DIÁRIO DE UM ADOLESCENTE (1995)

(The Basketball Diaries)

 

Videoteca do Beto #127

Dirigido por Scott Kalvert.

Elenco: Leonardo DiCaprio, Lorraine Bracco, Mark Wahlberg, James Madio, Patrick McGaw, Juliette Lewis, Michael Imperioli e Ernie Hudson.

Roteiro: Bryan Goluboff, baseado em romance de Jim Carroll.

Produção: Liz Heller e John Bard Manulis.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Freqüentemente, Leonardo DiCaprio é acusado por cinéfilos desavisados de ser apenas um rostinho bonito que explodiu após o sucesso avassalador de Titanic, como se as excelentes escolhas que ele faz na carreira e o óbvio talento demonstrado não significassem nada. Entretanto, basta assistir aos filmes anteriores ao sucesso de James Cameron para constatar como ele já demonstrava talento muito antes da fama, como comprova este “Diário de um Adolescente”, drama inspirado na história real do músico e poeta Jim Carroll.

Escrito por Bryan Goluboff baseado em romance do próprio Carroll, “Diário de um Adolescente” mostra a trajetória nada agradável de seu protagonista (Leonardo DiCaprio) rumo ao fundo do poço, após conhecer e se encantar pelo mundo das drogas. Mas, se por um lado o envolvimento pessoal do verdadeiro Carroll confere peso à narrativa – os trechos narrados por DiCaprio, por exemplo, foram gravados pelo próprio poeta -, por outro a forma exagerada que estes fatos são apresentados distancia o longa da realidade, ainda que Goluboff acerte ao retratá-lo como um jovem talentoso, já que Carroll, além de liderar a banda “The Jim Carroll Band”, é responsável por seis livros que vão de poemas a autobiografias.

Responsável por captar em imagens esta alma romântica do protagonista e, ao mesmo tempo, retratar a degradação física e psíquica do personagem, Scott Kalvert se sai razoavelmente bem na direção, mas falha na condução de aspectos relevantes da narrativa que abordaremos em instantes. Entretanto, o diretor é competente na criação de cenas de impacto, especialmente quando retrata os efeitos do uso das drogas, errando em raros momentos como a pouco convincente briga dos garotos na saída de um restaurante. O diretor acerta também na condução dos jogos de basquete, imprimindo um bom ritmo e transmitindo o calor da partida com eficiência ao colocar a câmera na linha de visão dos jogadores – colabora também o bom design de som, que cria o ambiente ideal para os jogos. Caprichando também na estilização de muitas cenas, como no sonho do massacre na escola em que Jim entra em câmera lenta atirando nos alunos, o diretor reequilibra a balança ao exagerar em outros instantes, como no jogo de basquete embalado pela clássica “Riders on the Storm”, do The Doors, em que os garotos mal conseguem pegar na bola. E são justamente estes exageros que distanciam a mensagem transmitida pela narrativa da realidade e reduzem o impacto do filme sobre o espectador.

Kalvert conta também com o apoio técnico de sua equipe para transmitir algumas das sensações dos personagens, através das ruas sujas da escola e do bairro onde Jim vive que contrastam com as ruas limpas e largas que cercam o ginásio de esportes, ilustrando onde ele se sentia feliz (mérito da direção de arte de Christopher Nowak). Da mesma forma, a trilha sonora agitada de Graeme Revell, composta por algumas músicas da banda do próprio Jim, funciona em muitos momentos ao transmitir a adrenalina daqueles jovens, assim como a fotografia de David Phillips acerta ao iluminar os momentos iniciais, quando os garotos se divertem jogando basquete e pulando no rio, contrastando diretamente com a escuridão da fase decadente do grupo, notável após a morte de Bobby (Michael Imperioli), com a noite fria e chuvosa e os figurinos pesados dos personagens ilustrando a dor de Jim (figurinos de David C. Robinson). Aliás, o próprio diretor se encarrega de ilustrar esta diferença, filmando inicialmente com a câmera levemente inclinada em ângulo baixo enquanto acompanha os personagens saindo da escola, sob a luz do sol e embalados pela trilha agitada, transmitindo a sensação de poder que aqueles jovens estavam sentindo, o que contrasta com os closes freqüentes que realçam a degradação deles no terceiro ato e transmitem a sensação claustrofóbica pretendida por Kalvert.

Infelizmente, Kalvert e seu montador Dana Congdon erram ao acelerar demasiadamente a transformação de Jim de um garoto normal em viciado, apresentando uma droga após a outra rapidamente, como se quisessem levá-lo logo ao fundo do poço, o que soa forçado e pouco convincente (repare como ele salta da cocaína para a heroína e as drogas sintéticas em poucos minutos). Por outro lado, a montagem demonstra elegância em algumas transições, como quando a imagem da mãe de Jim é substituída pela imagem da virgem Maria. E se erra na velocidade com que conduz o processo de degradação de Jim, Kalvert acerta na maneira cadenciada com que desenvolve o relacionamento dos quatro amigos, aproximando aquele grupo do espectador e fazendo com que este se importe com eles.

