VIDAS EM JOGO (1997)

(The Game)

4 Estrelas 

Videoteca do Beto #180

Dirigido por David Fincher.

Elenco: Michael Douglas, Sean Penn, Deborah Kara Unger, James Rebhorn, Peter Donat, Carroll Baker, Anna Katarina, Armin Mueller-Stahl e Spike Jonze.

Roteiro: John D. Brancato e Michael Ferris.

Produção: Ceán Chaffin e Steve Golin.

Vidas em Jogo[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Somente um diretor talentoso como David Fincher pode transformar a implausível premissa deste “Vidas em Jogo” num thriller tão interessante. Não concorda? Pois então pare e pense por alguns minutos na complexidade do jogo criado pela empresa CRS e nas inúmeras possibilidades de rumos que a história poderia tomar dependendo das ações do “alvo” e você perceberá que nem o melhor planejamento do mundo poderia evitar colocar em risco toda a empreitada. Mudemos a pergunta então: pode um roteiro com um potencial tão grande para o fracasso se transformar num filme interessante? Nas mãos de um grande diretor a resposta sempre será: “sim”.

Escrito por John D. Brancato e Michael Ferris, “Vidas em Jogo” nos apresenta ao milionário Nicholas Van Orton (Michael Douglas), um acionista bem sucedido que ganha um inusitado presente de aniversário de seu irmão Conrad (Sean Penn): um cartão com os dados de contato de uma empresa especializada em entretenimento. Desconfiado, ele comparece ao local, preenche todos os formulários e realiza os testes físicos e psíquicos, mas sua inscrição é rejeitada. No entanto, após esbarrar com a garçonete Christine (Deborah Kara Unger) em seu restaurante favorito, coisas estranhas começam a acontecer e ele repentinamente percebe que está sendo envolvido em algo muito maior.

Bastam poucos minutos para que o espectador tenha acesso a algumas informações essenciais a respeito de Nicholas Van Orton. Seu escritório milimetricamente planejado, sua imponente casa (design de produção de Jeffrey Beecroft) e suas roupas finas e elegantes (figurinos de Michael Kaplan) evidenciam que estamos diante de alguém muito rico, enquanto as lembranças de sua infância e uma rápida conversa com a ex-esposa escancaram sua fragilidade emocional. Assim, não demora muito para que o vulnerável protagonista dispa-se da roupa de homem bem sucedido e apresente sua faceta frágil e humana, conquistando a empatia da plateia tão fundamental para o sucesso da narrativa.

Vivendo uma versão menos gananciosa e mais contida de seu personagem mais famoso no cinema, Michael Douglas novamente encarna um acionista bem sucedido, com a diferença de que aqui seu Nicholas Van Orton (ou Nick) é também um personagem claramente afetado por um forte trauma da infância: a perda do pai. Falando quase sempre num tom de voz baixo, Nick lentamente vai perdendo o controle da situação e a oscilação em seu tom de voz indica isto com precisão. Conforme a narrativa avança, o acionista se transforma numa pessoa constantemente tensa, que deixa sua zona de conforto para enfrentar situações inusitadas e extremamente perigosas que o levam ao limite extremo – e o ator demonstra tudo isto muito bem em seu semblante cada vez mais pesado. Irmãos muito diferentes, Nick preza pela discrição e pelo bom senso, enquanto o bon vivant Conrad não hesita em chamar a atenção de um restaurante lotado apenas porque deseja fumar. Mesmo surgindo poucas vezes em cena, Sean Penn tem participação fundamental em “Vidas em Jogo”, soando convincente especialmente quando seu Conrad mostra-se totalmente desesperado numa conversa no carro do irmão, enganando não apenas o protagonista como também o próprio espectador.

