TRAFFIC (2000)

(Traffic)

 

 

Videoteca do Beto #241

Dirigido por Steven Soderbergh.

Elenco: Benicio Del Toro, Jacob Vargas, Tomas Milian, Clifton Collins Jr., Don Cheadle, Luis Guzmán, Miguel Ferrer, Catherine Zeta-Jones, Steven Bauer, Dennis Quaid, Michael Douglas, Amy Irving, Erika Christensen, Topher Grace, James Brolin, Albert Finney, Benjamin Bratt, Yul Vazquez, Salma Hayek e Peter Riegert.

Roteiro: Stephen Gaghan.

Produção: Laura Bickford, Marshall Herskovitz e Edward Zwick.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Entrelaçar várias linhas narrativas não era exatamente uma novidade quando “Traffic” chegou aos cinemas na virada do milênio. Vários cineastas de peso já haviam feito algo parecido até então. Também não tinha nada de novo em abordar o tráfico de drogas e seus trágicos efeitos sociais. Diversos filmes tentaram, sob diferentes pontos de vista e com maior ou menor sucesso, fazer isso. No entanto, a razão do sucesso do longa dirigido com maestria por Steven Soderbergh reside exatamente na mistura das duas coisas. Dando vida a um roteiro ambicioso que trazia nada menos que 110 personagens, o diretor conseguiu traçar um complexo painel sobre o tema, fugindo de estereótipos e maniqueísmos e deixando claro que trata-se de uma questão muito mais ampla, profunda e difícil do que sugerem as soluções prontas e simplistas que ainda hoje ouvimos por aí.

Escrito por Stephen Gaghan, “Traffic” nos apresenta ao juiz Robert Wakefield (Michael Douglas) quando este se prepara para assumir o cargo de chefe da luta contra o tráfico de drogas em Washington enquanto sua filha Caroline (Erika Christensen) se aprofunda no vício, algo que sua esposa Barbara (Amy Irving) já sabia há algum tempo. Em San Diego, o figurão do tráfico Carlos Ayala (Steven Bauer) é preso, para surpresa de sua esposa Helena (Catherine Zeta-Jones) que se sente obrigada a inteirar-se dos negócios do marido e acaba envolvendo-se em busca da manutenção do padrão de vida que tinha, sem saber que está sendo monitorada pelos policiais Ray (Luis Guzmán) e Montel (Don Cheadle), que também têm a missão de manter o pequeno traficante Eduardo Ruiz (Miguel Ferrer) sob custódia, pois ele é parte chave da investigação contra Ayala. Enquanto isso, o policial mexicano Javier Rodriguez (Benicio Del Toro) acompanha o trabalho do general Salazar (Tomas Milian), que supostamente tenta desmontar o cartel de Tijuana.

Como fica evidente no parágrafo anterior, “Traffic” se propõe a analisar a questão das drogas em suas várias camadas de maneira contundente, abordando desde a dificuldade de controlar as fronteiras e de rastrear os poderosos que controlam o tráfico até a forma como as drogas estão disseminadas em todas as classes sociais. Neste sentido, é interessante como o longa jamais cai na tentação de colar rótulos, mostrando como um traficante de armas como Francisco Flores (Clifton Collins Jr.) pode perfeitamente morar em San Diego nos Estados Unidos e, ainda assim, ter influência no tráfico do outro lado da fronteira. Da mesma forma, podemos acompanhar jovens ricos que abusam das drogas enquanto discutem um tema qualquer, ao passo em que nas periferias muitas vezes a venda ilegal dos narcóticos representa uma oportunidade que muitos dali raramente teriam de obter lucros altíssimos, algo que boa parte da fatia rica da população certamente faria se estivesse naquela situação, como fica evidente no excelente diálogo entre Seth (Topher Grace) e Robert num carro sobre a realidade do tráfico de drogas que provoca esta reflexão.

