TRAFFIC (2000)

(Traffic)

 

 

Videoteca do Beto #241

Dirigido por Steven Soderbergh.

Elenco: Benicio Del Toro, Jacob Vargas, Tomas Milian, Clifton Collins Jr., Don Cheadle, Luis Guzmán, Miguel Ferrer, Catherine Zeta-Jones, Steven Bauer, Dennis Quaid, Michael Douglas, Amy Irving, Erika Christensen, Topher Grace, James Brolin, Albert Finney, Benjamin Bratt, Yul Vazquez, Salma Hayek e Peter Riegert.

Roteiro: Stephen Gaghan.

Produção: Laura Bickford, Marshall Herskovitz e Edward Zwick.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Entrelaçar várias linhas narrativas não era exatamente uma novidade quando “Traffic” chegou aos cinemas na virada do milênio. Vários cineastas de peso já haviam feito algo parecido até então. Também não tinha nada de novo em abordar o tráfico de drogas e seus trágicos efeitos sociais. Diversos filmes tentaram, sob diferentes pontos de vista e com maior ou menor sucesso, fazer isso. No entanto, a razão do sucesso do longa dirigido com maestria por Steven Soderbergh reside exatamente na mistura das duas coisas. Dando vida a um roteiro ambicioso que trazia nada menos que 110 personagens, o diretor conseguiu traçar um complexo painel sobre o tema, fugindo de estereótipos e maniqueísmos e deixando claro que trata-se de uma questão muito mais ampla, profunda e difícil do que sugerem as soluções prontas e simplistas que ainda hoje ouvimos por aí.

Escrito por Stephen Gaghan, “Traffic” nos apresenta ao juiz Robert Wakefield (Michael Douglas) quando este se prepara para assumir o cargo de chefe da luta contra o tráfico de drogas em Washington enquanto sua filha Caroline (Erika Christensen) se aprofunda no vício, algo que sua esposa Barbara (Amy Irving) já sabia há algum tempo. Em San Diego, o figurão do tráfico Carlos Ayala (Steven Bauer) é preso, para surpresa de sua esposa Helena (Catherine Zeta-Jones) que se sente obrigada a inteirar-se dos negócios do marido e acaba envolvendo-se em busca da manutenção do padrão de vida que tinha, sem saber que está sendo monitorada pelos policiais Ray (Luis Guzmán) e Montel (Don Cheadle), que também têm a missão de manter o pequeno traficante Eduardo Ruiz (Miguel Ferrer) sob custódia, pois ele é parte chave da investigação contra Ayala. Enquanto isso, o policial mexicano Javier Rodriguez (Benicio Del Toro) acompanha o trabalho do general Salazar (Tomas Milian), que supostamente tenta desmontar o cartel de Tijuana.

Como fica evidente no parágrafo anterior, “Traffic” se propõe a analisar a questão das drogas em suas várias camadas de maneira contundente, abordando desde a dificuldade de controlar as fronteiras e de rastrear os poderosos que controlam o tráfico até a forma como as drogas estão disseminadas em todas as classes sociais. Neste sentido, é interessante como o longa jamais cai na tentação de colar rótulos, mostrando como um traficante de armas como Francisco Flores (Clifton Collins Jr.) pode perfeitamente morar em San Diego nos Estados Unidos e, ainda assim, ter influência no tráfico do outro lado da fronteira. Da mesma forma, podemos acompanhar jovens ricos que abusam das drogas enquanto discutem um tema qualquer, ao passo em que nas periferias muitas vezes a venda ilegal dos narcóticos representa uma oportunidade que muitos dali raramente teriam de obter lucros altíssimos, algo que boa parte da fatia rica da população certamente faria se estivesse naquela situação, como fica evidente no excelente diálogo entre Seth (Topher Grace) e Robert num carro sobre a realidade do tráfico de drogas que provoca esta reflexão.

Conduzindo esta intricada narrativa de maneira firme, Soderbergh nos brinda com momentos de alta tensão como a negociação entre Ray, Montel e Ruiz logo no início que desencadeia um tiroteio e uma perseguição pelas ruas de San Diego. Abusando da câmera de mão, o diretor confere um ar documental ao longa que se encaixa muito bem no tom proposto e aumenta a sensação de realismo e a imersão do espectador naquele universo. Também é muito interessante a forma como os personagens se cruzam fisicamente em vários instantes de maneira orgânica e natural, evidenciando com sutileza como todos estão de alguma forma interligados. Obviamente, a montagem de Stephen Mirrione é crucial neste processo, mantendo o espectador igualmente interessado nas três linhas narrativas através da forma que alterna entre elas, sem jamais parecer se estender demais em alguma delas.

Ainda mais impactante é a fotografia do próprio Steven Soderbergh (que usa o pseudônimo Peter Andrews), que além de ajudar o espectador a se situar através dos diferentes filtros, de quebra traz também funções narrativas. Assim, enquanto o visual amarelado reforça o calor e o clima seco do México, fazendo com que o espectador sinta-se sufocado naquele ambiente hostil, os tons azulados em Washington servem não apenas para realçar a frieza do universo político onde decisões que custarão milhares de vidas são tomadas, mas também para transmitir o desconforto crescente de Robert ali. Já em San Diego, as cores naturais simbolizam o ponto de equilíbrio entre os tons predominantes daqueles dois universos distantes, já que naquele ambiente os efeitos das ações de ambos se cruzam, como fica evidente quando dois agentes norte-americanos se encontram com Javier numa piscina, onde o brilho do sol mistura-se ao azul da piscina. Fechando a parte técnica, vale destacar também a trilha sonora de Cliff Martinez, que com suas notas longas e uso de sintetizadores, amplia a tensão em diversos momentos.

O outro grande mérito de Soderbergh reside nas excelentes atuações que ele consegue extrair de seu vasto elenco, a começar por Tomas Milian, que confere dualidade ao general Salazar em momentos como quando ele se aproxima de Flores, dando a entender que iria protegê-lo das desumanas torturas apenas para, em seguida, obter a informação que precisava. Ainda no México, Benicio Del Toro oferece uma atuação estupenda como Javier, um personagem complexo que precisa se adaptar e sobreviver num ambiente extremamente hostil, algo que faz com maestria graças a sua habilidade de ler o cenário em que está inserido e agir de acordo com o que cada situação exige.

Catherine Zeta-Jones também está muito bem como Helena, vivendo um arco dramático interessante na pele da esposa que não sabia (ou não queria saber) a natureza real dos negócios do marido e que acaba assumindo as rédeas, chegando a viajar para o México para negociar diretamente com os fornecedores. Esta mudança começa a ficar evidente, por exemplo, durante o julgamento de Carlos, quando a câmera que foca constantemente nela ao invés do marido realça a importância daquela ocasião para a personagem. Em certo momento, ela diz que seu filho não irá viver na pobreza que ela viveu, evidenciando que seria capaz de fazer qualquer coisa para manter o status que tinha atingido. Ciente desta característica de Helena, Arnie (Dennis Quaid) se aproveita da situação e se envolve com a esposa de seu sócio, reforçando como não existem inocentes neste verdadeiro jogo de interesses. Do lado de fora da mansão, Luis Guzmán e Don Cheadle nos divertem com os diálogos entre Ray e Montel, como aquele em que falam sobre o vício de um deles no cigarro e quando Ray afirma que sonhava com o momento em que pegaria figurões, ricos e brancos cometendo um crime.

