TOY STORY 4 (2019)

(Toy Story 4)

 

Lançamentos #3

Dirigido por Josh Cooley.

Elenco: Vozes de Tom Hanks, Bonnie Hunt, Laurie Metcalf, Joan Cusack, Tim Allen, Annie Potts, Jeff Garlin, Jodi Benson, Don Rickles, Estelle Harris, Blake Clark, Bud Luckey, Jeff Pidgeon, Lori Alan, Keanu Reeves, Christina Hendricks, Jordan Peele, Timothy Dalton, Wallace Shawn, Mel Brooks, Tony Hale, Madeleine McGraw, Patricia Arquette, Lila Sage Bromley, June Squibb, Kristen Schaal, Ally Maki e Jay Hernandez.

Roteiro: Andrew Stanton e Stephany Folsom.

Produção: Mark Nielsen e Jonas Rivera.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Quando a Pixar anunciou que lançaria “Toy Story 4”, confesso que fiquei preocupado. Não que eu duvide da capacidade do estúdio que hoje pertence a Disney de produzir filmes memoráveis, mas o fato é que “Toy Story 3” parecia uma conclusão perfeita para a trajetória dos brinquedos liderados por Woody, Buzz e Cia. Só que um olhar mais profundo revela que, na realidade, o longa anterior concluía a história do crescimento de Andy e não dos brinquedos em si, o que de fato abre espaço para novos filmes. Obviamente, existe também uma motivação comercial nisso tudo, mas o bom resultado alcançado demonstra que a Pixar tomou os devidos cuidados para não entregar apenas um caça-níquel.

Escrito por Andrew Stanton (diretor de “WALL·E”, um dos meus favoritos da Pixar) e Stephany Folsom, “Toy Story 4” tem início quando Bonnie (voz de Madeleine McGraw), abatida e deslocada no primeiro dia de aula, resolve criar um brinquedo a partir de materiais encontrados no lixo e o leva para casa. Só que “Garfinho” (voz de Tony Hale) demora a perceber sua natureza de brinquedo, o que cria grandes problemas para Woody (voz de Tom Hanks), especialmente quando a família de Bonnie decide viajar e o novo brinquedo acaba se perdendo pelo caminho, entristecendo a garota e dando origem a uma verdadeira missão de busca que envolverá Buzz (voz de Tim Allen), Jessie (voz de Joan Cusack) e ainda trará de volta a boneca Beth (voz de Annie Potts).

Auxiliado por seu montador Axel Geddes, o diretor Josh Cooley abre “Toy Story 4” com um prólogo que retorna nove anos no tempo e traz a separação de Woody e Beth, o que inicialmente soa deslocado e sem propósito, como algo forçado apenas para permitir a existência do quarto filme após “Toy Story 3” dar a sensação de que uma continuação era desnecessária. Felizmente, esta sensação lentamente é dissipada, apesar de alguns flertes com o perigo como ao sugerir que Beth sairia de cena ao recusar ajudar Woody, por exemplo, até que faça todo sentido e se justifique no encerramento tocante e coerente com o momento dos personagens.

Aliás, é curioso notar como a narrativa é conduzida de maneira a preparar o espectador para o desfecho sem que a plateia perceba muito o que está acontecendo. Assim, desta vez temos menos momentos engraçados que o de costume, ainda que haja espaço para o humor criativo tão marcante em todos os filmes da franquia, que explora as possibilidades criadas pelo universo dos brinquedos. Neste aspecto, o destaque claramente fica para os novatos bichos de pelúcia, que protagonizam algumas das cenas mais divertidas do filme, como a briga com Buzz, a solução simples e eficiente para a obtenção de uma chave e os hilários planos elaborados por eles.

O que não muda nada em relação ao passado é o carisma dos personagens. Demonstrando o entrosamento esperado após tantos anos, Woody, Buzz, Jessie e companhia continuam adoráveis. A devoção de Woody à sua vocação como brinquedo continua evidente, por exemplo, na conversa com Garfinho à beira da estrada, quando fala sobre Andy em tom nostálgico e resume perfeitamente como ele vê sua função no mundo. Enquanto isso, Buzz demonstra o mesmo misto de lealdade, autoconfiança exacerbada e heroísmo que fazem dele um personagem tão marcante, enquanto Jessie, com menos espaço desta vez, continua sendo a destemida heroína da turma – e são estes três personagens que agem em momentos cruciais do filme para tentar resolver o problema, confirmando sua condição de líderes. Já o novato Garfinho conquista o público com seu temor diante de tantas novidades e, principalmente, por sua justificada obsessão inicial pelo lixo, trazendo ainda um misto de inocência e curiosidade que remete a uma criança e cria empatia com o espectador de maneiras distintas.