Conduzindo esta intricada narrativa de maneira firme, Soderbergh nos brinda com momentos de alta tensão como a negociação entre Ray, Montel e Ruiz logo no início que desencadeia um tiroteio e uma perseguição pelas ruas de San Diego. Abusando da câmera de mão, o diretor confere um ar documental ao longa que se encaixa muito bem no tom proposto e aumenta a sensação de realismo e a imersão do espectador naquele universo. Também é muito interessante a forma como os personagens se cruzam fisicamente em vários instantes de maneira orgânica e natural, evidenciando com sutileza como todos estão de alguma forma interligados. Obviamente, a montagem de Stephen Mirrione é crucial neste processo, mantendo o espectador igualmente interessado nas três linhas narrativas através da forma que alterna entre elas, sem jamais parecer se estender demais em alguma delas.

Ainda mais impactante é a fotografia do próprio Steven Soderbergh (que usa o pseudônimo Peter Andrews), que além de ajudar o espectador a se situar através dos diferentes filtros, de quebra traz também funções narrativas. Assim, enquanto o visual amarelado reforça o calor e o clima seco do México, fazendo com que o espectador sinta-se sufocado naquele ambiente hostil, os tons azulados em Washington servem não apenas para realçar a frieza do universo político onde decisões que custarão milhares de vidas são tomadas, mas também para transmitir o desconforto crescente de Robert ali. Já em San Diego, as cores naturais simbolizam o ponto de equilíbrio entre os tons predominantes daqueles dois universos distantes, já que naquele ambiente os efeitos das ações de ambos se cruzam, como fica evidente quando dois agentes norte-americanos se encontram com Javier numa piscina, onde o brilho do sol mistura-se ao azul da piscina. Fechando a parte técnica, vale destacar também a trilha sonora de Cliff Martinez, que com suas notas longas e uso de sintetizadores, amplia a tensão em diversos momentos.

O outro grande mérito de Soderbergh reside nas excelentes atuações que ele consegue extrair de seu vasto elenco, a começar por Tomas Milian, que confere dualidade ao general Salazar em momentos como quando ele se aproxima de Flores, dando a entender que iria protegê-lo das desumanas torturas apenas para, em seguida, obter a informação que precisava. Ainda no México, Benicio Del Toro oferece uma atuação estupenda como Javier, um personagem complexo que precisa se adaptar e sobreviver num ambiente extremamente hostil, algo que faz com maestria graças a sua habilidade de ler o cenário em que está inserido e agir de acordo com o que cada situação exige.

Catherine Zeta-Jones também está muito bem como Helena, vivendo um arco dramático interessante na pele da esposa que não sabia (ou não queria saber) a natureza real dos negócios do marido e que acaba assumindo as rédeas, chegando a viajar para o México para negociar diretamente com os fornecedores. Esta mudança começa a ficar evidente, por exemplo, durante o julgamento de Carlos, quando a câmera que foca constantemente nela ao invés do marido realça a importância daquela ocasião para a personagem. Em certo momento, ela diz que seu filho não irá viver na pobreza que ela viveu, evidenciando que seria capaz de fazer qualquer coisa para manter o status que tinha atingido. Ciente desta característica de Helena, Arnie (Dennis Quaid) se aproveita da situação e se envolve com a esposa de seu sócio, reforçando como não existem inocentes neste verdadeiro jogo de interesses. Do lado de fora da mansão, Luis Guzmán e Don Cheadle nos divertem com os diálogos entre Ray e Montel, como aquele em que falam sobre o vício de um deles no cigarro e quando Ray afirma que sonhava com o momento em que pegaria figurões, ricos e brancos cometendo um crime.

