WALL STREET – PODER E COBIÇA (1987)

(Wall Street)

4 Estrelas 

Videoteca do Beto #162

Dirigido por Oliver Stone.

Elenco: Charlie Sheen, Michael Douglas, Martin Sheen, Daryl Hannah, Hal Holbrook, Sean Young, Franklin Cover, Chuck Pfeiffer, James Karen, John C. McGinley, James Spader, Terence Stamp e Leslie Lyles.

Roteiro: Stanley Weiser e Oliver Stone.

Produção: Edward R. Pressman.

Wall Street - Poder e Cobiça[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Tanto tematicamente quanto narrativamente, Oliver Stone nunca foi um diretor de sutilezas. Com seu estilo histriônico e sua maneira direta de se posicionar diante dos temas que escolhe como centro de suas narrativas, Stone rapidamente foi rotulado como um diretor polêmico, gerando simpatia e rejeição em proporções similares. No entanto, existem momentos em que este estilo agressivo casa perfeitamente com o tema abordado, como acontece nos ótimos “Platoon”, “Nascido em 4 de Julho”, “Assassinos por Natureza” e na obra-prima “JFK”. Ao decidir explorar o universo especulativo da bolsa de valores, Stone acertou mais uma vez em cheio e, ao lado de seu talentoso elenco, fez deste “Wall Street – Poder e Cobiça” um ótimo filme.

Escrito pelo próprio Stone ao lado de Stanley Weiser, “Wall Street – Poder e Cobiça” narra à trajetória do jovem corretor da bolsa de Nova York Bud Fox (Charlie Sheen), que encontra a grande chance de se destacar no ramo das ações quando obtém uma importante informação sobre a empresa aérea em que seu pai (Martin Sheen) trabalha e decide repassá-la ao bilionário Gordon Gekko (Michael Douglas), um homem que não mede esforços para fazer sua fortuna crescer através do competitivo mercado financeiro.

Apenas um ano após ser consagrado pela Academia com o Oscar por “Platoon”, Oliver Stone confirmava sua coragem ao abordar outro tema delicado e cutucar o coração financeiro dos EUA: Wall Street. Filho de um corretor da bolsa, Stone enxergava com preocupação as ações dos chamados “Mestres do Universo” (assim intitulados por Tom Wolve em seu livro “A Fogueira das Vaidades”), homens poderosos que manipulavam o mercado financeiro descaradamente, gerando sentimentos contraditórios no cidadão comum, que se via enojado diante da falta de princípios que regrava aquele mundo quase incompreensível e, ao mesmo tempo, fascinado diante de tanta autoconfiança e poder.

Para retratar este ambiente misterioso e nada ético, Stone e seu bom diretor de fotografia Robert Richardson exploram cores sem vida como cinza, azul marinho e preto, que ecoam também nos ternos impecáveis dos figurinos de Ellen Mirojnick, que, por sua vez, ganham ainda mais importância num mundo onde as aparências são tão valorizadas. Da mesma forma, observe o contraste entre o quase asséptico escritório novo de Bud e o caótico escritório em que ele trabalhava (design de produção de Stephen Hendrickson), apresentado num curto plano-sequência logo nos primeiros minutos de projeção que serve também para nos familiarizar com a hierarquia do local. Quanto maior a sala, mais importante é aquela pessoa na corporação. Por outro lado, ainda que tenha a cara dos anos 80, a trilha sonora de Stewart Copeland hoje soa datada e pouco contribui na construção desta atmosfera opressora, salvando-se apenas em momentos onde tem alguma função narrativa, como quando ilustra a preocupação de Bud ao indicar as ações da Bluestar para Gekko, demonstrando que ele sabia o risco que corria ao tomar aquela perigosa decisão.