É inegável, porém, que a mudança mais clara em “Toy Story 4” em relação aos personagens é o destaque que as figuras femininas ganham na narrativa. Contrariando a persona criada em filmes anteriores da mocinha apaixonada pelo caubói, Beth retorna como uma mulher forte, independente e líder de um grupo de nômades, sendo ainda a responsável por decisões importantes do grupo e, de quebra, a motivação da surpreendente decisão final de Woody. Jessie, por sua vez, assume o papel de liderar a turma que fica no veículo com Bonnie, enquanto Gabby Gabby (voz de Christina Hendricks) assume o papel da vilã e ainda protagoniza um emocionante desfecho em sua trajetória.

Apostando em muitas cenas noturnas e chuvosas, a fotografia de Patrick Lin realça a tensão em momentos como a sequência de abertura ou o ato final, enquanto o design de produção de Bob Pauley capricha em cenários como a loja de antiguidades, criando uma atmosfera que remete ao terror desde os primeiros instantes através das teias de aranha, dos móveis e da pouca iluminação do local. Filme mais melancólico dos quatro até então, “Toy Story 4” trabalha desde o início na construção desta atmosfera que sustentará a dolorosa despedida do ato final, com seu visual dominado pelas citadas cenas sombrias e a trilha sonora mais contida e triste de Randy Newman, na qual vale destacar também a preocupação com pequenos detalhes, como quando um acordeom embala a lembrança de Duke Caboom (voz de Keanu Reeves) e seu dono canadense, remetendo a influência francesa naquele país.

Esta abordagem mais melancólica não impede, no entanto, que Josh Cooley acelere o ritmo nos momentos necessários, como quando sua câmera fluída viaja pelos ambientes acompanhando Buzz e Woody indo do parque para a loja de antiguidades e, especialmente, quando acompanhamos quatro linhas narrativas distintas simultaneamente, com Woody na loja, Buzz indo atrás dele, Garfinho sob a custódia de Gabby Gabby e os brinquedos que ficaram no motor home – novamente, ponto para o montador Axel Geddes. Esta sequência mais frenética de ações nos leva a interessante reviravolta em que Woody, após escapar de Gabby Gabby, resolve voltar e tentar encontrar uma dona para ela, após o sofrido abandono que humaniza a personagem e torna mais aceitáveis suas motivações. No entanto, a grande surpresa ainda estava por vir.

Construído cuidadosamente durante toda a narrativa sem jamais escancarar esta intenção, o devastador momento em que Woody decide abandonar o grupo deixa personagens e espectadores em frangalhos, também pela carga emocional que naturalmente evoca após tantos anos. Ciente do impacto desta decisão, Cooley prepara o espectador para este momento tocante através das citadas trilha sonora e fotografia, que criam o clima ideal, e da condução da relação já distante entre Woody e Bonnie desde o início, revelando como ele já não era mais o protagonista daquele universo, o que torna sua decisão compreensível e coerente com sua essência. Certamente um dos mais queridos personagens não apenas da Pixar, mas do universo das animações em geral, Woody merecidamente angariou milhões de fãs de todas as idades ao redor do mundo e certamente levou muitos deles as lágrimas neste instante.

Além da catarse emocional, “Toy Story 4” volta a abordar a importância das crianças na vida dos brinquedos como um dos temas centrais da narrativa, trazendo ainda as tradicionais reflexões filosóficas sobre a natureza dos brinquedos e seu lugar no universo e, de quebra, promovendo outra interessante discussão através do novo personagem feito de lixo. O que é um brinquedo de fato? Uma bola de meia é um brinquedo? Sua função é divertir uma criança até inevitavelmente ser abandonado como Beth e tantos outros ou divertir crianças aleatórias sem jamais criar vínculo com nenhuma delas como fazem os brinquedos nos parques? Somente por isso o longa dirigido por Josh Cooley já vale a pena.