Núcleo dramaticamente mais pesado da narrativa, a família Wakefield simboliza perfeitamente a hipocrisia da chamada guerra ao tráfico, como fica evidente quando a Barbara de Amy Irving menciona a própria juventude para contrapor os argumentos do marido e lembrá-lo que ela também já usou drogas ou quando joga na cara dele o seu vício em bebidas – e repare como ele reage negativamente afirmando que não pode ser considerado alcóolatra, como se o vício dele fosse diferente dos demais. Por sua vez, Erika Christensen rouba a cena com sua ótima atuação na pele da viciada Caroline, destacando-se em diversos momentos, como quando demonstra sua resignação no primeiro encontro com outros viciados, deixando evidente que não estava preparada para aquilo, mas principalmente nas crises provocadas pelas drogas, quando surge com olhar arregalado e a boca entreaberta, praticamente nos fazendo sentir o prazer e a dor da personagem com suas expressões. E finalmente, Michael Douglas compõe com sutileza e sensibilidade um homem que, entre um copo e outro de uísque, tenta conciliar a árdua tarefa profissional que lhe foi atribuída com a ainda mais difícil missão de compreender o universo da filha viciada, completando seu arco dramático em dois momentos comoventes, primeiro num quarto de hotel e depois quando interrompe um discurso pré-fabricado para dizer o que realmente pensa, abandonar o cargo e escancarar a posição antiguerra às drogas do filme.

Instantes antes de seu personagem ser envenenado, Miguel Ferrer tem seu grande momento na pele de Ruiz ao oferecer uma visão muito interessante sobre a inutilidade do trabalho daqueles policiais que, digamos, estão apenas enxugando gelo, num dos inúmeros instantes em que “Traffic” critica abertamente a falida guerra às drogas – e a cena do envenenamento, aliás, também é muito bem conduzida pelo diretor, fazendo com que o previsível desfecho soe verossímil. A belíssima sequência final em que crianças mexicanas jogam basebol sob as luzes que iluminam o campo exatamente como sonhado por Javier, que contempla tudo aquilo embalado pela bela trilha sonora, evoca uma certa esperança sem soar como uma solução fácil para um problema extremamente complexo. Afinal, não custa sonhar com um futuro onde jovens de periferia possam passar suas noites divertindo-se e praticando esportes ao invés de lutarem para sobreviver diante do medo provocado por políticas míopes criadas por pessoas distantes daquela realidade.

Ambicioso e extremamente bem conduzido, “Traffic” é um libelo contra a inútil guerra ao tráfico, traçando um amplo painel político e social sobre um tema tantas vezes tratado de maneira simplista. Ao contrário do que pregam pessoas com pensamento binário e, pior ainda, poderosos que vivem de frases de efeito para ganhar projeção, a questão das drogas não tem solução fácil e, como fica evidente no longa, atinge todas as camadas da sociedade em maior ou menor grau, com resultados trágicos para muitas delas – sejam os que sofrem os efeitos do vício, sejam aqueles que são diretamente afetados não pelas drogas em si, mas pela imbecil guerra que traz o conflito para dentro das periferias, enquanto os que realmente faturam com aquilo dormem tranquilos em seus bairros de elite em países como os Estados Unidos ou o Brasil.

Texto publicado em 22 de Março de 2019 por Roberto Siqueira

UM CRIME PERFEITO (1998)

(A Perfect Murder)

4 Estrelas 

Videoteca do Beto #189

Dirigido por Andrew Davis.

Elenco: Michael Douglas, Gwyneth Paltrow, Viggo Mortensen, David Suchet, Sarita Choudhury, Michael P. Moran, Novella Nelson e Constance Towers.

Roteiro: Patrick Smith Kelly, baseado em peça de Frederick Knott.

Produção: Anne Kopelson, Arnold Kopelson, Peter Macgregor-Scott e Christopher Mankiewicz.

Um Crime Perfeito[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Refilmar um grande clássico do passado é quase sempre um grande desperdício de tempo e dinheiro em minha opinião. Ao invés de investir em versões “modernas” de filmes que já são excelentes, a indústria do cinema deveria mesmo é buscar oferecer ao público novas histórias que pudessem se transformar em filmes clássicos também. Por outro lado, refilmar um clássico é também uma oportunidade de aguçar a curiosidade das novas gerações, chamando a atenção para filmes que, talvez, muitos sequer se interessariam em conhecer, mesmo numa época em que temos fácil acesso à filmografia de diversos grandes diretores e alguns festivais homenageando filmes do passado. Dito isso, é com grande surpresa e satisfação que afirmo: “Um Crime Perfeito” é destas exceções que confirmam a regra, revelando-se uma versão bem interessante de “Disque M para Matar”, clássico inesquecível do grande mestre do suspense – curiosamente, Hitchcock teria outro grande clássico refilmado em 1998, desta vez sem a mesma eficiência.

Adaptado por Patrick Smith Kelly com base na peça de Frederick Knott que, por sua vez, serviu como base para o filme de Hitchcock, “Um Crime Perfeito” nos apresenta ao milionário Steven Taylor (Michael Douglas), um acionista da bolsa de valores que descobre que sua esposa Emily (Gwyneth Paltrow) está tendo um caso com um artista chamado David (Viggo Mortensen). Após descobrir o passado criminoso do rapaz, Steven decide fazer uma proposta milionária para que o amante mate sua mulher, mas algo inesperado coloca em risco toda a operação.

Como podemos notar, “Um Crime Perfeito” tenta reciclar aspectos pontuais de “Disque M para Matar”, trazendo a narrativa para a época atual como forma de facilitar a identificação do espectador. Construindo uma atmosfera de tensão que cresce na medida em que a situação se complica mais e mais, o diretor Andrew Davis obtém sucesso na principal missão da narrativa, chamando a atenção da plateia ainda pelas diversas reviravoltas que contribuem para deixar o espectador sempre grudado na tela.

Por outro lado, o diretor peca pela falta de sutileza em diversos momentos, como na postura desconfiada do Detetive na noite do crime e nos avisos que Steven dá para Emily sobre seus planos (“E se não houver amanhã?”, diz ele em tom ameaçador). Além disso, a sombria trilha sonora de James Newton Howard pontua praticamente todas as cenas de suspense, numa abordagem exagerada que poderia ser evitada – ao menos, a composição de Howard é inspirada e de fato realça a tensão em outros instantes, como na apresentação do bagunçado e obscuro apartamento de Steven concebido pelo design de produção de Philip Rosenberg, que cria logo de cara a atmosfera pretendida pelo diretor. E finalmente, Andrew Davis investe até mesmo em sustos baratos criados puramente através do design de som, como quando Steven surge no espelho enquanto Emily se veste no quarto, acertando ao menos ao homenagear “Disque M para Matar” através do altíssimo toque do telefone.

Visualmente, “Um Crime Perfeito” segue as convenções do gênero, primeiro com a fotografia quase sempre sombria de Dariusz Wolski, que aposta em lugares fechados e no posicionamento estratégico dos pontos de luz, como na cena da proposta em que o rosto dos personagens é parcialmente coberto pelas sombras, numa ilustração visual da personalidade de Steven e David, duas pessoas que escondem seu lado obscuro sob a faceta iluminada que demonstram diante da sociedade.

Bagunçado e obscuro apartamentoSteven surge no espelho enquanto Emily se vesteA proposta

Saindo-se outra vez bem no costumeiro papel do acionista milionário, Michael Douglas impõe respeito com sua voz firme e sua postura corporal sempre agressiva, criando um Steven ameaçador. Desconfiado desde o início, ele lentamente cede espaço para que o ciúme o consuma, demonstrando também uma habilidade ímpar para sair das complicadas situações que surgem em seu caminho após o crime dar errado. Convincente também é a atuação de Gwyneth Paltrow, que surge apaixonada e até mesmo inocente no início, mas transforma-se numa pessoa assustada e deprimida após ser atacada – e o fato dela falar o mesmo idioma do Detetive dá a sensação de que isto teria alguma importância na solução da trama, mas este artifício parece ser descartado pelo roteiro.

