CONTATOS IMEDIATOS DO TERCEIRO GRAU (1977)

(Close Encounters of the Third Kind)

4 Estrelas 

Videoteca do Beto #168

Dirigido por Steven Spielberg.

Elenco: Richard Dreyfuss, Bob Balaban, Teri Garr, François Truffaut, Melinda Dillon, J. Patrick McNamara, Warren J. Kemmerling, Cary Guffey e Roberts Blossom.

Roteiro: Steven Spielberg.

Produção: Julia Phillips e Michael Phillips.

Contatos Imediatos do Terceiro Grau[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Após o sucesso avassalador de “Tubarão”, Steven Spielberg teria carta branca para tocar o projeto que quisesse. Não surpreende, portanto, que o próximo longa do diretor seja justamente aquele que marca sua primeira incursão num de seus gêneros favoritos. Contando novamente com Richard Dreyfuss no elenco e conseguindo ainda a participação de uma lenda do cinema francês (o diretor François Truffaut), Spielberg tinha tudo nas mãos para emplacar outro grande sucesso e, felizmente, ele não decepcionou. “Contatos Imediatos do Terceiro Grau” é uma ficção científica cativante, que mantém seu encanto mesmo décadas após seu lançamento.

“Contatos Imediatos do Terceiro Grau” era um projeto tão pessoal que Spielberg não apenas dirigiu o filme como também se encarregou de escrever o roteiro, que tem início quando o tranquilo Roy (Dreyfuss) começa a ter visões de uma misteriosa montanha ao mesmo tempo em que presencia estranhas luzes cortarem o céu da pequena cidade em que vive no interior dos EUA. Obcecado pela estranha montanha, ele acaba se distanciando da família e, após ser abandonado, parte em busca de respostas. Em paralelo, o cientista Claude Lacombe (Truffaut) investiga a estranha aparição de um grupo de aviões desaparecidos há muitos anos, enquanto Jillian Guiler (Melinda Dillon) ganha destaque na mídia após afirmar que seu pequeno filho Barry (Cary Guffey) foi levado por uma nave espacial.

Com sua costumeira habilidade na construção de narrativas que misturam eventos grandiosos com dramas extremamente pessoais, Spielberg e seu montador Michael Kahn conduzem as três linhas narrativas de “Contatos Imediatos” num ritmo agradável, priorizando a trajetória de Roy sem jamais tornar os segmentos que acompanham Lacombe ou Jillian menos interessantes. Assim como ocorria em “Tubarão” (e, posteriormente, na maioria dos filmes de Spielberg), a ausência da figura paterna é um tema marcante, surgindo primeiro na casa do menino Barry, criado por uma mãe forte e solitária, e depois na própria trajetória de Roy, que larga mulher e filhos para ir atrás dos OVNI’s e acaba embarcando no disco voador com os extraterrestres. Apesar disto, este não será o tema central do longa, que concentra sua força nas imagens marcantes conseguidas com efeitos visuais extremamente eficientes e na sensação de encanto das pessoas diante do que veem – algo que o diretor faz questão de ressaltar em diversos momentos com planos que realçam o olhar de admiração dos personagens.

Efeitos visuais extremamente eficientesEncanto das pessoasOlhar de admiraçãoPara isto, Spielberg capricha na composição dos planos, como fica evidente desde o impressionante plano geral que mostra toda a cidade escurecendo após a queda da energia elétrica e, logicamente, no deslumbrante ato final. Além disso, o diretor usa sua câmera com habilidade para criar suspense, por exemplo, na cena em que a luz do farol de um carro atrás da caminhonete de Roy se movimenta para o lado quando este o ultrapassa e, minutos depois, outra luz também se movimenta, só que desta vez para cima, indicando para a plateia a presença de algo estranho. Repare ainda como o diretor sabe trabalhar muito bem a expectativa do espectador na cena em que acompanhamos os controladores de voo captando a presença dos OVNI’s e, especialmente, quando nos coloca dentro da casa junto com Barry e sua mãe, criando uma cena absolutamente tensa que culmina no impressionante plano em que ela sai correndo pra fora e vê as naves sumindo no horizonte distante com seu filho.