Ainda que o considere inferior ao primeiro e ao terceiro filme, “Toy Story 4” justifica sua existência através da introdução de novos personagens e novas reflexões sem perder características marcantes dos longas anteriores e nos reservando ainda um surpreendente e emocionante desfecho que pode significar o encerramento do ciclo de um dos mais emblemáticos personagens da curta e gloriosa trajetória da Pixar.

Ou seria o início de uma nova trajetória solo? Só o tempo dirá.

Texto publicado em 24 de Dezembro de 2019 por Roberto Siqueira

TOY STORY 3 (2010)

(Toy Story 3)

 

 

Filmes em Geral #87

Dirigido por Lee Unkrich.

Elenco: Vozes de Tom Hanks, Tim Allen, Michael Keaton, Joan Cusack, Bonnie Hunt, Timothy Dalton, R. Lee Ermey, John Ratzenberger, John Morris, Laurie Metcalf, Wallace Shawn, Don Rickles, Jodi Benson e Ned Beatty.

Roteiro: Michael Arndt.

Produção: Darla K. Anderson.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Antes mesmo de assistir ao último filme da impecável trilogia “Toy Story”, fui tomado por um sentimento nostálgico somente ao imaginar que, após acompanharmos a trajetória de Andy e seus queridos brinquedos nos excepcionais filmes anteriores, aquela seria a minha despedida de Woody, Buzz e companhia. Se me emocionei em “Toy Story” e quase não contive as lágrimas em “Toy Story 2” – especialmente no clipe que conta a história de Jesse e sua dona -, era muito provável que as lágrimas seriam inevitáveis em “Toy Story 3”. Mas eu não estava preparado para esta verdadeira catarse. A verdade é que a obra-prima dirigida por Lee Unkrich mexe em nossos sentimentos mais profundos, remetendo a mais nostálgica fase de nossas vidas.

Desta vez escrito por Michael Arndt, “Toy Story 3” traz Andy (voz de John Morris) já com 17 anos e prestes a ir para a Faculdade. Enquanto arruma seu quarto, ele decide levar apenas o cowboy Woody (voz de Tom Hanks) e deixar todos seus outros brinquedos no sótão, entre eles Buzz Lightyear (voz de Tim Allen), Jessie (voz de Joan Cusack) e o Sr. Cabeça de Batata (voz de Don Rickles). Mas, por engano, sua mãe confunde o saco que ele separou para os brinquedos e eles acabam no lixo. O grupo consegue escapar, se infiltra numa caixa onde está Barbie (voz de Jodi Benson) e acaba sendo levado para a creche Sunnyside, onde eles conhecerão novos brinquedos como Ken (voz de Michael Keaton) e o urso Lotso (voz de Ned Beatty).

Esbanjando criatividade, o roteiro de Arndt traz Woody novamente numa situação complicada, tendo que salvar os amigos antes da partida de Andy, o que nos leva a novas e empolgantes aventuras. Remetendo em alguns instantes a estrutura narrativa do primeiro filme (a reunião entre os brinquedos, a “fuga involuntária” da casa), Arndt tem ainda o cuidado de revelar o destino de personagens marcantes como Wheezy, a boneca de porcelana Beth e os soldados de plástico, num indício sutil do clima nostálgico que permeia a narrativa, acertando também nos momentos bem humorados, como ao “resetar” Buzz e trazer de volta sua adorável dedicação ao “comando estelar”, além da hilária mudança de seu idioma para o espanhol. Abordando temas como a inexorabilidade do tempo (como atestam o gordo e cansado Buster e o rosto adolescente de Andy) e a importância da amizade verdadeira, “Toy Story 3” emociona não apenas as crianças, mas também (e especialmente!) os adultos.

A espetacular seqüência de abertura dá o tom da narrativa, iniciando com a empolgante aventura (que descobriremos existir apenas na cabeça de Andy) envolvendo os principais personagens da trilogia e terminando nas gravações que mostram o crescimento do garoto. Esta oscilação entre a euforia e a nostalgia é uma das marcas de “Toy Story 3”, graças à direção firme de Unkrich que transforma o capítulo final da trilogia num festival de sensações. Contando com o bom trabalho do montador Ken Schretzmann, a narrativa transita muito bem entre emoções extremas, passando pela adrenalina das aventuras, pela tensão dos momentos de suspense e pela delicadeza de cenas tocantes, como o melancólico e sublime final, intercalando tudo isso com momentos de bom humor. Além disso, o trabalho de montagem se destaca também pela fluidez em diversos momentos, como na citada abertura e na apresentação do sistema de segurança de Lotso, que transforma Sunnyside numa prisão.