Obviamente, esta aproximação conta também com o talento do ator responsável por viver o problemático protagonista. Com uma atuação eficiente e alguns momentos realmente marcantes, DiCaprio carrega o papel com facilidade, numa atuação que já dava sinais do grande ator que ele viria a ser – algo, aliás, que já havia acontecido antes em filmes como “Gilbert Grape, aprendiz de sonhador” e “O Despertar de um Homem”. Repare, por exemplo, sua convincente reação após usar cocaína, tremendo, fungando e mexendo a língua como quem tem a boca seca, mal conseguindo abrir os olhos enquanto procura por remédios no banheiro. Transitando com naturalidade do dócil Jim do início para o agressivo garoto que encerra o longa, o ator contorna os problemas causados pela citada transformação acelerada do personagem e convence no papel. Entre os momentos impressionantes de sua atuação, certamente a forte crise de abstinência na casa de Reggie (Ernie Hudson) e a comovente cena em que volta pra casa e implora pela ajuda da mãe (Lorraine Bracco) se destacam, com o ator transmitindo a dor do personagem de maneira muito convincente.

Também demonstrando talento precocemente, Mark Wahlberg convence como o valentão Mickey, o mais conturbado dos amigos de Jim, saindo-se bem em momentos difíceis como nas duas vezes em que eles precisam abandonar a cena de um crime – repare sua voz ofegante num bar após abandonar Pedro, indicando seu cansaço pela corrida e sua tensão. Vale destacar ainda a boa atuação de Ernie Hudson, que confere firmeza e carisma ao ex-viciado Reggie, e Juliette Lewis que, como sempre, se sai muito bem no papel de drogada, mas a redenção de sua Diane soa artificial, especialmente pela rapidez com que esta transformação acontece. Fechando o elenco, James Madio vive o inseguro Pedro e Patrick McGaw interpreta Neutron, o único dos quatro amigos que não se afunda nas drogas.

De certa maneira, “Diário de um Adolescente” tenta forçar uma mensagem moralista, falhando justamente por se distanciar da realidade através de alguns exageros. Por isso, dificilmente alguém evitará o mundo das drogas após assisti-lo. Em todo caso, se falha em seu propósito de “ensinar” os jovens sobre os perigos das drogas, ao menos sua narrativa tem força suficiente para nos envolver.

A cena final, com Jim falando diretamente para a câmera, comprova a intenção de doutrinar a platéia de “Diário de um Adolescente”, mas este excesso de moralismo não arruína completamente a experiência graças à ótima atuação do elenco e a profundidade dramática da história que o inspirou.

Texto publicado em 21 de Maio de 2012 por Roberto Siqueira

ASSASSINOS POR NATUREZA (1994)

(Natural Born Killers)

 

Videoteca do Beto #100

Dirigido por Oliver Stone.

Elenco: Woody Harrelson, Juliette Lewis, Tom Sizemore, Robert Downey Jr., Tommy Lee Jones, Rodney Dangerfield, Everett Quinton, Edie McClurg, Lanny Flaherty, O-Lan Jones, Richard Lineback, Kirk Baltz, Maria Pitillo, Melinda Renna, Dale Dye, Lorraine Farris, Steven Wright, Joe Grifasi, Robert Swan, Russell Means e Jared Harris.

Roteiro: David Veloz, Richard Rutowski e Oliver Stone, baseado em história de Quentin Tarantino.

Produção: Jane Hamsher, Don Murphy e Clayton Townse.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Oliver Stone já era bastante conhecido por provocar polêmicas quando decidiu lançar este excelente “Assassinos por Natureza”, uma ácida crítica a imprensa sensacionalista e ao culto aos assassinos em série, tão comuns nos Estados Unidos e em grande parte do mundo. E felizmente o diretor acertou novamente, entregando um filme empolgante, visualmente rico e que cumpre o seu propósito, mostrando com clareza (e uma dose de humor negro) os piores hábitos desta parte da imprensa (e de seu público) a partir da história de um perigoso casal de assassinos.

Após ser abusada constantemente pelo pai, a jovem Mallory (Juliette Lewis) conhece Mickey (Woody Harrelson) e se apaixona perdidamente. Cansado dos abusos sofridos por sua amada, Mickey assassina o pai e a mãe dela, com o auxílio da própria Mallory. Nascia ali uma dupla infernal de assassinos, que mataria dezenas de pessoas em poucas semanas pelas estradas empoeiradas dos Estados Unidos, sempre deixando alguém vivo no caminho para contar a história, o que, como eles previam, atrai a atenção da mídia sensacionalista, especialmente do repórter Wayne Gale (Robert Downey Jr.), que os coloca como atração principal do programa “American Maniacs”.