Ternos impecáveisEscritório novoCaótico escritórioAuxiliado pela montagem dinâmica de Claire Simpson, Stone ainda reflete com precisão a atmosfera de urgência da bolsa de valores, empregando closes, dividindo a tela e agitando a câmera assim que o relógio anuncia a abertura do mercado. Observe ainda como os cortes rápidos ilustram a tensão do ambiente, chegando ao auge na empolgante sequência da venda das ações da Anacott Steel, que reflete a euforia de Bud diante daquela importante transação (vale notar a rápida aparição do próprio Oliver Stone nesta sequência). Por outro lado, observe como quando as ações se passam no escritório de Gekko, tanto o ambiente mais amplo e organizado quanto à câmera mais controlada de Stone refletem o excepcional domínio que aquele homem tem sobre o que faz.

Dividindo a telaRelógio anuncia a abertura do mercadoAmbiente mais amplo e organizadoMas o grande mérito de “Wall Street – Poder e Cobiça” não está nos aspectos técnicos. Ciente de que a narrativa depende muito mais do desempenho dos atores, Oliver Stone consegue extrair boas atuações de quase todo seu elenco, a começar por papeis menores como o de Sean Young, que vive a artificial esposa de Gekko, e Hal Holbrook, que, vivendo o corretor da bolsa Lou Mannheim, faz bem o tipo experiente que já viu de tudo na carreira, enxergando de longe aonde a ganância de Bud poderia levá-lo. E se Martin Sheen encarna o Sr. Fox com simplicidade, isto não o impede de se impor diante do filho quando é preciso, ainda que ele não consiga conter o ímpeto do rapaz diante de tantas possibilidades – e o plano que ilumina o rosto de Bud em certo momento sugere uma aura mística e indica que ele era mesmo “o escolhido” por Gekko para entrar naquele seleto grupo de milionários.

Artificial esposa de GekkoCorretor Lou MannheimSr. FoxPai e filho na vida real, Charlie e Martin estabelecem a química dos personagens naturalmente, o que é essencial para compreender a reação de Bud ao descobrir as reais intenções de Gekko na aquisição da Bluestar. Jovem e ambicioso, Bud rapidamente conquista a confiança do bilionário, sendo recompensado com agrados e a meteórica ascensão social. Na época firmando-se como um ator dramático após o sucesso de “Platoon”, Charlie Sheen transmite este deslumbramento do personagem com precisão, mudando-se em pouco tempo para um apartamento luxuoso e conquistando a bela Darien de Daryl Hannah, que, por sua vez, também tira o máximo proveito daquele bem sucedido grupo social (financeiramente, diga-se) ao envolver-se secretamente com Gekko em troca de novos e importantes clientes.

Envolvendo-se gradualmente numa troca ilegal de informações sigilosas, Bud se torna mais e mais ganancioso, e este mundo luxuoso e repleto de regalias que se abre a sua frente não colabora em nada para impedir sua inserção naquele ambiente. Só que toda esta superficialidade tem um preço. Assim, quando o casal discute, Bud não hesita em deixar claro que sabe que Darien o enxerga apenas como uma oportunidade de continuar sua escalada social, mas as duras respostas dela mostram que ele não era tão diferente assim – e o bom desempenho da atriz neste momento nos faz acreditar que ela de fato gostava dele, o que torna tudo ainda mais intenso.

Química naturalDeslumbramentoCasal discuteControlando este complexo jogo de interesses com maestria, o persuasivo e arrogante Gordon Gekko soa quase como um vilão inabalável, ainda mais pela maneira visceral que Michael Douglas compõe o personagem, surgindo sempre confiante e poderoso, como se fosse capaz de prever tudo que acontece com grande antecedência. Enxergando o dinheiro como a única coisa pela qual vale a pena lutar (“Almoçar é para os fracos”), Gekko demonstra enorme habilidade nas negociações, mas mostra igual capacidade de passar por cima da ética se assim for preciso para conquistar seus objetivos. Destacando-se ainda em momentos marcantes como o icônico discurso feito aos sócios da Teldar Paper (“A ganância é boa”), Douglas consegue transformar um personagem que tinha tudo para ser detestável em alguém cativante através de sua maneira prática de enxergar o mundo e de dizer coisas profundamente cruéis.

