CONTOS PROIBIDOS DO MARQUÊS DE SADE (2000)

(Quills)

 

 

Videoteca do Beto #237

Dirigido por Philip Kaufman.

Elenco: Geoffrey Rush, Kate Winslet, Joaquin Phoenix, Michael Caine, Amelia Warner, Billie Whitelaw, Patrick Malahide, Jane Menelaus, Stephen Moyer, Tony Pritchard, Michael Jenn, Danny Babington, George Antoni, Stephen Marcus, Elizabeth Berrington, Bridget McConnell, Pauline McLynn, Ron Cook, Rebecca R. Palmer e Diana Morrison.

Roteiro: Doug Wright.

Produção: Julia Chasman, Peter Kaufman e Nick Wechsler.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Em certo momento de “Contos proibidos do Marquês de Sade”, o personagem título diz a seguinte frase após comandar a encenação de uma peça teatral que reconstituía, em tom bem humorado, um fato recente ocorrido na vida de um importante personagem presente na plateia: “Só erguemos um espelho, aparentemente ele não gostou do que viu”. Esta frase escancara não apenas a base da obra literária incendiária do polêmico autor francês que inspira o longa, mas também permite discussões ainda mais profundas sobre o papel da arte – o que, confesso, se torna um debate ainda mais irresistível no contexto atual que infelizmente nosso país está lentamente sendo inserido.

Escrito com habilidade por Doug Wright com base em sua própria peça teatral, o longa baseia-se em alguns fatos reais ocorridos na vida de Sade (Geoffrey Rush), acompanhando seus últimos dias de vida num sanatório comandado pelo padre Coulmier (Joaquin Phoenix), de onde ele segue escrevendo seus livros e, com a ajuda da lavadeira local Madeleine (Kate Winslet), consegue publicá-los, chamando a atenção até mesmo do imperador Napoleão Bonaparte (Ron Cook), que envia o Dr. Royer-Collard (Michael Caine) para curá-lo de sua suposta insanidade.

Conseguindo a proeza de humanizar um dos personagens mais controversos da história, o roteiro de Wright destaca-se pela qualidade de seus diálogos, intercalando momentos de acidez, leveza e refinamento e trazendo ainda diversos questionamentos interessantes, seja nas palavras cortantes do Marquês ou nas reflexões dos demais personagens. Obviamente, o foco principal está no questionamento da hipocrisia e do falso moralismo predominante em boa parte da sociedade, que finge ter aversão às histórias narradas por ele quando estão diante de outras pessoas, mas esgotam o estoque de seus livros minutos após o lançamento destes ou, quando escutam alguém relatando alguma passagem, se dizem horrorizados somente para, quando questionados se o interlocutor deve parar a leitura, responderem: “continue!”. E não se trata aqui de defender a pessoa de Sade, extremamente controversa e repugnante até, mas de defender a liberdade artística e escancarar o duplo padrão moral que reina em nossa civilização há séculos.

Associando prazer e dor, os conceitos básicos da obra de Sade, logo no plano inicial que terá um desfecho distinto do que imaginamos, Philip Kaufman conduz a narrativa com destreza, sem jamais permitir que Sade ou os demais personagens virem caricaturas. Limitando o espaço físico da narrativa ao sanatório onde ele está internado e a pequenos momentos fora dali, o diretor nos transmite a sensação de clausura do protagonista e, de quebra, nos faz mergulhar em sua mente criativa progressivamente, sem jamais romantizar demais o personagem ou ocultar seu lado sombrio. Este mergulho conta com o excelente design de produção de Martin Childs que, além de ajudar na reconstrução de época, ainda ressalta a obsessão de Sade pelo sexo através dos objetos que enfeitam seus aposentos, demonstrando também sua inquietação através da caótica disposição de seus pertences.

Da mesma forma, os figurinos de Jacqueline West são importantes não apenas para a ambientação à época, mas por dizer muito sobre cada personagem. Enquanto o Marquês adota roupas extravagantes, Coulmier e o Dr. Royer-Collard estão sempre em roupas comportadas e Madeleine usa um vestido simples, mas que não deixa de exalar sensualidade, especialmente quando está na presença do Marquês, ilustrando a dualidade natural de uma mulher que se comporta de uma maneira diante da sociedade e de outra quando está sozinha com seus pensamentos eróticos.

Enquanto isso, o diretor de fotografia Rogier Stoffers investe num visual mais vivo inicialmente, que lentamente se transforma numa paleta mais sombria e sufocante, até chegar ao inquietante momento em que Sade sussurra seu último conto, sob uma forte tempestade que acentua seu caráter transgressor e ainda antecipa o trágico final que se aproxima, tudo isso pontuado pela tensa trilha sonora de Stephen Warbeck, que até então apostava num tom mais alegre que ameniza o eventual peso que uma narrativa sobre Sade poderia ter.