Núcleo dramaticamente mais pesado da narrativa, a família Wakefield simboliza perfeitamente a hipocrisia da chamada guerra ao tráfico, como fica evidente quando a Barbara de Amy Irving menciona a própria juventude para contrapor os argumentos do marido e lembrá-lo que ela também já usou drogas ou quando joga na cara dele o seu vício em bebidas – e repare como ele reage negativamente afirmando que não pode ser considerado alcóolatra, como se o vício dele fosse diferente dos demais. Por sua vez, Erika Christensen rouba a cena com sua ótima atuação na pele da viciada Caroline, destacando-se em diversos momentos, como quando demonstra sua resignação no primeiro encontro com outros viciados, deixando evidente que não estava preparada para aquilo, mas principalmente nas crises provocadas pelas drogas, quando surge com olhar arregalado e a boca entreaberta, praticamente nos fazendo sentir o prazer e a dor da personagem com suas expressões. E finalmente, Michael Douglas compõe com sutileza e sensibilidade um homem que, entre um copo e outro de uísque, tenta conciliar a árdua tarefa profissional que lhe foi atribuída com a ainda mais difícil missão de compreender o universo da filha viciada, completando seu arco dramático em dois momentos comoventes, primeiro num quarto de hotel e depois quando interrompe um discurso pré-fabricado para dizer o que realmente pensa, abandonar o cargo e escancarar a posição antiguerra às drogas do filme.

Instantes antes de seu personagem ser envenenado, Miguel Ferrer tem seu grande momento na pele de Ruiz ao oferecer uma visão muito interessante sobre a inutilidade do trabalho daqueles policiais que, digamos, estão apenas enxugando gelo, num dos inúmeros instantes em que “Traffic” critica abertamente a falida guerra às drogas – e a cena do envenenamento, aliás, também é muito bem conduzida pelo diretor, fazendo com que o previsível desfecho soe verossímil. A belíssima sequência final em que crianças mexicanas jogam basebol sob as luzes que iluminam o campo exatamente como sonhado por Javier, que contempla tudo aquilo embalado pela bela trilha sonora, evoca uma certa esperança sem soar como uma solução fácil para um problema extremamente complexo. Afinal, não custa sonhar com um futuro onde jovens de periferia possam passar suas noites divertindo-se e praticando esportes ao invés de lutarem para sobreviver diante do medo provocado por políticas míopes criadas por pessoas distantes daquela realidade.

Ambicioso e extremamente bem conduzido, “Traffic” é um libelo contra a inútil guerra ao tráfico, traçando um amplo painel político e social sobre um tema tantas vezes tratado de maneira simplista. Ao contrário do que pregam pessoas com pensamento binário e, pior ainda, poderosos que vivem de frases de efeito para ganhar projeção, a questão das drogas não tem solução fácil e, como fica evidente no longa, atinge todas as camadas da sociedade em maior ou menor grau, com resultados trágicos para muitas delas – sejam os que sofrem os efeitos do vício, sejam aqueles que são diretamente afetados não pelas drogas em si, mas pela imbecil guerra que traz o conflito para dentro das periferias, enquanto os que realmente faturam com aquilo dormem tranquilos em seus bairros de elite em países como os Estados Unidos ou o Brasil.

Texto publicado em 22 de Março de 2019 por Roberto Siqueira

007 PERMISSÃO PARA MATAR (1989)

(Licence to Kill)

4 Estrelas 

Videoteca do Beto #206

Dirigido por John Glen.

Elenco: Timothy Dalton, Benicio Del Toro, Anthony Zerbe, Robert Davi, Frank McRae, Desmond Llewelyn, Robert Brown, Carey Lowell, Talisa Soto, David Hedison, Anthony Starke, Everett McGill, Pedro Armendáriz Jr., Priscilla Barnes e Caroline Bliss.

Roteiro: Michael G. Wilson e Richard Maibaum, baseado nos personagens criados por Ian Fleming.

Produção: Albert R. Broccoli e Michael G. Wilson.

007 Permissão para Matar[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Após resgatar o prestígio da franquia 007 com uma atuação bem mais próxima do que se espera de James Bond, Timothy Dalton teve sua segunda e última oportunidade de interpretar o agente britânico neste “007 Permissão para Matar” e, novamente, não decepcionou. Compreendendo perfeitamente a proposta mais realista da abordagem de John Glen, Dalton consolidou a recuperação da série com outra atuação firme e, o que é melhor, num filme envolvente e empolgante.

