WATERWORLD – O SEGREDO DAS ÁGUAS (1995)

(Waterworld)

 

Videoteca do Beto #138

Dirigido por Kevin Reynolds.

Elenco: Kevin Costner, Dennis Hopper, Jeanne Tripplehorn, Tina Majorino, Leonardo Cimino, Rick Aviles, Zakes Mokae, Chaim Girafi, R.D. Call, Zitto Kazann e Jack Black.

Roteiro: Peter Rader e David Twohy.

Produção: John Davis, Charles Gordon, Lawrence Gordon e Kevin Costner.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Apesar de tentar evitar assuntos que envolvem os bastidores de uma produção, é praticamente impossível escrever sobre “Waterworld” sem abordar estas questões. Filme mais caro do mundo na época, o longa de Kevin Reynolds enfrentou diversos problemas em sua fase de produção, que iam desde a destruição total de um cenário (a colônia de escravos, onde provavelmente estariam os “escravistas” citados no início) até brigas envolvendo o diretor e seu astro principal, que culminaram no abandono do primeiro durante o projeto. Some a isto a costumeira dificuldade de filmar no mar e a péssima recepção dos críticos e você terá todos os ingredientes de um enorme fracasso – que de fato se consumou, mesmo com a bilheteria ao redor do mundo ajudando a pagar o gigantesco custo de aproximadamente 200 milhões de dólares.

Mas calma. Apesar da chuva de críticas, este não é o pior filme de todos os tempos. Desconte o hype negativo da época e a megalomania de Kevin Costner (na época, muito poderoso em Hollywood) e você terá boas cenas de ação e uma premissa até interessante que, infelizmente, não é bem desenvolvida pelo fraco roteiro. Escrito por Peter Rader e David Twohy, “Waterworld” inicia com uma curiosa brincadeira com o logo da Universal, informando que num futuro distante as calotas polares derreteram e cobriram a superfície da Terra com água, obrigando aqueles que sobreviveram a se adaptarem a um novo mundo. Interessante, não? Depois disto, conhecemos o personagem sem nome de Kevin Costner – chamado pelos outros de Mariner -, que, após ser capturado num Atol (uma espécie de cidade sobre a água), se vê obrigado a proteger Helen (Jeanne Tripplehorn) e a jovem Enola (Tina Majorino) em troca de sua liberdade. O problema é que os Smokers, liderados pelo diácono (Dennis Hopper), estão procurando justamente a menina, que muitos acreditam ter o mapa da mítica “Terra Seca” tatuado nas costas.

É realmente uma pena, portanto, que após este início promissor os roteiristas não saibam o que fazer e desenvolvam a história de maneira tão irregular. Entretanto, apesar do péssimo material que tem em mãos, Kevin Reynolds até consegue criar bons momentos, como a sequência da invasão do Atol e a fuga de Mariner de um mercado tomado pelos Smokers, compondo ainda planos plasticamente interessantes, como nas belas imagens do barco navegando solitário no mar, e outros surpreendentemente eficientes, como após a briga de Mariner com um nômade no interior do barco, onde o posicionamento da câmera cria um pequeno suspense ao mostrar o adversário surgindo primeiro antes de revelar a ferida em suas costas. Mas, apesar destes bons momentos, o diretor não consegue salvar o longa do fracasso.

Outro momento interessante é a apresentação de Mariner e de seu barco funcional, mostrando a capacidade de raciocinar rapidamente do personagem e a imponência das velas de sua embarcação quando ele deixa outro nômade a mercê dos Smokers e foge. Um dos melhores “personagens” de “Waterworld”, o barco de Mariner consegue a proeza de fazer com que o espectador sinta a sua falta tanto quanto a de Enola quando sai de cena, ainda no segundo ato. Mas se estas cenas funcionam bem, por outro lado o conflito que provoca a prisão de Mariner no Atol é pouco verossímil, surgindo apenas para revelar a origem mutante do personagem – o próprio conceito de mutação, aliás, também poderia ser mais bem desenvolvido. De qualquer modo, até a invasão do Atol a narrativa caminha bem e a chegada dos Smokers ao local inicia a melhor sequência do filme. Alternando entre os planos sem jamais soar confuso, Reynolds conduz a sequência com dinamismo, numa cena de tirar o fôlego que garante bons momentos de ação e comprova o excepcional trabalho do design de som, notável em todo o filme. Tecnicamente, vale destacar também a trilha sonora de James Newton Howard, que aposta no alto e bom som para embalar as cenas de ação, apesar de empregar corretamente sons que evocam o mar em alguns instantes.