Acionista bem sucedidoSemblante cada vez mais pesadoDesesperadoAinda mais importante é a competente participação de Deborah Kara Unger como Christine, a misteriosa garçonete demitida que acompanha boa parte da trajetória do protagonista e que, em diversos momentos, direciona a linha de raciocínio dele e da plateia. Soando simultaneamente convincente e misteriosa, Unger se sai muito bem num papel difícil que poderia arruinar o projeto nas mãos de alguém menos talentosa, já que a dúvida que sua personagem gera no espectador é fundamental para o sucesso da narrativa. Assim, quando ela diz rispidamente para Nick acordar e perceber que foi pego num golpe, nós acreditamos nela – e o chá seguido pela notícia das contas zeradas nos faz cair de vez na armadilha preparada pela CRS. Encarnando um funcionário da CRS de maneira convincente, James Rebhorn é outro que mantém a aura de mistério que ronda a narrativa com precisão.

O engenhoso roteiro envolve praticamente todos os personagens numa aura misteriosa que torna tudo muito suspeito, chegando a pecar pelo excesso de planejamento, o que não prejudica totalmente a qualidade do filme, mas torna alguns momentos bastante implausíveis, como quando um taxi é atirado no rio com o protagonista dentro. E se ele não se lembrasse da maçaneta ou sofresse uma grave lesão na queda? Existiam mergulhadores de plantão, mas valeria o risco? Momentos como este existem em profusão em “Vidas em Jogo”, o que pode irritar espectadores mais céticos. Se pensarmos friamente, seria necessário envolver praticamente a cidade inteira para que o tal jogo funcionasse corretamente; e, o que é ainda mais complicado, seria necessário antever praticamente todos os passos de Nick e preparar-se para eventuais mudanças de rota. Como evitar o desastre então? A resposta está na maneira como a narrativa é conduzida.

Convincente e misteriosaAura de mistérioTaxi é atirado no rioEmpregando seus costumeiros planos simétricos e movimentos elegantes de câmera, David Fincher parece bem mais contido e discreto na maior parte do tempo, o que não impede que ele altere o ritmo drasticamente quando necessário, como na empolgante fuga de Nick e Christine da CRS em que um cachorro quase os alcança e nas eletrizantes perseguições noturnas pelas ruas da cidade. Obviamente, o visual obscuro obtido pela fotografia de Harris Savides colabora bastante para ampliar a tensão nestes instantes. Utilizando imagens desgastadas de arquivo para revelar as trágicas lembranças da infância de Nick, Savides prioriza cores sóbrias durante a maior parte do tempo, destacando-se pelo excelente uso das sombras nas predominantes cenas noturnas para realçar a aura de mistério da narrativa, reforçada ainda pela trilha sonora dissonante de Howard Shore.

Empolgante fuga de Nick e ChristineVisual obscuroTrágicas lembrançasContando ainda com a montagem dinâmica de James Haygood para conferir um ritmo crescente que ilustra a mente cada vez mais conturbada do protagonista, Fincher conduz a narrativa com destreza, construindo um suspense eficiente através de escolhas inteligentes. Observe, por exemplo, como o sorriso discreto de um dos homens no bar indica que Nick havia sido fisgado pelo jogo, funcionando também como uma discreta dica para o espectador. A conversa com o apresentador do telejornal logo em seguida confirma que ele já estava envolvido no jogo – e neste instante, o espectador também já está completamente envolvido pela narrativa. A estratégia é clara. Fincher nos coloca sempre na mesma posição do protagonista. O tempo inteiro, nós temos acesso às mesmas informações que ele e compartilhamos das mesmas dúvidas e angústias do personagem, numa escolha, aliás, que não é comum em suspenses. Normalmente, o suspense é potencializado quando sabemos algo que o personagem não sabe, mas neste caso, nós não temos nenhuma informação além das que Nick já tem. Assim, somos forçados a montar aquele quebra cabeça sob a perspectiva dele, o que é essencial para que “Vidas em Jogo” funcione.

Após cairmos em inúmeras armadilhas e nos envolvermos completamente com o drama de Nick, somos levados a chocante sequência final no prédio da CRS, na qual a tragédia completa parece se configurar, mas uma reviravolta interessante revela o grande truque por trás das cortinas e garante o final feliz. O problema é que este final, apesar de impactante, soa um tanto implausível quando passamos a pensar mais a respeito. Ainda assim, graças ao ótimo trabalho de Fincher e do seu elenco, o longa funciona bem.