Ainda muito jovem, Vigo Mortesen consegue criar razoável empatia com Paltrow, criando um David sedutor e misterioso, numa composição totalmente coerente com o histórico de crimes do personagem. Demonstrando talento nos duelos verborrágicos com Douglas, Mortesen estabelece o equilíbrio de forças entre os integrantes do triângulo amoroso, o que é essencial para que a narrativa funcione tão bem. Desta forma, os três personagens demonstram forças e fraquezas suficientes para que nenhum pareça se sobressair, o que cria a atmosfera de incerteza e tensão ideal. Talvez o único ponto negativo neste aspecto seja o ciúme injustificável e pouco verossímil de David ao vê-la voltando do almoço com o marido, num comportamento que vai contra os princípios do personagem. Por outro lado, os pequenos momentos de alivio cômico funcionam muito bem, como quando Steven brinca com o fato de pagar 100 mil dólares adiantados para David (“Aposto 400 mil que você não foge”).

Steven ameaçadorApaixonada e inocenteDavid sedutor e misteriosoContando com o auxilio de seus montadores Dov Hoenig e Dennis Virkler, Andrew Davis se sai muito bem na condução das cenas chave de “Um Crime Perfeito” – e aqui evito qualquer comparação com Alfred Hitchcock, já que seria não apenas injusto, como também totalmente fora de propósito. Destacando com um plano detalhe o objeto que será essencial na cena do crime, o diretor prolonga a tensão ao máximo até que Emily atenda ao telefone (e aqui sim quem já assistiu “Disque M para Matar” fica na expectativa do ataque repentino), dando início através de um forte susto ao tenso ataque na cozinha, que passará por uma feroz luta corporal até que o mencionado objeto salve a pele dela, num desfecho previsível para o espectador mais atento, mas ainda sim interessante.

Plano detalheEmily atende o telefoneFeroz luta corporalLogo após o assassinato do invasor, alguém diz a seguinte frase na mesa em que Steven joga cartas: “Novo jogo, novo vencedor”, num tipo de sutileza sempre interessante que poderia aparecer mais vezes em “Um Crime Perfeito”. Andrew Davis se sai bem ainda na revelação de que o invasor não era David, estendendo a cena ao máximo até revelar o rosto de outra pessoa debaixo da toca, mas peca pelo exagero nos confrontos extremamente físicos que fecham a narrativa entre David e Steven e entre o casal, mas estes pecadilhos não são suficientes para derrubar a qualidade do longa.

Repaginada inferior, mas eficiente de “Disque M para Matar”, “Um Crime Perfeito” comprova que com criatividade e talento, até mesmo as refilmagens podem se tornar interessantes, desde que tragam uma nova abordagem que justifique a empreitada. É uma pena, portanto, que Gus Van Sant não tenha assistido a este trabalho de Andrew Davis antes de cometer uma heresia que deve ter revirado o mestre do suspense em seu caixão.

Um Crime Perfeito foto 2Texto publicado em 13 de Abril de 2014 por Roberto Siqueira

VIDAS EM JOGO (1997)

(The Game)

4 Estrelas 

Videoteca do Beto #180

Dirigido por David Fincher.

Elenco: Michael Douglas, Sean Penn, Deborah Kara Unger, James Rebhorn, Peter Donat, Carroll Baker, Anna Katarina, Armin Mueller-Stahl e Spike Jonze.

Roteiro: John D. Brancato e Michael Ferris.

Produção: Ceán Chaffin e Steve Golin.

Vidas em Jogo[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Somente um diretor talentoso como David Fincher pode transformar a implausível premissa deste “Vidas em Jogo” num thriller tão interessante. Não concorda? Pois então pare e pense por alguns minutos na complexidade do jogo criado pela empresa CRS e nas inúmeras possibilidades de rumos que a história poderia tomar dependendo das ações do “alvo” e você perceberá que nem o melhor planejamento do mundo poderia evitar colocar em risco toda a empreitada. Mudemos a pergunta então: pode um roteiro com um potencial tão grande para o fracasso se transformar num filme interessante? Nas mãos de um grande diretor a resposta sempre será: “sim”.

Escrito por John D. Brancato e Michael Ferris, “Vidas em Jogo” nos apresenta ao milionário Nicholas Van Orton (Michael Douglas), um acionista bem sucedido que ganha um inusitado presente de aniversário de seu irmão Conrad (Sean Penn): um cartão com os dados de contato de uma empresa especializada em entretenimento. Desconfiado, ele comparece ao local, preenche todos os formulários e realiza os testes físicos e psíquicos, mas sua inscrição é rejeitada. No entanto, após esbarrar com a garçonete Christine (Deborah Kara Unger) em seu restaurante favorito, coisas estranhas começam a acontecer e ele repentinamente percebe que está sendo envolvido em algo muito maior.

Bastam poucos minutos para que o espectador tenha acesso a algumas informações essenciais a respeito de Nicholas Van Orton. Seu escritório milimetricamente planejado, sua imponente casa (design de produção de Jeffrey Beecroft) e suas roupas finas e elegantes (figurinos de Michael Kaplan) evidenciam que estamos diante de alguém muito rico, enquanto as lembranças de sua infância e uma rápida conversa com a ex-esposa escancaram sua fragilidade emocional. Assim, não demora muito para que o vulnerável protagonista dispa-se da roupa de homem bem sucedido e apresente sua faceta frágil e humana, conquistando a empatia da plateia tão fundamental para o sucesso da narrativa.

Vivendo uma versão menos gananciosa e mais contida de seu personagem mais famoso no cinema, Michael Douglas novamente encarna um acionista bem sucedido, com a diferença de que aqui seu Nicholas Van Orton (ou Nick) é também um personagem claramente afetado por um forte trauma da infância: a perda do pai. Falando quase sempre num tom de voz baixo, Nick lentamente vai perdendo o controle da situação e a oscilação em seu tom de voz indica isto com precisão. Conforme a narrativa avança, o acionista se transforma numa pessoa constantemente tensa, que deixa sua zona de conforto para enfrentar situações inusitadas e extremamente perigosas que o levam ao limite extremo – e o ator demonstra tudo isto muito bem em seu semblante cada vez mais pesado. Irmãos muito diferentes, Nick preza pela discrição e pelo bom senso, enquanto o bon vivant Conrad não hesita em chamar a atenção de um restaurante lotado apenas porque deseja fumar. Mesmo surgindo poucas vezes em cena, Sean Penn tem participação fundamental em “Vidas em Jogo”, soando convincente especialmente quando seu Conrad mostra-se totalmente desesperado numa conversa no carro do irmão, enganando não apenas o protagonista como também o próprio espectador.

Acionista bem sucedidoSemblante cada vez mais pesadoDesesperadoAinda mais importante é a competente participação de Deborah Kara Unger como Christine, a misteriosa garçonete demitida que acompanha boa parte da trajetória do protagonista e que, em diversos momentos, direciona a linha de raciocínio dele e da plateia. Soando simultaneamente convincente e misteriosa, Unger se sai muito bem num papel difícil que poderia arruinar o projeto nas mãos de alguém menos talentosa, já que a dúvida que sua personagem gera no espectador é fundamental para o sucesso da narrativa. Assim, quando ela diz rispidamente para Nick acordar e perceber que foi pego num golpe, nós acreditamos nela – e o chá seguido pela notícia das contas zeradas nos faz cair de vez na armadilha preparada pela CRS. Encarnando um funcionário da CRS de maneira convincente, James Rebhorn é outro que mantém a aura de mistério que ronda a narrativa com precisão.