Não é novidade para ninguém que as tragédias (e os assassinatos fazem parte deste universo) exercem algum estranho fascínio na grande maioria das pessoas. Para constatar isto, basta observar o tumulto que se forma em volta de qualquer acidente no trânsito ou a grande audiência de telejornais especializados neste tipo de assunto. Mas existe uma considerável diferença entre noticiar uma tragédia (cumprindo o dever jornalístico) e explorá-la ao máximo, numa tentativa desesperada de conseguir audiência. Escrito por David Veloz, Richard Rutowski e Oliver Stone, baseado em história de Quentin Tarantino (ele mesmo!), “Assassinos por Natureza” é uma crítica feroz a esta parte da imprensa, que não mede esforços para explorar ao máximo os crimes que chamam a atenção do público, sem se importar com o sofrimento das vítimas e dos familiares. O longa narra a história do casal Mickey e Mallory, dois perigosos assassinos em série, que cruzam as estradas norte-americanas deixando vítimas por toda parte (sempre deixando alguém vivo para contar o que aconteceu e espalhar a fama do casal) e acabam se transformando em celebridades. Logo no início, o diretor Oliver Stone deixa claro que a dupla segue os seus instintos mais primitivos ao mostrar imagens de animais perigosos, remetendo ao instinto predador do casal. Aliás, Stone capricha no aspecto visual, criando diversos planos interessantes e diferenciados, como na primeira cena, onde o diretor apresenta planos em ângulo baixo e inclinados, além de misturar cenas muito coloridas com outras em preto e branco, numa característica marcante do longa, que é também mérito da excelente direção de fotografia de Robert Richardson.

Contando ainda com os bons efeitos visuais da Pacific Data Images, Stone cria cenas de violência bastante estilizadas, como no massacre do bar, onde vemos uma bala girando segundos antes de atingir uma atendente ou quando uma faca lentamente se choca contra o vidro de uma janela, segundos antes de atingir as costas de um homem que fugia da fúria do casal. Estilizadas também são as inúmeras cenas repletas de imagens psicodélicas, normalmente embaladas pela excelente trilha sonora de Brent Lewis, que ilustram a mente perturbada do casal. Aliás, além das excelentes músicas que pontuam a narrativa, vale destacar o ótimo trabalho de sons e efeitos sonoros, notável, por exemplo, na tempestade no deserto, onde podemos ouvir o vento, os cavalos galopando e os gritos das pessoas, e na rebelião na prisão, que capta perfeitamente o clima de tensão através dos tiros e dos gritos dos presos. E, finalmente, além de conduzir com muita energia a empolgante narrativa, Stone ainda cria belos planos, como no criativo casamento dos assassinos na ponte, onde também vale destacar o momento em que Mickey respira fundo quando um carro passa por trás deles e grita, se esforçando para conter seu instinto assassino (“Não vou matar ninguém no dia do nosso casamento”).

Além do apuro visual, existem pequenas seqüências que são um verdadeiro show de criatividade narrativa, como, por exemplo, o quadro “I Love Mallory”, que remete aos sitcoms norte-americanos, com risadas e aplausos ao fundo, ao mesmo tempo em que nos mostra a vida dura de Mallory, abusada pelo pai e “salva” por Mickey (em outra seqüência violenta, encerrada com o assassinato dos pais dela e as chamas que indicam a vida infernal da dupla dali em diante). Auxiliado pela espetacular montagem de Brian Berdan e Hank Corwin, Stone imprime um ritmo intenso à narrativa, intercalando imagens tanto de cenas que já vimos como de figuras não diegéticas (como desenhos animados), dando ao espectador a mesma sensação de euforia do casal principal. Este festival de cores, músicas, composição de planos distorcidos que fogem da realidade e imagens psicodélicas cria um mundo assustador, que, reforçado pelos figurinos coloridos e descolados de Richard Hornung, reflete a mente dos psicopatas assassinos.