Outro mérito de Kaufman, Wright e do montador Peter Boyle está na maneira bem sucedida em que a narrativa desenvolve seus quatro personagens centrais sem a necessidade de recorrer a recursos pouco elegantes como diálogos expositivos ou flashbacks, permitindo que conheçamos suas motivações de maneira clara e orgânica – e até personagens periféricos como Simone (Amelia Warner) são bem desenvolvidos mesmo com poucas cenas. É claro que a qualidade das atuações também é crucial neste processo e, felizmente, o elenco é recheado de talentos. A começar por Michael Caine que encarna muito bem o papel de falso moralista, destes que usam o nome de Deus para empregar métodos violentos de “tratamento” para as supostas aberrações da natureza, numa marca do obscurantismo que infelizmente não ficou apenas nos livros de história. Como ainda ocorre nos dias de hoje, estes supostos tratamentos escondem grandes interesses econômicos por trás, como fica evidente em sua conversa com a angustiada esposa de Sade (Jane Menelaus) e no terceiro ato, quando o Dr. Royer-Collard lucra com livros do autor que criticava e, pior, através do trabalho escravo dos pacientes do sanatório. E não deixa de ser curioso notar como para frear o impulso de um escritor que, entre outras coisas, escrevia sobre a tortura como maneira de obter prazer sexual, o médico utilize como método para a suposta cura justamente…a tortura!

Assim, ele é capaz de criticar Sade pelo conteúdo explícito de sua obra e, ao mesmo tempo, buscar a jovem Simone aos 16 anos num convento para casar-se e forçá-la a fazer sexo com ele por ser o “dever” noturno da esposa. Não à toa, ela se interessa pela obra obscena de Sade ao ponto de memorizar o livro que lia secretamente e o abandona, fugindo com outro rapaz que compreende muito melhor a alma feminina. Igualmente moralista, mas por uma razão mais genuína, o padre Coulmier é inteligente ao ponto de conseguir a amizade de Sade mesmo com uma visão de mundo completamente oposta, atraindo ainda o interesse de Madeleine por sua delicadeza e sensibilidade, numa composição muito interessante de Joaquin Phoenix. Seu padre realmente acredita que pode mudar o Marquês através do diálogo e da compreensão, sendo muito mais fiel a fé que propaga que boa parte dos puritanos da sociedade que o cerca. Observe, por exemplo, sua apreensão durante a exibição da peça citada anteriormente, segurando o crucifixo como um último refúgio de quem antevê o que irá acontecer ali. Sua fé, não apenas na religião, mas também no ser humano chega a ser tocante.

No entanto, a convivência com o Marquês serve para abalar alguns pilares de suas convicções, levando-o a ceder ao desejo por Madeleine, questionar alguns de seus dogmas e a acordar angustiado após um cruel pesadelo em que ressuscita a amada num ato de necrofilia. A morte dela e do próprio Sade levam o padre a perder a fé e abraçar de vez a insanidade. A razão para isso vai além da convivência com Sade. Obrigado a viver sob o questionável celibato que o impede de desfrutar o mais lindo sentimento que o ser humano pode sentir, o padre vê sua fé ser abalada ao descobrir a atração que Madeleine sentia por ele, numa revelação que soa natural também pela competente atuação de Kate Winslet, que cria uma personagem inocentemente sensual, o que explica a forte atração e inspiração que o próprio Marquês sentia na presença dela. Mesmo devorando cada texto de Sade, Madeleine jamais soa vulgar e ilustra muito bem a natureza humana, tão preocupada com as aparências que não se permite viver seus desejos mais secretos longe das páginas de um livro.

Já o Marquês não tinha problema algum com isso. Escancarando em palavras (e na vida real em atos, alguns deles criminosos) seus desejos e pensamentos mais obscenos, Sade chacoalhou a sociedade de sua época com histórias que exploram as mais diversas formas de sexualidade sem concessões, de tal forma que seu nome é usado em psicanálises até hoje. Mas o Marquês de Geoffrey Rush apenas sugere a crueldade do original, encarnando o personagem de uma maneira mais humana, ao ponto de soar bem humorado e sedutor em diversos instantes, o que é crucial para compreender a atração de Madeleine por suas histórias e a amizade dele com o padre. E é justamente nesta humanização que reside o grande mérito do ator, que consegue fazer com que o espectador torça pelo personagem mesmo quando este não concorda com o que ele diz, também por que o roteiro acerta em cheio ao separar o autor de sua obra, focando mais em seu direito à liberdade de expressão do que no julgamento da qualidade de sua literatura. Gostando ou não do teor de seus livros ou de sua personalidade polêmica, não iremos concordar com a censura que ele sofre e o roteirista sabe disso.