Sorriso discretoConversa com o apresentador do telejornalChocante sequência finalConfirmando a teoria de que um bom diretor pode salvar um roteiro por mais falhas que este tenha, David Fincher fez deste “Vidas em Jogo” um thriller empolgante, capaz de manter o espectador tenso na maior parte do tempo, ainda que, quando repensamos a narrativa de uma maneira mais lógica, esta tensão possa se transformar em questionamentos e gerar certa frustração.

Vidas em Jogo foto 2Texto publicado em 25 de Novembro de 2013 por Roberto Siqueira

PERFUME DE MULHER (1992)

(Scent of a Woman)

 

Videoteca do Beto #89

Dirigido por Martin Brest.

Elenco: Al Pacino, Chris O’Donnell, James Rebhorn, Gabrielle Anwar, Phillip Seymour Hoffman, Richard Venture, Bradley Whitford, Rochelle Oliver, Margaret Eginton, Tom Riis Farrell, Nicholas Sadler e Todd Louiso.

Roteiro: Bo Goldman, baseado em roteiro do filme “Perfume de mulher” (1974), escrito por Giovanni Arpino.

Produção: Martin Brest.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Al Pacino já era um ator mais que consagrado quando recebeu seu primeiro Oscar de melhor ator por sua excepcional atuação neste belo “Perfume de Mulher”, que conta a história de um homem amargurado, que reencontra a vontade de viver ao lado de um jovem tímido, porém firme em seus princípios. Entretanto, mais interessante que a própria história narrada é conferir a atuação fantástica de Pacino e a trajetória de seu fascinante personagem.

O jovem Charlie Simms (Chris O’Donnell) resolve ajudar um ex-tenente-coronel cego (Al Pacino) do exército americano durante o fim de semana de Ação de Graças, como forma de garantir o seu Natal com a família. Só que o tenente Frank tinha outros planos e resolve viajar com Charlie para Nova York, onde pretende reviver todos os prazeres da vida antes de se suicidar. Mas no caminho ele começa a se interessar pelos problemas do jovem e esta convivência poderá mudar o seu destino.

Apesar dos primeiros planos de “Perfume de Mulher” mostrarem os locais vazios da escola onde a narrativa se encerrará, é na trama que se passa entre estes dois momentos (e, portanto, fora da escola) que está o segredo do sucesso do longa. Felizmente, a montagem de Harvey Rosenstock, William Steinkamp e Michael Tronick, essencial na famosa cena do tango, acerta ao focar no relacionamento entre Frank e Charlie, deixando pouco tempo de projeção para a desinteressante trama na escola, que, por outro lado, é necessária para estabelecer o conflito que aproximará Charlie de Frank. E apesar dos excelentes diálogos formarem a base do sucesso da narrativa, o diretor Martin Brest entrega ainda momentos visualmente marcantes, como a bela cena em que Frank dirige uma Ferrari e realiza seu sonho, fazendo com que ele diga para o policial que Charlie era “seu garoto”. De fato, ele poderia dizer isto, já que naquele momento a relação dos dois já era próxima da relação entre pai e filho, até porque Frank não tinha proximidade com ninguém da família e Charlie não se relacionava bem com o pai adotivo. Juntos, eles aprendem muito um com o outro. O diretor também emprega movimentos estilísticos, como o plano-seqüência que acompanha Charlie saindo da escola com os colegas enquanto um deles o convida para ir à Suíça, mas é mesmo na marcante cena da dança de tango que Brest se destaca, entregando um momento sublime, onde as imagens e a música se complementam. A dança romântica mostra como Frank sabe lidar com as mulheres, conquistando a moça com seu jeito simpático e fazendo com que ela alfinete o namorado quando ele chega, saindo do local sem conseguir deixar de olhar para Frank e Charlie. Ainda existia algo de muito bom dentro daquele homem amargurado.