Cidade escurecendoCarro atrás da caminhonete de RoyDentro da casaObviamente, o diretor de fotografia Vilmos Zsigmond tem participação fundamental neste processo, trabalhando na maior parte do tempo com paletas claras e cenas diurnas que criam um contraste interessante com o espetacular visual do ato final, que se passa praticamente o tempo todo à noite, num cenário perfeito para o festival de cores e luzes que toma conta da tela após a chegada das espaçonaves. Quem também dá um show em “Contatos Imediatos” é o design de som, que se destaca logo de cara ao captar com precisão o barulho do vento e as vozes dos personagens na sequência que abre o longa no México. E finalmente, a trilha sonora do mestre John Williams é responsável por criar as cinco notas icônicas que estabelecem contato com os extraterrestres, além de servir também para aumentar a tensão em alguns momentos pontuais, como na chegada dos ET’s à casa de Barry.

Paletas clarasFestival de cores e luzesCinco notas icônicasEm outro momento bem conduzido por Spielberg, acompanhamos Roy conversando com a esposa por telefone e, no segundo plano, a imagem da montanha Devil’s Tower na televisão – e o próprio movimento de câmera que revela a montanha real é belíssimo. No entanto, “Contatos Imediatos” não se resume apenas ao apuro técnico, já que o diretor é competente também ao extrair boas atuações de praticamente todo o elenco, a começar pelo próprio Richard Dreyfuss, que demonstra a determinação do personagem através de suas expressões marcantes, evidenciando também o quanto sua vida foi afetada por aquele evento incomum – algo que sua esposa e seus filhos não demoram a perceber, o que os leva a deixar a casa (com razão) após um surto de loucura do pai. E se a esposa de Roy vivida por Teri Garr não ganha grande destaque, Melinda Dillon quase rouba a cena com seu desempenho envolvente na pele da desesperada mãe de Barry, comovendo pela maneira determinada com que parte em busca do filho.

Roy conversando com a esposa por telefoneExpressões marcantesDesesperada mãe de BarryApesar de serem impulsionados por motivações distintas (ela vai atrás do filho enquanto ele se distancia deles), Jillian e Roy compartilham a obstinação por algo que eles sequer têm certeza que vão conseguir encontrar, o que justifica a identificação dos personagens e, por consequência, conquista também a empatia da plateia. Assim como eles, nós não sabemos exatamente aonde a narrativa irá nos levar, mas aguardamos ansiosamente pelo contato que dá nome ao filme.

Inteligente, Spielberg constrói o clímax cuidadosamente, criando uma atmosfera perfeita e fazendo com que a plateia aguarde ansiosamente pelo contato com os extraterrestres através de planos belíssimos como aquele que mostra a montanha preparada para a chegada dos discos voadores. Quando o aguardado momento chega, o diretor segue uma linha diferente da maioria das obras relacionadas à invasão de alienígenas, nos apresentando seres pacíficos e interessados somente em comunicar-se com a raça humana. E isto acontece de maneira mágica, num espetáculo de luzes e sons que dificilmente é apagado da memória do espectador. Neste instante, os olhares fascinados dos personagens se confundem com os da própria plateia, maravilhada diante de tamanho espetáculo visual.

Montanha preparadaLuzes e sonsOlhares fascinadosConfirmando sua habilidade ímpar de construir narrativas absolutamente cativantes, Steven Spielberg se consolidava como um diretor com rara capacidade de agradar público e crítica, narrando histórias visualmente marcantes sem jamais deixar de se preocupar com o lado humano de seus personagens. Envolvente e espetaculoso, “Contatos Imediatos do Terceiro Grau” é um trabalho memorável na carreira de Spielberg, o que não deixa de ser um feito, considerando a filmografia deste aclamado diretor.

Contatos Imediatos do Terceiro Grau foto 2Texto publicado em 14 de Maio de 2013 por Roberto Siqueira

O HOMEM QUE AMAVA AS MULHERES (1977)

(L’ Homme qui Aimait les Femmes)

 

Filmes em Geral #14

Dirigido por François Truffaut.

