E se não tivéssemos controle sobre nossos destinos? E se tudo já estivesse decidido, não importa o caminho que escolhermos? Em sua estreia, o diretor Ari Aster inicia Hereditário nos colocando essa dúvida. Lentamente, a câmera se aproxima da maquete da casa da família Graham e nos transporta para o quarto do filho. E assim ele nos mostra o que os aguarda. Serão apenas marionetes, conduzidas por algo além de sua compreensão, os levando para um fim inevitável.
Junto com A Bruxa e Corra!, Hereditário faz parte de um tipo de terror que estava esquecido nos cinemas. Nos últimos anos, surfando na onda de Atividade Paranormal, veio uma série de filmes, onde o terror se resumia a sons surgindo de repente ou aparições fantasmagóricas pulando na tela. Subterfúgio apenas para assustar e provocar saltos na cadeira, mas sem acrescentar nada para a história. Hereditário e os outros exemplos citados no começo do parágrafo vão na contramão. Um terror totalmente psicológico e menos baseado em “jump scare”, com ênfase na história que está sendo contada. Para mim, “jump scare” nada mais é do que uma trapaça. Uma técnica preguiçosa. Um clichê do terror moderno.
Praticamente não existe essa técnica em Hereditário. A câmera se move organicamente, como se fosse o olhar do personagem. Isto auxilia a nossa imersão no filme. A adrenalina dispara com o que pode vir a ser mostrado. Ou não. E vem o susto. Ou o alívio. Sem barulho. Sem nada pulando na tela. Sem trilha sonora mudando de repente para nos induzir com o que vem a seguir.
Fazendo uma analogia bem boba, não sei se isso acontece só comigo. Imaginem que do nada vocês pensem “nossa, será que eu perdi minha carteira?”. A mão vai lentamente até o bolso. Os alertas do corpo começam a disparar. Quando a mão chega, vem o desespero ou o ufa! A sensação assistindo Hereditário é praticamente essa durante toda a película.
Hereditário é considerado o melhor filme de terror de 2018, e um dos destaques de forma geral do ano. Sua ausência na temporada de premiações foi sentida. Toni Collette ser ignorada foi uma tremenda injustiça. Sua atuação como Annie é fantástica, retratando o medo, o desespero, e por fim de resignação, quando percebe que não tem o controle de sua vida. Atuação que tinha tudo para ser caricata. Mas em nenhum momento chega a esse ponto. É possível sentir o terror vendo sua atuação.
A atuação de todos deve ser ressaltada. Milly Shapiro, em sua estréia, como Charlie, a caçula da família. Seu silêncio e olhares nos deixam intrigados. Alex Wolff, interpretando Peter, o filho mais velho, tem momentos memoráveis, como a cena do carro e sua atitude transtornada. Mesmo Gabriel Byrne, como Steve, o pai da família, que em um primeiro momento possui uma atuação mais centrada, mas que faz todo o sentido para o filme. Ele é o único que não possui laços de sanguíneos com a família de Annie, e por isso é cético e racional com o que passa ao seu redor. Destaque também para Ann Dowd como Joan, que nos momentos em que aparece, prende nossa atenção.
O filme se inicia no funeral da avó. Lá somos apresentados à família Graham, e passamos a ter ciência de alguns de seus desentendimentos. E conhecemos alguns estranhos amigos da avó. Em conversas em um grupo de auxílio para superar o luto, descobrimos os problemas psicológicos que afligem os membros da família. Bem, desse ponto em diante, é ladeira abaixo para a família. Se não viu o filme ainda, recomento parar por aqui.
Há momentos chocantes. A cena da morte da filha caçula, uma reviravolta a la Psicose (guardadas as devidas proporções), já que tudo levava a crer que ela seria a personagem central. A reação do filho. A câmera focando seu rosto, catártico. Apenas som ambiente, iluminado somente por uma luz quase sobrenatural do painel do carro. E a forma que o corpo é descoberto pela mãe. A dor sentida e sua demonstração. Arrepia. Temos ainda a utilização de tabuleiros ouija, aparições sobrenaturais, corpos. E tudo sem um “jump scare” sequer.
E o final é uma catarse. O filme entra em um momento “gore”. Impossível focar em outra coisa além do que ocorre na sua frente. E o choque quando o filme termina. Demora uns minutos até que consigamos voltar para a realidade. Recomendo permanecer no sofá por alguns instantes, respirar fundo, pensar em coisas boas. Se submergir sem um período de descompressão, a chance de continuar vendo vultos em cantos escuros é enorme.
Outra característica é que não há uma interpretação definitiva a respeito do que acabamos de vivenciar no filme. Há outras leituras que podem ser feitas. Será que tudo foi verdade, ou eram apenas reflexos dos problemas psicológicos enfrentados pelos membros da família? Outra interpretação é que o filme trata das cicatrizes familiares. De não saber lidar com luto ou com perdas. Dos problemas de relacionamento a doenças psiquiátricas. E com o fato de não saber lidar com as dificuldade e problemas que vão surgindo, mesmo que as vezes aleatoriamente. E se a unidade familiar não é firme, ocorre a implosão.
Ari Aster não deixa pontas soltas. Está tudo lá. Assim como em O Sexto Sentido, em um primeiro momento pode não fazer sentido o que estamos vendo, mas depois ao rever o filme e ler a respeito, tudo fica claro. Dos símbolos que aparecem ao longo do filme, dos diálogos que podem parecer irrelevantes, as palavras na transição das cenas, que parecem aleatórias. Tudo nos guia para o final. O destino da família já estava traçado. Impossível fugir de sua hereditariedade.