Assim, quando os métodos rígidos impostos pelo Dr. Royer-Collard entram em cena, Sade torna-se ainda mais carismático, já que o espectador tende a torcer por quem está inferiorizado na maioria das vezes. Espalhando alfinetadas no autoritarismo, nos códigos morais e até mesmo na religião através de frases cortantes como “Em condições adversas o artista floresce” ou “Este seu Deus retalhou seu filho como uma vitela, tenho medo do que faria comigo”, Sade vai sendo levado a loucura completa quando lhe privam de sua pena (daí o título em inglês Quills), usando de formas cada vez mais criativas para seguir escrevendo. Rush demonstra bem esta transformação em momentos hilários como a dança em cima da mesa com os pacientes em volta, mas também demonstra uma faceta humana, por exemplo, ao saber que Madeleine morreu virgem, sofrendo por talvez imaginar o quanto de vida ela poderia desfrutar e não pôde devido as travas impostas socialmente. Na última conversa entre eles, aliás, a pequena abertura na porta que os separa ilustra que ambos estavam aprisionados, mas de maneiras distintas. Ao menos ela desfrutou de alguma liberdade através das fantasias despertadas pela obra dele.

E aí residem outros questionamentos interessantes de “Contos proibidos do Marquês de Sade”. Teria a arte o poder de provocar reações tão fortes nas pessoas ao ponto de levá-las a cometer um crime, por exemplo, como muito tentou-se imputar aos filmes ou aos jogos de videogame nos massacres ao longo dos anos? Ou a arte serve justamente para permitir que as pessoas vivam fantasias que jamais viveriam de fato, num escapismo que influenciaria de forma positiva a sociedade? O próprio Sade questiona o padre se caso um paciente resolva andar sobre a água e morra afogado, ele culparia a Bíblia? E, diante das polêmicas recentes no Brasil, não posso deixar de questionar. Seria a controversa obra de Sade considerada arte? Eu não tenho dúvida alguma que sim. Goste ou não do conteúdo dela, é inegável que provoca reações nas pessoas e abala os pilares morais regidos por dogmas religiosos – e o ótimo longa de Philip Kaufman deixa isso bem claro.

Simultaneamente contestador e divertido, “Contos proibidos do Marquês de Sade” aborda um tema polêmico e levanta o espelho citado por Sade diante de toda a sociedade. As reações de cada um podem indicar em qual personagem da trama cada espectador se encaixa. E o mais importante é que, mesmo perseguida, polêmica e contrariando todos os questionáveis padrões morais da época (e até atuais), a obra de Sade continua viva. Esta é a beleza da arte. Não importa quanto os conservadores e falso moralistas tentem sufocá-la, ela sempre irá resistir ao tempo. Ainda bem.

Texto publicado em 01 de Novembro de 2017 por Roberto Siqueira

A ORIGEM (2010)

(Inception)

 

 

Filmes em Geral #79

Dirigido por Christopher Nolan.

Elenco: Leonardo DiCaprio, Marion Cotillard, Joseph Gordon-Levitt, Ellen Page, Ken Watanabe, Cillian Murphy, Tom Berenger, Michael Caine, Lukas Haas, Tohoru Masamune, Dileep Rao e Tom Hardy.

Roteiro: Christopher Nolan.

Produção: Christopher Nolan e Emma Thomas.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Dono de uma filmografia impecável, o diretor Christopher Nolan já comprovou diversas vezes que é possível comandar blockbusters sem que para isto tenha que ofender a inteligência do espectador. Mas se acertou em cheio nas experiências anteriores, na obra-prima “A Origem” o diretor inglês foi ainda mais longe, trazendo uma narrativa extremamente complexa e desafiadora que explora de maneira inteligente o universo dos sonhos e suga o espectador pra dentro da trama, apresentando ainda proezas técnicas impressionantes e excelentes atuações.

Escrito pelo próprio Nolan, o inteligente e muito bem estruturado roteiro de “A Origem” traz o espião Don Cobb (Leonardo DiCaprio), um especialista em invadir a mente das pessoas e roubar segredos durante os sonhos, que não pode voltar aos Estados Unidos por ser suspeito de assassinar a própria esposa Mal (Marion Cotillard). Desesperado para rever seus filhos, ele aceita a missão proposta pelo empresário Saito (Ken Watanabe) de implantar uma idéia na mente do concorrente Fischer (Cillian Murphy) – que herdará a empresa do pai doente assim que ele falecer -, tendo a promessa de poder voltar ao seu país como recompensa. Para cumprir sua tarefa, ele contará com a ajuda dos parceiros Arthur (Joseph Gordon-Levitt) e Eames (Tom Hardy), do especialista em sedação Yusuf (Dileep Rao) e da novata arquiteta Ariadne (Ellen Page).