Escrito por Michael G. Wilson e Richard Maibaum a partir dos personagens criados por Ian Fleming, “007 Permissão para Matar” traz o agente James Bond (Timothy Dalton) numa missão independente de vingança pessoal contra um conhecido traficante de drogas (Robert Davi) que assassinou a esposa (Priscilla Barnes) de seu amigo Felix (David Hedison), contrariando as ordens do Serviço Secreto Britânico.

A abertura em ritmo frenético e com cenas de ação bem mais realistas que de costume estabelece muito cedo a proposta de John Glen em “007 Permissão para Matar”. Apostando numa atmosfera mais crível e no ritmo intenso da montagem de John Grover, a franquia tentava se adaptar ao cinema de ação realizado na época e, porque não, competir com os bem-sucedidos “macho movies” da era Stallone e Schwarzenegger, deixando definitivamente para trás a fase mais cômica e de auto-paródia da fase Roger Moore. Não que, para isto, Glen tenha retirado o charme e a elegância característicos do agente. James Bond continua lá, inteligente o bastante para farejar o perigo, incapaz de resistir ao charme feminino e ainda dono de um gosto refinado.

Mas o fato é que o realismo é notável, por exemplo, quando o diretor faz questão de nos mostrar as fortes imagens do ataque do tubarão ao agente Felix e, em seguida, a impactante imagem de sua esposa assassinada. Aliás, são raros os momentos em que esta abordagem verossímil falha, como por exemplo, na briga num bar em que os golpes desferidos parecem artificiais, numa das cenas em que chama a atenção a presença de Benicio Del Toro ainda muito jovem como o capanga Dario. Empregando bons movimentos de câmera, John Glen trabalha na construção de cenas mais tensas, como quando realça um guincho sendo retirado por Bond no primeiro plano e os pés de um guarda caminhando no segundo plano antes do confronto físico entre eles, incluindo ainda um leve travelling que destaca as enguias elétricas que serão essenciais na conclusão da cena.

Visualmente o longa também é interessante, com a fotografia de Alec Mills oscilando entre momentos de brilho intenso e cores vivas nas cenas a beira mar que exploram toda a beleza da Guatemala e instantes bem mais sombrios, especialmente no segundo ato com as cenas dentro do cassino de Sanchez e de sua negociação com os asiáticos na noite em que é atacado. Ainda entre os destaques da parte técnica, a sombria trilha sonora de Michael Kamen pontua os momentos de suspense, surgindo diversas vezes sem jamais abusar do famoso tema de 007, o que evita seu desgaste.

Impactante imagem de sua esposa assassinadaGuincho sendo retirado por BondNegociação com os asiáticosNo entanto, esta abordagem realista por si só não garante um bom filme e, felizmente, “007 Permissão para Matar” conta também com um bom roteiro que, nas mãos de Glen, torna a narrativa bastante envolvente. Utilizando um fundo político interessante através do interesse de governos de países da América Latina, dos EUA e da Inglaterra nos negócios de Sanchez, o roteiro mantém o espectador sempre atento com suas interessantes reviravoltas, como quando Sanchez pensa que Bond o salvou na noite do atentado e quando Bond pensa que a agente Pam (Carey Lowell) o traiu ao vê-la no local em que Sanchez negocia com os asiáticos. Além disso, mesmo num universo tradicionalmente unidimensional o roteiro consegue desenvolver bem seus personagens.

