DON JUAN DEMARCO (1995)

(Don Juan DeMarco)

 

Videoteca do Beto #128

Dirigido por Jeremy Leven.

Elenco: Marlon Brando, Johnny Depp, Faye Dunaway, Géraldine Pailhas, Bob Dishy, Rachel Ticotin, Talisa Soto, Richard C. Sarafian, Stephen Singer, Franc Luz, Carmen Argenziano e Jo Champa.

Roteiro: Jeremy Leven, baseado em personagem criado por Lord Byron.

Produção: Francis Ford Coppola, Fred Fuchs e Patrick J. Palmer.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

A comédia romântica já foi explorada tantas vezes em Hollywood que é difícil não torcer o nariz antes de assistir qualquer filme que insinue pertencer ao gênero, até porque é raro balancear romance e comédia sem abusar dos clichês ou, pelo menos, utilizá-los de maneira mais criativa. Felizmente, “Don Juan DeMarco” é mais uma prova de que é possível fazer uma boa comédia romântica sem apelar para fórmulas bobas e repetitivas, provando ainda que o pré-julgamento é um erro que jamais devemos cometer, sob a pena de perdermos bons filmes por puro preconceito.

Escrito e dirigido por Jeremy Leven, “Don Juan DeMarco” tem óbvia inspiração no lendário personagem homônimo famoso por conquistar milhares de mulheres nos séculos passados. Só que diferente da versão criada por Lord Byron, o Don Juan de Leven vive nos dias atuais. Pelo menos é o que afirma um jovem que deseja se matar (Johnny Depp), que jura ser o famoso amante Don Juan, mas é convencido a desistir do suicídio pelo psiquiatra Jack Mickler (Marlon Brando), que passa a cuidar de seu caso desde então, mas que tem apenas 10 dias para tratá-lo, pois está se aposentando. No tratamento, a forma como o paciente vê o amor começa a influenciar o comportamento do médico e afetar até mesmo sua relação com a esposa (Faye Dunaway).

Obviamente, sabemos que aquele jovem não pode ser o famoso conquistador que, segundo a lenda, viveu há muitos anos atrás, mas “Don Juan DeMarco” aproveita muito bem sua premissa para nos apresentar um personagem complexo, que literalmente inventou uma nova personalidade como forma de lidar melhor com seus traumas da infância e adolescência, já que ele perdeu o pai num acidente e sua mãe internou-se num convento buscando apagar seu passado de traição ao marido. Além da interessante premissa de seu roteiro, Leven busca inspiração no famoso amante para construir belas frases que buscam tratar a mulher como o mais especial dos seres, elevando-a ao status quase de divindade, construindo ainda diálogos cativantes, como aquele em que Dr. Jack pergunta sobre os sonhos que sua esposa deixou para trás, pecando apenas ao criar personagens unidimensionais na equipe de médicos, algo que fica evidente na reação exagerada da equipe após a liberação de “Don Juan”.

Graças ao bom trabalho do montador Antony Gibbs, a narrativa alterna num ritmo interessante entre o presente no hospital psiquiátrico e o passado de Don Juan – repare como a fotografia de Ralf D. Bode oscila das cores mais frias do presente para as cores quentes que reforçam a aura gloriosa das histórias contadas por ele, como na ilha “Eros”, onde lindos planos apresentam o breve romance com Doña Ana (Géraldine Pailhas). Apresentando curiosas variações para a música tema de Bryan Adams (“Have you ever really loved a woman”), a trilha sonora de Michael Kamen e Robert John Lange complementa a atmosfera romântica e a direção de arte de Jeff Knipp nos ambienta em cada época e local, passando pelos dias atuais nos EUA, pelas histórias no México e pelas arábias. Já a roupa que remete ao famoso personagem mascarado é mérito dos figurinos de Kirsten Everberg.