Além do funcional barco de Mariner, o interessante Atol construído a partir de restos de materiais realça o bom trabalho de direção de arte de David Klassen. Seguindo o mesmo raciocínio, os criativos figurinos de John Bloomfield criam roupas acinzentadas a partir de sobras de materiais e restos de peixes, enquanto a fotografia de Dean Semler realça este mundo sem vida na maior parte do tempo, criando um contraste interessante com as belas imagens do oceano e dando ao longa um visual decadente pós-apocalíptico que lembra muito a série “Mad Max”. Aliás, as semelhanças com a série de George Miller não param por aí, já que aqui o protagonista também é um homem solitário e o petróleo tem grande importância comercial. A diferença é que no mundo das águas a terra também é muito valorizada (não me pergunte por que), dando uma vantagem econômica considerável ao mutante Mariner, que pode buscá-la no fundo do mar graças às suas guelras e membranas que lhe permitem mergulhar e respirar em baixo d´água.

Sempre durão e com a cara fechada, o Mariner de Costner parece não confiar em ninguém, o que é normal diante das condições em que ele vive, vagando solitário pelos oceanos. Segundo Enola, “ele não tem nome, assim a morte não o encontra”, e de fato o ator convence como durão, transmitindo a força que o personagem exige. Mas apesar de se sair bem como nômade solitário, ele não consegue carregar o projeto sozinho, falhando, por exemplo, na relação com Helen. E se o segundo ato é bastante irregular, é também porque foca demasiadamente na relação entre Mariner, Helen e Enola, prejudicada pela falta de química entre Costner e Tripplehorn. Felizmente, se Tina Majorino transita entre o carisma e a chatice com sua Enola, ao menos garante momentos de alivio cômico durante sua conturbada relação com Mariner, através dos desenhos no barco e do corte do cabelo delas em certo instante. Apesar da irregularidade, a relação deles ainda traz um belo momento quando Mariner ensina a garota a nadar. Por outro lado, novamente o roteiro sabota os atores através de seus diálogos risíveis, como quando Helen pergunta se eles conseguem escapar de um avião e Mariner diz: “Não com as velas abaixadas”, como se um veleiro fosse capaz de fugir de um avião. E até mesmo o conceito de fuga soa totalmente sem sentido num mundo coberto pela água e, portanto, com raros locais capazes de “esconder” alguém. Fechando o elenco, Hopper parece se divertir como o Diácono na maior parte do tempo, mas exagera na dose soando extremamente caricato em muitos momentos.

Em certo momento, Helen reclama da falta de comida e nos leva a outra cena embaraçosa. A pesca do peixe gigante, além de pouco convincente, surge apenas para revelar os fracos efeitos visuais de “Waterworld”, confirmados na visita ao fundo do mar e na explosão do navio dos Smokers. Mas nada que se compare aos erros primários de Peter Rader e David Twohy que, além de todos os problemas citados, ainda incluem diálogos expositivos, como no primeiro contato com um nômade que serve apenas para explicar algumas regras daquele mundo pós-apocalíptico, e um discurso ridículo do Diácono para os Smokers.