Elenco: Charles Denner, Brigitte Fossey, Nathalie Baye, Sabine Glaser, Valérie Bonnier, Jean Dasté, Leslie Caron, Geneviève Fontanel, Nelly Borgeaud e Henri Agel.

Roteiro: François Truffaut, Suzanne Schiffman e Michel Fermaud.

Produção: Marcel Berbert e François Truffaut.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

François Truffaut era um homem apaixonado pelas mulheres. Famoso por se apaixonar por muitas atrizes com quem trabalhava, o grande diretor francês tinha também uma mágoa pela forma como sua mãe o tratou na infância, algo que ele fez questão de ressaltar em alguns de seus filmes. Neste delicioso “O homem que amava as mulheres”, Truffaut junta as duas coisas para celebrar o seu amor pela figura da mulher e, através do olhar de seu personagem principal, estudar o amor de maneira filosófica. O resultado é uma bela e merecida homenagem à beleza feminina.

Após inúmeros casos e paixões, o conquistador de mulheres Bertrand (Charles Denner) decide escrever uma autobiografia sobre sua vida amorosa, cobrindo desde a sua primeira relação sexual num bordel, ainda quando era muito jovem, até a sua fase atual, já na casa dos 40 anos.

“O homem que amava as mulheres” tem início durante um enterro, onde diversas mulheres, de todos os tipos e idades, seguem um caixão. Não é preciso muito tempo para que o espectador identifique quem está lá dentro. Através da voz de uma de suas amantes, a bela Geneviève Bigey (Brigitte Fossey), somos levados a conhecer o passado deste misterioso homem. E é através de cada palavra e pensamento deste conquistador chamado Bertrand que o longa dirigido por Truffaut exala sensualidade. Esta sensualidade, misturada a um erotismo insinuado, era uma das marcas da nouvelle vague, que destacava como deusas absolutas as musas de sua época. E apesar de estar distante do período da nouvelle vague, “O homem que amava as mulheres” bebe direto desta fonte, servindo também como poderosa ferramenta para compreender o cinema de Truffaut, que refletia nas telas a sua própria personalidade. Seus personagens eram um reflexo do próprio diretor desde seu filme de estréia e aqui mais uma vez isto se repete.

Tecnicamente, “O homem que amava as mulheres” não chega perto dos revolucionários filmes da nouvelle vague. Apesar disso, destaca-se a direção de fotografia de Néstor Almendros, que cria um visual colorido, refletindo a empolgação de Bertrand ao ver todas aquelas mulheres andando pela rua. Repare como Almendros muda para o preto e branco durante os flashbacks, refletindo a tristeza do personagem naquele período de sua vida. Observe também como na cena do aeroporto, enquanto Bertrand olha para a sala de espera cheia de homens o visual é pouco colorido, ao passo em que quando ele olha para as pernas femininas a tela se enche de cores, graças também ao auxílio dos figurinos de Monique Dury. Ainda na parte técnica, a montagem dinâmica de Martine Barraqué também colabora para que o filme tenha um ritmo leve e delicioso, reforçado pela trilha sonora de Patrice Mestral.

Além da costumeira elegância na direção, sempre dando enorme importância ao desenvolvimento dos personagens, Truffaut também é o responsável, ao lado de Suzanne Schiffman e Michel Fermaud, pelo maravilhoso roteiro. Repleto de diálogos interessantes e reflexões a respeito da natureza masculina, o roteiro é praticamente um poema que exalta o fascínio dos homens pelas mulheres, como fica evidente no belíssimo momento em que Bertrand narra a sensação que sente ao ver as mulheres andando pelas ruas, “desde que com um vestido ou saia que mexa no ritmo de seus passos”. Truffaut escapa ainda do tom melancólico que a vida solitária de Bertrand poderia provocar através dos alívios cômicos, como as deliciosas conversas entre ele e a moça que telefona todas as manhãs para acordá-lo. Nem todo homem é como Bertrand, mas todos podem admirar sua devoção pela figura feminina. E apesar de muitos se identificarem com o jeito mulherengo do personagem, é possível também que homens “monogâmicos” apreciem as suas palavras, afinal de contas, Bertrand nada mais é do que um completo apaixonado pela mulher em sua essência, com a diferença de que, como disse Geneviève Bigey (interpretada com charme e sensualidade pela bela Brigitte Fossey) em sua reflexão final, ele não encontrou em uma única mulher tudo o que procurava. Talvez essa fosse sua maior tristeza.