Apesar de alguns movimentos de câmera interessantes – especialmente no México, como quando a câmera diminui a família DeMarco na morte do pai dele -, Leven não se sai tão bem atrás das câmeras, falhando, por exemplo, ao não conseguir extrair uma atuação mais leve do excepcional Marlon Brando, que às vezes parece estar atuando no piloto automático (o que, vindo dele, ainda assim garante uma boa atuação). Mas Leven compensa esta falha balanceando bem os momentos românticos, como a história do primeiro amor de Don Juan, e a parte cômica da narrativa, como a divertida passagem em que ele é escolhido por uma sultana e vive num harém. Apostando alto no bom humor, especialmente nos momentos que envolvem mulheres se derretendo diante do protagonista, Leven consegue conquistar o espectador, graças também ao carisma de Johnny Depp.

Logo em sua primeira aparição, o “Don Juan” de Depp apresenta ao espectador seu poder de sedução ao conquistar uma bela moça no restaurante, fazendo-a delirar somente acariciando suas mãos (numa cena excelente, aliás). Com um engraçado sotaque castelhano, Depp conquista a platéia com seu carisma, algo bem explorado pelo diretor, que faz questão de destacar o ator através do uso constante de closes. Mas nem só de sua aparência vive o talentoso Depp e ele já deixava isto claro na época, numa boa atuação que já nos apresentava seu timing cômico, notável, por exemplo, na divertida reação dele quando Ana pergunta quantas mulheres Don Juan já teve. Suas histórias parecem hipnotizar o Dr. Jack, algo louvável se considerarmos que o psiquiatra é interpretado por ninguém menos do que a lenda Marlon Brando.

Mesmo parecendo desinteressado em alguns momentos, Brando mostra porque é considerado um dos maiores atores da história, atuando com naturalidade e fazendo de seu Dr. Mickler um personagem interessante, com uma trajetória lenta e consistente de mudança interior. Seguro, ele se destaca em alguns momentos especiais, como quando se comove com a história da morte do pai de Don Juan e especialmente quando demonstra carinho pela esposa, interpretada pela também carismática Faye Dunaway, que demonstra bem a surpresa que a mudança do marido provoca na personagem.

O último dia de trabalho do Dr. Jack marca também a data da análise de seu paciente pela comissão do hospital psiquiátrico. E pra surpresa geral (até mesmo da platéia), ele age normalmente na entrevista final, contrariando a expectativa criada até então. A versão coerente de sua história convence o médico de que ele não tem problema algum e garante sua liberação. Mas quem quer coerência naquela altura da narrativa? Neste instante, já estamos convencidos de que o melhor mesmo é dar asas a imaginação e se entregar ao amor, aos mais íntimos sentimentos, aquilo que os olhos não podem ver, mas que o coração pode sentir. Por isso, o final feliz da fábula na ilha de Eros é facilmente explicável: nas palavras do Dr. Jack, aquele jovem sofria de um romantismo incurável e altamente contagioso. Por isso, somos capazes de ignorar a realidade e entrar naquela fantasia – e eu fui apenas mais um espectador infectado por ele.

Leve e contagiante, “Don Juan DeMarco” é uma comédia romântica cativante, que, assim como seu personagem título, carrega alguma magia inexplicável e nos faz sair da projeção com o romantismo renovado. Aquele jovem era mesmo Don Juan? Como diz a mãe do protagonista em certo instante, a verdade está dentro de nós mesmos. A razão nos prova que não, mas às vezes vale à pena enxergar além do que nossa limitada visão nos permite ver.

Texto publicado em 30 de Maio de 2012 por Roberto Siqueira

PLATOON (1986)

(Platoon)

 

Videoteca do Beto #45

Vencedores do Oscar #1986

Dirigido por Oliver Stone.

Elenco: Tom Berenger, Willem Dafoe, Charlie Sheen, Forest Whitaker, Francesco Quinn, John C. McGinley, Richard Edson, Kevin Dillon, Reggie Johnson, Keith David, Johnny Depp, David Neidorf, Mark Moses, Chris Pedersen, Tony Todd, Corkey Ford, Dale Dye e Oliver Stone.

Roteiro: Oliver Stone.