Tecnicamente, mais uma vez a qualidade das animações impressiona pela riqueza de detalhes, sendo capaz de dar vida aos brinquedos através da leveza de seus movimentos e da expressividade deles – observe a expressão de desaprovação de Woody quando chega a Sunnyside, por exemplo. Além disso, chega a ser quase inacreditável a capacidade de criação dos animadores da Pixar, que desenvolvem uma enorme variedade de brinquedos (muitos deles remetem diretamente a minha infância, aliás), assim como o roteiro novamente aproveita a oportunidade para criar gags divertidas baseadas nas características deles, como no sensacional encontro entre Ken e Barbie e no divertido desfile que ele faz pra ela, nas constantes piadas sobre a origem dele (“Não sou brinquedo de menina!”) e no corpo improvisado pelo Sr. Cabeça de Batata.

Ainda na parte técnica, vale destacar mais uma vez o excepcional design de som, que dá vida ao mundo criado pelos animadores e nos insere dentro dele com precisão. E se desta vez a bela “You’ve got a friend in me” soa ainda mais nostálgica devido às circunstâncias, a trilha sonora de Randy Newman se destaca também por pontuar com precisão as cenas de aventura e suspense, injetando adrenalina e tensão sempre na medida certa, além de mostrar criatividade nos acordes tipicamente espanhóis que embalam a divertida dança “caliente” de Buzz.

Voltando aos aspectos visuais, vale observar como a fotografia colorida e cheia de vida na chegada dos brinquedos à creche Sunnyside cria uma expectativa totalmente contrária à realidade do lugar, evidenciada somente pela reação dos brinquedos locais segundos antes da invasão das agitadas crianças que detonam todos eles. Esta subversão de expectativa, aliás, também acontece com o personagem Lotso, que surge como um urso tranqüilo e amigável – e a voz contida de Ned Beatty é essencial para isto -, mas lentamente se revela como o grande vilão da trama. Será ele o agente da mudança brusca da fotografia, que troca as cores vivas pelos tons obscuros durante todo o segundo ato após Woody ouvir a história de Lotso, em outra cena que transita de tons dourados para cores sombrias e sufocantes que, realçadas pela chuva, ilustram os sentimentos do urso abandonado.

Além de imprimir um ritmo delicioso à narrativa, Unkrich se destaca, por exemplo, na condução de seqüências empolgantes e visualmente belíssimas como a primeira fuga de Woody de Sunnyside, a acrobática saída de Buzz da sala Lagarta e a segunda fuga da creche, capaz de grudar o espectador na cadeira, especialmente quando os personagens são deixados no assombroso depósito de lixo – e confesso que cheguei a temer pelo destino dos heróis nesta sombria seqüência, que é certamente o momento mais tenso da narrativa. Através destes interessantes movimentos de câmera que acompanham as peripécias dos personagens, Unkrich confere agilidade e dinamismo ao longa, o que é essencial numa aventura infantil. Mas “Toy Story 3” está longe de direcionar seus esforços apenas para a fatia mais jovem do público. Por isso, quando os personagens escapam da difícil situação no depósito e conseguem voltar para casa, o final devastador se aproxima e o espectador já sabe o que esperar.

Quando Andy brinca pela última vez com seus queridos brinquedos e apresenta cada um deles para a garota, nós sabemos que também estamos nos despedindo daqueles personagens adoráveis. Sabemos ainda que, para Andy, não se trata apenas de deixar aqueles brinquedos legais para trás, mas também de despedir-se definitivamente dos áureos tempos da infância, época em que o mundo era filtrado pela pureza do olhar de uma criança. Por isso, a identificação do espectador adulto é inevitável e fica difícil segurar as lágrimas. Após o carro perder-se no horizonte e Andy deixar tudo isto para trás, aqueles momentos mágicos sobreviverão apenas na memória – e quem já passou por esta fase sabe bem o que é isto. Finalmente, esta cena final é ainda mais emblemática para aqueles que eram crianças no lançamento do primeiro “Toy Story”, já que, devido a distancia de 15 anos entre os filmes, estes jovens provavelmente também estavam na faculdade em 2010 e, portanto, o crescimento de Andy reflete a própria trajetória deles.