Vale observar um truque do diretor que é vital para entender a personalidade de Bertrand. Em um dos flashbacks de sua infância, o homem lembra o jeito apressado de uma prostituta de caminhar – segundo ele buscando enganar os clientes – e em seguida lembra que sua mãe caminhava exatamente da mesma forma. Repare como as duas mulheres são interpretadas pela mesma atriz. Está aí a chave para entender o personagem. O complexo de Édipo nunca foi tão trágico como neste caso. Repetindo uma das características de seus filmes, Truffaut busca inspiração em sua própria história de vida, pois assim como Bertrand, ele também tinha problemas de relacionamento com sua mãe (algo que ficou evidente desde “Os Incompreendidos”) e é provável que esta relação conturbada com sua mãe tenha gerado o seu amor incondicional pelas mulheres (“Minha mãe costumava andar seminua na minha frente, não para me provocar, mas para ter a impressão de que eu não existia”, diz Bertrand).

Fica evidente, portanto, que Bertrand pode ser considerado mais uma versão cinematográfica de seu diretor. Ele vive para conquistar as mulheres e vê a beleza existente em cada uma delas. “Algumas são tão belas vistas por trás que hesito em ultrapassá-las, temendo ficar decepcionado. Porém, nunca me desaponto. Quando elas não me agradam de frente, me sinto aliviado de certa maneira; pois, infelizmente, não posso ter todas elas.”, reflete. E por mais cafajeste que possa parecer, o personagem conquista o espectador com sua maneira simples e sincera de ver a situação. “Mas o que têm todas essas mulheres? O que têm a mais do que todas as outras que conheço? Bem, justamente, o que têm a mais é isso: elas ainda me são desconhecidas”. Esta frase resume Bertrand perfeitamente. Ele não quer compromisso com uma mulher, ele quer todas elas. E se mesmo com sua “cafajestagem” Bertrand conquista a empatia do espectador é também graças à boa atuação de Charles Denner, que demonstra a inquietação e os desejos do conquistador com competência, além de emocionar o espectador no único momento em que parece sofrer de verdade por uma mulher, quando reencontra uma amante em Paris enquanto negociava a divulgação de seu livro. O dilema do personagem é tragicamente belo. Ao mesmo tempo em que parece amar toda mulher que aparece em sua frente, Bertrand, na realidade, se sente incompleto por não conseguir encontrar um amor de verdade.

“O homem que amava as mulheres” pode até ser acusado de ser um filme machista. Mas esta acusação seria, no mínimo, de uma injustiça sem tamanho. A história do “conquistador” Bertrand, na realidade, revela a profunda admiração e o amor infindável que Truffaut nutria pelas mulheres. Através das palavras e pensamentos do homem galanteador, o diretor revela parte de sua personalidade e entrega um filme impecável. Por tudo isto, podemos dizer que, além de amar profundamente as mulheres, Truffaut também amava perdidamente o cinema.

Texto publicado em 25 de Setembro de 2010 por Roberto Siqueira

JULES E JIM – UMA MULHER PARA DOIS (1964)

(Jules et Jim) 

 

Filmes em Geral #11

 

Dirigido por François Truffaut.

Elenco: Jeanne Moreau, Oskar Werner, Henri Serre, Vanna Urbino, Boris Bassiak, Anny Nelsen, Sabine Haudepin, Marie Dubois, Christiane Wagner e Michel Subor (Narrador).

Roteiro: François Truffaut e Jean Gruault, baseado em livro de Henri-Pierre Roché.

Produção: Marcel Berbert.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

A ousadia temática da narrativa, característica da nouvelle vague, aparece com força total neste delicioso “Jules e Jim”, dirigido com maestria por François Truffaut, que narra à história de um divertido triangulo amoroso envolvendo uma mulher e dois melhores amigos. Novamente mostrando seu enorme talento no desenvolvimento dos personagens, Truffaut nos mostra as diferentes formas de amar e o nosso constante medo de perder as pessoas que amamos.