Investindo num enigma pouco criativo envolvendo o mapa nas costas de Enola, o confuso conceito da “Terra Seca” também parece apenas uma ideia jogada na narrativa, sem que os roteiristas tivessem o cuidado de desenvolvê-la melhor. Aliás, o roteiro falha terrivelmente sempre que tenta explorar os conceitos daquele mundo, deixando algumas questões em aberto como: quem são e o que pretendem os Smokers? De onde eles tiram tanto “petro-suco” (uma refinaria, talvez?). Além disso, porque eles desistem de perseguir Mariner em diversos momentos mesmo estando motorizados enquanto o alvo segue num barco a vela. Quando pensamos sobre a origem da “Terra Seca”, que surge no ato final, a coisa fica ainda mais confusa. Se Enola tem por volta de seis anos e nasceu lá, significa que aquele local jamais submergiu, o que torna inexplicável a decisão dos pais de enviarem a garota num cesto dentro daquele mar hostil. E se o local submergiu, a “evolução” que trouxe mutantes não pode ter acontecido em tão pouco tempo, até porque o Diácono diz em certo momento: “estamos perto St. Joe, depois de SÉCULOS de vergonha”. Em resumo, tudo é muito confuso e mal desenvolvido em “Waterworld”.

O terceiro ato consegue ser ainda mais irregular que o segundo, apresentando raros momentos interessantes, como o confronto verbal entre Mariner e o Diácono que resulta na explosão do local (“Ele nunca blefa”, diz Enola), mas transforma o protagonista num verdadeiro MacGyver, sendo capaz de enfrentar sozinho todos os Smokers, explodir o navio, impedir a fuga do Diácono de avião (repare que todos os objetos que ele precisa estão no lugar, só esperando para serem utilizados), recuperar Enola, perdê-la novamente e se atirar do alto de um balão no meio do oceano para recuperar definitivamente a garota, provocando ainda a morte dos últimos inimigos (Ufa! Só de digitar fiquei cansado).

Prejudicado pelo hype negativo da época e pelos diversos problemas na produção, “Waterworld” está longe de ser um grande filme, mas também não é a porcaria que muitos afirmaram em seu lançamento. Apesar da fragilidade com que desenvolve sua interessante premissa, trata-se de um filme de ação correto, bastante irregular é verdade, mas com momentos interessantes, especialmente em seu primeiro ato. É pouco para salvá-lo, mas, por outro lado, o longa não merecia ser o responsável por – com o perdão do trocadilho – afundar a carreira de muitos dos envolvidos em sua produção.

Texto publicado em 30 de Setembro de 2012 por Roberto Siqueira

A FIRMA (1993)

(The Firm)

 

Videoteca do Beto #90

Dirigido por Sydney Pollack.

Elenco: Tom Cruise, Jeanne Tripplehorn, Gene Hackman, Ed Harris, Holly Hunter, David Strathairn, Hal Holbrook, Terry Kinney, Wilford Brimley, Gary Busey, Steven Hill, Barbara Garrick, Paul Sorvino e Tobin Bell.

Roteiro: David Rabe, Robert Towne e David Rayfiel, baseado em livro de John Grisham.

Produção: John Davis, Sydney Pollack e Scott Rudin.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Baseado no best-seller de John Grisham, este empolgante “A Firma” é um thriller eletrizante, que prende a atenção do espectador, nos envolvendo na complicada situação do protagonista interpretado por Tom Cruise, que vê a grande oportunidade de sua vida lentamente se transformar num verdadeiro pesadelo. Dirigido por Sydney Pollack, o longa aposta na alta carga de tensão e em seu talentoso elenco, conseguindo sucesso simplesmente pela forma em que a narrativa é conduzida, sem apelar para inúmeras seqüências de ação ou suspense.

Após formar-se com honras, o jovem advogado Mitch McDeere (Tom Cruise) aceita a proposta de uma pequena firma localizada em Memphis, que lhe oferece um alto salário e diversos benefícios em troca de seu talento. Mas na medida em que ele inicia os trabalhos, começa a desconfiar da empresa e de seus companheiros, como o misterioso Avery (Gene Hackman), que paralelamente tenta seduzir sua esposa Abby (Jeanne Tripplehorn).