O engenhoso roteiro envolve praticamente todos os personagens numa aura misteriosa que torna tudo muito suspeito, chegando a pecar pelo excesso de planejamento, o que não prejudica totalmente a qualidade do filme, mas torna alguns momentos bastante implausíveis, como quando um taxi é atirado no rio com o protagonista dentro. E se ele não se lembrasse da maçaneta ou sofresse uma grave lesão na queda? Existiam mergulhadores de plantão, mas valeria o risco? Momentos como este existem em profusão em “Vidas em Jogo”, o que pode irritar espectadores mais céticos. Se pensarmos friamente, seria necessário envolver praticamente a cidade inteira para que o tal jogo funcionasse corretamente; e, o que é ainda mais complicado, seria necessário antever praticamente todos os passos de Nick e preparar-se para eventuais mudanças de rota. Como evitar o desastre então? A resposta está na maneira como a narrativa é conduzida.

Convincente e misteriosaAura de mistérioTaxi é atirado no rioEmpregando seus costumeiros planos simétricos e movimentos elegantes de câmera, David Fincher parece bem mais contido e discreto na maior parte do tempo, o que não impede que ele altere o ritmo drasticamente quando necessário, como na empolgante fuga de Nick e Christine da CRS em que um cachorro quase os alcança e nas eletrizantes perseguições noturnas pelas ruas da cidade. Obviamente, o visual obscuro obtido pela fotografia de Harris Savides colabora bastante para ampliar a tensão nestes instantes. Utilizando imagens desgastadas de arquivo para revelar as trágicas lembranças da infância de Nick, Savides prioriza cores sóbrias durante a maior parte do tempo, destacando-se pelo excelente uso das sombras nas predominantes cenas noturnas para realçar a aura de mistério da narrativa, reforçada ainda pela trilha sonora dissonante de Howard Shore.

Empolgante fuga de Nick e ChristineVisual obscuroTrágicas lembrançasContando ainda com a montagem dinâmica de James Haygood para conferir um ritmo crescente que ilustra a mente cada vez mais conturbada do protagonista, Fincher conduz a narrativa com destreza, construindo um suspense eficiente através de escolhas inteligentes. Observe, por exemplo, como o sorriso discreto de um dos homens no bar indica que Nick havia sido fisgado pelo jogo, funcionando também como uma discreta dica para o espectador. A conversa com o apresentador do telejornal logo em seguida confirma que ele já estava envolvido no jogo – e neste instante, o espectador também já está completamente envolvido pela narrativa. A estratégia é clara. Fincher nos coloca sempre na mesma posição do protagonista. O tempo inteiro, nós temos acesso às mesmas informações que ele e compartilhamos das mesmas dúvidas e angústias do personagem, numa escolha, aliás, que não é comum em suspenses. Normalmente, o suspense é potencializado quando sabemos algo que o personagem não sabe, mas neste caso, nós não temos nenhuma informação além das que Nick já tem. Assim, somos forçados a montar aquele quebra cabeça sob a perspectiva dele, o que é essencial para que “Vidas em Jogo” funcione.

Após cairmos em inúmeras armadilhas e nos envolvermos completamente com o drama de Nick, somos levados a chocante sequência final no prédio da CRS, na qual a tragédia completa parece se configurar, mas uma reviravolta interessante revela o grande truque por trás das cortinas e garante o final feliz. O problema é que este final, apesar de impactante, soa um tanto implausível quando passamos a pensar mais a respeito. Ainda assim, graças ao ótimo trabalho de Fincher e do seu elenco, o longa funciona bem.

Sorriso discretoConversa com o apresentador do telejornalChocante sequência finalConfirmando a teoria de que um bom diretor pode salvar um roteiro por mais falhas que este tenha, David Fincher fez deste “Vidas em Jogo” um thriller empolgante, capaz de manter o espectador tenso na maior parte do tempo, ainda que, quando repensamos a narrativa de uma maneira mais lógica, esta tensão possa se transformar em questionamentos e gerar certa frustração.

Vidas em Jogo foto 2Texto publicado em 25 de Novembro de 2013 por Roberto Siqueira

WALL STREET – PODER E COBIÇA (1987)

(Wall Street)

4 Estrelas 

Videoteca do Beto #162

Dirigido por Oliver Stone.

Elenco: Charlie Sheen, Michael Douglas, Martin Sheen, Daryl Hannah, Hal Holbrook, Sean Young, Franklin Cover, Chuck Pfeiffer, James Karen, John C. McGinley, James Spader, Terence Stamp e Leslie Lyles.

Roteiro: Stanley Weiser e Oliver Stone.

Produção: Edward R. Pressman.

Wall Street - Poder e Cobiça[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Tanto tematicamente quanto narrativamente, Oliver Stone nunca foi um diretor de sutilezas. Com seu estilo histriônico e sua maneira direta de se posicionar diante dos temas que escolhe como centro de suas narrativas, Stone rapidamente foi rotulado como um diretor polêmico, gerando simpatia e rejeição em proporções similares. No entanto, existem momentos em que este estilo agressivo casa perfeitamente com o tema abordado, como acontece nos ótimos “Platoon”, “Nascido em 4 de Julho”, “Assassinos por Natureza” e na obra-prima “JFK”. Ao decidir explorar o universo especulativo da bolsa de valores, Stone acertou mais uma vez em cheio e, ao lado de seu talentoso elenco, fez deste “Wall Street – Poder e Cobiça” um ótimo filme.

Escrito pelo próprio Stone ao lado de Stanley Weiser, “Wall Street – Poder e Cobiça” narra à trajetória do jovem corretor da bolsa de Nova York Bud Fox (Charlie Sheen), que encontra a grande chance de se destacar no ramo das ações quando obtém uma importante informação sobre a empresa aérea em que seu pai (Martin Sheen) trabalha e decide repassá-la ao bilionário Gordon Gekko (Michael Douglas), um homem que não mede esforços para fazer sua fortuna crescer através do competitivo mercado financeiro.

Apenas um ano após ser consagrado pela Academia com o Oscar por “Platoon”, Oliver Stone confirmava sua coragem ao abordar outro tema delicado e cutucar o coração financeiro dos EUA: Wall Street. Filho de um corretor da bolsa, Stone enxergava com preocupação as ações dos chamados “Mestres do Universo” (assim intitulados por Tom Wolve em seu livro “A Fogueira das Vaidades”), homens poderosos que manipulavam o mercado financeiro descaradamente, gerando sentimentos contraditórios no cidadão comum, que se via enojado diante da falta de princípios que regrava aquele mundo quase incompreensível e, ao mesmo tempo, fascinado diante de tanta autoconfiança e poder.