O germânico Jules (Oskar Werner) e o francês Jim (Henri Serre), dois grandes amigos que vivem em Paris, conhecem a extrovertida Catherine (Jeanne Moreau) e passam a conviver diariamente com ela, vivendo momentos inesquecíveis que acabam resultando no interesse de ambos pela garota. Só que Jules pede ao amigo Jim que não interfira e acaba se casando com Catherine. Mas após lutarem na guerra, ambos retornam para viver um curioso triangulo amoroso.

François Truffaut confirma novamente seu talento nesta adaptação para o cinema da obra literária de Henri-Pierre Roche, que exemplifica perfeitamente o espírito libertário dos jovens nos anos 60. O roteiro do próprio Truffaut, auxiliado por Jean Gruault, alterna muito bem entre a linguagem despojada, quando os personagens estão felizes, e o diálogo mais ácido, quando acontecem os conflitos, além de manter uma narração em off que remete diretamente à obra literária que originou o longa. Em “Jules e Jim”, o diretor/roteirista analisa com carinho os diversos tipos de amor e amizade que todo ser humano pode ter ao longo da vida, mostrando que em algumas vezes o sentimento de amizade pode ser até mesmo mais forte que o próprio amor. Afinal de contas, Jules e Jim, por mais que sentissem ciúmes de Catherine, nunca entraram em conflito por respeitarem demais a amizade que tinham. Já Catherine, ainda que tivesse o amor de ambos, não sabia lidar com o ciúme quando Jim se relacionava com Gilberte (Vanna Urbino), por exemplo. E apesar de todos eles demonstrarem insegurança e medo em determinados momentos, Catherine claramente era a que tinha mais dificuldade para lidar com este sentimento.

Truffaut também ousa um pouco mais na direção do que em seu excepcional filme de estréia, criando planos ousados, como aquele em que a tela fica escura e podemos ver apenas um quadro focando um dos personagens, além de conduzir com fluidez a narrativa, graças ao auxílio da boa montagem de Claudine Bouché, que faz pequenos cortes durante algumas cenas, quebrando a sensação de continuidade e dando agilidade ao longa. Também merecem destaque a fotografia leve de Raoul Coutard e a deliciosa trilha sonora de Georges Delerue, que reforçam o clima descontraído do longa.

Mas se “Jules e Jim” é corajoso tecnicamente, utilizando inclusive imagens congeladas e telas dividas (algo pouco comum na época), sua ousadia temática é ainda superior, pois falar abertamente de um triângulo amoroso não é algo fácil nem mesmo nos dias de hoje. E para que esta diferente relação funcione junto ao espectador, Truffaut conta com a estupenda atuação do trio principal formado por Jeanne Moreau, Oskar Werner e Henri Serre. Catherine, interpretada com charme e competência por Moreau, é uma mulher decidida, ousada, provocativa e sensual – o que certamente provocou um choque nos conservadores da época. Extremamente instável emocionalmente, ela simboliza perfeitamente a mensagem principal de “Jules e Jim”, pois como dizia o próprio Truffaut, o longa queria celebrar a intensidade das paixões mais incendiárias, e Catherine representa perfeitamente esta montanha russa de sentimentos graças ao bom desempenho de Moreau. Como bem define Jules em certo momento, “ela é uma força da natureza”. Personagem marcante, pode até ter provocado diretamente os mais conservadores, mas seu comportamento foi de encontro aos anseios das jovens européias e norte-americanas da época, determinadas a mudar sua posição na sociedade com seu espírito libertário e a mensagem do amor livre, tão fortes nos anos sessenta. Pra fechar com chave de ouro sua grande atuação, a belíssima música cantada por Catherine em certo momento fica ainda mais encantadora graças ao carisma de Jeanne Moreau. Já a dupla formada pelo germânico Jules e o francês Jim consegue criar uma empatia singular graças à boa atuação de Oskar Werner e Henri Serre, fazendo com que o espectador acredite na amizade entre eles, o que é determinante para o sucesso da narrativa. Por mais que amassem Catherine, era a amizade que um nutria pelo outro que eles mais prezavam e nada poderia fazer este sentimento se abalar. Não é sempre, afinal, que vemos um homem pedir a outro que se case com sua mulher para vê-la feliz (o que revela também um amor altruísta da parte de Jules). E é tocante notar que nem mesmo o horror da guerra esfriou o sentimento de ambos, que mais se preocupavam em não matar um ao outro nos campos de batalha do que em tentar sobreviver àquele inferno.