Exigindo ao máximo o raciocínio lógico do espectador, “A Origem” parte de uma premissa inteligente e complexa, explorando o universo dos sonhos de maneira bastante lógica e racional, ainda que abra espaços para visões oníricas e desconexas tão comuns quando estamos sonhando, como quando Cobb se esfrega entre duas paredes tentando escapar de perseguidores (num momento digno de um pesadelo) ou quando um trem atravessa uma rua cheia de carros – e o mais interessante é que estas visões sempre têm alguma ligação com os sonhadores, como neste caso em que o trem é reflexo de uma frase marcante dita por Cobb. Também de forma inteligente, Nolan justifica estes ambientes pouco confusos, que fogem completamente do que esperamos num ambiente onírico, ao utilizar arquitetos para projetar o mundo dos sonhos – Nash (Lukas Haas), no começo, e depois Ariadne. Ainda assim, é interessante notar como o mundo real interfere diretamente nos sonhos, como quando Cobb cai na banheira enquanto dorme e, imediatamente, a água invade seu sonho, assim como a chuva no sonho de Yusuf apenas reflete sua vontade de urinar (“Não podia ter urinado antes!”, reclama Arthur).

Logo de cara, Nolan insere uma premissa importante que faz o espectador se acostumar com a complexa idéia das várias camadas de sonhos, trazendo Cobb e Saito de volta de dois sonhos até acordarem num trem, o que é essencial para que compreendamos melhor o excepcional terceiro ato de “A Origem”. Mantendo-se fiel à lógica interna da narrativa, Nolan também explica de maneira clara e coerente alguns conceitos importantes, como o interessante conceito da diferença na passagem do tempo em cada nível de sonho. Mas apesar desta complexidade narrativa, “A Origem” jamais deixa o espectador confuso, graças à clareza com que o diretor conduz o projeto, confiando na inteligência do espectador ao evitar o excesso de informações que poderia poluir a narrativa.

Contando com um elenco numeroso e de muito talento, Nolan também consegue extrair ótimas atuações de praticamente todos os envolvidos, ainda que estejam em papéis menores, como no caso de Tom Berenger, que vive o tio Browning, e de Michael Caine como o professor. Vivendo a projeção de esposa Mal, Marion Cotillard convence no papel e consegue até mesmo plantar a dúvida na cabeça de Cobb (e do espectador) em determinado momento, assim como Ken Watanabe transmite segurança na pele do empresário Saito. E se Cillian Murphy surge corretamente fragilizado como o indeciso Fischer, Joseph Gordon-Levitt faz de seu Arthur um personagem cativante, especialmente quando precisa tomar as rédeas em determinado momento sob o risco de colocar toda a ação da equipe em perigo – e o faz muito bem.

Fechando o elenco, temos ainda Tom Hardy, que vive o camaleão Eames e tem papel fundamental em diversos momentos (vale notar a sutileza com que ele se “transforma” no tio Browning e vice-versa, especialmente quando está sentado nas pedras após sair da água no sonho de Yusuf), além da arquiteta Ariadne de Ellen Page (a eterna Juno!), que funciona como uma espécie de guia para o espectador, com seus questionamentos trazendo à tona explicações vitais para compreendermos o que está acontecendo na tela, mas que também colabora muito com a equipe durante a missão. Mas o grande destaque de “A Origem” fica mesmo para o astro Leonardo DiCaprio, que confirma seu talento e carisma ao carregar este projeto complexo com facilidade. Desejando apenas poder voltar para casa e rever os filhos, seu Cobb comove em sua luta para esquecer Mal, colocada em cheque todas as vezes que ele entra em um sonho, projetando involuntariamente a esposa “morta” e colocando em risco suas missões, num reflexo direto da morte traumática dela que DiCaprio demonstra muito bem. Transmitindo o dilema de Cobb com precisão quando suas convicções são questionadas pela esposa, o ator faz com que o espectador compartilhe de seus sentimentos, demonstrando ainda a angústia crescente do personagem de maneira convincente no decorrer da narrativa.