Em certo momento de “A Firma”, o jovem Mitch acompanha um garoto de rua durante uma série de cambalhotas, externando sua extrema alegria naquele momento de sua vida, logo após ser contratado e mudar-se para Memphis. Esta cena terá reflexo direto em outro momento da narrativa, quando o mesmo Mitch vê o garoto iniciar sua série de cambalhotas e sequer esboça reação, passando direto pelo menino como se nem tivesse notado sua presença. A diferença entre os dois instantes é que no segundo a firma já tinha transformado sua vida. Entre estes dois momentos antagônicos, o jovem Mitch e sua esposa Abby vivem o chamado “sonho americano”, algo simbolizado no interessante raccord que transforma o desenho das crianças da turma em que Abby dava aulas em Boston na imagem do casal viajando rumo à nova vida. E o diretor Sydney Pollack faz questão de refletir este sentimento em seus belos planos, que exploram o lindo pôr-do-sol em Memphis, as grandes pontes que cruzam o rio e o reflexo do sol nas estradas e prédios da cidade, conferindo uma aura dourada aquele momento promissor. E até mesmo a trilha sonora evocativa de Dave Grusin reflete o sentimento do casal, que realiza o sonho do sucesso profissional e da vida estável na chegada a Memphis. Aliás, logo na primeira conversa com a Bendini, Lambert (Hal Holbrook), um dos poderosos da empresa, afirma que a família é importante pra eles, mostrando uma receptividade refletida no local da conversa, bastante aconchegante e convidativo, criando uma atmosfera familiar que revela o bom trabalho de direção de arte de John Willett, notável também na decoração imponente dos escritórios e salas de reuniões da firma. Mas durante uma festa que acontece momentos depois, Lambert diz para Mitch que na firma nós “guardamos os segredos entre nós” e indica sutilmente o que viria a acontecer – e que também é indicado pela fotografia de John Seale, sempre clara e convidativa fora da firma e obscura dentro do ambiente de trabalho de Mitch.

Mas, logo após sua chegada, dois advogados morrem num mergulho e, após conversar com um misterioso agente do FBI (Ed Harris), com o homem que cuida dos barcos de mergulho e com um de seus clientes numa viagem feita com Avery, Mitch passa a desconfiar da firma – algo que Cruise demonstra bem em seu olhar cada vez mais inquieto. A partir daí, Pollack começa a empregar um ritmo cada vez mais intenso à narrativa, que nos levará ao momento crucial em que Denton (Steven Hill) conta a verdade sobre a firma para Mitch (e que remete à conversa entre o Sr. “X” e Jim Garrison no “JFK” de Oliver Stone, pois, nas duas cenas, um banco numa praça serve de local ideal para que um segredo seja revelado). Desde então, na medida em que Mitch tenta encontrar uma forma de sair do terrível labirinto em que se meteu, Pollack ilustra sua agonia através do ritmo crescente da narrativa, graças ao auxilio da montagem ágil da dupla Fredric e William Steinkamp. O trabalho dos Steinkamp, aliás, é notável desde a chegada dos McDeere à Memphis, quando ilustra o dia-a-dia corrido do casal através de uma seqüência de imagens embaladas pela empolgante trilha sonora, além de ilustrar o desespero de Mitch diante de tanto material pra estudar através da montagem fluída da cena em que diversos advogados deixam pastas em sua mesa.