Observe, por exemplo, como a narrativa estabelece desde o início a importância de Sanchez, o bom vilão vivido por Robert Davi. Saindo da mesmice, as intenções de Sanchez soam plausíveis, ainda que condenáveis. Ele não quer dominar o mundo, quer “apenas” ser um traficante bilionário. Criando um vilão respeitável com sua postura simultaneamente elegante e firme diante de seus comandados, Davi se sai bem também na tradicional cena da conversa com Bond que, desta vez, traz um intrigante diálogo no primeiro encontro deles no cassino. Já as bondgirls vivem situações distintas em “007 Permissão para Matar”. Enquanto a inexpressiva Talisa Soto jamais cria empatia com Bond na pele de Lupe, Carey Lowell se sai bem nesta tarefa, obtendo sucesso também como a tradicional parceira feminina do agente britânico nas cenas de ação.

Novamente adotando uma postura séria e até mesmo agressiva, Timothy Dalton confirma ser um ator capaz de dar vida a James Bond, convencendo tanto na elegância quanto especialmente nas cenas que exigem esforço físico, soando ameaçador em diversos momentos de uma maneira que Moore raramente foi capaz de fazê-lo. Repare também como o ator demonstra o quanto Bond está devastado após a trágica morte de Della, a esposa de seu amigo assassinada pelos capangas de Sanchez. Determinado e agindo mais pela emoção do que pela razão, o Bond de Dalton chega a destoar um pouco do personagem tradicional, mas funciona muito bem justamente por trazer a energia que andava faltando para a franquia.

Importância de SanchezTradicional parceiraPostura séria e agressivaEsta energia é notável nas ótimas cenas de ação de “007 Permissão para Matar”, que surgem de maneira mais espaçada, porém sempre com eficiência, como quando Bond faz um avião de Jet Sky, sobe nele e joga o piloto no mar, numa sequência tão radical e absurda que o próprio roteiro faz piada com ela mais pra tarde ao trazer o capanga Krest (Anthony Zerbe) contando o que aconteceu para Sanchez e todos reagindo com desdém de sua versão do ocorrido. Existem também os momentos em que os inimigos tomam decisões convenientemente equivocadas, como quando um mergulhador corta o tubo de oxigênio de Bond embaixo d´água ao invés de cortar o próprio agente, mas podemos perdoar estes pequenos deslizes – até porque, caso contrário, não teríamos mais filme nem franquia.

Finalmente, apesar de durar mais tempo que o necessário e de conter dois momentos absurdamente exagerados envolvendo o caminhão dirigido por Bond, a sequência de ação que encerra a narrativa é extremamente empolgante. Alternando entre planos que nos colocam dentro dos caminhões e tomadas aéreas que além de nos orientar geograficamente ainda nos permitem acompanhar as ações de Pam no avião, Glen conduz a sequência com muita segurança durante toda a descida do morro até o inevitável confronto final entre Bond e Sanchez.

Após anos bastante irregulares, a franquia 007 finalmente parecia encontrar seu rumo ao atualizar seu famoso agente sem, por isso, perder seu charme. Com uma narrativa envolvente, boas cenas de ação, a segurança de Dalton e um bom vilão, John Glen acertou novamente e fez deste “007 Permissão para Matar” um dos bons filmes da série.

007 Permissão para Matar foto 2Texto publicado em 02 de Junho de 2014 por Roberto Siqueira

OS SUSPEITOS (1995)

(The Usual Suspects)

 

Videoteca do Beto #132

Dirigido por Bryan Singer.

Elenco: Gabriel Byrne, Benicio Del Toro, Kevin Pollak, Kevin Spacey, Chazz Palminteri, Stephen Baldwin, Pete Postlethwaite, Suzy Armis, Giancarlo Esposito e Dan Hedaya.

Roteiro: Christopher McQuarrie.

Produção: Michael McDonnell e Bryan Singer.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Poucos recursos narrativos provocam tanto impacto no espectador quanto um final surpreendente – um tema, aliás, que já debati anteriormente. Em muitos casos, esta sensação de euforia faz com que o espectador se esqueça de eventuais problemas apresentados até aquele instante e acabe supervalorizando um filme apenas razoável, ao passo em que finais “decepcionantes” provocam exatamente o efeito inverso, levando o público a menosprezar filmes brilhantes somente por não concordar com o final. Felizmente, o thriller “Os Suspeitos” traz muitos mais do que seu final estarrecedor, prendendo o espectador durante todo o tempo graças ao excepcional roteiro, à direção segura de Bryan Singer e as ótimas atuações de seu elenco.