Aliás, Woody Harrelson e Juliette Lewis demonstram excelente química em cena, mostrando empatia ao mesmo tempo em que soam assustadores e ameaçadores (“Só o amor pode matar o demônio”, diz Mickey). Alucinada na pele de Mallory, Lewis alterna bem entre o lado meigo e gentil da garota (quando está com Mickey) e os momentos de pura insanidade (observe sua risada demoníaca ao constatar que seu pai morreu). O trauma dos abusos do pai, aliás, acompanha a jovem por toda a vida, provocando brigas com seu parceiro e sendo fundamental na cena em que ela se entrega a um garoto no posto, mudando de idéia no meio do caminho e atirando nele (“Foi o pior sexo oral que já tive!”). Harrelson também está ameaçador na pele do maluco Mickey e, da mesma forma, oscila entre momentos de fúria e de autocontrole, por exemplo, durante a entrevista, quando fala com o tom de voz baixo e tranqüilo, e na rebelião, quando tira a arma de Wayne Gale, alegando que ele está descontrolado. Lewis e Harrelson se saem bem até mesmo nas brigas do casal (especialmente na seqüência do deserto) – e este desempenho é essencial para que o espectador não se afaste completamente da dupla após acompanhar todos os seus crimes. Curiosamente, podemos não concordar com seus atos, mas acabamos torcendo pelo casal em diversos momentos – o que, de certa forma, explica a fixação da maioria das pessoas, criticada pelo filme. Não concordamos com suas atitudes, mas temos curiosidade pelo tema, que é explorado pela imprensa na eterna busca por audiência. E esta fixação, somada à cobertura da imprensa sensacionalista, faz Mickey e Mallory se transformarem em celebridades. Eles não fizeram nada de bom para a humanidade (pelo contrário, tudo que fizeram foi matar pessoas), mas conquistaram muitos fãs pelo país.

Representando esta fatia da imprensa, Robert Downey Jr. vive o jornalista sem escrúpulos que apresenta um programa sensacionalista sobre os criminosos norte-americanos, deixando claro o pensamento predominante neste setor com frases como “Coloque qualquer coisa, é fastfood para o cérebro” e se referido ao seu público como “zumbis que vêem qualquer coisa”. Com suas reações viscerais que visam chamar a atenção do espectador, Downey Jr. faz bem o típico repórter destes programas, chegando a ficar alucinado quando tem uma arma na mão durante uma rebelião, atirando pra todos os lados e matando até mesmo policiais. E entre os policiais, o maior destaque fica mesmo para Tommy Lee Jones, que vive o chefe da prisão Dwight McClusky, um homem tão louco quanto aqueles que ele mantém presos, que não tem medo de andar entre eles e suspeita quando tudo está “bem” (“Este silêncio é perigoso”). Só que Jones exagera na tentativa de ilustrar a loucura e a raiva do personagem, chegando ao auge das “caras e bocas” após a explosão da rebelião, quando mais parece um lunático do que um homem assustado.

Ao contrário da loucura da maioria, o velho índio interpretado por Russell Means é talvez o personagem mais tranqüilo da narrativa, abrigando e alimentando o casal de assassinos. Mas a história que ele conta sobre a mulher que cuidou de uma cobra serve como metáfora para sua própria morte, algo que ele já previa e que fica claro quando revela um sonho e, principalmente, quando olha para o quadro da falecida esposa segundos antes de morrer, indicando seu desejo de encontrá-la. Só que Mickey não queria matar aquele homem e se desespera ao constatar o que fez, provocando também a revolta de Mallory. Atordoados, eles saem pelo deserto e se deparam com muitas cobras, que atacam impiedosamente o casal. Mas, nas palavras de Mickey, “vaso ruim não quebra” e eles conseguem chegar a uma farmácia na cidade, onde acabarão presos (ao vivo!) pelo violento detetive Jack Scagnetti, interpretado por Tom Sizemore, que cria um estilo agressivo e sacana, chegando a matar uma jovem num hotel e a tentar se relacionar sexualmente com Mallory na prisão (“Ela faz meu tipo”, diz). E é justamente na prisão que a ácida crítica de “Assassinos por Natureza” chega ao auge, com a entrevista ao vivo de Mickey feita por Gale, repleta de momentos interessantes, como a crítica às corporações que matam animais e destroem as florestas por razões econômicas e o momento em que Mickey fala sobre a natureza violenta do homem, se proclamando um assassino por natureza (vale destacar que Harrelson e Downey Jr têm um excelente desempenho na cena, mantendo a entrevista dinâmica e interessante). Repare ainda a crítica nada velada ao espectador de programas sensacionalistas, quando Mickey diz que “muitas pessoas já morreram por dentro” e Stone insere um plano triste, em preto e branco, de uma família que assiste atentamente a entrevista. Mas estas pessoas não veriam o fim da tão aguardada entrevista, pois uma rebelião explode no meio dela e transforma o local num verdadeiro inferno, algo ilustrado pela câmera agitada de Stone, que acompanha a fuga de Mickey e Mallory, e pela montagem ainda mais dinâmica, que intercala planos com mais rapidez. E mesmo no meio de toda esta confusão, a emissora ainda quer transmitir a rebelião ao vivo, colocando em risco a vida de seu repórter – e o desespero da apresentadora do programa que faz contato com Gale não se deve ao risco que corria o colega de profissão, mas sim à pressa dela para tentar transmitir o evento ao vivo o mais rápido possível.

