KALIFORNIA (1993)

(Kalifornia)

 

Videoteca do Beto #95

Dirigido por Dominic Sena.

Elenco: Brad Pitt, Juliette Lewis, David Duchovny, Michelle Forbes, John Zarchen, David Rose, Patricia Sill, David Milford e Catherine Larson.

Roteiro: Tim Metcalfe, baseado em história de Stephen Levy e Tim Metcalfe.

Produção: Steve Golin, Aristides McGarry e Sigurjon Sighvatsson.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

O que difere uma pessoa normal de um assassino? Segundo “Kalifornia”, longa dirigido por Dominic Sena, a grande diferença entre os assassinos em série e uma pessoa comum não está no ato de matar em si, já que qualquer um pode, agindo em legitima defesa, acabar tirando a vida de alguém. Entretanto, o que nos torna “humanos” é justamente o remorso que corrói qualquer um que tenha o mínimo de sensibilidade e respeito pela vida, justamente o que não acontece com estes assassinos.

O casal Brian Kessler (David Duchovny) e Carrie Laughlin (Michelle Forbes) decide viajar até a Califórnia, passando – e fotografando – por lugares onde aconteceram famosos crimes no EUA, como forma de estudar os assassinos em série e conseguir divulgar um livro a respeito. Sem dinheiro, eles decidem convidar outro casal para dividir as despesas da viagem e acabam conhecendo Adele (Juliette Lewis) e Early Grayce (Brad Pitt). Só que na viagem, Brian e Carrie descobrirão que estão muito mais próximos de um assassino em série do que poderiam imaginar.

Como é de se esperar num “road-movie”, “Kalifornia” tem um visual bastante interessante, que explora muito bem a beleza das paisagens que cercam as estradas norte-americanas. Mas o visual requintado do longa não se resume apenas às belas paisagens, como fica claro logo no inicio da narrativa, quando a chuva e a noite conferem um aspecto sombrio à primeira aparição do grande vilão do longa. Além disso, o diretor Dominic Sena demonstra grande habilidade na criação de planos absolutamente sombrios, como quando Brian e Carrie tiram fotos num velho galpão. Sena emprega ainda diversos travellings que tornam sua direção ainda mais elegante, especialmente aqueles que revelam as mortes do dono do terreno em que Early morava e de Adele. Em outro momento, também será um travelling que revelará Early encostado na parede escutando Brian e Carrie, que transam no quarto ao lado. E além dos elegantes movimentos de câmera, o diretor, auxiliado pelo diretor de fotografia Bojan Bazelli, capta muito bem a beleza daqueles dias ensolarados, que contrasta muito bem com as citadas cenas noturnas e sombrias. Conduzindo a narrativa num ritmo dinâmico e envolvente, Sena ainda acerta a mão em praticamente todas as cenas tensas do filme, como quando Carrie descobre a natureza assassina de Early num posto, a seqüência que se passa na casa de um casal de velinhos e o clímax da narrativa, numa abandonada estação de geração de energia.

Mas se “Kalifornia” é um filme visualmente belo, o mérito também deve ser dado ao excelente trabalho do citado Bojan Bazelli, que balanceia muito bem as cenas iluminadas da estrada com os momentos mais sombrios, como a introdução de Early sob forte chuva e raios, que revela também seu olhar psicótico após provocar um terrível acidente, criando uma imagem emblemática e perturbadora. Já a montagem de Martin Hunter, além de contribuir para o ritmo envolvente da narrativa, faz elegantes transições, como quando a imagem do mapa dos Estados Unidos se transforma na imagem do carro que levará os dois casais pelas estradas até a Califórnia. E se existe uma clara diferença entre os casais que compartilham a viagem, os figurinos de Kelle Kutsugeras ajudam a ilustrar esta diferença, com as roupas modernas de Brian e Carrie se contrapondo as roupas cafonas de Early e Adele, assim como a direção de arte de Jeff Mann evidencia esta diferença através das moradias de cada casal, com o bagunçado trailer de Early se contrapondo ao organizado apartamento de Brian. Finalmente, a trilha sonora de Carter Burwell alterna do tom sombrio e melódico para o rock pesado, ilustrando muito bem a mente perturbada de Early.

