CAMINHOS PERIGOSOS (1973)

(Mean Streets)

 

Filmes em Geral #30

Dirigido por Martin Scorsese.

Elenco: Harvey Keitel, Robert De Niro, David Proval, Amy Robinson, Richard Romanus, Cesare Danova, Victor Argo e George Memmoli.

Roteiro: Martin Scorsese.

Produção: E. Lee Perry e Jonathan T. Taplin.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Antes mesmo das primeiras imagens aparecerem na tela, “Caminhos Perigosos” deixa claro o tema principal de sua narrativa através das palavras ditas por determinado personagem: “Você não paga os pecados na igreja, paga na rua”. A culpa católica e o eterno conflito entre seguir os ensinamentos da igreja e sobreviver naquele mundo extremamente perigoso é o fio condutor deste ótimo filme dirigido por Martin Scorsese e estrelado por Harvey Keitel e Robert De Niro.

Charlie (Harvey Keitel) trabalha para crescer no submundo de Nova York sob a tutela de seu tio Giovanni (Cesare Danova), ao mesmo tempo em que mantém um caso com Teresa (Amy Robinson) e a indesejada amizade de Johnny Boy (Robert De Niro), um jovem agressivo que vive devendo para todo mundo. Entre os credores está Michael (Richard Romanus), um homem tranqüilo que evita confrontar Johnny por conta da amizade que tem com Charlie.

Não por acaso, a trama de “Caminhos Perigosos” se passa no bairro de Little Italy, o local onde o diretor Martin Scorsese passou boa parte de sua infância e juventude, e que claramente influenciou sua carreira em muitos aspectos (o linguajar de seus filmes, o tema do submundo, etc.). E ainda que este seja um dos seus primeiros trabalhos como diretor, Scorsese já apresenta seu estilo marcante em diversos momentos, como no travelling em câmera lenta que nos leva pela boate ao som de clássicos do rock n’ roll ou quando a câmera presa em Charlie durante uma bebedeira transmite a exata sensação de desorientação que o personagem sentia naquele momento. O diretor emprega freqüentemente o plano-seqüência, os travellings e a câmera lenta, balanceando estes movimentos estilizados com o uso da câmera agitada, buscando empregar realismo em diversas cenas. Observe, por exemplo, a briga que acontece num bar, ao som de “Mr. Postman”, quando Charlie e seus amigos vão cobrar um pagamento. A câmera agitada acompanha os personagens sem fazer muitos cortes, tornando a cena extremamente realista e nos jogando pra dentro da confusão – vale notar também a interessante crítica à corrupção da polícia no final do conflito. O diretor repete a alta dose de tensão e realismo na cena do assassinato dentro do bar de Tony (David Proval), com a vítima tentando estrangular seu assassino enquanto todos saem correndo desesperados pelas ruas tentando escapar da polícia, que já estava a caminho. Obviamente, a montagem de Sid Levin colabora sensivelmente na construção destas cenas, que contrastam diretamente com o ritmo mais lento do restante do longa. Sempre com cenas longas e com poucos cortes, Levin balanceia muito bem o ritmo da narrativa, além de ousar em alguns momentos, como quando Charlie e Johnny caminham pela noite conversando sobre a avó de Charlie. Repare como repentinamente a noite se transforma em dia durante a conversa, numa quebra deliberada de continuidade por parte de Scorsese e Levin. Em outro momento, numa conversa entre Charlie e Teresa dentro do apartamento, o som se inicia antes das imagens aparecerem na tela – imagens estas que remetem a conversa entre Patricia e Michael em “Acossado” e que ainda apresentam uma cena de nu frontal de Teresa. Estas duas cenas exemplificam a clara influência da nouvelle vague (Godard, em especial) sobre Martin Scorsese naquele momento de sua carreira. Scorsese faz ainda sua homenagem ao cinema clássico ao exibir uma cena de “Rastros de Ódio”, revelando sua paixão pela sétima arte.

Scorsese conta ainda com a direção de fotografia de Kent Wakeford, que emprega um visual cru, obscuro e com muitas cenas noturnas, refletindo a escuridão na vida daquelas pessoas à margem da sociedade, contrastando com a fotografia vermelha das cenas que acontecem dentro do bar, repleto de drogas e bebidas, conferindo um ar infernal ao local, afinal de contas, é ali que Charlie comete os seus “pecados”. As ruas sujas e repletas de mendigos, traficantes e prostitutas atestam o bom trabalho de direção de arte de Bill Bates, reforçado pelos figurinos de Norman Salling, que seguem o padrão “O Poderoso Chefão”, com os tradicionais ternos e gravatas. E finalmente, a trilha sonora é certamente um dos grandes destaques do longa, intercalando clássicos do rock n’ roll com óperas,  representando o conflito entre a vida agitada de Charlie no gueto e seu apego às tradições italianas, em especial a religiosidade e a busca pela salvação.