Persuasivo e arrogante Gordon GekkoConfiante e poderosoIcônico discursoEntretanto, não são apenas as palavras de Gekko que provocam desconforto em “Wall Street – Poder e Cobiça”, como atesta a forte discussão entre os Fox no elevador, onde os cortes rápidos de Stone ajudam a nocautear a plateia, desnorteada diante das duras palavras trocadas por eles – num grande momento da atuação dos Sheen. Da mesma forma, a câmera inquieta realça a tensão na discussão entre Bud e Gekko sobre a liquidação da Bluestar, na qual o primeiro demonstra que não aceitará tão facilmente ser manipulado pelo bilionário, enquanto o segundo resume muito bem o que é o capitalismo e como funciona a divisão de renda nos EUA (e na maior parte do planeta, porque não?) – e repare como após ser enganado na venda da Bluestar, Gekko surge coberto pelas sombras, indicando sua decadência.

Forte discussão no elevadorDiscussão entre Bud e GekkoGekko surge coberto pelas sombrasObviamente, Oliver Stone não perde a oportunidade de criticar acidamente todo aquele sistema e insere seus comentários sociais em diversos momentos, como quando acompanhamos Bud ganhando uma sala ampla ao mesmo tempo em que um velho funcionário é demitido (“Tenho dois filhos para criar, vou parar na sarjeta”, argumenta). A intenção é clara: criticar o feroz sistema especulativo de Wall Street, responsável por fabricar jovens milionários da noite para o dia – e também por gerar algumas crises marcantes nas últimas décadas, como hoje sabemos bem. Soltas durante a narrativa, frases como “O dinheiro faz você fazer coisas que não quer fazer” e “Pare de ir atrás do dinheiro fácil e produza algo com sua vida” resumem bem a visão de Stone sobre o tema.

É verdade que para alcançar seu objetivo, o diretor acaba pesando a mão em alguns instantes. Assim, o milionário Gekko obviamente acaba punido e preso, enquanto Bud perde a namorada e o dinheiro, vende o apartamento, vê seu pai sofrer um enfarte e ainda é surpreendido em seu escritório pela polícia, num resultado trágico que nem sempre traduz a realidade do mercado financeiro – e é curioso notar como mesmo após fazer tantas coisas erradas, nós sentimos pena dele ao vê-lo deixando o escritório algemado e chorando. É evidente que nem todo trader é como Gekko e que é possível ser bem sucedido como corretor sem deixar-se cegar pela ganância, mas nem por isso “Wall Street – Poder e Cobiça” deixa de ser um grande filme que, curiosamente, acabou antevendo parte do processo de decadência dos “Mestres do Universo”.

Bud ganhando uma sala amplaVelho funcionário é demitidoDeixa o escritório algemado e chorandoEm “Wall Street – Poder e Cobiça”, Oliver Stone aponta sua metralhadora crítica não apenas para o especulativo mercado financeiro, mas também para a mentalidade de uma época em que a qualidade de um terno era mais importante do que a pessoa dentro dele e que o sucesso era medido pelos dígitos de sua conta bancária. O tempo provou que o diretor tinha certa dose de razão e que, ao contrário do que afirma Gordon Gekko, a ganância não é algo tão bom assim.

Wall Street - Poder e Cobiça foto 2Texto publicado em 16 de Março de 2013 por Roberto Siqueira

CURTINDO A VIDA ADOIDADO (1986)

(Ferris Bueller’s Day Off)

 

Videoteca do Beto #116

Dirigido por John Hughes.

Elenco: Matthew Broderick, Alan Ruck, Mia Sara, Jeffrey Jones, Jennifer Grey, Cindy Pickett, Lyman Ward, Charlie Sheen, Edie McClurg e Kristy Swanson.

Roteiro: John Hughes.