Escrito por Tim Metcalfe, baseado em história de Stephen Levy e Tim Metcalfe, “Kalifornia” faz um interessante estudo não apenas da mente de um assassino em série, mas da mente de uma pessoa fascinada por este tipo de criminoso, algo bastante comum nos Estados Unidos (como a grande quantidade de filmes e livros que abordam o tema pode comprovar). Só que ao decidir viajar para estudar os locais em que famosos crimes aconteceram, Brian não imaginava que estaria tão perto de seu tema de estudo, fazendo como uma das famílias que visitou. Assim como os Novak, Brian e Carrie acolheram um assassino entre eles. Mas, ao contrário de Brian, Carrie demonstra seu incomodo com a presença de Early logo no primeiro encontro dos casais, que também provoca desconforto em Adele, num belo exemplo da chamada “intuição feminina” (repare o olhar de Carrie para Early pelo retrovisor do carro, que teria reflexo em outro momento, quando ela também observa de longe o assassino).

Aliás, o casal Brian e Carrie consegue estabelecer boa química em cena, o que é mérito de David Duchovny e Michelle Forbes. Enquanto Duchovny faz de seu Brian alguém tranqüilo, centrado e que nutre um curioso fascínio pelos assassinos em série (algo que o ator retrata bem na maneira como reage aos impulsos de Early, como quando ele briga num bar ou quando começa a atirar num galpão abandonado), Forbes vive Carrie com muita sensualidade, mas demonstra freqüentemente sua preocupação com a presença de Early. Exatamente por isso, ela não consegue se soltar, ao contrário de Brian, que chega a sair com Early e tomar todas, como se fossem grandes amigos. Aliás, a forma como a relação entre os dois casais se desenvolve também é verossímil, com as diferenças sendo lentamente amenizadas durante a viagem enquanto eles se adaptam. Repare, por exemplo, as diferentes reações das mulheres quando os homens brincam de atirar num galpão. Enquanto Carrie se mostra claramente assustada, Adele diz que aquilo é “coisa de garotos” e brinca com seu ioiô. Após este momento, Carrie explode e ameaça Brian, saindo correndo e se deparando com Adele e Early transando no carro, somente para parar e novamente observar o casal, desta vez tirando fotos também. Mas quando Early percebe e olha assustadoramente pra ela, Carrie sai correndo novamente, revelando que ela até tinha alguma curiosidade, mas, ao contrário de Brian, não tinha coragem de encarar este sentimento.

Assim como Brian e Carrie, Early e Adele também demonstram boa química, como podemos notar quando Early cava um buraco enquanto conversa com Adele sobre seus planos para o futuro. Com muitos problemas para pagar o aluguel, eles vivem em pé de guerra com o dono do terreno, o que levaria Early a resolver o problema a sua maneira – claro, sem deixar que Adele perceba o que aconteceu. De certa maneira, os dois demonstram uma ingenuidade que explica a falta de preocupação de Brian, como quando Adele pergunta se “carma” é uma palavra francesa ou quando Brian pergunta onde estão os garfos e facas ao abrir sua comida chinesa. Esta ingenuidade de Adele é reforçada pela fala pausada de Juliette Lewis, que demonstra muito bem a enorme dificuldade que a personagem tem para desenvolver o raciocínio. Além disso, Lewis se destaca em pequenos gestos, como quando demonstra a decepção de Adele com a resposta de Carrie à sua sugestão de viver junto com eles em Los Angelesou quando conta sem querer que Early já foi preso e tenta disfarçar a besteira que fez olhando levemente pra cima. Certamente, Lewis tem a melhor atuação do longa, compondo muito bem a personagem e trabalhando em detalhes que ajudam a entendê-la melhor, além de comover o espectador no momento em que Adelerevela o estupro que sofreu com 13 anos, provocando espanto em Carrie (e o close realça muito bem a atuação tanto de Lewis como de Forbes neste momento). Aliás, o diretor também ajuda a compreender a personalidade de Adele através dos planos que destacam os cactos, como quando eles partem para a viagem, deixando um cacto jogado no lixo. Esta fixação por cactos funciona como uma bela metáfora dela própria, pois, assim como Adele, mesmo na pior das situações os cactos conseguem sobreviver.