Num simbolismo perfeito da parceria formada pela imprensa sensacionalista e os criminosos, Mickey e Mallory usam Gale como refém para fugir do local. E se a palavra “parceria” parece forte demais, este pensamento se desfaz ao constatarmos que o criminoso precisa da imprensa para ficar famoso e a imprensa precisa dele para ter audiência. Mas, seguindo seu instinto assassino, a dupla mata o jornalista e tudo que ele representa, deixando a câmera como testemunha do assassinato – afinal de contas, alguém precisa contar a história depois. E as imagens reais de programas norte-americanos sensacionalistas que aparecem no final do filme apenas comprovam a fixação da imprensa pelas tragédias e pelos criminosos, que existe em praticamente todos os cantos do planeta.

Com seu estilo ousado e corajoso, Oliver Stone critica o culto aos criminosos promovido pela imprensa sensacionalista neste “Assassinos por Natureza”, que conta ainda com um visual magnífico e excelentes atuações de Woody Harrelson e Juliette Lewis. Não há dúvida que tirar uma vida é um crime abominável. Mas também é abominável que pessoas usem este crime horrível para ganhar dinheiro, fazendo a fama de assassinos em todo o mundo e banalizando a vida.

Texto publicado em 03 de Julho de 2011 por Roberto Siqueira

KALIFORNIA (1993)

(Kalifornia)

 

Videoteca do Beto #95

Dirigido por Dominic Sena.

Elenco: Brad Pitt, Juliette Lewis, David Duchovny, Michelle Forbes, John Zarchen, David Rose, Patricia Sill, David Milford e Catherine Larson.

Roteiro: Tim Metcalfe, baseado em história de Stephen Levy e Tim Metcalfe.

Produção: Steve Golin, Aristides McGarry e Sigurjon Sighvatsson.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

O que difere uma pessoa normal de um assassino? Segundo “Kalifornia”, longa dirigido por Dominic Sena, a grande diferença entre os assassinos em série e uma pessoa comum não está no ato de matar em si, já que qualquer um pode, agindo em legitima defesa, acabar tirando a vida de alguém. Entretanto, o que nos torna “humanos” é justamente o remorso que corrói qualquer um que tenha o mínimo de sensibilidade e respeito pela vida, justamente o que não acontece com estes assassinos.

O casal Brian Kessler (David Duchovny) e Carrie Laughlin (Michelle Forbes) decide viajar até a Califórnia, passando – e fotografando – por lugares onde aconteceram famosos crimes no EUA, como forma de estudar os assassinos em série e conseguir divulgar um livro a respeito. Sem dinheiro, eles decidem convidar outro casal para dividir as despesas da viagem e acabam conhecendo Adele (Juliette Lewis) e Early Grayce (Brad Pitt). Só que na viagem, Brian e Carrie descobrirão que estão muito mais próximos de um assassino em série do que poderiam imaginar.

Como é de se esperar num “road-movie”, “Kalifornia” tem um visual bastante interessante, que explora muito bem a beleza das paisagens que cercam as estradas norte-americanas. Mas o visual requintado do longa não se resume apenas às belas paisagens, como fica claro logo no inicio da narrativa, quando a chuva e a noite conferem um aspecto sombrio à primeira aparição do grande vilão do longa. Além disso, o diretor Dominic Sena demonstra grande habilidade na criação de planos absolutamente sombrios, como quando Brian e Carrie tiram fotos num velho galpão. Sena emprega ainda diversos travellings que tornam sua direção ainda mais elegante, especialmente aqueles que revelam as mortes do dono do terreno em que Early morava e de Adele. Em outro momento, também será um travelling que revelará Early encostado na parede escutando Brian e Carrie, que transam no quarto ao lado. E além dos elegantes movimentos de câmera, o diretor, auxiliado pelo diretor de fotografia Bojan Bazelli, capta muito bem a beleza daqueles dias ensolarados, que contrasta muito bem com as citadas cenas noturnas e sombrias. Conduzindo a narrativa num ritmo dinâmico e envolvente, Sena ainda acerta a mão em praticamente todas as cenas tensas do filme, como quando Carrie descobre a natureza assassina de Early num posto, a seqüência que se passa na casa de um casal de velinhos e o clímax da narrativa, numa abandonada estação de geração de energia.

