestos como quando observa atentamente o comportamento de Phillip ao ver a corda. Além disso, o ator soa convincente quando confronta os autores do crime no terceiro ato, num monólogo belíssimo que escancara a mensagem do filme, numa crítica feroz ao sentimento de superioridade do ser humano que se julga capaz de tirar outras vidas supostamente “inferiores” (lembre-se que o filme é de 1948, pouco tempo depois do período de domínio nazista).

No restante do elenco, basta dizer que nenhum ator destoa e todos conseguem captar o espírito do longa, fazendo com que a festa soe bastante realista, apesar da absurda situação criada por Brandon e Phillip. E é interessante notar também como as roupas definem parte da personalidade dos personagens, num excelente trabalho da figurinista Adrian. Brandon, com seu comedido terno azul, é o mais controlado de todos. Janet, com seu vestido vinho, procura chamar a atenção dos rapazes e inclusive já namorou três dos quatro estudantes. Rupert esconde sob seu terno cinza muita sobriedade e inteligência, características vitais para que perceba o que está acontecendo. Kenneth, com seu terno marrom e apagado, é propositalmente o personagem mais apático da narrativa. Já Phillip procura se esconder sob seu terno marrom escuro, mas chama a atenção demais com seu jeito assustado. Discreta mesmo é a Sra. Wilson (Edith Evanson), com sua roupa preta de empregada que a torna quase imperceptível, ao ponto de Brandon repreender Phillip após o final da festa (“Calado, a Sra. Wilson ainda está aqui”). E finalmente, o Sr. Kentley (Cedric Hardwicke) exala seriedade em seu terno cinza claro, ao passo em que a Sra. Atwater (Constance Collier) chama a atenção para seu jeito espalhafatoso em seu vestido roxo.

Ainda na parte técnica, a trilha sonora de David Buttolph pontua os momentos de tensão, reforçada pela fotografia de William V. Skall e Joseph A. Valentine, que se torna mais sombria na medida em que a narrativa avança. E se o trabalho do montador William H. Ziegler se limita a inserir os pequenos e imperceptíveis cortes na narrativa devido à citada necessidade de trocar os rolos de filmagens, a direção de arte de Perry Ferguson merece ser citada por criar um cenário que permita o desenrolar da história de maneira tão eficiente, com a ampla sala da biblioteca servindo para recepcionar os convidados, o citado baú que esconde o segredo dos assassinos, o longo corredor que leva até a cozinha e a curiosa porta que divide os ambientes, com seu barulho irritante aumentando a tensão.

Finalmente, num filme dirigido por Hitchcock não poderiam faltar cenas marcantes e “Festim Diabólico” não seria diferente. A começar pela fantástica cena em que a câmera fica parada ao lado do baú, com os personagens conversando sobre David à direita da tela, nos permitindo ver apenas parte do corpo de Rupert e a Sra. Wilson limpando a mesa e trazendo os livros para guardar no baú. Observe a condução lenta da cena por parte de Hitchcock, criando um suspense crescente na medida em que se aproxima o momento que ela guardará os livros. A tensão chega ao auge quando ela começa a abrir o baú e é interrompida por Brandon, aumentado a suspeita de Rupert. Esta suspeita levaria aquele homem a voltar ao apartamento depois que todos foram embora, provocando pânico em Phillip e dando inicio a outra seqüência incrivelmente tensa. Determinado, Brandon se arma e abre a porta. O diretor então inicia a cena destacando a mão armada de Brandon dentro do bolso através de um zoom, enquanto quando Rupert fala sobre David. Em seguida, a câmera simula cada movimento do tenso diálogo em que ele diz como mataria o rapaz, da mesma maneira que Hitchcock fizera em “Rebecca”. Repare como a luz que pisca fora do apartamento e a noite que recai aumentam a tensão do momento, atingindo níveis insuportáveis até que Phillip, ao ver a corda nas mãos de Rupert, confessa tudo e ameaça matá-lo. Rupert consegue tomar a arma de sua mão e parte, sem querer acreditar no que verá, para abrir o baú. Neste momento, Stewart se destaca novamente, demonstrando a frustração de Rupert ao ver o corpo de David lá dentro e o incômodo por saber que Brandon havia distorcido suas palavras para fazer algo tão cruel. O longa termina num plano genial, com Phillip desolado no piano, Brandon tomando uma bebida tranqüilamente e Rupert sentado, aguardando a chegada da polícia.

Com sua narrativa envolvente, “Festim Diabólico” é uma obra-prima do suspense, conduzida com perfeição por Alfred Hitchcock, que desfila sua enorme capacidade de direção através dos criativos movimentos de câmera, da firme condução da narrativa e da excepcional composição da mise-en-scène, permitindo a excelente atuação coletiva do elenco, que transita no cenário de maneira eficiente, e entregando um filme marcante, criativo e incrivelmente tenso.

Texto publicado em 01 de Junho de 2011 por Roberto Siqueira

19 comentários sobre “FESTIM DIABÓLICO (1948)

  1. Pedro Máximo 3 novembro, 2019 / 8:18 pm

    Concordo com todas as observações, mas sempre me chamou a atenção a atuação das atrizes Edith Evanson e Constance Collier, que dão o tom histriônico perfeito às suas participações.

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    • Roberto Siqueira 4 novembro, 2019 / 6:25 am

      Muito bem observado Pedro.