Ao contrário de Andy, que foi obrigado a deixar seus brinquedos para trás, as novas gerações podem comemorar, pois os filmes da trilogia “Toy Story” são brinquedos que podemos guardar eternamente e até mesmo voltar a “brincar” com eles sempre que quisermos. Esta é a magia do cinema. Esta é a magia da Pixar, que provou nesta trilogia ter o poder de – com o perdão do trocadilho – ir “ao infinito e além!”.

Texto publicado em 24 de Fevereiro de 2012 por Roberto Siqueira

JFK – A PERGUNTA QUE NÃO QUER CALAR (1991)

(JFK)

 

 

Videoteca do Beto #77

Dirigido por Oliver Stone.

Elenco: Kevin Costner, Tommy Lee Jones, Joe Pesci, Sissy Spacek, Laurie Metcalf, Gary Oldman, Kevin Bacon, Beata Pozniak, Donald Sutherland, Jack Lemmon, Walter Matthau, Vincent D’Onofrio, Martin Sheen, Michael Rooker, Jay O. Sanders, Brian Doyle-Murray, Gary Grubbs, Wayne Knight, Jo Anderson, Pruitt Taylor Vince, Sally Kirkland, Steve Reed, Jodie Farber, Columbia Dubose, Randy Means, Gary Carter, John Candy, Lolita Davidovich, Dale Dye, Ron Rifkin e Jim Morrison.

Roteiro: Oliver Stone e Zachary Sklar, baseado nos livros de Jim Marrs e Jim Garrison.

Produção: A. Kitman Ho e Oliver Stone.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Oliver Stone é um diretor polêmico, capaz de tocar na ferida provocada pela guerra do Vietnã como poucos (“Platoon” e “Nascido em 4 de Julho”), de criticar o sensacionalismo da imprensa (“Assassinos por Natureza”) e de mostrar o mundo obscuro dos negócios (“Wall Street – Poder e Cobiça”). Mas apesar de sua conhecida coragem, nunca o diretor foi tão polêmico (e proporcionalmente competente) como em “JFK – A pergunta que não quer calar”, filme que escancarou para o mundo a até hoje mal explicada solução dada para o assassinato de John Kennedy pela comissão Warren. Com um elenco numeroso e afinado e muita competência na organização de uma narrativa complexa, Stone entregou uma verdadeira obra-prima do cinema, que se não prova definitivamente a existência de uma conspiração, chega muito perto disto.

O promotor Jim Garrison (Kevin Costner) decide liderar uma investigação extra-oficial para o assassinato do presidente John F. Kennedy na tentativa de provar a existência de uma gigantesca conspiração, contrariando a conclusão da comissão Warren, que afirma ser Lee Harvey Oswald (Gary Oldman) o único responsável pelo crime.

Escrito por Oliver Stone e Zachary Sklar, baseado nos livros de Jim Marrs e Jim Garrison (olha ele aqui), “JFK” apresenta uma narrativa incrivelmente complexa, que consegue manter a atenção do espectador em cada minuto de projeção. O intrincado roteiro, repleto de informações e diálogos ágeis, além de flashbacks acompanhados de imagens que ilustram o raciocínio dos personagens, apresenta uma gama enorme de personagens numa seqüência estruturada com perfeição para que o espectador não se perca diante de tamanha complexidade. Este impressionante número de personagens importantes que cruzam a narrativa serve também para reconstituir com precisão o complicado processo de investigação daquele dia trágico, sempre sob a liderança do centrado (porém inquieto) Jim Garrison. Toda a investigação, aliás, é conduzida num ritmo intenso, que leva o espectador junto na jornada, como se estivéssemos fazendo parte daquele processo ao lado da equipe de Garrison. E a base de todo o trabalho do promotor aparece logo na introdução do filme, num vídeo com imagens de arquivo que mostra John Kennedy declarando suas idéias sobre a guerra do Vietnã, sua pretensão de retirar as tropas norte-americanas da região, sua proposta de “mudança” no olhar para a União Soviética e sua intenção de mudar no conceito de paz, “diferente daquela paz imposta pelos Estados Unidos ao mundo através da força”. Não por acaso, logo após a morte de Kennedy, o novo presidente decide manter as tropas no Vietnã. E se este fato pode até ser questionado por aqueles que acreditam no “único culpado” Lee Oswald, a simulação no prédio, quando Garrison tenta reproduzir os tiros de Oswald com o mesmo rifle, prova definitivamente que a teoria da comissão Warren é, no mínimo, questionável.