Em “Jules e Jim”, Truffaut aborda um tema difícil e polêmico, conseguindo trazer o espectador pra dentro da trama com extrema habilidade e sensibilidade. Sem julgar os personagens, criamos empatia pelo trio e torcemos pelo improvável sucesso daquela relação. Somos levados pela narrativa e até mesmo tocados por ela em diversos momentos, como na reveladora conversa entre Catherine e Jim numa bela noite pelos jardins. Amar não é fácil, e compreender a pessoa que amamos é ainda mais difícil. Jules e Jim conseguiram entender perfeitamente este complicado sentimento, mas Catherine infelizmente não soube lidar com a perda e seu trágico fim era uma conseqüência até mesmo previsível. Pena que Jim não pensava desta maneira.

François Truffaut conduz com segurança este divertido “Jules e Jim”, abordando com sua costumeira sensibilidade um tema realmente complexo. O amor, a amizade e o medo que todo ser humano tem de perdê-los é o fio condutor de uma narrativa ágil, marcante e, graças também ao bom desempenho do elenco, inesquecível.

Texto publicado em 22 de Setembro de 2010 por Roberto Siqueira

OS INCOMPREENDIDOS (1959)

(Les Quatre Cents Coups)

 

Filmes em Geral #9

Dirigido por François Truffaut.

Elenco: Jean-Pierre Léaud, Claire Maurier, Albert Rémy, Guy Decomble, Georges Flamant, Patrick Auffay, Richard Kanayan, Yvonne Claudie, Robert Beauvais, Jacques Monod, Pierre Repp e Henri Virlojeux.

Roteiro: François Truffaut e Marcel Moussy, baseado em história de François Truffaut.

Produção: François Truffaut.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

François Truffaut estarreceu a platéia do festival de Cannes quando lançou este impressionante “Os Incompreendidos”, considerado o marco inicial da nouvelle vague, narrando à história de um jovem adolescente, que tranquilamente pode ser interpretada como a sua própria história, apesar dele não gostar de falar sobre isto. Com incrível talento, o diretor consegue conquistar o espectador de forma genuína e, ainda hoje, mais de cinqüenta anos depois, seu belíssimo filme de estréia ainda é capaz de emocionar.

Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud) é um aluno disperso, rebelde, que prefere ficar perambulando pelas ruas de Paris a ir para a escola, o que certamente é reflexo da relação conturbada que tem com sua mãe Gilberte Doinel (Claire Maurier) e com seu pai não-biológico Julien (Albert Rémy). Após sucessivos problemas na escola e em seu lar, o adolescente resolve fugir de casa e complica sua vida de vez quando realiza pequenos furtos pela cidade.

A semelhança entre as histórias de Antoine Doinel e François Truffaut não é mera coincidência. Na realidade, o personagem é uma espécie de alter-ego do diretor francês, que voltaria a utilizar Antoine em outros filmes durante a carreira. Responsável, ao lado de Marcel Moussy, pelo ótimo roteiro e pela produção de “Os Incompreendidos”, Truffaut canalizou sua triste história de vida para brindar os cinéfilos com este presente de primeira qualidade. Filmado nas ruas de Paris com realismo e enorme sensibilidade, o longa tem o mérito de olhar para a adolescência com carinho, sem julgamentos, e consegue exibir em celulóide muitas das complicações costumeiras desta difícil fase de nossas vidas.