Para retratar este ambiente misterioso e nada ético, Stone e seu bom diretor de fotografia Robert Richardson exploram cores sem vida como cinza, azul marinho e preto, que ecoam também nos ternos impecáveis dos figurinos de Ellen Mirojnick, que, por sua vez, ganham ainda mais importância num mundo onde as aparências são tão valorizadas. Da mesma forma, observe o contraste entre o quase asséptico escritório novo de Bud e o caótico escritório em que ele trabalhava (design de produção de Stephen Hendrickson), apresentado num curto plano-sequência logo nos primeiros minutos de projeção que serve também para nos familiarizar com a hierarquia do local. Quanto maior a sala, mais importante é aquela pessoa na corporação. Por outro lado, ainda que tenha a cara dos anos 80, a trilha sonora de Stewart Copeland hoje soa datada e pouco contribui na construção desta atmosfera opressora, salvando-se apenas em momentos onde tem alguma função narrativa, como quando ilustra a preocupação de Bud ao indicar as ações da Bluestar para Gekko, demonstrando que ele sabia o risco que corria ao tomar aquela perigosa decisão.

Ternos impecáveisEscritório novoCaótico escritórioAuxiliado pela montagem dinâmica de Claire Simpson, Stone ainda reflete com precisão a atmosfera de urgência da bolsa de valores, empregando closes, dividindo a tela e agitando a câmera assim que o relógio anuncia a abertura do mercado. Observe ainda como os cortes rápidos ilustram a tensão do ambiente, chegando ao auge na empolgante sequência da venda das ações da Anacott Steel, que reflete a euforia de Bud diante daquela importante transação (vale notar a rápida aparição do próprio Oliver Stone nesta sequência). Por outro lado, observe como quando as ações se passam no escritório de Gekko, tanto o ambiente mais amplo e organizado quanto à câmera mais controlada de Stone refletem o excepcional domínio que aquele homem tem sobre o que faz.

Dividindo a telaRelógio anuncia a abertura do mercadoAmbiente mais amplo e organizadoMas o grande mérito de “Wall Street – Poder e Cobiça” não está nos aspectos técnicos. Ciente de que a narrativa depende muito mais do desempenho dos atores, Oliver Stone consegue extrair boas atuações de quase todo seu elenco, a começar por papeis menores como o de Sean Young, que vive a artificial esposa de Gekko, e Hal Holbrook, que, vivendo o corretor da bolsa Lou Mannheim, faz bem o tipo experiente que já viu de tudo na carreira, enxergando de longe aonde a ganância de Bud poderia levá-lo. E se Martin Sheen encarna o Sr. Fox com simplicidade, isto não o impede de se impor diante do filho quando é preciso, ainda que ele não consiga conter o ímpeto do rapaz diante de tantas possibilidades – e o plano que ilumina o rosto de Bud em certo momento sugere uma aura mística e indica que ele era mesmo “o escolhido” por Gekko para entrar naquele seleto grupo de milionários.

Artificial esposa de GekkoCorretor Lou MannheimSr. FoxPai e filho na vida real, Charlie e Martin estabelecem a química dos personagens naturalmente, o que é essencial para compreender a reação de Bud ao descobrir as reais intenções de Gekko na aquisição da Bluestar. Jovem e ambicioso, Bud rapidamente conquista a confiança do bilionário, sendo recompensado com agrados e a meteórica ascensão social. Na época firmando-se como um ator dramático após o sucesso de “Platoon”, Charlie Sheen transmite este deslumbramento do personagem com precisão, mudando-se em pouco tempo para um apartamento luxuoso e conquistando a bela Darien de Daryl Hannah, que, por sua vez, também tira o máximo proveito daquele bem sucedido grupo social (financeiramente, diga-se) ao envolver-se secretamente com Gekko em troca de novos e importantes clientes.

Envolvendo-se gradualmente numa troca ilegal de informações sigilosas, Bud se torna mais e mais ganancioso, e este mundo luxuoso e repleto de regalias que se abre a sua frente não colabora em nada para impedir sua inserção naquele ambiente. Só que toda esta superficialidade tem um preço. Assim, quando o casal discute, Bud não hesita em deixar claro que sabe que Darien o enxerga apenas como uma oportunidade de continuar sua escalada social, mas as duras respostas dela mostram que ele não era tão diferente assim – e o bom desempenho da atriz neste momento nos faz acreditar que ela de fato gostava dele, o que torna tudo ainda mais intenso.

Química naturalDeslumbramentoCasal discuteControlando este complexo jogo de interesses com maestria, o persuasivo e arrogante Gordon Gekko soa quase como um vilão inabalável, ainda mais pela maneira visceral que Michael Douglas compõe o personagem, surgindo sempre confiante e poderoso, como se fosse capaz de prever tudo que acontece com grande antecedência. Enxergando o dinheiro como a única coisa pela qual vale a pena lutar (“Almoçar é para os fracos”), Gekko demonstra enorme habilidade nas negociações, mas mostra igual capacidade de passar por cima da ética se assim for preciso para conquistar seus objetivos. Destacando-se ainda em momentos marcantes como o icônico discurso feito aos sócios da Teldar Paper (“A ganância é boa”), Douglas consegue transformar um personagem que tinha tudo para ser detestável em alguém cativante através de sua maneira prática de enxergar o mundo e de dizer coisas profundamente cruéis.

Persuasivo e arrogante Gordon GekkoConfiante e poderosoIcônico discursoEntretanto, não são apenas as palavras de Gekko que provocam desconforto em “Wall Street – Poder e Cobiça”, como atesta a forte discussão entre os Fox no elevador, onde os cortes rápidos de Stone ajudam a nocautear a plateia, desnorteada diante das duras palavras trocadas por eles – num grande momento da atuação dos Sheen. Da mesma forma, a câmera inquieta realça a tensão na discussão entre Bud e Gekko sobre a liquidação da Bluestar, na qual o primeiro demonstra que não aceitará tão facilmente ser manipulado pelo bilionário, enquanto o segundo resume muito bem o que é o capitalismo e como funciona a divisão de renda nos EUA (e na maior parte do planeta, porque não?) – e repare como após ser enganado na venda da Bluestar, Gekko surge coberto pelas sombras, indicando sua decadência.

Forte discussão no elevadorDiscussão entre Bud e GekkoGekko surge coberto pelas sombrasObviamente, Oliver Stone não perde a oportunidade de criticar acidamente todo aquele sistema e insere seus comentários sociais em diversos momentos, como quando acompanhamos Bud ganhando uma sala ampla ao mesmo tempo em que um velho funcionário é demitido (“Tenho dois filhos para criar, vou parar na sarjeta”, argumenta). A intenção é clara: criticar o feroz sistema especulativo de Wall Street, responsável por fabricar jovens milionários da noite para o dia – e também por gerar algumas crises marcantes nas últimas décadas, como hoje sabemos bem. Soltas durante a narrativa, frases como “O dinheiro faz você fazer coisas que não quer fazer” e “Pare de ir atrás do dinheiro fácil e produza algo com sua vida” resumem bem a visão de Stone sobre o tema.

É verdade que para alcançar seu objetivo, o diretor acaba pesando a mão em alguns instantes. Assim, o milionário Gekko obviamente acaba punido e preso, enquanto Bud perde a namorada e o dinheiro, vende o apartamento, vê seu pai sofrer um enfarte e ainda é surpreendido em seu escritório pela polícia, num resultado trágico que nem sempre traduz a realidade do mercado financeiro – e é curioso notar como mesmo após fazer tantas coisas erradas, nós sentimos pena dele ao vê-lo deixando o escritório algemado e chorando. É evidente que nem todo trader é como Gekko e que é possível ser bem sucedido como corretor sem deixar-se cegar pela ganância, mas nem por isso “Wall Street – Poder e Cobiça” deixa de ser um grande filme que, curiosamente, acabou antevendo parte do processo de decadência dos “Mestres do Universo”.