Escrito por Christopher McQuarrie, “Os Suspeitos” tem inicio quando cinco suspeitos de cometer um crime são presos e aproveitam a ocasião para planejarem outro assalto, que será realizado assim que eles saírem dali. O problema é que Dean Kenton (Gabriel Byrne) está apaixonado pela advogada Edie (Suzy Armis) e, por isso, não quer participar do grupo, mas acaba sendo convencido por Verbal Kint (Kevin Spacey) e se junta ao restante da equipe formada por Michael McManus (Stephen Baldwin), Fred Fenster (Benicio Del Toro) e Todd Hockney (Kevin Pollak). Surge então o misterioso Kobayashi (Pete Postlethwaite) para informá-los que eles deverão realizar um perigoso trabalho para o misterioso e temido Keyser Soze, só que o plano não é executado conforme eles planejaram.

Adotando uma estrutura narrativa complexa, que viaja no tempo sem qualquer lógica, o diretor Bryan Singer e seu montador John Ottman envolvem o espectador desde seus minutos iniciais, quando um crime misterioso nos leva pra dentro de uma investigação policial. Através de muitos flashbacks, como aquele que nos apresenta aos cinco suspeitos enquanto acompanhamos a prisão de cada um deles, o diretor trabalha o intrincado roteiro com cuidado, inserindo elementos que auxiliam na investigação sem jamais deixar o espectador confuso, fazendo com que o espectador participe ativamente do processo e tente descobrir a identidade do criminoso. Nesta busca pela revelação da identidade do misterioso Keyser, o espectador se sente o próprio investigador, prestando atenção nos mínimos detalhes que podem ajudar na solução do caso.

Ciente do interesse que o roteiro gera na plateia, Singer aproveita para brincar com nossa expectativa, seja através do óbvio momento em que não revela o rosto do Keyser durante um assassinato ou ao esticar ao máximo o interrogatório feito num hospital, onde um sobrevivente húngaro pode ajudar a identificar o criminoso, mas tem a tarefa dificultada por seu grave estado de saúde e pela barreira do idioma. Por outro lado, Singer força a identificação da plateia com os suspeitos, posicionando sua câmera na linha da cintura dos policiais durante o interrogatório inicial, o que coloca os personagens numa situação desfavorável e acaba conquistando a empatia da plateia – por pior que seja o personagem, o espectador sempre se identifica quando ele surge vulnerável. Singer ainda emprega movimentos elegantes, como o zoom que realça o momento em que Verbal convence Keaton a participar do grupo ou os travellings idênticos que revelam, em instantes diferentes, o navio que deveria ser assaltado.

Empregando cores sem vida nas sequências dentro da delegacia, a fotografia de Tom Sigel cria um contraste interessante com o visual mais colorido que acompanha as ações dos criminosos – como num assalto em plena luz do dia -, simbolizando a satisfação deles nestes momentos e o desconforto que sentem em território policial. Da mesma forma, Sigel ilustra a tristeza do grupo no enterro de Fenster através do visual obscuro, que também surge na seqüência do assalto ao navio, reforçado pela noite e pela trilha sonora agitada de John Ottman que ampliam a tensão.

Mas apesar da parte técnica eficiente, é mesmo no roteiro de Christopher McQuarrie e nas boas atuações que residem às maiores qualidades de “Os Suspeitos”. Observe, por exemplo, como McQuarrie insere dicas sutis sobre a identidade do Keyser, mas jamais as escancara ao ponto do espectador perceber o que está acontecendo – repare a similaridade entre a roupa de Verbal num dos interrogatórios e a roupa do criminoso na cena que abre o longa. São detalhes sutis, mas que servem para indicar o surpreendente desfecho. E nas mãos de um grande ator como Kevin Spacey, este roteiro é um prato cheio para uma grande interpretação.