Mas se “Kalifornia” é um filme visualmente belo, o mérito também deve ser dado ao excelente trabalho do citado Bojan Bazelli, que balanceia muito bem as cenas iluminadas da estrada com os momentos mais sombrios, como a introdução de Early sob forte chuva e raios, que revela também seu olhar psicótico após provocar um terrível acidente, criando uma imagem emblemática e perturbadora. Já a montagem de Martin Hunter, além de contribuir para o ritmo envolvente da narrativa, faz elegantes transições, como quando a imagem do mapa dos Estados Unidos se transforma na imagem do carro que levará os dois casais pelas estradas até a Califórnia. E se existe uma clara diferença entre os casais que compartilham a viagem, os figurinos de Kelle Kutsugeras ajudam a ilustrar esta diferença, com as roupas modernas de Brian e Carrie se contrapondo as roupas cafonas de Early e Adele, assim como a direção de arte de Jeff Mann evidencia esta diferença através das moradias de cada casal, com o bagunçado trailer de Early se contrapondo ao organizado apartamento de Brian. Finalmente, a trilha sonora de Carter Burwell alterna do tom sombrio e melódico para o rock pesado, ilustrando muito bem a mente perturbada de Early.

Escrito por Tim Metcalfe, baseado em história de Stephen Levy e Tim Metcalfe, “Kalifornia” faz um interessante estudo não apenas da mente de um assassino em série, mas da mente de uma pessoa fascinada por este tipo de criminoso, algo bastante comum nos Estados Unidos (como a grande quantidade de filmes e livros que abordam o tema pode comprovar). Só que ao decidir viajar para estudar os locais em que famosos crimes aconteceram, Brian não imaginava que estaria tão perto de seu tema de estudo, fazendo como uma das famílias que visitou. Assim como os Novak, Brian e Carrie acolheram um assassino entre eles. Mas, ao contrário de Brian, Carrie demonstra seu incomodo com a presença de Early logo no primeiro encontro dos casais, que também provoca desconforto em Adele, num belo exemplo da chamada “intuição feminina” (repare o olhar de Carrie para Early pelo retrovisor do carro, que teria reflexo em outro momento, quando ela também observa de longe o assassino).

Aliás, o casal Brian e Carrie consegue estabelecer boa química em cena, o que é mérito de David Duchovny e Michelle Forbes. Enquanto Duchovny faz de seu Brian alguém tranqüilo, centrado e que nutre um curioso fascínio pelos assassinos em série (algo que o ator retrata bem na maneira como reage aos impulsos de Early, como quando ele briga num bar ou quando começa a atirar num galpão abandonado), Forbes vive Carrie com muita sensualidade, mas demonstra freqüentemente sua preocupação com a presença de Early. Exatamente por isso, ela não consegue se soltar, ao contrário de Brian, que chega a sair com Early e tomar todas, como se fossem grandes amigos. Aliás, a forma como a relação entre os dois casais se desenvolve também é verossímil, com as diferenças sendo lentamente amenizadas durante a viagem enquanto eles se adaptam. Repare, por exemplo, as diferentes reações das mulheres quando os homens brincam de atirar num galpão. Enquanto Carrie se mostra claramente assustada, Adele diz que aquilo é “coisa de garotos” e brinca com seu ioiô. Após este momento, Carrie explode e ameaça Brian, saindo correndo e se deparando com Adele e Early transando no carro, somente para parar e novamente observar o casal, desta vez tirando fotos também. Mas quando Early percebe e olha assustadoramente pra ela, Carrie sai correndo novamente, revelando que ela até tinha alguma curiosidade, mas, ao contrário de Brian, não tinha coragem de encarar este sentimento.

Assim como Brian e Carrie, Early e Adele também demonstram boa química, como podemos notar quando Early cava um buraco enquanto conversa com Adele sobre seus planos para o futuro. Com muitos problemas para pagar o aluguel, eles vivem em pé de guerra com o dono do terreno, o que levaria Early a resolver o problema a sua maneira – claro, sem deixar que Adele perceba o que aconteceu. De certa maneira, os dois demonstram uma ingenuidade que explica a falta de preocupação de Brian, como quando Adele pergunta se “carma” é uma palavra francesa ou quando Brian pergunta onde estão os garfos e facas ao abrir sua comida chinesa. Esta ingenuidade de Adele é reforçada pela fala pausada de Juliette Lewis, que demonstra muito bem a enorme dificuldade que a personagem tem para desenvolver o raciocínio. Além disso, Lewis se destaca em pequenos gestos, como quando demonstra a decepção de Adele com a resposta de Carrie à sua sugestão de viver junto com eles em Los Angelesou quando conta sem querer que Early já foi preso e tenta disfarçar a besteira que fez olhando levemente pra cima. Certamente, Lewis tem a melhor atuação do longa, compondo muito bem a personagem e trabalhando em detalhes que ajudam a entendê-la melhor, além de comover o espectador no momento em que Adelerevela o estupro que sofreu com 13 anos, provocando espanto em Carrie (e o close realça muito bem a atuação tanto de Lewis como de Forbes neste momento). Aliás, o diretor também ajuda a compreender a personalidade de Adele através dos planos que destacam os cactos, como quando eles partem para a viagem, deixando um cacto jogado no lixo. Esta fixação por cactos funciona como uma bela metáfora dela própria, pois, assim como Adele, mesmo na pior das situações os cactos conseguem sobreviver.