Exibindo enquadramentos perfeitos e planos simétricos, além de belos movimentos de câmera como o travelling que revela a estrutura do limbo, Nolan capricha no aspecto visual, utilizando também a câmera lenta com precisão em momentos cruciais, como quando objetos começam a explodir em Paris após Cobb revelar que Ariadne está num sonho, num momento que confirma também a qualidade dos efeitos visuais de “A Origem”. E o que dizer do estranho e magnífico momento em que a cidade se curva e une os tetos dos prédios? Além disto, Nolan mostra competência também na condução das cenas de ação, como as perseguições, os tiroteios e a invasão da fortaleza, mas sempre inserindo estas seqüências de maneira orgânica e contribuindo para o andamento da narrativa, comprovando sua capacidade de comandar blockbusters com cérebro, já revelada antes nos excelentes “Batman Begins” e “O Cavaleiro das Trevas”.

Obviamente, ele conta com uma equipe técnica talentosa para conseguir este apuro visual. Observe, por exemplo, a diferença entre tons da fotografia de Wally Pfister, que ajuda a identificar com clareza em que sonhos os personagens estão, além de revelar características importantes de cada sonhador. Repare que o primeiro sonho, caótico e chuvoso, reflete o modo impulsivo de agir de Yusuf, enquanto que no segundo, o hotel organizado, limpo e simétrico revela o perfeccionismo de Arthur, ao passo em que a neve do terceiro sonho confirma a personalidade fria de Eames. Da mesma maneira, o design de produção busca diferenciar cada sonho, mantendo uma lógica fiel à personalidade de cada um (“Julgando pela decoração este é o seu sonho Arthur”, diz Mal em certo momento), além de se destacar na criação do impressionante e surreal limbo, repleto de construções imaginadas por Cobb e Mal, trazendo ainda o objeto símbolo do filme, que é o totem que revela ao protagonista o que é real e o que é sonho.

Os espetaculares efeitos visuais citados acima tornam tudo mais convincente e realista, destacando-se também na briga que ocorre no sonho de Arthur, em que os personagens flutuam na tela devido à alteração da gravidade, num reflexo interessante do que ocorre no ambiente caótico em que eles estão sonhando na camada anterior. Também se destacam os ótimos efeitos sonoros e o design de som, que captam cada movimento dos personagens, os tiros, o barulho dos carros e até mesmo o estalar de uma taça quebrada, vital em certo momento da narrativa. Já a trilha sonora de Hans Zimmer chama pouca atenção para si, surgindo apenas em momentos pontuais e ganhando força nas grandes cenas, especialmente através da música diegética de Edith Piaf que conecta os sonhos – que faz ainda uma referencia ao papel que rendeu o Oscar a Marion Cotillard. Fechando a parte técnica, a excepcional montagem de Lee Smith mantém um ritmo dinâmico durante toda a narrativa, chegando quase à perfeição durante os quatro sonhos simultâneos (que abordaremos em instantes) ao transitar entre cada um deles de maneira fluída e orgânica.

Após cumprirem à risca o plano traçado, os agentes finalmente conseguem invadir a mente de Fischer, iniciando a sensacional seqüência em que eles invadem sonhos dentro de sonhos, chegando a percorrer três camadas até que o jovem empresário seja atingido no último estágio, colocando em risco toda a missão. É quando eles decidem salvar Fischer e buscar Saito, também ferido e já abandonado no limbo, indo para uma quarta camada e criando um desafio interessante para o espectador, agora obrigado a acompanhar quatro ações paralelas, em diferentes níveis de tempo e com objetivos distintos. Nolan conduz toda a seqüência com maestria e atinge a perfeição técnica naquele que certamente é o grande momento de “A Origem”, quando o “chute” começa a trazer de volta os sonhadores para a realidade – e impressiona como ele respeita com rigidez quase militar a lógica interna da narrativa, não apenas neste momento, mas em todo o filme. Contando novamente com o ótimo trabalho do montador Lee Smith, Nolan cria uma seqüência belíssima e potencialmente tensa, capaz de nos fazer grudar na tela enquanto acompanhamos os personagens despertando sucessivamente. A câmera lenta mostrando a queda da van no primeiro sonho, a queda do elevador no segundo, a explosão da fortaleza que segue o momento em que Fischer abre o cofre no terceiro e o instante em que Ariadne joga Fischer do prédio e se joga no quarto sonho são seqüências memoráveis, conduzidas num ritmo perfeito por Nolan, que ainda amarra a narrativa com perfeição ao trazer Cobb acordando na praia do limbo novamente, assim como no primeiro plano do longa.