Produção: John Hughes e Tom Jacobson.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Os filmes adolescentes eram uma verdadeira febre nos anos oitenta, talvez porque as produtoras perceberam que os jovens formavam a grande parte do público que freqüentava os cinemas. Apesar disto, a quantidade de bons filmes voltados para este público era bem superior ao que vemos atualmente, como atestam a deliciosa aventura “Os Goonies”, a magnífica trilogia “De Volta para o Futuro” e comédias muito divertidas como este “Curtindo a Vida Adoidado”, que, com seu protagonista carismático e situações muito divertidas, conquista imediatamente o espectador.

Ferris Bueller (Matthew Broderick) é um aluno bastante popular na escola, que decide matar aula para curtir um belo dia de sol ao lado da namorada Sloane Peterson (Mia Sara) e de seu melhor amigo Cameron (Alan Ruck). Sua desculpa, porém, não engana o diretor Ed Rooney (Jeffrey Jones), que tenta de todas as formas descobrir suas falcatruas, e nem mesmo sua irmã Jean (Jennifer Grey), que também tenta atrapalhar seus planos.

Escrito, produzido e dirigido por John Hughes, “Curtindo a Vida Adoidado” é uma comédia adolescente leve, que representa bem o gênero que o próprio Hughes se especializaria em dirigir posteriormente. Repleta de boas idéias e piadas divertidas, a narrativa tem um ritmo ágil, essencial para agradar seu público alvo, o que é mérito também da montagem dinâmica de Paul Hirsch. Ciente do que queria, Hughes explora muito bem situações conhecidas pelo espectador mais jovem, como aquelas intermináveis aulas chatas que nos fazem quase babar nas mesas escolares, exatamente como acontece com os personagens que, letárgicos, assistem ao professor repetir insistentemente o nome de “Bueller”, mesmo vendo sua cadeira vazia. Partindo desta premissa, uma atitude até comum (pelo menos na minha geração) como “matar aula” serve de ponto de partida para um dia inesquecível, repleto de situações inusitadas, sempre lideradas pelo carismático protagonista. Ferris convida seu grande amigo Cameron para passar o dia ao seu lado, num momento divertido em que ficam evidentes os métodos alternativos que eles utilizam pra matar aula e até mesmo o estado de espírito de cada um. Enquanto Cameron vegeta em seu quarto embalado por uma trilha sombria, Ferris toma uma bebida em sua cadeira de praia, acompanhado por uma trilha bem suave. Depois, após uma hilária ligação, Ferris arma uma situação e consegue a companhia da namorada Sloane. Está montado o cenário para um dia inesquecível.

Sempre num contexto cômico, Hughes faz ainda algumas referências a outros personagens importantes do cinema, como “Alien” e “Dirty Harry”, que, aliás, faz Rooney se encher de orgulho ao ser comparado com o personagem durão de Clint Eastwood. Além disso, o diretor dá total liberdade para que seu protagonista quebre constantemente a quarta parede ao falar com a câmera e se dirigir a platéia, num artifício narrativo que nos surpreende e nos faz rir, além de fugir da abordagem realista ao inserir tópicos escritos na tela, por exemplo. Mas apesar da direção eficiente, é na força da atuação de Matthew Broderick que o longa se sustenta. Carismático, o ator cria um personagem adorável desde os primeiros minutos em cena, que se tornou um símbolo dos jovens em sua época. Os adolescentes queriam ser Ferris Bueller. Mimado pelos pais, Ferris é o verdadeiro bon vivant, capaz de criar inúmeras situações para curtir seu “dia de folga”, sempre driblando aqueles que tentam impedi-lo. E apesar de algum exagero, as armações de Ferris – como na cena do restaurante e a fita gravada em seu quarto – funcionam muito bem, provocando o riso no espectador.