Ao mesmo tempo em que investiga a firma, Mitch vê sua vida de conto de fadas rapidamente dar lugar ao excesso de trabalho e a rotina maçante, que começam a desestabilizar seu relacionamento com Abby. E se sentimos que a relação está se deteriorando, é porque Cruise e Tripplehorn conseguiram estabelecer uma boa dinâmica até então, nos fazendo acreditar naquele relacionamento. Observe, por exemplo, o momento em que Mitch se mostra impressionado com uma limusine enquanto sua esposa finge estar acostumada (“Se esteve em uma limusine, esteve em todas”) ou as brincadeiras do casal na casa nova, mostrando o quanto eles se dão bem. Sempre intenso, Tom Cruise destaca-se também nos momentos mais sutis, como em sua divertida reação ao pedido de Avery no restaurante, contrariando a regra que ele acabara de citar sobre bebidas. Mas é a partir da conversa com Denton que a atuação de Cruise verdadeiramente cresce. Desnorteado após a revelação bombástica, Mitch vai direto pra firma e, inteligentemente, fala com seus superiores de maneira que pareça inocente, mas, em seguida, prova que entendeu bem o recado do FBI na tocante conversa com sua esposa, conduzida com perfeição por Sydney Pollack, que, com sua câmera lenta e com o volume alto da música, torna desnecessário escutar as palavras no ouvido dela, pois somente sua reação (em grande momento de Tripplehorn) e sua saída em disparada da casa, como uma criança que não sabe para onde ir, servem para nos comover. Aliás, Tripplehorn também se destaca no momento em que Mitch conta sobre a traição na praia, quando o rosto da atriz demonstra a dor que a personagem sente com precisão. Bastante relutante após a chegada em Memphis, ela vê seu pesadelo tornar-se realidade com o passar do tempo, mas ainda assim encontra forças para ajudar o marido na hora em que mais precisa, aproveitando-se da atração de Avery por ela, indicada já na troca de olhares e no afiado diálogo entre eles no cemitério. Como Judas, ela consolida a traição com um beijo e, após o desmaio de Avery, inicia o processo que levará Mitch a sair ileso daquela complicada situação. Na manhã seguinte, a conversa sincera entre Avery e Abby demonstra o quanto o veterano advogado estava desgastado com aquela vida – e tanto Tripplehorn como Hackman são responsáveis por conferir emoção ao diálogo. Avery é hoje o que Mitch seria amanhã, alguém devastado pela vida que leva e incapaz de mudar a situação – e Hackman demonstra isto com precisão em seu semblante pesado e triste. Nas palavras dele mesmo, em algum momento do passado a firma havia feito aquilo com ele. Sempre convincente, Gene Hackman faz de seu Avery mais um vilão ambíguo e marcante em sua carreira. Já o competente Ed Harris se mostra muito seguro como o agente do FBI Wayne Tarrance, ao passo em que Holly Hunter quase rouba a cena com seu excelente desempenho na pele da corajosa e descolada Tammy, que ajuda e muito Mitch a sair da enrascada em que se meteu. E fechando o elenco, vale notar que um dos matadores da firma é interpretado por Tobin Bell, o Jigsaw de “Jogos Mortais”.

Escrito por David Rabe, David Rayfiel e pelo ótimo Robert Towne, o roteiro de “A Firma” (baseado em livro de John Grisham) cria situações que aumentam constantemente a tensão, alcançando níveis insuportáveis no ótimo terceiro ato da narrativa, além de apresentar diversos diálogos interessantes, como quando Mitch visita o irmão Ray (David Strathairn) na cadeia ou quando ele conversa com os Moroltos, demonstrando muita inteligência para lidar com aquela gente perigosa – aliás, nesta cena Cruise também se destaca, mostrando o cansaço de Mitch através do olhar e da voz; mesmo extenuado, ele consegue impor respeito e soar convincente. Além disso, o roteiro é hábil em espalhar situações que terão reflexo futuro na narrativa, como a conversa entre Mitch e uma moça machucada na areia da praia, quando ela toca em seu ponto fraco e fala sobre o desejo de se sentir rico – algo que, descobriríamos depois, era planejado para seduzi-lo, criando uma prova de sua traição que seria usada para intimidá-lo futuramente. Existe também um interessante questionamento do “código de ética profissional” dos advogados, que são obrigados a morrer com os segredos de seus clientes, por mais inescrupulosos que sejam. Talvez o único problema do excelente roteiro de “A Firma” (e da montagem dos Steinkamp) seja a trama envolvendo o irmão de Mitch, que, apesar de ter sua importância, ocupa tempo demais na narrativa.