Como se não bastasse, ainda temos o belo final, com todos acordando no avião e Cobb confirmando que sua missão foi bem sucedida ao ver Saito pegando o telefone, permitindo-lhe passar pela imigração e reencontrar os filhos. E então Nolan decide brincar com nossa percepção ao encerrar esta obra-prima da ficção científica com um plano polêmico, em que vemos o totem girando, mas não vemos sua queda, criando duas possibilidades interessantes de interpretação. Na primeira e mais plausível delas, Cobb retorna pra casa, reencontra os filhos na “vida real” e o totem cai após o encerramento do filme. Mas o fato de cortar o plano antes de mostrar a queda do objeto levanta outra curiosa possibilidade, ventilada algumas vezes durante a narrativa (especialmente por Mal e por um senhor que ministra sedação). Estaria Cobb vivendo um longo e complexo sonho? O fato de ser perseguido por inimigos e até mesmo por autoridades, assim como os “sonhadores” são perseguidos nos sonhos que ele invade, reforça esta teoria – e Nolan é inteligente o bastante para não mostrar a queda do totem, plantando assim a dúvida em nossas mentes, especialmente porque Mal afirma com convicção em diversos momentos que Cobb é quem ficou preso no mundo dos sonhos, e não ela. E desta forma, o diretor faz o espectador compartilhar da mesma dúvida do personagem, que, diante de tudo que testemunhou e viveu, já não sabe mais o que é sonho e o que é realidade. Não é genial?

Se Cobb estava sonhando ou não, pouco interessa. O importante é que os cinéfilos podem comemorar, pois “A Origem” é uma realidade, um filme sensacional dirigido por um realizador competente e cada vez mais ousado, recheado por um elenco do mais alto nível. Complexo e inteligente, pertence ao seleto grupo de filmes que desafiam a mente do espectador, fazendo-o sair da cômoda posição de “platéia” e participar da narrativa, usando seu cérebro para algo mais do que comer pipoca e tomar refrigerante. Se você não se incomoda em ser estimulado desta forma, certamente acompanhar a trajetória de Cobb e sua turma foi uma experiência memorável.

Texto publicado em 14 de Fevereiro de 2012 por Roberto Siqueira

BATMAN – O CAVALEIRO DAS TREVAS (2008)

(The Dark Knight) 

5 Estrelas 

Filmes em Geral #3

Dirigido por Christopher Nolan.

Elenco: Christian Bale, Heath Ledger, Aaron Eckhart, Maggie Gyllenhall, Michael Caine, Morgan Freeman, Gary Oldman, Eric Roberts, Cillian Murphy, Anthony Michael Hall, Monique Curnen, Nestor Carbonell, Joshua Harto, Melinda McCraw e Nathan Gamble. 

Roteiro: Jonathan Nolan e Christopher Nolan, baseado em estória de Christopher Nolan e David S. Goyer e nos personagens criados por Bob Kane. 

Produção: Christopher Nolan, Charles Roven e Emma Thomas. 

Cavaleiro das Trevas

Filmes baseados em heróis dos quadrinhos costumam oferecer boas produções no cinema, sejam eles mais famosos (Homem-Aranha) ou menos conhecidos por parte do grande público (V de Vingança). Melhor ainda é quando estes filmes oferecem mais do que diversão, contendo narrativas inteligentes e personagens complexos. Pois este excelente Batman – O Cavaleiro das Trevas consegue ser muito mais que apenas um filme de super-herói, alcançando um peso dramático e uma carga de tensão do mais alto nível, tornando-se um filme de ação diferenciado e acima da média. Ao contrário do visual esplendido que Tim Burton empregava em seus filmes do homem-morcego, recheado de personagens rasos e propositalmente distantes da realidade, Christopher Nolan investe no peso dramático e na ambigüidade, oferecendo personagens fascinantes e uma narrativa maravilhosa.

Desde que Batman (Christian Bale) iniciou sua luta contra o crime organizado na cidade, os criminosos não conseguem mais ter vida fácil. Com o apoio do incorruptível promotor de justiça Harvey Dent (Aaron Eckhart) e do inteligente tenente James Gordon (Gary Oldman), o misterioso homem mascarado conseguiu sucesso em sua empreitada e despertou a ira dos criminosos. Ciente do poder de inibição que o herói provoca nos criminosos, Gordon utiliza a imagem projetada no céu com freqüência para controlar o crime. Por outro lado, pessoas comuns passaram a se vestir como Batman, o que evidentemente se tornou algo perigoso, já que estas pessoas não são capacitadas para combater os perigosos criminosos. Desesperados e sem muita saída, um grupo de mafiosos aceita a proposta de um estranho homem que usa maquiagem para esconder suas cicatrizes conhecido como Coringa (Heath Ledger), que ofereceu seus serviços para eliminar o homem-morcego da cidade.