É importante ressaltar, no entanto, que “JFK” não se resume às polêmicas que cercam sua obstinada investigação. O longa de Oliver Stone é, acima de tudo, um trabalho cinematográfico excepcional, que se destaca especialmente na direção de Stone, na montagem de Joe Hutshing e Pietro Scalia e na direção de fotografia de Robert Richardson. Stone conduz a narrativa com incrível habilidade, com sua câmera inquieta que auxilia no clima de urgência da narrativa, mas conta especialmente com a fantástica montagem de Hutshing e Scalia, que emprega um ritmo intenso, alternando com velocidade entre o presente, quando Garrison conduz a investigação, e o passado, quando as cenas revivem o fatídico dia, e, ao mesmo tempo, ilustram o pensamento dos personagens no presente. Na precisa reconstituição do assassinato, merece destaque também o som, com os gritos e tiros que dão a exata noção do pânico daquele momento, ampliado pela tensa trilha sonora de John Williams. Já a fotografia de Richardson utiliza diversas câmeras (incluindo câmeras de 16 mm e Super 8), indo do visual sépia para o preto-e-branco, e até mesmo utilizando imagens de arquivo para reforçar toda a teoria que inspira o longa. Stone chega a introduzir um vídeo chocante, com a imagem do exato momento em que Kennedy é atingido, numa imagem capaz de perturbar qualquer um.  Aliás, a longa e sensacional seqüência em que Garrison explica a “teoria da bala mágica” nocauteia o espectador, também por causa do excelente desempenho de Kevin Costner, que transmite muita confiança e emoção enquanto fala, provando sua qualidade como ator. Não sei se todas as pessoas e instituições citadas estavam envolvidas naquele assassinato, mas após esta explicação emocionada de Garrison, o vídeo e a informação de que os arquivos estão proibidos para o público até 2029 é muito difícil não concordar que realmente houve uma conspiração.

E já que citei Kevin Costner, vale dizer que todo este incrível trabalho técnico de nada adiantaria se as atuações de “JFK” não fossem tão competentes. A começar pelo próprio Costner, que encarna muito bem o tranqüilo Jim Garrison, numa atuação convincente e coerente com a personalidade do promotor, que lentamente altera seu comportamento, se tornando uma pessoa atormentada diante de suas descobertas, que influenciam até mesmo sua relação com a esposa Liz (Sissy Spacek, também em grande atuação), algo ilustrando perfeitamente quando ele perde o domingo de páscoa com a família para interrogar Clay Shaw (Tommy Lee Jones). A dinâmica do casal é fundamental para compreender os efeitos daquela investigação na vida do promotor, ilustrados na excepcional cena em que Jim e Liz discutem na frente dos filhos e, com seus gritos e vozes embargadas, demonstram a situação quase insustentável daquela relação – e aqui vale observar como Costner demonstra até mesmo certo desconforto por estar diante dos filhos, procurando abraçá-los imediatamente após o fim da discussão. O ator volta a se destacar ainda quando seu olhar mistura incredulidade e passividade diante da matéria da imprensa que busca destruir sua imagem diante da sociedade (algo que de fato aconteceu, pois até hoje muita gente afirma que Garrison buscava se promover ao se envolver em casos polêmicos, revelando um pensamento que certamente interessa às pessoas e instituições atingidas pela investigação dele). Ironicamente, sua própria esposa o acusa de estar fazendo o mesmo com a imagem de Clay Shaw, interpretado brilhantemente por Tommy Lee Jones, que transmite muito cinismo, especialmente quando é interrogado por Garrison, provocando a explosão do promotor, num diálogo tenso e muito bem construído. E o que dizer de Joe Pesci, novamente espetacular, fumando muitos cigarros e transmitindo com perfeição a inquietação de David Ferrie? Seu nervosismo fica ainda mais evidente quando ele vai ao encontro de Garrison, amedrontado com a descoberta da imprensa sobre as investigações, quando Pesci olha para todos os lados, abre as portas com desconfiança e se assusta quando alguém bate na porta, mostrando claramente o quanto Ferrie está perturbado – algo ilustrado também pela câmera agitada de Stone e pela trilha sonora acelerada. Seu desespero resulta na revelação das intenções da CIA e dos exilados cubanos, revoltados com a postura de Kennedy diante do fracasso da invasão da “baía dos porcos”. Já Kevin Bacon está excelente em sua pequena participação como Willie O’Keefe, o prisioneiro homossexual interrogado por Garrison, demonstrando através da fala rápida e do olhar agitado a inquietação do personagem. E finalmente, toda a equipe de Garrison mantém o bom nível das atuações, com destaque para Laurie Metcalf como Susie Cox, Michael Rooker como Bill Broussard e Jay O. Sanders como Lou Ivon.