Fechando o elenco, Brad Pitt tem uma grande atuação na pele do assassino Early, exibindo uma frieza assustadora por baixo daquela carapuça de homem caipira. Capaz de escovar tranquilamente os dentes após assassinar um homem num banheiro de um posto de gasolina, Early é o tipo de assassino para quem matar um ser humano é exatamente igual a matar um inseto, como a barata que ele joga no fogo no inicio do filme. Mas, apesar de psicótico, ele tem consciência de que precisa manter sua imagem diante de Adele, talvez por gostar dela ou até mesmo para ter alguém que possa defendê-lo das constantes acusações que recebe. Exatamente por isso, Adele se desespera ao ver Early matando alguém pela primeira vez e destruindo sua imagem diante dela. E apesar de às vezes se tornar um pouco caricato, Pitt compõe muito bem o personagem com sua fala diferenciada e seus “tiques”, como o barulho que faz com a boca, saindo-se bem ainda nas cenas que exigem força física, como quando arrebenta um homem num bar e evidencia seu instinto assassino. Além disso, o ator destaca-se também quando Early conta sobre “as portas” logo após sair do bar e quando questiona Brian sobre seu grande projeto, perguntando como ele quer escrever sobre algo que não conhece. Finalmente, vale registrar que “Kalifornia” não tenta justificar os atos de Early como sendo resultado de um trauma da infância, apesar de indicar algumas vezes que ele teve problemas com seu pai.

Quando o grupo para num posto durante a noite após a explosão de Carrie contra Brian, a chuva e os raios indicam o futuro sombrio de todos eles. Despretensiosamente, Carrie para pra olhar as noticias num telejornal e descobre que Early é um assassino procurado pela polícia, dando inicio a uma das muitas cenas tensas de “Kalifornia”, que resultará em outro assassinato e novamente nos apresentará a maneira natural com que o assassino lida com esta situação. Aliás, vale notar também como Early não explode quando sofre uma agressão de Adele, já na casa do casal de velinhos, mas um travelling revelará que Adele foi assassinada, confirmando sua frieza segundos depois dele levar Carrie no carro dizendo que precisa de uma nova mulher, nos levando também ao clímax da narrativa, que se passa num local árido, refletindo em suas cores sem vida a maneira deprimente que a viagem terminaria. Iniciando num ritmo bastante lento, o clímax é bruscamente alterado quando Early e Brian começam a brigar, numa cena violenta que finalmente levará Brian a matar alguém e conhecer qual é a sensação, como o close de Sena faz questão de ressaltar, durando alguns segundos na tela. Como citado no livro do próprio Brian em outro local, “a vítima se tornou o criminoso”. Só que a diferença é que Brian não esqueceria aquele momento tão cedo, sendo corroído pelo remorso.

Com um elenco afinado e uma direção bastante elegante, “Kalifornia” trata da obsessão norte-americana pelos assassinos em série, mostrando que jamais poderemos identificar e rotular alguém desta maneira pela aparência ou forma de agir. “Quando olhei Early nos olhos, não senti nada de diferente”, afirma Brian. Para ele, a diferença entre um assassino e uma pessoa comum só aparece depois do crime.

Texto publicado em 24 de Abril de 2011 por Roberto Siqueira

CABO DO MEDO (1991)

(Cape Fear)

 

Filmes Comentados #15

Dirigido por Martin Scorsese.

Elenco: Robert De Niro, Nick Nolte, Jessica Lange, Juliette Lewis, Joe Don Baker, Robert Mitchum, Gregory Peck, Martin Balsam, Illeana Douglas, Fred Dalton Thompson e Zully Montero.

Roteiro: Wesley Strick, baseado em livro de John D. MacDonald.

Produção: Barbara De Fina e Robert De Niro.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de esclarecer que os filmes comentados não são críticas. Tratam-se apenas de impressões que tive sobre o filme, que divulgo por falta de tempo para escrever uma crítica completa e estruturada de todos os filmes que assisto. Gostaria de pedir que só leia estes comentários se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

– Remake de “Círculo do Medo”, de 1962, este thriller interessante dirigido por Scorsese garante bons sustos, mas jamais alcança o nível de excelência de outras obras do renomado diretor.