Escrito por Bo Goldman (baseado em roteiro do filme “Perfume de mulher”, de 1974, escrito por Giovanni Arpino), o roteiro de “Perfume de Mulher” brinda o espectador com diálogos maravilhosos e muito bem construídos, como no tenso primeiro encontro entre o amargo (cruel até) Frank e o assustado Charlie, que serve para mostrar o difícil caminho que aquela amizade teria que percorrer (“No domingo serão grandes amigos”, prevê a filha de Frank). E apesar de seguir o inevitável clichê “brigam no começo e depois se tornam grandes amigos”, esta evolução acontece de maneira natural, algo reforçado até mesmo pela fotografia crua de Donald E. Thorin, que realça o realismo do longa e ainda utiliza cores sem vida para ilustrar a tristeza tanto de Frank quanto de Charlie. Aliás, esta tristeza é realçada também pela melancólica trilha sonora do bom Thomas Newman, que utiliza toques suaves de piano na maior parte do tempo.

Mas apesar do bom trabalho técnico, é na condução dos atores que Brest se destaca, extraindo grandes atuações de todo o elenco. A começar por Phillip Seymour Hoffman, que já mostrava talento aqui como o mimado George Willis Jr., se destacando especialmente na conversa no gabinete do rígido diretor interpretado pelo eterno (e bom) coadjuvante James Rebhorn. Até mesmo o mediano Chris O’Donnell consegue um bom desempenho, pois, felizmente, sua inexpressividade se encaixa bem no papel de Charlie, um jovem igualmente contido. Observe, por exemplo, a cena em que a família de Frank, incomodada com sua visita, troca olhares nada amigáveis e Charlie percebe isto rapidamente (“Ele é seu irmão?”, pergunta espantado) ou a cena em que ele pergunta se “George está” e a pessoa responde “George pai ou filho?”, provocando espanto no rapaz porque Frank adivinhou o nome do pai de George. O’Donnell vive ainda seu grande momento no tenso diálogo em que Frank está com uma arma na mão, quando, ofegante, demonstra bem o desespero do personagem enquanto desafia o tenente. Após a tensão, o choro convincente de O’Donnell e a voz tranqüila de Pacino mostram as formas diferentes de cada um extravasar. Finalmente, a boa dinâmica entre Pacino e O’Donnell é vital para o sucesso da narrativa e ambos conseguem sucesso.

Desde sua perfeita introdução, que cria uma atmosfera tensa através das palavras de sua filha, dos gritos para não entrar com o gato e da própria casa em que vive, com ares de abandonada (assim como ele é abandonado na vida), Frank se mostra um personagem fascinante, interpretado pelo igualmente fascinante Al Pacino. Com sua característica intensidade se revezando com momentos de uma sublime melancolia, Pacino interpreta com absoluta competência este homem cego, a começar pelo básico, ou seja, mantendo o olhar perdido, sem foco, tateando os objetos e alterando repentinamente o tom de voz como quem não sabe a que distancia se encontra a pessoa até que ela se manifeste – além de manter o curioso hábito de gritar (Uah!) sempre que algo lhe agrada. Porém, não é apenas na demonstração de cegueira que este grande ator compõe este complexo personagem, mostrando uma amargura profunda através de suas palavras, da forma como ele as pronuncia e de seu jeito durão, um claro resquício dos tempos de exército (“Toque me de novo e eu te mato, filho da puta!”, diz para Charlie). Repare, por exemplo, o desagradável jantar na casa de seu irmão, onde um diálogo expositivo entre Frank e o sobrinho Randy (Bradley Whitford) explica como ele ficou cego. Nesta discussão, a tensão palpável cresce lentamente e o espectador sente, por causa da intensidade de Pacino, que a qualquer momento Frank pode explodir diante das ofensas do sobrinho – o que de fato acontece, quando Randy chama Charlie de Chuck novamente. Frank é um homem amargo, que não vê mais sentido na vida e acha tudo “uma merda”, e até por isso planeja reviver seus grandes prazeres, somente para depois suicidar-se. Seu terno cinza e sem vida (figurinos de Aude Bronson-Howard) reflete seu estado de espírito durante grande parte da narrativa. Mas existe algo que renova o espírito do depressivo Frank: a mulher. O primeiro sinal do poder que o sexo oposto tem sobre ele aparece quando Frank reconhece o perfume de uma aeromoça e inicia outro delicioso diálogo com Charlie, prendendo a atenção do jovem rapaz e do espectador com suas palavras e, principalmente, pela forma como ele as pronuncia, como quem realmente sente muito prazer com tudo aquilo. Esta enorme paixão pelas mulheres atinge seu auge no delicioso diálogo que precede a famosa dança de tango, onde a forma como Frank aborda a bela moça chamada Donna (Gabrielle Anwar) e a convence é sensacional – e Pacino tem muito mérito nisto, por conferir veracidade aquelas palavras e se mostrar encantador. Repare ainda como mesmo não vendo a acompanhante de luxo de Frank, apenas pelo “que beleza de mulher” de Pacino nós acreditamos que era uma mulher maravilhosa. Sob aquela couraça de tristeza e amargura existia um homem bom, que ameaça aparecer no tocante momento em que Charlie cita as muitas qualidades de Frank e ele, sem querer demonstrar, fica claramente lisonjeado. Mas este homem só aparecerá de verdade no julgamento de Charlie.