Além de seu carismático protagonista, “Curtindo a Vida Adoidado” conta ainda com coadjuvantes adoráveis, como o medroso e engraçado Cameron, interpretado por Alan Ruck, que é quem mais se transforma na narrativa, criando coragem para enfrentar o pai e levar a vida mais na boa, inspirado pelo amigo Ferris. Revoltado, ele extrapola e acaba detonando a Ferrari do pai, em outro momento bastante engraçado. Interpretada pela graciosa Jennifer Grey, Jean, a irmã de Ferris, tem a função narrativa de criar dificuldades para Ferris e inserir um pouco de suspense na trama, mas sempre de maneira leve e descontraída. Apesar disso, Grey constantemente aparece séria, demonstrando irritação com o irmão, até o momento em que encontra um garoto drogado (Charlie Sheen, em participação hilária) na delegacia e muda de comportamento – e Grey se sai muito bem após o beijo, demonstrando a empolgação da garota. Vale destacar ainda Jeffrey Jones, que faz do diretor Ed Rooney um personagem adoravelmente atrapalhado em sua tentativa de soar ameaçador.

O clima leve da narrativa é reforçado pela fotografia clara do bom Tak Fujimoto, que explora bem o dia ensolarado em que se passa a trama para empregar um visual bastante alegre e coerente com o espírito do longa. Também colaboram as roupas coloridas de Ferris e seus amigos (figurinos de Marilyn Vance) e a trilha sonora agitada de Arthur Baker, Ira Newborn, John Robie e Yello, que pontua muito bem o empolgante dia do trio, como quando eles saem da escola na Ferrari do pai de Cameron após enganarem o diretor, acompanhados pela trilha cheia de adrenalina, ou quando eles visitam o museu, acompanhados pelo som de músicas clássicas. A trilha acerta ainda na escolha de músicas infalíveis, como “Twist and Shout”, dos Beatles, que mexe o esqueleto de qualquer um e faz o espectador se sentir bem enquanto assiste ao filme.

Com esta atmosfera jovial, “Curtindo a Vida Adoidado” conta ainda com um arsenal de piadas criativas, como os efeitos sonoros do teclado que imitam a tosse do “doente” Ferris, que sensibilizam seus colegas de escola e dão início ao engraçado movimento “Save Ferris”. Entre tantos momentos memoráveis, vale destacar também a hilária conversa telefônica entre o diretor Rooney e o suposto Sr. Peterson, em que a câmera demora a revelar Cameron do outro lado da linha, fazendo com que o espectador pense que o diretor de fato está falando com o pai de Sloane. Finalmente, na corrida desesperada de Ferris pra casa já no final, torcemos muito por ele, ainda que tenha matado aula e enganado a todos, justamente pelo inegável carisma do personagem. Após os créditos, Ferris ainda brinca com câmera, usando a metalingüística de maneira bastante divertida.

Criativo e cativante, “Curtindo a Vida Adoidado” é um filme despretensioso sobre um personagem igualmente despretensioso. Ferris não tem grandes aspirações, não se preocupa com os problemas ao seu redor e só quer saber de se divertir. Certamente, ele não poderá viver assim pra sempre. Por isso, trata de aproveitar enquanto pode. E seu dia de diversão acabou se transformando em algo muito maior: um clássico do cinema nos anos 80.

Texto publicado em 13 de Outubro de 2011 por Roberto Siqueira

PLATOON (1986)

(Platoon)

 

Videoteca do Beto #45

Vencedores do Oscar #1986

Dirigido por Oliver Stone.

Elenco: Tom Berenger, Willem Dafoe, Charlie Sheen, Forest Whitaker, Francesco Quinn, John C. McGinley, Richard Edson, Kevin Dillon, Reggie Johnson, Keith David, Johnny Depp, David Neidorf, Mark Moses, Chris Pedersen, Tony Todd, Corkey Ford, Dale Dye e Oliver Stone.

Roteiro: Oliver Stone.

Produção: Arnold Kopelson.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido o filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Antes mesmo de suas primeiras imagens, “Platoon”, maravilhoso e verdadeiro retrato do que foi a guerra do Vietnã dirigido por Oliver Stone, deixa claro uma das grandes perdas da guerra. A frase bíblica “Jovem, regozija-te na juventude” faz questão de reforçar que a juventude e a inocência que ela carrega são deixadas no combate, independente da sobrevivência ou não daqueles jovens que são enviados para o fronte.