O eletrizante terceiro ato contém as melhores cenas de ação do filme, com as ações paralelas que colocam em prática o plano de Mitch (as cópias, o roubo dos arquivos, a negociação com o FBI, a fuga de Ray) e, obviamente, a espetacular perseguição que se inicia no metrô de superfície – com Cruise mostrando muita energia na fuga pelas ruas -, que nos leva ao momento em que ele se esconde num galpão e escapa, por sorte, da morte – e em todas estas seqüências, vale destacar novamente a dinâmica montagem dos Steinkamp. Com muita inteligência, Mitch se sai bem da complicada situação em que se meteu, ganhando sua vida de volta sem violar a lei, o que em boa parte da narrativa parecia impossível. E se parecia impossível, é porque Pollack, sua equipe e seu talentoso elenco tiveram sucesso em sua empreitada.

Com um roteiro intrigante, boas atuações e uma narrativa eletrizante, “A Firma” revela-se um thriller envolvente, que cumpre muito bem o papel que se propõe e, de quebra, questiona uma das regras básicas da advocacia. E pedindo de antemão o perdão do leitor pela falta de originalidade, entendo que poucas vezes o dito popular “quando a esmola é grande, o santo desconfia” teve tanto significado.

Texto publicado em 16 de Março de 2011 por Roberto Siqueira

INSTINTO SELVAGEM (1992)

(Basic Instinct)

 

Videoteca do Beto #83

Dirigido por Paul Verhoeven.

Elenco: Michael Douglas, Sharon Stone, Jeanne Tripplehorn, Dorothy Malone, George Dzundza, Denis Arndt, Leilani Sarelle, Bruce A. Young, Chelcie Ross, Wayne Knight, Daniel von Bargen, Stephen Tobolowsky, Benjamin Mouton e James Rebhorn.

Roteiro: Joe Eszterhas.

Produção: Alan Marshall.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Quando escrevi sobre “Cantando na Chuva”, afirmei que qualquer pessoa, ainda que não tivesse assistido ao filme, reconheceria a cena em que Gene Kelly canta e dança na chuva. Cenas deste tipo sempre existiram na história do cinema, mas nos anos 90 poucas foram tão marcantes quanto à cruzada de pernas de Sharon Stone em “Instinto Selvagem”. Só que o longa dirigido por Paul Verhoeven apresenta muito mais que as excelentes cenas eróticas, entregando um thriller eletrizante e repleto de suspense, que serve também como uma interessante análise psicológica das relações (sexuais ou não) humanas.

O assassinato de um cantor de rock chama a atenção da policia de São Francisco e a principal suspeita é a escritora Catherine Tramell (Sharon Stone). O policial Nick Curran (Michael Douglas) é designado para investigar o caso, mas acaba ficando fortemente atraído pela escritora, apesar dos protestos de seus companheiros de profissão, como Gus (George Dzundza) e a Dra. Beth (Jeanne Tripplehorn), que assim como Catherine, é formada em psicologia.