E apesar de previsível, o julgamento de Charlie rende outro momento marcante da excepcional atuação de Al Pacino, que convence a comissão julgadora e salva o futuro do rapaz. Antes um homem amargo, porém sempre encantador com as mulheres, Frank agora se sente renovado (e até mesmo seu terno mais escuro confere vida ao personagem e ilustra esta mudança), o que lhe permite inclusive brincar com as crianças quando volta pra casa. No caminho, pra não perder o costume, encanta outra mulher, que desta vez poderá lhe render algo que sempre sonhou: uma relação estável (“Quero acordar no outro dia e continuar sentindo o perfume”). Apesar de não enxergar, Frank continuava sentindo a presença daquelas que ainda lhe proporcionavam algum prazer na vida, o que explica a importância do tal perfume que dá nome ao filme.

Com uma atuação esplêndida de um dos grandes atores da história do cinema, “Perfume de Mulher” nos mostra como uma pessoa pode se degradar e se regenerar apenas por causa de quem convive com ela. A importância de se sentir querido, amado e respeitado é abordada neste filme tocante, dirigido com sensibilidade por Martin Brest. Em outras palavras, existem momentos em que sentir é mais importante do que enxergar.

Texto publicado em 09 de Março de 2011 por Roberto Siqueira

O ÓLEO DE LORENZO (1992)

(Lorenzo’s Oil)

 

Videoteca do Beto #86

Dirigido por George Miller.

Elenco: Susan Sarandon, Nick Nolte, Zack O’Malley Greenburg, Peter Ustinov, Kathleen Wilhoite, Gerry Bamman, Margo Martindale, Maduka Steady, James Rebhorn, Ann Hearn e Laura Linney.

Roteiro: George Miller e Nick Enright.

Produção: George Miller e Doug Mitchell.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Algumas histórias são tão poderosas que nem mesmo os mais competentes profissionais conseguem transpor para a tela toda sua essência. Felizmente, não é o caso deste tocante “O Óleo de Lorenzo”, certamente o melhor trabalho da irregular carreira de George Miller. Captando com incrível competência a aura de sofrimento e angústia da família Odone e, ao mesmo tempo, realçando a luta daqueles pais obstinados na busca pela cura de uma cruel doença, o diretor e seu talentoso elenco entregam um filme magnífico, capaz de abalar as estruturas do espectador, especialmente (mas não exclusivamente) daqueles que já têm filhos.

O jovem Lorenzo leva uma vida normal até ser diagnosticada uma rara doença conhecida como ALD, que provoca uma degeneração do cérebro, levando o paciente à inevitável morte em poucos anos. Inconformados com a falta de tratamento, seus pais Augusto (Nick Nolte) e Michaela (Susan Saradon) decidem estudar por conta própria as causas da doença, na esperança de conseguir descobrir alguma forma de deter seu avanço, mas encontram a resistência dos médicos e da Associação dos pais de crianças portadoras da ALD.