      Obrigado pelo comentário e volte sempre!

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  2. Francisco 21 junho, 2016 / 10:46 pm

    Boa noite eu vi esse filme essa semana no telecine e me chamou atenção a citação feita de uma revista feminina chamada ALLURE . Pesquisando no Google descobri que esta revista foi fundada em1991, não condizendo em ser citada em 1948. Será que o nome da revista foi posteriormente inspirado no filme? Da forma como foi citada no filme o tema da revista é identico. Vcs sabem alguma coisa a respeito? Meu email engfranciscosergio@gmail.com

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    • Roberto Siqueira 4 novembro, 2019 / 6:28 am

      Olá Francisco,

      Sua observação é muito interessante. Não consegui encontrar nada a respeito, mas me parece mais um caso em que a vida imitou a arte.

      Abraço.

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  3. Anderson 8 julho, 2014 / 2:01 am

    Olá!

    Parabéns pela sua crítica! Voce escreve muito bem e sua percepção é muito aguçada!!!

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    • Roberto Siqueira 4 novembro, 2019 / 6:26 am

      Muito obrigado Anderson.

      Abraço.

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  4. Diego Barbagelata 29 fevereiro, 2012 / 11:55 pm

    Nessa época não existiam cinefilos exista apenas o cinema e o espectador, se é que voce entende o que quero passar e nem os filmes e o espectadores eram hermeticos.

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    • Roberto Siqueira 1 março, 2012 / 8:45 pm

      Não sei Diego, acho que cinéfilos existem desde que existe o cinema.
      Um abraço.

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  5. Patrícia 1 julho, 2011 / 2:46 am

    Repeti a dose com esse filmaço e dessa vez, no cinema, que máximo! O fato de ter sido filmado num único ambiente revela que para distrair o público não é necessário mais que genialidade, sem grandes pompas, só a trama, a câmera e a condução da história, além das excelentes interpretações. Cena ápice, enquanto todos conversam, a sra wilson retira aos poucos todos os objetos e alimentos de cima do baú, sob uma sombra que indica o quanto tudo é desapercebido pelos personagens e o quanto tudo é percebido pelo público e numa tensão pra saber o que vai acontecer. O medo de Rupert ao encontrar o chapéu e a sua volta ao ap tb são de tirar o fôlego.Desfecho magnífico que mistura indiferença e culpa de todos os lados.

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    • Roberto Siqueira 3 julho, 2011 / 1:48 pm

      Olá Patrícia,
      Obrigado por compartilhar conosco esta experiência marcante. Adorei o comentário.
      Grande abraço.

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  6. Makin 23 junho, 2011 / 9:07 pm

    Yes! ^^ Esse filme é mesmo esplêndido! O suspense que Hitchcock cria em Festim Diabólico é um pouco diferente de outros de seus filmes, afinal, como citado acima, o espectador sabe de tudo. Porém, o suspense se baseia no fato de desejarmos saber o que irá ocorrer no final da trama! Como Rupert vai mostrar que sabe do que Brandon e Philip fizeram e o que ocorrerá quando o fizer?! De certo modo detalhes não são revelados no final da trama, assim como na maioria dos filmes do Hitch~~! Até hoje imagino porque os pássaros ficaram pirados em “Os Pássaros” e no final nada fica esclarecido! Nesse até que sim, afinal, os assassinos foram descobertos no final! Rupert é o cara! ^^

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    • Roberto Siqueira 24 junho, 2011 / 8:29 pm

      Olá Makin,
      Muito obrigado pelo comentário, este filme é mesmo excepcional.
      Um grande abraço.

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  7. Brasil Inteligente 13 junho, 2011 / 4:04 pm

    Acabei de lembrar que esqueci de comentar aqui… vamos lá: gostei do filme. Nos primeiros minutos já falei pra Amanda sobre a cena sem cortes e mostrei em que momentos ele fazia o corte. Achei isso demais! Os diálogos são show também, e o suspense é bom…
    Mas não consegui sentir muita tensão não… Acho que não funcionou muito comigo porque acharem o corpo e descobrirem o que eles fizeram, não necessariamente seria perigoso. Algo que eu achei muito bom foi como o professor Rupert Cadell tem a certeza de que há algo errado: Quando a empregada vai entregar o chapéu do professor, ela entrega, na verdade, o chapéu do David Kentley (o morto), com as iniciais dele… aí o professor percebe que o David esteve lá e, provavelmente, não saiu já que ele não deixaria o chapéu pra trás… isso é digno de Agatha Christie. A cena da empregada que você cita, julguei um pouco “telegrafada”: um suspense básico. De qualquer forma, o filme é muito bom!

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    • Roberto Siqueira 13 junho, 2011 / 8:39 pm

      Olá Thi,
      Valeu pelo comentário e por citar a cena do chapéu. Achei muito interessante sua observação!
      Fico feliz que gostou! Quando voltar pra SBC te empresto mais filmes do Hitchcock.
      Um grande abraço.

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  8. Helena 3 junho, 2011 / 11:54 am

    O suspense criado por este filme é realmente digno de um mestre. Mestre Alfred Hitchkock!

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    • Roberto Siqueira 3 junho, 2011 / 2:07 pm

      É verdade Helena, trabalho de um gênio.
      Obrigado pelo comentário.
      Grande abraço.

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