(Waterworld)
Videoteca do Beto #138
Dirigido por Kevin Reynolds.
Elenco: Kevin Costner, Dennis Hopper, Jeanne Tripplehorn, Tina Majorino, Leonardo Cimino, Rick Aviles, Zakes Mokae, Chaim Girafi, R.D. Call, Zitto Kazann e Jack Black.
Roteiro: Peter Rader e David Twohy.
Produção: John Davis, Charles Gordon, Lawrence Gordon e Kevin Costner.
[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].
Apesar de tentar evitar assuntos que envolvem os bastidores de uma produção, é praticamente impossível escrever sobre “Waterworld” sem abordar estas questões. Filme mais caro do mundo na época, o longa de Kevin Reynolds enfrentou diversos problemas em sua fase de produção, que iam desde a destruição total de um cenário (a colônia de escravos, onde provavelmente estariam os “escravistas” citados no início) até brigas envolvendo o diretor e seu astro principal, que culminaram no abandono do primeiro durante o projeto. Some a isto a costumeira dificuldade de filmar no mar e a péssima recepção dos críticos e você terá todos os ingredientes de um enorme fracasso – que de fato se consumou, mesmo com a bilheteria ao redor do mundo ajudando a pagar o gigantesco custo de aproximadamente 200 milhões de dólares.
Mas calma. Apesar da chuva de críticas, este não é o pior filme de todos os tempos. Desconte o hype negativo da época e a megalomania de Kevin Costner (na época, muito poderoso em Hollywood) e você terá boas cenas de ação e uma premissa até interessante que, infelizmente, não é bem desenvolvida pelo fraco roteiro. Escrito por Peter Rader e David Twohy, “Waterworld” inicia com uma curiosa brincadeira com o logo da Universal, informando que num futuro distante as calotas polares derreteram e cobriram a superfície da Terra com água, obrigando aqueles que sobreviveram a se adaptarem a um novo mundo. Interessante, não? Depois disto, conhecemos o personagem sem nome de Kevin Costner – chamado pelos outros de Mariner -, que, após ser capturado num Atol (uma espécie de cidade sobre a água), se vê obrigado a proteger Helen (Jeanne Tripplehorn) e a jovem Enola (Tina Majorino) em troca de sua liberdade. O problema é que os Smokers, liderados pelo diácono (Dennis Hopper), estão procurando justamente a menina, que muitos acreditam ter o mapa da mítica “Terra Seca” tatuado nas costas.
É realmente uma pena, portanto, que após este início promissor os roteiristas não saibam o que fazer e desenvolvam a história de maneira tão irregular. Entretanto, apesar do péssimo material que tem em mãos, Kevin Reynolds até consegue criar bons momentos, como a sequência da invasão do Atol e a fuga de Mariner de um mercado tomado pelos Smokers, compondo ainda planos plasticamente interessantes, como nas belas imagens do barco navegando solitário no mar, e outros surpreendentemente eficientes, como após a briga de Mariner com um nômade no interior do barco, onde o posicionamento da câmera cria um pequeno suspense ao mostrar o adversário surgindo primeiro antes de revelar a ferida em suas costas. Mas, apesar destes bons momentos, o diretor não consegue salvar o longa do fracasso.
Outro momento interessante é a apresentação de Mariner e de seu barco funcional, mostrando a capacidade de raciocinar rapidamente do personagem e a imponência das velas de sua embarcação quando ele deixa outro nômade a mercê dos Smokers e foge. Um dos melhores “personagens” de “Waterworld”, o barco de Mariner consegue a proeza de fazer com que o espectador sinta a sua falta tanto quanto a de Enola quando sai de cena, ainda no segundo ato. Mas se estas cenas funcionam bem, por outro lado o conflito que provoca a prisão de Mariner no Atol é pouco verossímil, surgindo apenas para revelar a origem mutante do personagem – o próprio conceito de mutação, aliás, também poderia ser mais bem desenvolvido. De qualquer modo, até a invasão do Atol a narrativa caminha bem e a chegada dos Smokers ao local inicia a melhor sequência do filme. Alternando entre os planos sem jamais soar confuso, Reynolds conduz a sequência com dinamismo, numa cena de tirar o fôlego que garante bons momentos de ação e comprova o excepcional trabalho do design de som, notável em todo o filme. Tecnicamente, vale destacar também a trilha sonora de James Newton Howard, que aposta no alto e bom som para embalar as cenas de ação, apesar de empregar corretamente sons que evocam o mar em alguns instantes.
Além do funcional barco de Mariner, o interessante Atol construído a partir de restos de materiais realça o bom trabalho de direção de arte de David Klassen. Seguindo o mesmo raciocínio, os criativos figurinos de John Bloomfield criam roupas acinzentadas a partir de sobras de materiais e restos de peixes, enquanto a fotografia de Dean Semler realça este mundo sem vida na maior parte do tempo, criando um contraste interessante com as belas imagens do oceano e dando ao longa um visual decadente pós-apocalíptico que lembra muito a série “Mad Max”. Aliás, as semelhanças com a série de George Miller não param por aí, já que aqui o protagonista também é um homem solitário e o petróleo tem grande importância comercial. A diferença é que no mundo das águas a terra também é muito valorizada (não me pergunte por que), dando uma vantagem econômica considerável ao mutante Mariner, que pode buscá-la no fundo do mar graças às suas guelras e membranas que lhe permitem mergulhar e respirar em baixo d´água.