Surgindo misterioso e até mesmo inofensivo graças ao olhar sempre distante e a postura reprimida – além é claro de sua deficiência física -, Verbal dá sinais de sua faceta agressiva nos diálogos sempre carregados de tensão com o agente Kujan (Chazz Palminteri), mas tem o extremo cuidado de jamais ultrapassar o limite do aceitável e prejudicar seu plano ambicioso, como quando seu sorriso cínico durante uma pergunta some imediatamente quando o investigador se movimenta para frente dele. Aproveitando-se da imunidade que conquistou, ele se sente a vontade diante dos policiais, mas faz questão de parecer acuado na maior parte do tempo – observe o susto que ele leva quando um policial abre a porta da sala repentinamente -, o que é vital para o sucesso de sua estratégia. Empregando um tom de voz tranquilo enquanto narra os eventos, Spacey convence os policiais e o espectador de que está falando a verdade, o que, somado à sua convincente reação ao ouvir Kujan afirmar que Keaton era o Keyser, também é fundamental para que a última reviravolta funcione.

Apaixonado pela advogada criminalista Edie, Keaton hesita antes de voltar para a vida de crimes, justamente por não querer desagradar sua namorada – observe, por exemplo, sua hesitação no diálogo com Verbal que precede o assalto ao navio. Demonstrando bem este conflito, como quando não consegue atirar num homem em um assalto – numa cena, aliás, que demonstra que Verbal não é tão inofensivo assim -, Byrne cria um personagem ambíguo e misterioso, que também é fundamental para que o espectador não concentre sua atenção em Verbal. Afinal, sabemos que se trata de um criminoso respeitado pela forma como os outros se comportam diante dele, mas suas roupas elegantes (figurinos de Louise Mingenbach) indicam uma boa situação financeira, provavelmente resultado da vida estável que leva atualmente. Quando ele decide participar do grupo, o espectador naturalmente passa a focar mais a atenção nele.

Fechando o elenco, Stephen Baldwin vive o intempestivo Michael McManus, Kevin Pollak interpreta Todd Hockney e o ótimo Benicio Del Toro, ainda nos primeiros anos de carreira em Hollywood, surge com um sotaque que delata sua origem latina na pele de Fred Fenster. Já Pete Postlethwaite faz seu Kobayashi soar ameaçador desde que se identifica como contratado pelo Keyser e, especialmente, quando intimida os suspeitos após quase ser morto num elevador, assim como Chazz Palminteri transmite bem a angústia de Kujan durante a investigação, surgindo impaciente diante da natureza misteriosa do caso em que se envolveu.

Ainda assim, Kujan consegue chegar numa conclusão e a primeira reviravolta surge como uma bomba quando ele afirma que Keaton era o Keyser, algo que o espectador dificilmente imaginaria. E com razão, pois quando a xícara de café se estraçalha no chão, a expressão de Kujan indica uma surpresa ainda maior – e agora sim o espectador tende a ficar boquiaberto. Ao ver que os nomes citados por Verbal durante todo o interrogatório estavam escritos nos papéis pendurados num quadro da delegacia, o investigador compreende, assim como o espectador, que o Keyser esteve sempre ali, na frente dele, e saiu andando tranquilamente pelas ruas da cidade (confesso que cheguei a cogitar esta possibilidade durante a narrativa, mas descartei-a momentos depois). E então Singer revela num plano maravilhoso que Verbal sequer era deficiente enquanto este entra no carro do parceiro “Kobayashi” e se perde no horizonte. Um final arrebatador e inteligente, que provoca uma sensação gostosa de desorientação na plateia.

Na maioria das vezes em que isto acontece, o espectador tende a afirmar que assistiu a um grande filme. No caso de “Os Suspeitos”, ele tem razão.

Texto publicado em 01 de Julho de 2012 por Roberto Siqueira