“Os Incompreendidos” é um filme vigoroso e sua impressionante jovialidade se deve à excelente direção de Truffaut, que filma a adolescência com um olhar carinhoso e honesto, é verdade, mas também com extrema ousadia para a época. Como dito, em sua primeira experiência atrás das câmeras (antes era crítico da revista “Cahiers Du Cinéma”), levou às telas a sua própria história, pois assim como Doinel, o diretor também tinha problemas na escola, fazia pequenos furtos em Paris e ficou preso num reformatório para delinqüentes. Não é difícil, portanto, entender porque o talentoso diretor conduz a narrativa com tamanha segurança e conhecimento de causa, sem jamais glorificar ou julgar as atitudes do jovem Doinel. Truffaut consegue ainda o mérito de evitar o melodrama quando este poderia se fazer presente, além de evitar exponenciar os potenciais momentos cômicos do longa. Em outras palavras, o diretor acerta o tom da narrativa com exatidão. Sua direção também é discreta, sem enquadramentos ou movimentos de câmera muito estilizados, como costumava fazer com propriedade seu colega Jean-Luc Godard. Ainda assim, em alguns momentos o diretor nos brinda com imagens belíssimas, como a cena em que os garotos vão saindo da fila indiana em que praticam exercício pelas ruas de Paris e se perdendo nas ruelas da cidade, matando a aula sem que o professor percebesse. A escolha pela câmera afastada transforma uma cena que poderia soar engraçada em algo poético, distante e sensivelmente mais belo, graças à acertada escolha do diretor.

Tecnicamente, Truffaut conta com o auxilio da montagem de Marie-Josèphe Yoyotte para alternar entre o ritmo pungente das aventuras do garoto e os momentos contemplativos, de pura reflexão, como na cena em que ele, deitado na cama na escuridão de seu quarto, escuta a discussão dos pais ou no momento em que Doinel vaga pela noite à procura de algo para comer ou beber. Aliás, Doinel solitário tomando leite às pressas para que ninguém o capture é um dos momentos tocantes do filme. A trilha sonora nostálgica de Jean Constantin reforça o clima melancólico, enquanto a fotografia obscura (direção de Henri Decaë) reflete a visão angustiada de Doinel diante daquele mundo tão hostil. Merece destaque também a boa direção de arte de Bernard Evein, que mostra o contraste do lado belo de Paris, com sua imponente torre e seu ar glamoroso, e suas ruas degradadas e pouco convidativas, por onde Doinel caminha solitário durante a noite em que foge de casa, por exemplo.

Antoine Doinel não é uma pessoa necessariamente boa ou má. É apenas um jovem, com sonhos, desejos, pensamentos e reflexões, e que pouco se adapta aos métodos tradicionais de ensino. Também não se sente confortável em seu lar, onde convive entre sorrisos e discussões com seus complicados “pais”, interpretados com eficiência por Claire Maurier e Albert Rémy. E se pais está entre parênteses, não é apenas pelo fato de Julien não ser o pai biológico de Doinel, mas é também por causa da falta de atenção destes para com o garoto. Garoto que é interpretado de maneira espetacular por Jean-Pierre Léaud, que transmite toda revolta misturada com ingenuidade do jovem Doinel – ingenuidade esta que fica evidente com a desculpa que ele inventa para suas seguidas faltas na escola. Vale destacar, entre tantos momentos brilhantes de Léaud, seu sorriso incontido quando a psicóloga pergunta se ele já teve experiência com mulheres. Aliás, seu desempenho durante todo este diálogo é digno de aplausos, demonstrando com destreza a simplicidade do jovem, que não enxergava nada de errado no que fazia. Doinel era apenas um adolescente que, como bem diz a feliz tradução do filme em português, não era compreendido pelos adultos com quem convivia.

O último plano de “Os Incompreendidos” reflete muito bem a solidão que o adolescente sente em muitos momentos de sua vida. Afinal de contas, a adolescência é uma fase bastante complicada, pois já não somos mais crianças para poder viver praticamente sem responsabilidades, mas tampouco somos adultos para ter completa autonomia e decidir nossos caminhos. Além disso, não é nada fácil ter que começar a identificar seu lugar na sociedade, pensar no futuro, começar a assumir responsabilidades e tomar decisões determinantes para o resto de sua vida. Por isso, entender perfeitamente os dilemas de Doinel e mostrá-los sem máscara e sem julgamentos talvez seja o maior dos muitos méritos de Truffaut neste belíssimo filme.

Texto publicado em 20 de Setembro de 2010 por Roberto Siqueira