Sempre durão e com a cara fechada, o Mariner de Costner parece não confiar em ninguém, o que é normal diante das condições em que ele vive, vagando solitário pelos oceanos. Segundo Enola, “ele não tem nome, assim a morte não o encontra”, e de fato o ator convence como durão, transmitindo a força que o personagem exige. Mas apesar de se sair bem como nômade solitário, ele não consegue carregar o projeto sozinho, falhando, por exemplo, na relação com Helen. E se o segundo ato é bastante irregular, é também porque foca demasiadamente na relação entre Mariner, Helen e Enola, prejudicada pela falta de química entre Costner e Tripplehorn. Felizmente, se Tina Majorino transita entre o carisma e a chatice com sua Enola, ao menos garante momentos de alivio cômico durante sua conturbada relação com Mariner, através dos desenhos no barco e do corte do cabelo delas em certo instante. Apesar da irregularidade, a relação deles ainda traz um belo momento quando Mariner ensina a garota a nadar. Por outro lado, novamente o roteiro sabota os atores através de seus diálogos risíveis, como quando Helen pergunta se eles conseguem escapar de um avião e Mariner diz: “Não com as velas abaixadas”, como se um veleiro fosse capaz de fugir de um avião. E até mesmo o conceito de fuga soa totalmente sem sentido num mundo coberto pela água e, portanto, com raros locais capazes de “esconder” alguém. Fechando o elenco, Hopper parece se divertir como o Diácono na maior parte do tempo, mas exagera na dose soando extremamente caricato em muitos momentos.
Em certo momento, Helen reclama da falta de comida e nos leva a outra cena embaraçosa. A pesca do peixe gigante, além de pouco convincente, surge apenas para revelar os fracos efeitos visuais de “Waterworld”, confirmados na visita ao fundo do mar e na explosão do navio dos Smokers. Mas nada que se compare aos erros primários de Peter Rader e David Twohy que, além de todos os problemas citados, ainda incluem diálogos expositivos, como no primeiro contato com um nômade que serve apenas para explicar algumas regras daquele mundo pós-apocalíptico, e um discurso ridículo do Diácono para os Smokers.
Investindo num enigma pouco criativo envolvendo o mapa nas costas de Enola, o confuso conceito da “Terra Seca” também parece apenas uma ideia jogada na narrativa, sem que os roteiristas tivessem o cuidado de desenvolvê-la melhor. Aliás, o roteiro falha terrivelmente sempre que tenta explorar os conceitos daquele mundo, deixando algumas questões em aberto como: quem são e o que pretendem os Smokers? De onde eles tiram tanto “petro-suco” (uma refinaria, talvez?). Além disso, porque eles desistem de perseguir Mariner em diversos momentos mesmo estando motorizados enquanto o alvo segue num barco a vela. Quando pensamos sobre a origem da “Terra Seca”, que surge no ato final, a coisa fica ainda mais confusa. Se Enola tem por volta de seis anos e nasceu lá, significa que aquele local jamais submergiu, o que torna inexplicável a decisão dos pais de enviarem a garota num cesto dentro daquele mar hostil. E se o local submergiu, a “evolução” que trouxe mutantes não pode ter acontecido em tão pouco tempo, até porque o Diácono diz em certo momento: “estamos perto St. Joe, depois de SÉCULOS de vergonha”. Em resumo, tudo é muito confuso e mal desenvolvido em “Waterworld”.
O terceiro ato consegue ser ainda mais irregular que o segundo, apresentando raros momentos interessantes, como o confronto verbal entre Mariner e o Diácono que resulta na explosão do local (“Ele nunca blefa”, diz Enola), mas transforma o protagonista num verdadeiro MacGyver, sendo capaz de enfrentar sozinho todos os Smokers, explodir o navio, impedir a fuga do Diácono de avião (repare que todos os objetos que ele precisa estão no lugar, só esperando para serem utilizados), recuperar Enola, perdê-la novamente e se atirar do alto de um balão no meio do oceano para recuperar definitivamente a garota, provocando ainda a morte dos últimos inimigos (Ufa! Só de digitar fiquei cansado).
Prejudicado pelo hype negativo da época e pelos diversos problemas na produção, “Waterworld” está longe de ser um grande filme, mas também não é a porcaria que muitos afirmaram em seu lançamento. Apesar da fragilidade com que desenvolve sua interessante premissa, trata-se de um filme de ação correto, bastante irregular é verdade, mas com momentos interessantes, especialmente em seu primeiro ato. É pouco para salvá-lo, mas, por outro lado, o longa não merecia ser o responsável por – com o perdão do trocadilho – afundar a carreira de muitos dos envolvidos em sua produção.
Texto publicado em 30 de Setembro de 2012 por Roberto Siqueira