Bud ganhando uma sala amplaVelho funcionário é demitidoDeixa o escritório algemado e chorandoEm “Wall Street – Poder e Cobiça”, Oliver Stone aponta sua metralhadora crítica não apenas para o especulativo mercado financeiro, mas também para a mentalidade de uma época em que a qualidade de um terno era mais importante do que a pessoa dentro dele e que o sucesso era medido pelos dígitos de sua conta bancária. O tempo provou que o diretor tinha certa dose de razão e que, ao contrário do que afirma Gordon Gekko, a ganância não é algo tão bom assim.

Wall Street - Poder e Cobiça foto 2Texto publicado em 16 de Março de 2013 por Roberto Siqueira

UM DIA DE FÚRIA (1993)

(Falling Down)

 

Videoteca do Beto #96

Dirigido por Joel Schumacher.

Elenco: Michael Douglas, Robert Duvall, Barbara Hershey, Tuesday Weld, Rachel Ticotin, Frederic Forrest, Lois Smith, Joey Hope Singer, Raymond J. Barry, D.W. Moffet, Steve Park, Kimberly Scott e James Keane.

Roteiro: Ebbe Roe Smith.

Produção: Timothy Harris, Arnold Kopelson e Herschel Weingrod.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

A vida moderna, especialmente nas grandes cidades, propicia muitos momentos desgastantes, graças ao seu ritmo de vida alucinante e estafante, que a cada dia procura ser mais dinâmico, privilegiando a velocidade da informação e das atividades que realizamos diariamente. O grande problema, entretanto, é que esta busca gananciosa por um estilo de vida cada vez mais “dinâmico” acaba prejudicando o que de melhor nossa vida pode oferecer, aqueles momentos em que nos esquecemos de tudo, apenas para relaxar e deixar o tempo passar. Exatamente por isso, este ritmo acelerado é responsável pela proliferação de pessoas cada vez mais estressadas, que, diante de tantas situações irritantes, podem acabar explodindo de uma maneira ou outra. E é justamente o momento de explosão de uma pessoa comum que este interessante “Um Dia de Fúria” retrata com precisão, aproveitando ainda para criticar as inúmeras situações que a vida nas grandes cidades apresenta e que colaboram para que isto aconteça.

Após perder seu emprego, William Foster (Michael Douglas) decide ir ao encontro de sua ex-mulher Beth (Barbara Hershey) e sua filha (que faz aniversário), apesar de estar impedido legalmente de fazer isto. No caminho, ele é obrigado a enfrentar o transito congestionado da cidade de Los Angeles, debaixo de um sol escaldante e em meio à grande poluição. Irritado, William decide largar o carro e seguir a pé. Mas, ao parar para tentar fazer uma ligação, ele acaba discutindo com um comerciante e explodindo, dando início a uma série de situações que complicam cada vez mais o seu dia. Quando a situação sai totalmente de controle, o veterano policial Prendergast (Robert Duvall), prestes a se aposentar, decide tentar impedir que uma tragédia ainda maior aconteça.

Escrito por Ebbe Roe Smith, “Um Dia de Fúria” aborda a paranóia urbana, um tema contemporâneo que assola a grande maioria das pessoas que vivem nas principais cidades do planeta, refletindo os enormes problemas que a grande concentração de pessoas num mesmo local traz para o nosso cotidiano, como o trânsito carregado ou o atendimento padronizado em restaurantes (os chamados fastfoods, que visam somente à velocidade no atendimento, como numa linha de produção), entre tantas outras coisas. Dirigido por Joel Schumacher, o longa se concentra na vida do conturbado William Foster, recentemente demitido e obrigado pela justiça a se manter longe da ex-mulher e da filha por causa de seu temperamento agressivo, que é apresentado ao espectador logo na primeira cena do filme, quando um close em detalhes de seu rosto suado e angustiado dá inicio a seqüência que levará aquele homem a largar tudo pra trás. Aliás, a direção de Schumacher é competente na transmissão deste sentimento crescente de angústia, através do silencio que lentamente se transforma num barulho irritante, do travelling que passa pelas outras pessoas presentes nos carros parados no congestionamento, e do calor infernal daquele dia, refletido nas cores quentes da fotografia de Andrzej Bartkowiak. Quando William larga o carro parado na rua e sai andando, dizendo “Vou pra casa!”, sabemos que ele chegou ao limite.

Mas os problemas de William estavam apenas começando, pois a cidade grande ainda reservaria muitas situações desagradáveis, capazes de tirar a paciência de qualquer um. Momentos depois de deixar seu carro pra trás, ele entra numa loja, com a única intenção de comprar uma ficha telefônica. Mas, ao descobrir que teria que consumir algo e, pior do que isso, os preços abusivos praticados no local, ele explode. Obviamente, não se trata apenas da questão dos preços, que é apenas a chamada “gota d’água”. Aquela reação é apenas o resultado de todos os problemas que ele havia acumulado e que o levaram a destruir a loja e sair com o taco de beisebol que o dono dela iria usar para agredi-lo. Aliás, é interessante notar também como William jamais procura a violência, mas ela sempre acaba chegando até ele – e até mesmo as armas que carrega durante a narrativa surgem primeiramente nas mãos de seus agressores. A partir daí, o que vemos é um festival de situações que parecem corriqueiras, mas que são suficientes para tirar alguém do sério – o que, no caso de William, era algo mais fácil de acontecer, dadas as circunstâncias. Paralelamente, acompanhamos o trabalho de investigação da policia, que, inicialmente, não dá muita atenção ao caso, com exceção do praticamente aposentado Prendergast, que parece preocupado com as noticias que recebe. Graças à boa montagem de Paul Hirsch, a narrativa alterna com muita fluência entre o dia conturbado de William, a espera angustiada da ex-mulher dele em casa, as investigações da polícia e o drama da aposentadoria de Prendergast, demonstrando inteligência ao priorizar a linha narrativa mais interessante do longa, focando nos diversos problemas que cruzam o caminho de William. Também colabora com o clima de tensão a boa trilha sonora de James Newton Howard, que alterna entre momentos sombrios e agitados, como quando William invade a casa, enquanto Beth foge pela porta dos fundos.

No caminho de William, “Um Dia de Fúria” aproveita para criticar diversas situações normais do cotidiano nos grandes centros urbanos, como, por exemplo, a miscelânea cultural que se tornou a cidade de Los Angeles (e a maioria das grandes cidades do mundo hoje em dia), graças ao enorme número de imigrantes no país, representada pela gangue latina agredida com o taco de beisebol e pelos personagens chineses, japoneses e coreanos (interessante notar também como o filme critica o irritante vicio ocidental de confundir os povos destes países através dos comentários dos policiais). Além dos imigrantes, outra característica comum às grandes cidades, que também é reflexo do excesso de pessoas e da falta de oportunidades, é a grande quantidade de pedintes e mendigos que vagam pelas ruas, como aquele que irrita William (“Vá procurar emprego!”, diz ele, após ouvir o homem gritar “Me dá alguma coisa!”) e que ganha de presente, pra sua irritação, uma mala com duas frutas. Em outro momento, o longa faz uma excelente crítica aos fastfoods, através dos irritantes sorrisos forçados das atendentes, do tamanho e do aspecto do lanche (muito diferente da foto da propaganda) e da falta de tato das pessoas que ali trabalham para lidar com o cliente. Além disso, critica os bancos, mostrando o tratamento diferente dado aos “não economicamente viáveis”. Mas nem só de críticas vive “Um Dia de Fúria” e o clima tenso que predomina a narrativa faz a violência parecer um resultado inevitável diante de tudo que vemos. E por mais que a violência jamais se justifique, a reação maluca de William acaba se tornando compreensível, o que não quer dizer que devemos perdoá-lo (e confesso: entendo que a maioria das pessoas já viveu alguma situação em que ao menos pensou em fazer alguma loucura como esta). Felizmente, Joel Schumacher mostra qualidade na condução das ótimas cenas de violência do filme, como a briga com a gangue, o tiroteio em plena luz do dia, a bazuca disparada nas ruas que eram consertadas sem necessidade e o infarto de um jogador de golfe que se irritou com a invasão de seu terreno particular. Já a interessante seqüência que se passa na loja de um admirador do nazismo aproveita para pregar a ideologia americana da “liberdade de expressão”, além de fazer referência ao nome do filme, quando William diz que vai cair (“I’m falling down!”).