– Scorsese mantém uma de suas características marcantes ao criar planos interessantes e criativos, como aquele em que Sam escova os dentes diante do espelho, além de utilizar muitos zooms para realçar as reações assustadas dos atores. O diretor também demonstra durante uma revista policial o enorme desejo de vingança de Max, através de diversos closes nas tatuagens espalhadas pelo seu corpo de versículos bíblicos como “A vingança será minha” e “O tempo nos vingará”.

– O roteiro de Wesley Strick, baseado em livro de John D. MacDonald, utiliza de forma inteligente o dialogo expositivo para explicar o motivo da perseguição de Max, quando Sam explica para um colega que sonegou a informação de que a vitima era promiscua no caso dele. Além disso, cria um clima crescente de suspense, culminando com a exagerada (e tensa!) seqüência final no barco.

– A ameaça provocada pela presença de Max causa um conflito na relação entre Sam e Leigh, expondo problemas do passado e criando dúvida sobre o presente do casal. Impressionante como um erro cometido há muito tempo pode prejudicar tanto a vida de uma pessoa. Interessante notar também que com este erro o roteiro evita caracterizar Sam como herói, fugindo do maniqueísmo. Como podemos perceber, não dá pra rotular Sam como uma pessoa boa ou má. E nem mesmo os outros personagens podem ser rotulados desta forma, já que até mesmo Max tem suas qualidades como ser humano.

– Max parece uma sombra na vida de Sam, um verdadeiro pesadelo. Ciente de seus direitos, ele jamais cruza a linha permitida pela lei, mas consegue infernizar a vida de Sam ao ponto de fazê-lo chegar (e ultrapassar) seu limite. Seja no restaurante, seja no cinema, seja na porta da sua própria casa, a imagem de Max dentro de seu conversível persegue Sam.

– A tensa cena em que Max se rebela contra os agressores contratados por Sam e sai à procura dele simboliza também uma inversão de valores na cabeça do espectador (e dentro própria da narrativa). A partir de agora, Max é a vítima.

– Thelma Schoonmaker, responsável pela montagem e costumeira colaboradora de Scorsese, dita um ritmo intenso ao longa, o que é essencial em um filme de suspense.

– Robert de Niro tem outra atuação de alto nível como o determinado e psicopata Max Cady, criando através da fala e dos gestos um vilão aterrorizante. Extremamente inteligente (estudou na prisão livros de direito e filosofia, além de ler a Bíblia), Max é temível até por saber utilizar muito bem a lei a seu favor, o que o transforma num personagem assustador, mas que ao mesmo tempo consegue ser fascinante. Suas ações são calculadas para atingir Sam de uma forma que ele não possa se defender, como quando ataca sua colega de trabalho (numa cena de forte impacto visual) sabendo que ela jamais iria testemunhar contra ele para não expor sua relação com Sam. Cady quer provar que Sam também pode se transformar num criminoso, e alcança seu objetivo.

– Nick Nolte como Sam e Jessica Lange como sua esposa Leigh atuam com competência, mas são ofuscados pela excelente atuação de Robert De Niro. Por outro lado, Juliette Lewis consegue uma atuação fantástica como a rebelde adolescente Danielle, mostrando inocência e agressividade em quantidades colossais. Ela teme e admira Max, agindo como se fosse uma criança fascinada com o perigo. Danielle sabe que corre riscos, mas seu desejo de conhecer melhor aquele homem que ameaça sua família é maior do que seu medo.

– Na cena mais tensa do filme, o encontro entre Max e Danielle no teatro da escola apresenta também um show de interpretação da dupla Lewis e De Niro. Danielle exala sensualidade e inocência diante de um sombrio e ameaçador Max, que por sua vez, utiliza muito bem o sentimento de rebeldia da garota a seu favor.

– Interessante como a lei é ineficaz na defesa de pessoas em constante ameaça. Desde que se conheça a lei (como era o caso de Max) é possível atormentar a vida de alguém e, dependendo da reação do perseguido, ainda sair como vitima do caso.

– O final soa irreal com as muitas tentativas de matar Max, que sempre consegue escapar. Este exagero praticamente o transforma em um super-herói, o que não é coerente com o restante da narrativa. Por outro lado, toda a seqüência é incrivelmente eletrizante e assustadora, cumprindo bem o propósito do filme, que é gerar medo no espectador.

– Vale destacar também na seqüência final o tom obscuro da direção de fotografia de Freddie Francis. O visual sombrio, com o barco desgovernado vagando pelo cabo do medo, cria uma série de imagens marcantes.

– De uma forma geral, “Cabo do Medo” cumpre seu propósito, mas não dá um passo sequer além, o que não é comum nos filmes dirigidos por Martin Scorsese.

Texto publicado em 08 de Janeiro de 2010 por Roberto Siqueira