Produção: Arnold Kopelson.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido o filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Antes mesmo de suas primeiras imagens, “Platoon”, maravilhoso e verdadeiro retrato do que foi a guerra do Vietnã dirigido por Oliver Stone, deixa claro uma das grandes perdas da guerra. A frase bíblica “Jovem, regozija-te na juventude” faz questão de reforçar que a juventude e a inocência que ela carrega são deixadas no combate, independente da sobrevivência ou não daqueles jovens que são enviados para o fronte.

O jovem e idealista Chris (Charlie Sheen), insatisfeito com a vida comum que seus pais queriam que vivesse, decide se tornar voluntário na guerra do Vietnã e defender seu país como o pai e o avô fizeram em outras guerras. Mas aos poucos, a convivência com o pelotão liderado por Barnes (Tom Berenger) e Elias (Willem Dafoe) e a terrível violência sem sentido da guerra vão alterando completamente sua visão do mundo.

Oliver Stone dirige “Platoon” com conhecimento de causa, já que o diretor é um ex-combatente da guerra do Vietnã. Não à toa, o excelente roteiro escrito por ele próprio escancara os conflitos internos do pelotão, jamais sendo ufanista ou maniqueísta e fazendo questão de mostrar os norte-americanos como seres humanos normais, que cometem erros e acertos e chegam até mesmo a ser cruéis em determinados momentos, como na chocante cena em que atacam uma aldeia. Stone utiliza ainda o inteligente artifício de expor os pensamentos de Chris através das cartas que envia para a avó, fazendo com que o espectador saiba o que ele pensa sem que a narração soe falsa ou deslocada. Repare como os pensamentos cessam subitamente a partir do momento em que Chris deixa de enviar as cartas, pois o jovem percebe que aquilo não fazia mais sentido e corta sua ligação com o mundo exterior.

Stone é ainda mais competente na direção, utilizando a câmera panorâmica com freqüência para ambientar o espectador dentro da hostil selva que o pelotão vai desbravando e alternando o movimento com closes das folhas e árvores, fazendo com que o incômodo seja praticamente palpável ao caminhar pela mata. Colabora na ambientação o excepcional trabalho de som, perfeito desde os pequenos insetos, cigarras e pés estalando folhas no chão até os muitos tiros e bombas explodindo durante os combates. Aliás, o diretor também mostra sua competência nestas seqüências de combate – auxiliado pela boa montagem de Claire Simpson – alternando o close no rosto dos angustiados soldados com planos que demonstram o ponto de vista deles, buscando desesperadamente encontrar o inimigo entre as brechas da floresta e ao mesmo tempo, tentando se proteger dos ataques. Neste sentido, vale destacar o tenso primeiro contato entre o pelotão e os vietnamitas, extremamente bem dirigido por Stone, deixando o espectador lado a lado com Chris, que está distante de sua arma e das granadas, enquanto nota a aproximação dos nativos disfarçados com galhos de árvore presos aos capacetes. Outro grande momento é a triste seqüência da queima da aldeia, exemplificando perfeitamente a insanidade da guerra. “Platoon” também é extremamente realista na forma como retrata os feridos em combate, não aliviando em nada o desagradável resultado de toda aquela carnificina. Finalmente, é importante ressaltar a excelente direção de fotografia de Robert Richardson, que adota um tom obscuro e torna ainda mais sombrias as cenas noturnas, e que mesmo durante o dia, onde destaca a cor verde, mantém a paleta escura refletindo o clima melancólico do longa.