Evidentemente, a ótima atuação de Michael Douglas é essencial para que o espectador se envolva com a narrativa, transmitindo muito bem em seu semblante a fúria crescente do personagem, que enfrenta problemas com a esposa e a filha, provocados por seu temperamento explosivo. Vale destacar, entre tantos bons momentos do ator, sua expressão de surpresa ao constatar que, no mundo de hoje, um cirurgião plástico tem mais sucesso do que muitas outras profissões (o que reflete a crescente preocupação das pessoas com a aparência). Além disso, o ator emociona no tocante momento em que William se desespera ao ver sangue na mão da filha do criado da mansão, se esquecendo que era sangue dele mesmo e mostrando que ele tem seu lado bom, mas não consegue conter o temperamento explosivo, o que o levou a estourar diante de tantas situações estressantes em sua vida. Após este momento, a reflexão de William a respeito de tudo que perdeu também comove (e Douglas tem mérito nisso também), algo que os vídeos que assiste após invadir sua ex-casa comprovam, mostrando uma vida estável ao mesmo tempo em que já indicavam seu temperamento explosivo. E apesar de toda confusão que provoca, William demora a chamar a atenção da policia, com exceção do veterano policial Prendergast, interpretado pelo ótimo Robert Duvall, que será o responsável pela investigação que irá deter a fúria dele. Prestes a se aposentar, mas ainda trabalhando duro (apesar das criticas do chefe), o tranqüilo policial acompanha atentamente os acontecimentos do dia, ao mesmo tempo em que tenta convencer a esposa a deixá-lo resolver o caso ao invés de ir embora mais cedo pra casa, como ela queria. Aliás, Duvall retrata muito bem o trauma que a perda da filha causou no policial (o que explica a preocupação e a carência afetiva da esposa), tratando sua mulher com muito carinho e cuidado, até o momento em que não agüenta mais e explode também (talvez por reflexo da tensão crescente daquele dia). É interessante notar ainda o momento em que Prendergast fala para o capitão sobre a perda da menina, provocando o espanto de seu líder e evidenciando a falta de preocupação dele pela vida pessoal do funcionário, algo também comum nos dias de hoje. Mas este terrível trauma não tiraria a coragem dele. Determinado, o policial não descansaria enquanto não descobrisse o paradeiro do responsável por toda aquela confusão.

Depois de muitas tentativas frustradas de encontrar o “homem de gravata”, um simples outdoor pichado será a chave para que Prendergast se lembre de William e finalmente consiga encontrá-lo (num recurso interessante da narrativa, chamado “dica e recompensa”, que sempre agrada ao espectador). E após uma frustrada tentativa de reconciliação com a família, William se vê num verdadeiro duelo com Prendergast, que o leva a questionar espantado: “Eu sou o bandido? Como isto aconteceu?”. Só que infelizmente ele não teria tempo de descobrir como se transformou no vilão, e o duelo que segue culmina em sua morte, transformando-o em mais uma vítima do acelerado ritmo da vida moderna. O travelling final nos leva aos alegres vídeos de sua família, agora destruída, entre tantos outros fatores, por sua própria personalidade explosiva.

No transcurso de um dia, “Um Dia de Fúria” nos mostra os inúmeros problemas provocados pela vida moderna nas grandes cidades, através do drama enfrentado por seu personagem principal, alguém com tendência à violência e que encontrou, no acelerado ritmo contemporâneo, diversas situações capazes de provocar suas piores reações. Acertando ainda ao não justificar as ações de seu “vilão” com explicações mirabolantes, o longa deixa claro que, nas condições atuais, as chances de aparecer um maluco qualquer revoltado com o mundo a sua volta são consideravelmente maiores. E se levarmos em conta que o filme é de 1993, e que nossa vida ficou ainda mais estressante de lá pra cá, com certeza chagaremos a conclusão de que é bom abrirmos os olhos enquanto estamos parados no trânsito, pois qualquer pessoa em volta pode, de uma hora pra outra, resolver largar tudo pra trás.

Texto publicado em 11 de Maio de 2011 por Roberto Siqueira

INSTINTO SELVAGEM (1992)

(Basic Instinct)

 

Videoteca do Beto #83

Dirigido por Paul Verhoeven.

Elenco: Michael Douglas, Sharon Stone, Jeanne Tripplehorn, Dorothy Malone, George Dzundza, Denis Arndt, Leilani Sarelle, Bruce A. Young, Chelcie Ross, Wayne Knight, Daniel von Bargen, Stephen Tobolowsky, Benjamin Mouton e James Rebhorn.

Roteiro: Joe Eszterhas.

Produção: Alan Marshall.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Quando escrevi sobre “Cantando na Chuva”, afirmei que qualquer pessoa, ainda que não tivesse assistido ao filme, reconheceria a cena em que Gene Kelly canta e dança na chuva. Cenas deste tipo sempre existiram na história do cinema, mas nos anos 90 poucas foram tão marcantes quanto à cruzada de pernas de Sharon Stone em “Instinto Selvagem”. Só que o longa dirigido por Paul Verhoeven apresenta muito mais que as excelentes cenas eróticas, entregando um thriller eletrizante e repleto de suspense, que serve também como uma interessante análise psicológica das relações (sexuais ou não) humanas.

O assassinato de um cantor de rock chama a atenção da policia de São Francisco e a principal suspeita é a escritora Catherine Tramell (Sharon Stone). O policial Nick Curran (Michael Douglas) é designado para investigar o caso, mas acaba ficando fortemente atraído pela escritora, apesar dos protestos de seus companheiros de profissão, como Gus (George Dzundza) e a Dra. Beth (Jeanne Tripplehorn), que assim como Catherine, é formada em psicologia.