Escrito por George Miller e Nick Enright, “O Óleo de Lorenzo” nos conta em detalhes a história real da dolorosa batalha enfrentada pela família Odone na tentativa de salvar seu filho Lorenzo – e independente de suas qualidades cinematográficas, a história já seria suficiente para comover as pessoas que tem filho (s). Mas Miller não se contenta apenas com seu tema forte, imprimindo um bom ritmo à narrativa, que, apesar de ser inevitavelmente episódica, cobre diversos anos da vida dos Odone sem jamais soar cansativa. Contando com a montagem de Marcus D’Arcy e Richard Francis-Bruce, Miller cria alguns momentos em que a passagem do tempo é indicada sutilmente, como quando Michaela, após ter seu pedido de ajuda recusado, diz para uma jornalista que ela deveria conhecer Lorenzo e, no plano seguinte, vemos Augusto agradecendo a doação e uma senhora chegando a casa dizendo que leu o anúncio no jornal. Além disso, o constante uso de fades (quando a tela escurece na transição entre duas cenas) aumenta a sensação de angústia, de perda e de desolamento no espectador, refletindo o sentimento de Augusto e Michaela. Esta atmosfera carregada nos suga pra dentro da narrativa, criando um constante clima de aflição, que ainda assim, jamais permite que os pais abandonem o menino. E o mais curioso é que apesar do início da narrativa na África fazer alusão ao misticismo e à fé (se apegar à fé é algo que poderíamos esperar de qualquer pessoa nesta situação), é na ciência que o casal vai encontrar uma forma de conter a grave doença de seu filho – ainda assim, a amizade de Omouri (Maduka Steady) será fundamental na recuperação do garoto e sua chegada dará ainda mais forças ao bravo Lorenzo.

Ainda na direção, vale destacar alguns inteligentes movimentos de câmera de Miller, como o contra-plongèe que esmaga o casal na igreja enquanto Michaela olha pra cima procurando ajuda divina ou o plano fixo que destaca a reação dos pais enquanto o médico fala sobre a doença. Neste momento, aliás, a espetacular Susan Saradon demonstra com precisão a dor da mãe ao ouvir o implacável diagnóstico do especialista, com os olhos marejados, a voz embargada e um misto de força e fraqueza no rosto incrédulo. Incrédulo também está Nolte, que se contém, até como uma forma de dar mais força para a esposa. Momentos antes, Miller introduz lentamente os elementos que indicam a gravidade da situação, como quando a câmera passa por Michaela, vai até a janela e mostra as crianças correndo em direção a Lorenzo, somente para em seguida uma garota entrar na casa e dizer que “Lorenzo caiu da bicicleta e está sangrando muito”. Após o cruel diagnóstico, o diretor, auxiliado pela fotografia de John Seale, afunda Nolte nas sombras quando Augusto inicia as pesquisas na biblioteca e, em seguida, um close em seus olhos realça seu desespero enquanto lê sobre as terríveis conseqüências da doença, nos levando à forte cena em que o pai, desesperado, grita de dor e despenca pelas escadas, pontuado pela evocativa trilha sonora de Christine Woodruff – que neste instante utiliza a mesma música tema de “Platoon”, mas durante toda a narrativa espalha temas obscuros, repletos de vozes que formam uma espécie de coral cantando música erudita, o que novamente faz referencia à fé. Este visual sombrio predomina boa parte da narrativa, como quando a família se deita na cama, também escondida sob as sombras, e o plano seguinte, com o clima nublado e chuvoso, indica o futuro complicado que eles teriam pela frente, ou quando eles estão olhando para as estrelas da janela, novamente com a escuridão tomando conta da tela.