Dirigido com competência por Christopher Nolan, o filme inicia em ritmo alucinante mostrando diversas ações paralelas que formarão a base da narrativa. Auxiliado pelo excelente trabalho de montagem de Lee Smith, que consegue manter o foco em todas estas ações paralelas e este ritmo acelerado durante todo o filme sem se tornar cansativo, Nolan consegue captar a atenção do espectador e nos jogar pra dentro da trama de forma muito convincente. Além disso, o inicio consegue introduzir de maneira exemplar o personagem mais fascinante do longa, o assustador Coringa. Nolan também é competente na criação de cenas plasticamente belas, como os travellings que sobrevoam as cidades e as empolgantes seqüências de ação e perseguição. Além disso, o diretor utiliza interessantes movimentos de câmera, como podemos notar durante o diálogo entre Gordon, Dent e Batman no terraço. A excelente fotografia azulada cria um ambiente frio e assustador, além de mergulhar os personagens em sombras e escuridão por diversas vezes, refletindo muito bem o sombrio universo do super-herói amargurado. Mas, apesar de cuidar muito bem de todos estes detalhes, é no desenvolvimento de personagens que Nolan demonstra toda sua competência, extraindo atuações do mais alto nível.

Apoiando-se no excelente roteiro escrito por ele próprio e seu irmão Jonathan Nolan, o diretor consegue criar personagens complexos e carregados dramaticamente, o que é sempre um prato cheio para os grandes atores. A narrativa dos irmãos Nolan tem como tema principal o lado egoísta e cruel existente dentro de cada ser humano, apontado através dos jogos propostos pelo vilão. O roteiro também aborda com competência outros temas interessantes, como a corrupção dentro das autoridades que deveriam oferecer segurança à sociedade, além de manter o espectador sempre grudado na tela devido às surpreendentes armadilhas do Coringa. Conta ainda com bons momentos de alivio cômico como a piada dos desaparecimentos do Batman, o nome alternativo que Alfred utiliza para bebidas alcoólicas e a frase do mesmo Alfred sobre o uso do Lamborghini.

Ciente de que toda a história da origem do homem-morcego foi corretamente abordada no filme anterior (Batman Begins), Nolan aproveita para focar ainda mais no desenvolvimento de seus pergonagens, o que possibilita ao elenco de primeira grandeza oferecer performances maravilhosas. Michael Caine está muito bem novamente como Alfred, firme em seus conselhos para Bruce Wayne e com seu ótimo senso de humor. A conversa entre eles sobre o ladrão de pedras preciosas revela muito sobre a personalidade caótica do grande vilão da trama. Christian Bale tem uma boa atuação como Bruce Wayne. Sua reação à insinuação de Alfred sobre seu interesse em Rachel é notável, quando ele vira o rosto e sai evitando o olhar do amigo. Seu momento mais tocante é quando chora a perda de alguém muito importante e reflete sobre o tipo de reação que causou na sociedade quando decidiu ser o Batman. Já com a máscara do homem-morcego seu desempenho é ainda melhor. Com a voz mais grave (e distorcida na pós-produção) e com muita segurança, ele consegue criar um herói ambíguo e amargurado pelas marcas do passado, dando muito peso dramático ao personagem. Morgan Freeman faz seu papel com extrema competência mais uma vez. Repare o sorriso contido de satisfação quando Wayne lhe pede para cancelar o acordo e ele responde “Você já sabia?”. Outra grande cena é quando Reese (Joshua Harto), o consultor das empresas Wayne, ameaça revelar a identidade secreta do Batman. Ele ri com muito cinismo e dá uma resposta muito inteligente ao rapaz, que demonstra através de seu rosto o arrependimento que sentiu. Ainda nas atuações, Aaron Eckhart também merece destaque como o promotor Harvey Dent. Seu arco dramático é incrível, transformando seu personagem de uma pessoa séria e comprometida com a causa para um vingador implacável e cruel que não tem mais código ético e moral após o duro golpe que sofreu. Sua transformação no vilão “Duas-Caras” é extremamente competente e tem total coerência com a narrativa, tornando o personagem mais próximo da realidade, o que o aproxima do público. Dent acaba se tornando o personagem símbolo da ideologia do vilão, que tenta provar que todos nós temos um lado mais obscuro. O momento da revelação de seu rosto é uma grande cena do filme. Interessante notar como a moeda utilizada por Dent se torna ainda mais simbólica após a tragédia que destruiu a vida do personagem, com o lado queimado passando a simbolizar a morte. Impressionante também é a comovente reação de Eckhart quando nota a moeda em seu leito.  Maggie Gyllenhall, apesar de não conseguir criar empatia com Christian Bale, consegue sucesso em sua relação com Eckhart, destacando-se na dramática cena em que aceita se casar com Dent. Gary Oldman completa o qualificado elenco de apoio oferecendo uma boa atuação, com destaque para a cena final do filme, quando demonstra sua aflição de forma muito convincente.