O jovem e idealista Chris (Charlie Sheen), insatisfeito com a vida comum que seus pais queriam que vivesse, decide se tornar voluntário na guerra do Vietnã e defender seu país como o pai e o avô fizeram em outras guerras. Mas aos poucos, a convivência com o pelotão liderado por Barnes (Tom Berenger) e Elias (Willem Dafoe) e a terrível violência sem sentido da guerra vão alterando completamente sua visão do mundo.

Oliver Stone dirige “Platoon” com conhecimento de causa, já que o diretor é um ex-combatente da guerra do Vietnã. Não à toa, o excelente roteiro escrito por ele próprio escancara os conflitos internos do pelotão, jamais sendo ufanista ou maniqueísta e fazendo questão de mostrar os norte-americanos como seres humanos normais, que cometem erros e acertos e chegam até mesmo a ser cruéis em determinados momentos, como na chocante cena em que atacam uma aldeia. Stone utiliza ainda o inteligente artifício de expor os pensamentos de Chris através das cartas que envia para a avó, fazendo com que o espectador saiba o que ele pensa sem que a narração soe falsa ou deslocada. Repare como os pensamentos cessam subitamente a partir do momento em que Chris deixa de enviar as cartas, pois o jovem percebe que aquilo não fazia mais sentido e corta sua ligação com o mundo exterior.

Stone é ainda mais competente na direção, utilizando a câmera panorâmica com freqüência para ambientar o espectador dentro da hostil selva que o pelotão vai desbravando e alternando o movimento com closes das folhas e árvores, fazendo com que o incômodo seja praticamente palpável ao caminhar pela mata. Colabora na ambientação o excepcional trabalho de som, perfeito desde os pequenos insetos, cigarras e pés estalando folhas no chão até os muitos tiros e bombas explodindo durante os combates. Aliás, o diretor também mostra sua competência nestas seqüências de combate – auxiliado pela boa montagem de Claire Simpson – alternando o close no rosto dos angustiados soldados com planos que demonstram o ponto de vista deles, buscando desesperadamente encontrar o inimigo entre as brechas da floresta e ao mesmo tempo, tentando se proteger dos ataques. Neste sentido, vale destacar o tenso primeiro contato entre o pelotão e os vietnamitas, extremamente bem dirigido por Stone, deixando o espectador lado a lado com Chris, que está distante de sua arma e das granadas, enquanto nota a aproximação dos nativos disfarçados com galhos de árvore presos aos capacetes. Outro grande momento é a triste seqüência da queima da aldeia, exemplificando perfeitamente a insanidade da guerra. “Platoon” também é extremamente realista na forma como retrata os feridos em combate, não aliviando em nada o desagradável resultado de toda aquela carnificina. Finalmente, é importante ressaltar a excelente direção de fotografia de Robert Richardson, que adota um tom obscuro e torna ainda mais sombrias as cenas noturnas, e que mesmo durante o dia, onde destaca a cor verde, mantém a paleta escura refletindo o clima melancólico do longa.