A famosa cena que marcou “Instinto Selvagem” e alçou Sharon Stone ao estrelato acontece ainda na primeira metade do filme, o que é bom, pois o espectador deixa de aguardar aquele momento e passa a se concentrar na narrativa. Nesta cena, apenas pela disposição dos personagens, Verhoeven cria uma incrível atmosfera de tensão e erotismo, com Catherine no centro da sala cercada de homens ávidos por uma confissão, mas sempre firme e contundente em suas respostas, que invariavelmente deixam estes mesmos homens desconcertados. Na medida em que as perguntas acontecem, o espectador sente o nervosismo crescente dos policiais, inconformados com a frieza daquela mulher. E então, repentinamente, ela cruza as pernas, deixando marmanjos eufóricos e os investigadores literalmente sem rumo, algo que o diretor capta com precisão através de um close rápido na reação deles. Desde então, fica evidente que a espontânea e astuta Catherine sabe muito bem utilizar a sensualidade a seu favor. Sempre insinuante e sensual, Sharon Stone oferece um desempenho eficiente, olhando diretamente nos olhos das pessoas e falando com muita firmeza, além de dizer palavrões e frases que os homens não esperam ouvir com tanta freqüência da boca de uma mulher (“Gostava dele?”, pergunta Nick e ela responde “Gostava de transar com ele”). Inteligente, Catherine sabia, por exemplo, que seu livro, como os próprios investigadores já previam, serviria como álibi no interrogatório, abrindo a possibilidade de que alguém tenha tentado incriminá-la, contrariando a sensação inicial de que ela é a assassina. E de fato alguns elementos reforçam a defesa de Catherine. Ela é rica (herdou uma fortuna dos pais e do marido) e por isso não precisa do dinheiro do astro de rock aposentado, usa seu conhecimento de psicologia “apenas” para extrair informações de pessoas que a inspiram a escrever seus livros e, principalmente após a morte de Roxy (Leilani Sarelle), começa a se mostrar vulnerável, algo impensável até aquele momento e que desarma Nick e o espectador (e neste aspecto, Stone tem muito crédito por conferir veracidade ao choro de Catherine). Michael Douglas também se sai bem na pele de Nick, um homem profundamente transformado diante da presença daquela mulher misteriosa e bela, que sabe tudo da vida dele e utiliza seu passado como arma para intimidá-lo. Atormentado, Nick volta a beber, a fumar, fica agressivo quando se relaciona sexualmente com a Dra. Beth e evidencia a cada minuto que está sendo sugado por Catherine – e Douglas transmite com precisão a crescente angústia do personagem. E finalmente, Jeanne Tripplehorn, ainda que com menos destaque, interpreta a ambígua Dra. Beth, colaborando com a dúvida que envolve a narrativa após a morte de Roxy.

A sensualidade que permeia “Instinto Selvagem” aparece logo na primeira cena, mas a trilha sinistra de Jerry Goldsmith também indica que nem só de erotismo viverá a narrativa, dando o tom do que veremos em poucos segundos, quando um movimento de câmera nos levará ao picador de gelo utilizado como arma letal para fazer a primeira vítima do filme. Esta cena deixa claro desde então o nível de realismo que veremos tanto nas cenas eróticas quanto nas cenas violentas, além de servir também para introduzir a misteriosa assassina na trama, nos mostrando do que ela é capaz. E apesar de inserir algumas seqüências com bastante ação, como a eletrizante perseguição de Nick na estrada, é na criação da perfeita atmosfera de erotismo e suspense que Verhoeven se destaca, explorando com habilidade as nuances do relacionamento entre Nick e Catherine, desde o momento em que ela fala sobre seu novo livro pra ele no carro e o close do diretor capta a tensão existente entre eles. É interessante observar, por exemplo, como mesmo sabendo os riscos que corria, Nick não consegue evitar que Catherine o amarre durante uma relação sexual, preferindo, naquele momento, se entregar ao prazer. O diretor é inteligente também ao explorar a sensualidade de Stone, não hesitando em mostrar o corpo da atriz em diversos momentos carregados de erotismo. E apesar de escorregar na obviedade de algumas situações, como o momento em que Roxy persegue Nick de carro (era previsível que não era Catherine), Verhoeven sempre busca manter o suspense através dos movimentos de câmera, especialmente nas cenas em que insinua que Catherine vai pegar o picador de gelo durante suas relações sexuais com Nick. Aliás, as insinuações estão presentes diversos momentos, como quando Catherine usa o picador de gelo diante de Nick enquanto prepara uma bebida.

A montagem de Frank J. Urioste colabora muito com este clima de suspense, especialmente nos tensos momentos que envolvem Nick e Catherine na cama, e as roupas sensuais de Catherine (figurinos de Nino Cerruti e Ellen Mirojnick) auxiliam na atmosfera erótica do longa. E apesar de alguns momentos nitidamente forçados (parece que ninguém se lembra de trancar a porta de sua residência durante a narrativa), o suspense funciona perfeitamente. Ainda nos aspectos técnicos, observe como quando Catherine se despe na janela sob o olhar de Nick, a fotografia vermelha de Jan de Bont ilustra ao mesmo tempo o desejo que cresce nele e a violência que naquele momento inconscientemente ligamos à personagem. E na medida em que Nick vai ficando cada vez mais neurótico e perturbado diante do jogo das duas psicólogas, de Bont passa a utilizar ambientes mais escuros e mais cenas noturnas, refletindo o estado psicológico do personagem.

Escrito por Joe Eszterhas, o roteiro de “Instinto Selvagem” é bastante ambíguo, nunca deixando claro se Catherine é mesmo a assassina. Sendo assim, a partir de determinado momento o espectador se vê num delicioso jogo de adivinhação, tentando descobrir quem é a misteriosa criminosa, através da introdução de uma série de subtramas que criam novas possibilidades, como o ciúme de Roxy ou a relação amorosa que Catherine viveu com a Dra. Beth no passado. Além disso, o longa faz um intrigante estudo psicológico de Nick através dos jogos de Catherine e Beth, que deixam tanto o personagem como o espectador constantemente em dúvida sobre qual delas está falando a verdade. Eszterhas insere ainda uma interessante rima narrativa durante o interrogatório de Nick, quando ele repete algumas das frases de Catherine, evidenciando o forte impacto que aquela mulher teve sobre ele. Aliás, a forma como ela envolve Nick é muito bem conduzida por Verhoeven, lentamente nos levando ao momento em que eles finalmente se relacionam sexualmente, em outra cena bastante explícita. E aqui novamente a atmosfera de tensão toma conta da tela, com os movimentos de câmera que remetem à primeira cena do filme e nos levam a temer a morte de Nick. Só que momentos depois do alívio, quando Roxy demonstra ciúme, Nick (e o espectador) começa a pensar em novas possibilidades e passa a desconfiar de Roxy também, afinal de contas, ela também é loira, estava na casa de Catherine na manhã seguinte ao crime e poderia ter matado o astro de rock por ciúmes. A descoberta do caso entre Catherine e Lisa Hoberman, antigo nome da Dra. Beth, abre outra possibilidade e confunde ainda mais o espectador, revelando que Nick estava de fato envolvido num perigoso jogo entre duas mulheres profundamente conhecedoras da mente humana. E este perigoso jogo nos leva à morte de Gus e da própria Beth, numa seqüência igualmente trágica e tensa, que revela a identidade da assassina. E apesar das claras evidencias de que Beth era mesmo a assassina, Nick ainda tem desconfianças, que serão confirmadas (ou não) pelo brilhante plano final de “Instinto Selvagem”. E é justamente nesta constante dúvida gerada pela ambigüidade do roteiro que reside um dos aspectos mais interessantes de um thriller repleto de erotismo e suspense, que não tem medo de ousar e por isso consegue criar uma atmosfera realmente envolvente.

Apresentando um interessante jogo psicológico, o thriller “Instinto Selvagem” surpreende positivamente ao explorar mais do que a sensualidade de sua atriz principal. Verhoeven soube utilizar cenas realmente eróticas numa narrativa inteligente, fugindo do lugar comum das grandes produções de Hollywood que normalmente suavizam o sexo, e de quebra, entregando uma das cenas mais emblemáticas da década de 90. Mas, infelizmente, como um feroz picador de gelo, a indústria cinematográfica resolveu eliminar este tipo de trabalho ousado nos anos seguintes.

PS: Como prova de que Hollywood não produz mais filmes tão ousados, basta assistir a puritana seqüência de “Instinto Selvagem”, que é infinitamente mais conservadora e menos interessante.

Texto publicado em 16 de Janeiro de 2011 por Roberto Siqueira