A famosa cena que marcou “Instinto Selvagem” e alçou Sharon Stone ao estrelato acontece ainda na primeira metade do filme, o que é bom, pois o espectador deixa de aguardar aquele momento e passa a se concentrar na narrativa. Nesta cena, apenas pela disposição dos personagens, Verhoeven cria uma incrível atmosfera de tensão e erotismo, com Catherine no centro da sala cercada de homens ávidos por uma confissão, mas sempre firme e contundente em suas respostas, que invariavelmente deixam estes mesmos homens desconcertados. Na medida em que as perguntas acontecem, o espectador sente o nervosismo crescente dos policiais, inconformados com a frieza daquela mulher. E então, repentinamente, ela cruza as pernas, deixando marmanjos eufóricos e os investigadores literalmente sem rumo, algo que o diretor capta com precisão através de um close rápido na reação deles. Desde então, fica evidente que a espontânea e astuta Catherine sabe muito bem utilizar a sensualidade a seu favor. Sempre insinuante e sensual, Sharon Stone oferece um desempenho eficiente, olhando diretamente nos olhos das pessoas e falando com muita firmeza, além de dizer palavrões e frases que os homens não esperam ouvir com tanta freqüência da boca de uma mulher (“Gostava dele?”, pergunta Nick e ela responde “Gostava de transar com ele”). Inteligente, Catherine sabia, por exemplo, que seu livro, como os próprios investigadores já previam, serviria como álibi no interrogatório, abrindo a possibilidade de que alguém tenha tentado incriminá-la, contrariando a sensação inicial de que ela é a assassina. E de fato alguns elementos reforçam a defesa de Catherine. Ela é rica (herdou uma fortuna dos pais e do marido) e por isso não precisa do dinheiro do astro de rock aposentado, usa seu conhecimento de psicologia “apenas” para extrair informações de pessoas que a inspiram a escrever seus livros e, principalmente após a morte de Roxy (Leilani Sarelle), começa a se mostrar vulnerável, algo impensável até aquele momento e que desarma Nick e o espectador (e neste aspecto, Stone tem muito crédito por conferir veracidade ao choro de Catherine). Michael Douglas também se sai bem na pele de Nick, um homem profundamente transformado diante da presença daquela mulher misteriosa e bela, que sabe tudo da vida dele e utiliza seu passado como arma para intimidá-lo. Atormentado, Nick volta a beber, a fumar, fica agressivo quando se relaciona sexualmente com a Dra. Beth e evidencia a cada minuto que está sendo sugado por Catherine – e Douglas transmite com precisão a crescente angústia do personagem. E finalmente, Jeanne Tripplehorn, ainda que com menos destaque, interpreta a ambígua Dra. Beth, colaborando com a dúvida que envolve a narrativa após a morte de Roxy.

A sensualidade que permeia “Instinto Selvagem” aparece logo na primeira cena, mas a trilha sinistra de Jerry Goldsmith também indica que nem só de erotismo viverá a narrativa, dando o tom do que veremos em poucos segundos, quando um movimento de câmera nos levará ao picador de gelo utilizado como arma letal para fazer a primeira vítima do filme. Esta cena deixa claro desde então o nível de realismo que veremos tanto nas cenas eróticas quanto nas cenas violentas, além de servir também para introduzir a misteriosa assassina na trama, nos mostrando do que ela é capaz. E apesar de inserir algumas seqüências com bastante ação, como a eletrizante perseguição de Nick na estrada, é na criação da perfeita atmosfera de erotismo e suspense que Verhoeven se destaca, explorando com habilidade as nuances do relacionamento entre Nick e Catherine, desde o momento em que ela fala sobre seu novo livro pra ele no carro e o close do diretor capta a tensão existente entre eles. É interessante observar, por exemplo, como mesmo sabendo os riscos que corria, Nick não consegue evitar que Catherine o amarre durante uma relação sexual, preferindo, naquele momento, se entregar ao prazer. O diretor é inteligente também ao explorar a sensualidade de Stone, não hesitando em mostrar o corpo da atriz em diversos momentos carregados de erotismo. E apesar de escorregar na obviedade de algumas situações, como o momento em que Roxy persegue Nick de carro (era previsível que não era Catherine), Verhoeven sempre busca manter o suspense através dos movimentos de câmera, especialmente nas cenas em que insinua que Catherine vai pegar o picador de gelo durante suas relações sexuais com Nick. Aliás, as insinuações estão presentes diversos momentos, como quando Catherine usa o picador de gelo diante de Nick enquanto prepara uma bebida.