Inconformado por saber que somente os jovens da base da pirâmide social eram enviados para a guerra, Chris decide abandonar os estudos e tornar-se voluntário, o que faz um companheiro de Vietnã questionar sua sanidade (“Só sendo rico para pensar assim”. “Os ricos pisam nos pobres. Sempre foi assim e sempre será”). Mas infelizmente, a inocência é mesmo a primeira vítima da guerra. Jovem de boa formação e idealista, Chris percebe durante sua passagem pelo Vietnã que “defender o país” não é algo tão nobre assim. Charlie Sheen retrata com precisão a gradual transformação de Chris, que chega até mesmo a perder a cabeça quando atira em um deficiente físico vietnamita para fazê-lo dançar, mas se redime momentos depois ao interromper um estupro coletivo de garotas nativas. Esta cena, vale lembrar, contém uma pequena pérola do roteiro, que capta muito bem a mensagem anti-bélica do filme, quando um dos soldados questiona “Você é homossexual? Ela é uma vietnamita!”, e Chris responde: “Ela é um ser humano!”. No reencontro entre Barnes e Chris, logo após a morte de Elias, Sheen demonstra com o olhar sua raiva, explodindo segundos depois contra o sargento vivido por Berenger (“A verdade está no olhar”). Tom Berenger, aliás, que é o grande destaque do longa, com uma atuação firme e assustadora, que atinge seus melhores momentos na rígida discussão que tem com o sargento Elias e na seqüência em que escuta alguns soldados falando em matá-lo (“Estão falando em matar?”), onde com o olhar firme, questiona a fuga da realidade daquele grupo (“Vocês fumam pra fugir da realidade? Eu sou a realidade”). O seco sargento Barnes é um homem transformado pela guerra, alguém que acredita cegamente que está agindo de forma correta, mesmo que para isto tenha que matar pessoas inocentes. Sua personificação do terror chega ao auge no plano em que se prepara para matar Chris. Ironicamente, Barnes falha e acaba sendo vítima do garoto, que por sua vez, completa ali sua total transformação.

Willem Dafoe também se destaca como o sargento Elias, que após tanto tempo em serviço, simplesmente perdeu a motivação e já não mais acredita na finalidade de tudo aquilo, como deixa claro em um diálogo que tem com Chris. Neste mesmo diálogo, Elias reflete também a perda da inocência do povo americano, simbolizada historicamente no conflito do Vietnã (“Já maltratamos tantos outros povos. Acho que agora chegou a nossa vez”). Além da citada discussão com Barnes, em que Dafoe também se destaca, um plano em especial merece ser citado em sua atuação. Segundos antes de ser baleado pelo sargento rival, o incrédulo Elias muda o olhar e pressente o ataque, e Stone – através de um close em seus olhos – capta o momento inspirado de Dafoe com precisão. Surpreendentemente, Elias sobrevive, somente para morrer depois num ataque em massa dos vietnamitas, em outro plano de grande impacto acompanhado pela melancólica trilha sonora de Georges Delerue. Completam o elenco, entre outros, Forest Whitaker e Johnny Depp (em papéis menores), além do próprio Oliver Stone, que faz uma pequena participação já na seqüência final.

Por tudo isto, “Platoon” pode ser considerado um retrato fiel do que foi a guerra do Vietnã, exposto por alguém que esteve lá dentro de fato, e por isso, sabe como ninguém os efeitos causados pelo conflito na mente do ser humano. Retratada também com competência em outros grandes filmes, como Apocalypse Now (de Francis Ford Coppola), esta guerra parece ser mesmo a ferida aberta no país mais poderoso do mundo atualmente. Ou pelo menos era, até o fatídico dia 11 de Setembro de 2001, que curiosamente, gerou novos conflitos envolvendo os Estados Unidos da América, e provavelmente, gerará novos “Oliver Stone” no futuro.

“Platoon” revela a visão peculiar de Oliver Stone sobre o confronto mais marcante na vida dos norte-americanos. Mas as marcas deixadas no povo, por mais profundas que sejam, não se comparam às marcas deixadas nos combatentes que sobreviveram e levaram consigo aquelas tristes memórias. Os dois momentos marcantes da passagem de Chris pelo Vietnã – a morte de Elias e a saída do Vietnã – acontecem em sobrevôos idênticos, acompanhados pela mesma melancólica trilha sonora. E no segundo vôo, a imagem dos corpos jogados no enorme buraco é simplesmente perturbadora. Nas palavras finais dele, “a guerra acabou, mas aquelas imagens ficarão pra sempre em sua memória”. E ficarão também na memória do espectador, assim como o competente filme dirigido por Oliver Stone.

Texto publicado em 13 de Fevereiro de 2010 por Roberto Siqueira