Em certo momento de “JFK”, um personagem diz que a pergunta mais importante não é “quem” matou o presidente, mas “porque”. Trata-se do Sr. “X” (Donald Sutherland), que apresenta em poucos minutos o coração da teoria do filme. E confesso que é muito difícil (pelo menos pra mim) não acreditar nesta teoria diante da notória preferência norte-americana pelos conflitos armados. As guerras, obviamente, giram a economia do país, algo ilustrado sutilmente através das constantes notícias sobre o Vietnã no jornal e, de forma mais clara, nos números citados no longa, afinal de contas, são bilhões de dólares gastos na guerra – e estes dólares sempre entram no bolso de alguém. Sutherland colabora bastante para a credibilidade das informações dadas por seu personagem, transmitindo segurança no que fala e convencendo Garrison sobre a importância que a guerra tem para as empresas do país, como os citados fabricantes de helicópteros e até mesmo os fabricantes de armamentos. Diante de todo este cenário, é compreensível (ainda que repugnante) que um presidente que pregava a paz, a retirada das tropas do Vietnã e a reaproximação com a União Soviética fosse considerado uma ameaça aos interesses de muitos. Esta teoria é reforçada durante a discussão entre Bill e a equipe de Garrison, quando o jovem não se conforma diante das evidencias do envolvimento de instituições norte-americanas, algo amplificado pelo momento em que Garrison dá uma entrevista para uma emissora de televisão, demonstrando o envolvimento da imprensa em todo aquele processo. Pode parecer paranóia uma conspiração deste tamanho, mas sinceramente acho mais fácil acreditar nela do que na teoria da comissão Warren.

São tantos fatos históricos que reforçam os argumentos de “JFK” que é até mesmo incompreensível que algumas pessoas acreditem que apenas Lee Oswald seja o responsável pelo crime. Um destes fatos é a morte de Robert Kennedy, que aumenta ainda mais o desespero de Garrison – algo reforçado pelo zoom de Stone que realça a expressão de Costner. Depois deste fato, até mesmo Liz passa a acreditar no marido, e a fotografia sombria que envolve o beijo do casal, acompanhada pela triste trilha sonora e pela frase de Jim “queria poder te amar mais”, ilustra o quanto aquela relação foi enfraquecida pela investigação. E se podemos questionar a veracidade de alguns aspectos da impressionante investigação conduzida por Garrison ou considerar que Stone exagera na forma como os apresenta, a qualidade cinematográfica de sua obra é impressionante e inquestionável, conseguindo criar uma narrativa igualmente complexa e coesa.

Apresentando um dos fatos mais marcantes da história norte-americana e, mais do que isso, entrando em conflito direto com importantes órgãos como o FBI e a CIA, “JFK – A pergunta que não quer calar” impressiona principalmente porque a polêmica que o envolve é apenas um dos aspectos relevantes de um longa que acerta em praticamente tudo, começando pelos magníficos aspectos técnicos, passando pelas ótimas atuações e fechando na excepcional direção de Oliver Stone. Ao contrário do assassinato de Kennedy, aqui o organizado trabalho em conjunto resultou em algo benéfico. E assim como naquele abominável crime, este resultado ficará marcado eternamente na memória.

Texto publicado em 16 de Dezembro de 2010 por Roberto Siqueira