A montagem de Frank J. Urioste colabora muito com este clima de suspense, especialmente nos tensos momentos que envolvem Nick e Catherine na cama, e as roupas sensuais de Catherine (figurinos de Nino Cerruti e Ellen Mirojnick) auxiliam na atmosfera erótica do longa. E apesar de alguns momentos nitidamente forçados (parece que ninguém se lembra de trancar a porta de sua residência durante a narrativa), o suspense funciona perfeitamente. Ainda nos aspectos técnicos, observe como quando Catherine se despe na janela sob o olhar de Nick, a fotografia vermelha de Jan de Bont ilustra ao mesmo tempo o desejo que cresce nele e a violência que naquele momento inconscientemente ligamos à personagem. E na medida em que Nick vai ficando cada vez mais neurótico e perturbado diante do jogo das duas psicólogas, de Bont passa a utilizar ambientes mais escuros e mais cenas noturnas, refletindo o estado psicológico do personagem.

Escrito por Joe Eszterhas, o roteiro de “Instinto Selvagem” é bastante ambíguo, nunca deixando claro se Catherine é mesmo a assassina. Sendo assim, a partir de determinado momento o espectador se vê num delicioso jogo de adivinhação, tentando descobrir quem é a misteriosa criminosa, através da introdução de uma série de subtramas que criam novas possibilidades, como o ciúme de Roxy ou a relação amorosa que Catherine viveu com a Dra. Beth no passado. Além disso, o longa faz um intrigante estudo psicológico de Nick através dos jogos de Catherine e Beth, que deixam tanto o personagem como o espectador constantemente em dúvida sobre qual delas está falando a verdade. Eszterhas insere ainda uma interessante rima narrativa durante o interrogatório de Nick, quando ele repete algumas das frases de Catherine, evidenciando o forte impacto que aquela mulher teve sobre ele. Aliás, a forma como ela envolve Nick é muito bem conduzida por Verhoeven, lentamente nos levando ao momento em que eles finalmente se relacionam sexualmente, em outra cena bastante explícita. E aqui novamente a atmosfera de tensão toma conta da tela, com os movimentos de câmera que remetem à primeira cena do filme e nos levam a temer a morte de Nick. Só que momentos depois do alívio, quando Roxy demonstra ciúme, Nick (e o espectador) começa a pensar em novas possibilidades e passa a desconfiar de Roxy também, afinal de contas, ela também é loira, estava na casa de Catherine na manhã seguinte ao crime e poderia ter matado o astro de rock por ciúmes. A descoberta do caso entre Catherine e Lisa Hoberman, antigo nome da Dra. Beth, abre outra possibilidade e confunde ainda mais o espectador, revelando que Nick estava de fato envolvido num perigoso jogo entre duas mulheres profundamente conhecedoras da mente humana. E este perigoso jogo nos leva à morte de Gus e da própria Beth, numa seqüência igualmente trágica e tensa, que revela a identidade da assassina. E apesar das claras evidencias de que Beth era mesmo a assassina, Nick ainda tem desconfianças, que serão confirmadas (ou não) pelo brilhante plano final de “Instinto Selvagem”. E é justamente nesta constante dúvida gerada pela ambigüidade do roteiro que reside um dos aspectos mais interessantes de um thriller repleto de erotismo e suspense, que não tem medo de ousar e por isso consegue criar uma atmosfera realmente envolvente.

Apresentando um interessante jogo psicológico, o thriller “Instinto Selvagem” surpreende positivamente ao explorar mais do que a sensualidade de sua atriz principal. Verhoeven soube utilizar cenas realmente eróticas numa narrativa inteligente, fugindo do lugar comum das grandes produções de Hollywood que normalmente suavizam o sexo, e de quebra, entregando uma das cenas mais emblemáticas da década de 90. Mas, infelizmente, como um feroz picador de gelo, a indústria cinematográfica resolveu eliminar este tipo de trabalho ousado nos anos seguintes.

PS: Como prova de que Hollywood não produz mais filmes tão ousados, basta assistir a puritana seqüência de “Instinto Selvagem”, que é infinitamente mais conservadora e menos interessante.

Texto publicado em 16 de Janeiro de 2011 por Roberto Siqueira