Fechando o elenco, Brad Pitt tem uma grande atuação na pele do assassino Early, exibindo uma frieza assustadora por baixo daquela carapuça de homem caipira. Capaz de escovar tranquilamente os dentes após assassinar um homem num banheiro de um posto de gasolina, Early é o tipo de assassino para quem matar um ser humano é exatamente igual a matar um inseto, como a barata que ele joga no fogo no inicio do filme. Mas, apesar de psicótico, ele tem consciência de que precisa manter sua imagem diante de Adele, talvez por gostar dela ou até mesmo para ter alguém que possa defendê-lo das constantes acusações que recebe. Exatamente por isso, Adele se desespera ao ver Early matando alguém pela primeira vez e destruindo sua imagem diante dela. E apesar de às vezes se tornar um pouco caricato, Pitt compõe muito bem o personagem com sua fala diferenciada e seus “tiques”, como o barulho que faz com a boca, saindo-se bem ainda nas cenas que exigem força física, como quando arrebenta um homem num bar e evidencia seu instinto assassino. Além disso, o ator destaca-se também quando Early conta sobre “as portas” logo após sair do bar e quando questiona Brian sobre seu grande projeto, perguntando como ele quer escrever sobre algo que não conhece. Finalmente, vale registrar que “Kalifornia” não tenta justificar os atos de Early como sendo resultado de um trauma da infância, apesar de indicar algumas vezes que ele teve problemas com seu pai.

Quando o grupo para num posto durante a noite após a explosão de Carrie contra Brian, a chuva e os raios indicam o futuro sombrio de todos eles. Despretensiosamente, Carrie para pra olhar as noticias num telejornal e descobre que Early é um assassino procurado pela polícia, dando inicio a uma das muitas cenas tensas de “Kalifornia”, que resultará em outro assassinato e novamente nos apresentará a maneira natural com que o assassino lida com esta situação. Aliás, vale notar também como Early não explode quando sofre uma agressão de Adele, já na casa do casal de velinhos, mas um travelling revelará que Adele foi assassinada, confirmando sua frieza segundos depois dele levar Carrie no carro dizendo que precisa de uma nova mulher, nos levando também ao clímax da narrativa, que se passa num local árido, refletindo em suas cores sem vida a maneira deprimente que a viagem terminaria. Iniciando num ritmo bastante lento, o clímax é bruscamente alterado quando Early e Brian começam a brigar, numa cena violenta que finalmente levará Brian a matar alguém e conhecer qual é a sensação, como o close de Sena faz questão de ressaltar, durando alguns segundos na tela. Como citado no livro do próprio Brian em outro local, “a vítima se tornou o criminoso”. Só que a diferença é que Brian não esqueceria aquele momento tão cedo, sendo corroído pelo remorso.

Com um elenco afinado e uma direção bastante elegante, “Kalifornia” trata da obsessão norte-americana pelos assassinos em série, mostrando que jamais poderemos identificar e rotular alguém desta maneira pela aparência ou forma de agir. “Quando olhei Early nos olhos, não senti nada de diferente”, afirma Brian. Para ele, a diferença entre um assassino e uma pessoa comum só aparece depois do crime.

Texto publicado em 24 de Abril de 2011 por Roberto Siqueira

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