Scorsese acerta também ao apresentar, logo na introdução, as características marcantes de cada personagem, com Charlie buscando orientação na igreja, Johnny fazendo arruaça na rua, Tony cuidando do bar e Michael pacientemente indo cobrar um pagamento, nos preparando para o que aconteceria depois. Escrito pelo próprio Scorsese, o roteiro não tem uma estrutura convencional, nos permitindo acompanhar o cotidiano daquele grupo sem ter um objetivo claro, mas sempre evidenciando o tema da culpa católica, como, por exemplo, através da história que Charlie escuta sobre o casal de jovens que sai para transar e morre. Ainda assim, o foco da narrativa está sempre em Charlie e em sua constante luta por redenção diante da vida que leva. Ele não se importa com os problemas da igreja (“A igreja é uma organização, um negócio”, diz Tony em certo momento), exatamente por não conseguir encontrar outro caminho para aliviar seu conflito interno e buscar a salvação. É como se Charlie quisesse compensar a “vida pecaminosa” que leva freqüentando a igreja e confessando os pecados. Keitel transmite muito bem os conflitos do personagem, que consegue ser ao mesmo tempo durão e paternal, principalmente nos momentos em que passa ao lado de Johnny. Observe, por exemplo, sua reação ao ver uma moça negra dançando, lutando contra seus pensamentos e evidenciando seu racismo – o que se confirma quando ele desiste de um encontro por medo de ser visto com ela. O roteiro, aliás, volta a abordar o preconceito quando um homem diz que “as mulheres judias saem com todo tipo de cara”. Charlie convive ainda com outro dilema, tendo que decidir entre ficar com Teresa e Johnny e herdar o restaurante que seu tio Giovanni lhe prometeu. Neste caso, sua difícil decisão é também inteligente, o que o encoraja a contar pra Teresa a sua escolha, deixando a garota em segundo plano por um tempo, pelo menos até herdar o restaurante – e é apropriado que o plano anterior a esta revelação apresente Charlie colocando o dedo no fogo, pois certamente ele estava brincando com algo extremamente perigoso ao tentar enganar o tio.

Mas não é apenas Keitel que se destaca no elenco. Logo na primeira conversa entre Charlie e Johnny nos fundos do bar, podemos perceber a qualidade da atuação de Robert De Niro. O ator demonstra com competência o jeito desleixado de Johnny através da expressão corporal relaxada e da fala arrastada, que deixam claro o quanto ele pode ser dissimulado e pouco confiável. Durante uma discussão com Tony, Johnny ajeita as calças e arregala os olhos como quem está pronto para brigar, mostrando que ele era capaz de qualquer coisa para se defender. Sua loucura é tão evidente que o espectador não se surpreende quando Johnny resolve atirar no Empire State e na janela de uma mulher, somente para logo em seguida pedir desculpas para a senhora. Aliás, este sentimento de que algo ruim pode acontecer é constante em “Caminhos Perigosos”, muito por causa do elenco formado por atores com cara de “mau”, que dão a sensação de que poderão sair na porrada a qualquer momento. A exceção é Michael, interpretado por Richard Romanus, que exibe uma tranqüilidade atípica para o mundo em que vive, muitas vezes parecendo até mesmo inofensivo. Mas na medida em que o espectador passa a ter certeza de que Johnny não vai pagar a dívida, a eminente explosão de Michael se torna evidente – e o ator transmite esta sensação muito bem, principalmente na tensa seqüência em que Johnny aponta uma arma pra ele no bar. Fechando o elenco, Amy Robinson se sai bem como Teresa, especialmente quando sofre um ataque epilético diante de Charlie. Todos estes personagens sombrios e ambíguos criam um clima tenso sem a necessidade de recorrer à trilha sonora ou a situações inusitadas, somente através da composição dos personagens e da vida que eles levam. Por outro lado, estes mesmos personagens são capazes de citar diversas passagens bíblicas dentro do bar, mostrando a influencia da igreja sobre eles, ainda que não acreditassem nos ensinamentos que memorizaram (ou talvez não aceitassem). Neste dilema está a discussão central do filme.

Quando Michael emparelha o carro e seu parceiro começa a atirar em Johnny, o espectador pode até se sentir surpreso e chocado, mas no fundo todos sabiam que ao agir daquela maneira naquele mundo Johnny estava pedindo por isso. Scorsese encerra o longa com uma interessante rima narrativa, mostrando novamente os diversos personagens em diversos locais diferentes, assim como no início do filme. De diferentes maneiras, todos tentam sobreviver naquele violento ambiente, mas nem todos conseguem sair ilesos.

Texto publicado em 18 de Novembro de 2010 por Roberto Siqueira

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