George Miller confirma sua inteligência ao empregar com freqüência o close, que normalmente serve para realçar as reações dos atores, conseguindo extrair atuações muito fortes e convincentes de todo o elenco. Com a câmera próxima, ele enfatiza o sofrimento daquela família e, além disso, nos passa uma sensação claustrofóbica, criando um forte incomodo enquanto acompanhamos aqueles pais obstinados em busca da cura da rara doença do filho. Interpretada de maneira emocionante por Saradon, Michaela é uma mãe obstinada, que não desiste jamais, chegando ao ponto de entrar em contato com laboratórios, médicos, especialistas e tudo que for preciso para conseguir salvar o filho, ainda que raramente tenha forças para sair do lado dele. Enquanto isto, Nick Nolte apresenta um sotaque acidentado, além dos tradicionais gestos e gritos que compõem o típico personagem de origem italiana, mas cumpre bem o papel do determinado Augusto, demonstrando devoção na luta pela vida de Lorenzo. E se são muitos os momentos de destaque na atuação de Saradon, como a citada reação à notícia da doença ou as explosões de Michaela contra as enfermeiras que “cuidam” de Lorenzo, Nolte se destaca quando recebe a ligação que informa a redução dos níveis de C24 e C26 no sangue do garoto, reagindo de maneira comovente. Já o pequeno Lorenzo é interpretado por diversos atores, mas o grande destaque fica para Zack O’Malley Greenburg, que expressa todo o sofrimento do garoto através de sua dificuldade pra caminhar e falar, de suas tosses e, principalmente, durante as fortíssimas convulsões. E fechando a família, Kathleen Wilhoite se sai bem como Deirdre, especialmente na realista discussão com o casal Odone que resulta em sua saída da casa, logo após o plano em que a vemos conversando com Augusto e Michaela aparece na porta ao fundo. Após esta discussão, Augusto desabafa e culpa a esposa pela doença do filho (algo reprovável, mas compreensível diante de tanto sofrimento), num momento tocante, que expõe o limite daquele homem.

Além destes momentos, podemos destacar a grande atuação coletiva no tenso jantar na casa dos Odone com a família Muscatine (James Rebhorn e Ann Hearn), onde os interesses aparecem, mas também a dor de cada pai e mãe ali presente, apunhalados pelo destino e tendo que enfrentar um terrível sofrimento. A esperança dos Odone se choca diretamente com o ceticismo dos Muscatine, já sem esperança diante de tudo que viveram. Ainda assim, parece que a Associação comandada por eles está mais preocupada com o bem estar dos pais do que com as crianças, pensando inclusive em vender livros de receitas para gerar lucro, algo que fica evidente quando Loretta Muscatine pergunta “Qual é a pressa?”, levando Michaela a parar de mexer a comida (algo evidenciado pelo plano de Miller) e responder com raiva “Acho que nós duas sabemos a resposta para esta pergunta fútil”. Somando tudo isto a sempre comedida reação dos médicos diante das descobertas dos Odone, temos a sensação de que somente Augusto e Michaela estavam interessados em encontrar a cura daquela doença, sem se importar com as enormes barreiras existentes no caminho.

E então chegamos ao comovente momento em que Augusto pergunta à Michaela se ela “já pensou que toda esta luta pode ter sido para ajudar a criança de outrem”, jogando o espectador na lona e inevitavelmente trazendo as lágrimas. E de fato, a luta do casal não conseguiu reverter o quadro de Lorenzo, mas estagnou a doença e lentamente começou a recuperar alguns de seus sentidos. Por isso, quando ele move um dedo, temos a sensação eufórica de que todo aquele esforço não foi em vão – e a recompensa final vem nos créditos do filmes, quando dezenas de garotos curados pelo óleo de Lorenzo justificam toda aquela luta. O último plano do longa, com o pensamento de Lorenzo ganhando voz enquanto ele olha para o alto, nos deixa a sensação de que “O Óleo de Lorenzo” é um filme devastador em praticamente toda sua duração, mas vale a pena aguardar por seu final inspirador.

Com atuações magníficas (especialmente de Susan Saradon) e a segura direção de George Miller, “O Óleo de Lorenzo” comove sem ser melodramático, justamente porque a história que o inspira é suficiente para nos emocionar. E se durante grande parte da narrativa somos esmagados por sua atmosfera triste e devastadora, somos recompensados por seu belo final, que se não chega a ser otimista, pelo menos nos ensina a força que nós temos quando buscamos algo de verdade.

Texto publicado em 06 de Fevereiro de 2011 por Roberto Siqueira