Entre tantas boas performances, uma chamou a atenção em particular. A histórica atuação de Heath Leadger compôs um personagem fascinante e temível. O Coringa dele é alguém sem apego a dinheiro ou regras, que tenta provar que no fundo de sua alma todo ser humano tem seu lado ruim e cruel. Sua intenção é provar que, quando colocadas em alguma situação de risco, as pessoas sempre tentarão salvar a própria pele, como fica evidente na cena dos barcos e em sua engraçada metáfora com os cães de um mafioso. Seu plano lembra por muitas vezes o de John Doe em Se7en, já que ambos não têm mais esperança no ser humano. Incrível como ele trabalhou em cada pequeno detalhe de sua atuação. Observe o tique da língua saindo da boca e os olhos nunca fixos, que demonstram a personalidade psicótica do rapaz. Repare o jeito de andar encurvado, o cabelo bagunçado, a voz anasalada, além é claro do rosto de palhaço extremamente realista, fruto do grande trabalho de maquiagem. A oscilação nada comum de seu senso de humor manifestada através das risadas estridentes e gritos que alternam repentinamente para um tom de voz baixo. Em momentos de extrema tensão ele mantém o controle dos nervos como se não tivesse nada a perder, como na cena em que, com um policial como refém, pede tranquilamente pra fazer uma ligação. Seu bom humor é irônico, e ele demonstra isso com competência, por exemplo, quando chama Rachel de gatinha e ajeita seu cabelo ou quando diz para Batman que ele escolheu as palavras incorretas. Seu momento mais genial é o diálogo com Batman dentro da sala de entrevistas da cadeia, revelando a parte cruel de seu plano e causando a ira em seu oponente (em bom momento de Bale que explode em cena). Nesta cena você pode notar todos os detalhes citados acima em Ledger, além de descobrir que na realidade o Coringa respeita o Batman e entende que eles são dependentes um do outro, pensamento este que fica evidente minutos depois, quando pede em público a morte de um determinado cidadão. Nota-se também nesta cena a excelente composição visual de Nolan, filmando no primeiro plano o comissário correndo pra abrir a porta e no segundo plano o irritado Batman indo trancá-la, ao som da risada do Coringa.

O trabalho técnico do filme também é extremamente competente. Desde a trilha sonora típica de filmes de ação, pesada e com picos de volume para criar tensão, até os espetaculares trabalhos de som e efeitos sonoros, capazes de captar cada pequeno detalhe como o som do pescoço do Coringa estalando e da capa do Batman voando. Os efeitos especiais trabalham para ajudar o filme (e não se tornam a razão de ser dele), como podemos notar nos perfeitos ferimentos no rosto do Duas-Caras e nas maravilhosas seqüências de ação.

Com um ou outro escorregão típico dos arrasta-quarteirões norte-americanos, como a cena do tribunal que faz uma piada patriota sobre armas e a eficiente contagem de votos nos barcos (engraçado como um país tão ineficiente na contagem de votos tenha uma contagem tão rápida), o filme consegue um peso dramático e um terceiro ato capaz de desnortear qualquer um. O diálogo entre Batman e Dent, logo após este último ameaçar de matar um esquizofrênico, revela muito sobre a linha de raciocínio da dupla Coringa e Batman e o que está em jogo. Dent não poderia sujar sua imagem de incorruptível perante a sociedade, ele era o herói que Gotham precisava naquele momento. E a decisão final do homem-morcego de assumir os crimes de outra pessoa e manchar de vez sua reputação naquela sociedade demonstra sua nobreza e seu comprometimento com a causa, jamais levando o crédito pra si mesmo em prol da criação de um mito que ajude na defesa contra o crime organizado. Um herói capaz de uma decisão pesada, cruel e altruísta como esta demonstra sua magnitude e grandeza. Grande também é o filme de Nolan, adulto, pesado e extremamente complexo.

Utilizando os personagens dos quadrinhos como fio condutor de uma produção ambiciosa e oferecendo uma narrativa brilhante e repleta de detalhes, Batman – O Cavaleiro das Trevas é um filme acima da média, com uma atuação antológica e outras muito competentes, que levam o espectador a um enorme cansaço emocional devido à carga psicológica envolvida na trama. Quem dera todo filme de ação tivesse como base para explosões e perseguições uma narrativa tão coesa e complexa como esta. Esta é uma franquia que tem muito ainda a oferecer. Robin, Pingüim, Charada, entre outros, são personagens que podem render outros excelentes roteiros. Espero que venham mais ótimos filmes como estas duas produções de Nolan.

Coringa

Texto publicado em 24 de Julho de 2009 por Roberto Siqueira