Inconformado por saber que somente os jovens da base da pirâmide social eram enviados para a guerra, Chris decide abandonar os estudos e tornar-se voluntário, o que faz um companheiro de Vietnã questionar sua sanidade (“Só sendo rico para pensar assim”. “Os ricos pisam nos pobres. Sempre foi assim e sempre será”). Mas infelizmente, a inocência é mesmo a primeira vítima da guerra. Jovem de boa formação e idealista, Chris percebe durante sua passagem pelo Vietnã que “defender o país” não é algo tão nobre assim. Charlie Sheen retrata com precisão a gradual transformação de Chris, que chega até mesmo a perder a cabeça quando atira em um deficiente físico vietnamita para fazê-lo dançar, mas se redime momentos depois ao interromper um estupro coletivo de garotas nativas. Esta cena, vale lembrar, contém uma pequena pérola do roteiro, que capta muito bem a mensagem anti-bélica do filme, quando um dos soldados questiona “Você é homossexual? Ela é uma vietnamita!”, e Chris responde: “Ela é um ser humano!”. No reencontro entre Barnes e Chris, logo após a morte de Elias, Sheen demonstra com o olhar sua raiva, explodindo segundos depois contra o sargento vivido por Berenger (“A verdade está no olhar”). Tom Berenger, aliás, que é o grande destaque do longa, com uma atuação firme e assustadora, que atinge seus melhores momentos na rígida discussão que tem com o sargento Elias e na seqüência em que escuta alguns soldados falando em matá-lo (“Estão falando em matar?”), onde com o olhar firme, questiona a fuga da realidade daquele grupo (“Vocês fumam pra fugir da realidade? Eu sou a realidade”). O seco sargento Barnes é um homem transformado pela guerra, alguém que acredita cegamente que está agindo de forma correta, mesmo que para isto tenha que matar pessoas inocentes. Sua personificação do terror chega ao auge no plano em que se prepara para matar Chris. Ironicamente, Barnes falha e acaba sendo vítima do garoto, que por sua vez, completa ali sua total transformação.

Willem Dafoe também se destaca como o sargento Elias, que após tanto tempo em serviço, simplesmente perdeu a motivação e já não mais acredita na finalidade de tudo aquilo, como deixa claro em um diálogo que tem com Chris. Neste mesmo diálogo, Elias reflete também a perda da inocência do povo americano, simbolizada historicamente no conflito do Vietnã (“Já maltratamos tantos outros povos. Acho que agora chegou a nossa vez”). Além da citada discussão com Barnes, em que Dafoe também se destaca, um plano em especial merece ser citado em sua atuação. Segundos antes de ser baleado pelo sargento rival, o incrédulo Elias muda o olhar e pressente o ataque, e Stone – através de um close em seus olhos – capta o momento inspirado de Dafoe com precisão. Surpreendentemente, Elias sobrevive, somente para morrer depois num ataque em massa dos vietnamitas, em outro plano de grande impacto acompanhado pela melancólica trilha sonora de Georges Delerue. Completam o elenco, entre outros, Forest Whitaker e Johnny Depp (em papéis menores), além do próprio Oliver Stone, que faz uma pequena participação já na seqüência final.

Por tudo isto, “Platoon” pode ser considerado um retrato fiel do que foi a guerra do Vietnã, exposto por alguém que esteve lá dentro de fato, e por isso, sabe como ninguém os efeitos causados pelo conflito na mente do ser humano. Retratada também com competência em outros grandes filmes, como Apocalypse Now (de Francis Ford Coppola), esta guerra parece ser mesmo a ferida aberta no país mais poderoso do mundo atualmente. Ou pelo menos era, até o fatídico dia 11 de Setembro de 2001, que curiosamente, gerou novos conflitos envolvendo os Estados Unidos da América, e provavelmente, gerará novos “Oliver Stone” no futuro.

“Platoon” revela a visão peculiar de Oliver Stone sobre o confronto mais marcante na vida dos norte-americanos. Mas as marcas deixadas no povo, por mais profundas que sejam, não se comparam às marcas deixadas nos combatentes que sobreviveram e levaram consigo aquelas tristes memórias. Os dois momentos marcantes da passagem de Chris pelo Vietnã – a morte de Elias e a saída do Vietnã – acontecem em sobrevôos idênticos, acompanhados pela mesma melancólica trilha sonora. E no segundo vôo, a imagem dos corpos jogados no enorme buraco é simplesmente perturbadora. Nas palavras finais dele, “a guerra acabou, mas aquelas imagens ficarão pra sempre em sua memória”. E ficarão também na memória do espectador, assim como o competente filme dirigido por Oliver Stone.

Texto publicado em 13 de Fevereiro de 2010 por Roberto Siqueira