Vídeo: A Voz Suprema do Blues

No vídeo de hoje, conversei com Hector Colacelli e Thyago Bertoni sobre “A Voz Suprema do Blues”, filme dirigido por George C. Wolfe, estrelado por Viola Davis e Chadwick Boseman, disponível na Netflix.

Confira:

Um abraço e uma semana cinematográfica para todos nós!

Vídeo publicado em 21 de Março de 2021 por Roberto Siqueira

DIA DE TREINAMENTO (2001)

(Training Day)

 

Videoteca do Beto #245

Dirigido por Antoine Fuqua.

Elenco: Ethan Hawke, Denzel Washington, Eva Mendes, Scott Glenn, Harris Yulin, Tom Berenger, Raymond J. Barry, Snoop Dogg, Dr. Dre, Nick Chinlund, Peter Greene, Jaime Gomez, Cliff Curtis, Noel Gugliemi, Raymond Cruz, Samantha Esteban, Charlotte Ayanna, Macy Gray, Denzel Whitaker e Terry Crews.

Roteiro: David Ayer.

Produção: Robert F. Newmyer e Jeffrey Silver.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

A profissão de policial certamente figura entre as mais difíceis e admiráveis do mundo. Responsáveis por manter a ordem e proteger os cidadãos, estes profissionais são preparados (ou deveriam ser) para enfrentar todo tipo de adversidade, seja em funções de menor risco como no controle do trânsito, seja nas divisões mais complicadas como as que tentam enfrentar o crime organizado. No entanto, a proximidade com o mundo do crime, a falta de treinamentos adequados, os complexos problemas sociais a sua volta e diversos outros fatores podem levar alguns destes profissionais a cruzar uma linha tênue e transformá-los naquilo que eles juraram combater. É precisamente neste dilema que “Dia de Treinamento” baseia boa parte de sua narrativa, apresentando dois personagens complexos, distintos e igualmente interessantes, ainda que aqui não reste dúvida sobre quem é o vilão e quem é o mocinho quando os créditos preenchem a tela no final.

Escrito por David Ayer, “Dia de Treinamento” acompanha Jake Hoyt (Ethan Hawke), um policial recém promovido a divisão de narcóticos que tem 24 horas para decidir se deseja ficar na equipe liderada por Alonzo Harris (Denzel Washington), um veterano que conhece todos os caminhos do crime organizado em Los Angeles e que tem um impressionante currículo de apreensões. No entanto, na medida em que o dia avança, ele descobre que a diferença entre o crime organizado e a polícia pode muitas vezes ser bem menor do que imaginava.

Partindo de uma premissa promissora, o diretor Antoine Fuqua consegue criar uma narrativa instigante e, auxiliado pela montagem de Conrad Buff, intercala entre travellings, muitos close-ups, câmera lenta e câmera agitada para manter um ritmo dinâmico que nos dá a constante sensação de que algo importante irá acontecer a qualquer momento, mantendo a tensão sem permitir que o espectador relaxe. Além disso, o diretor é hábil em criar um ambiente realista e coerente com o universo em que se passa a narrativa, algo reforçado, por exemplo, pela trilha sonora de Mark Mancina, que oscila entre o rap, a música latina e acordes mais pesados, jogando o espectador pra dentro daquela realidade de maneira competente. Da mesma forma, os figurinos de Michele Michel indicam desde o início a dualidade de Alonzo, que surge vestindo o preto típico dos vilões mesmo sendo vendido inicialmente como o tutor experiente e admirado que guiaria Jake.

Ainda na parte técnica, a fotografia de Mauro Fiore acompanha a evolução natural do dia com o sol surgindo no horizonte no início, preenchendo boa parte do segundo ato e desaparecendo no fim, o que gradualmente torna o longa mais sufocante e nos prepara para o ato final. Vale citar ainda como o jogo de luzes e sombras cobre parcialmente o rosto de Alonzo quando ele pede para Jake executar um traficante, demonstrando visualmente sua faceta criminosa que naquela altura já estava evidente. Tensa, esta cena é crucial para entender o funcionamento daquele submundo e o diálogo que surge a seguir tem igual importância para compreender o questionável código moral de Alonzo.

Abordando diversos problemas sociais dos Estados Unidos, “Dia de Treinamento” falha pela forma caricata que retrata as comunidades e os latinos que cruzam o caminho de Jake, por exemplo, quando ele é abandonado por Alonzo para ser assassinado, numa cena, aliás, que é conduzida de forma muito realista por Fuqua, mas na qual infelizmente a solução para o conflito soa bastante artificial pela maneira simplista como a garota é convencida pelo tio a contar a verdade sobre a tentativa de estupro. Igualmente, quando o enfurecido Jake parte em busca de Alonzo na “Selva”, a comunidade que havia sido retratada como um dos locais mais perigosos da cidade anteriormente, impressiona negativamente como mesmo com os dois brigando, quebrando diversos objetos e atirando para todo lado, os moradores locais demoram uma eternidade para sair de suas casas. Para piorar, o comportamento destes diante do confronto não soa convincente, confirmando como o terceiro ato é de longe o mais fraco segmento do filme.

Felizmente, o realismo de diversas outras cenas compensa estes deslizes, como quando Alonzo utiliza um mandato falso para fazer uma busca numa casa e é obrigado a fugir dali sob os tiros dos moradores locais ou quando Jake sai em disparada para salvar a garota de um estupro e luta sozinho contra seus agressores. Vale citar ainda os diversos diálogos entre os dois policiais que contrapõem visões muito diferentes de mundo e que provocam boas reflexões.

No entanto, é mesmo nas atuações que “Dia de Treinamento” garante seu sucesso. Demonstrando o desconforto de Jake desde o início em sua casa e na primeira conversa com Alonzo num café, Ethan Hawke consegue a difícil tarefa de encarar de frente a excepcional atuação de Denzel Washington sem jamais soar inferior por estar vivendo um novato e, o que é ainda melhor, ampliar o impacto dela ao expor os reflexos das atitudes do veterano em seu personagem com destreza. Com suas expressões minimalistas, Hawke humaniza o personagem, transmitindo seus medos e dúvidas com precisão e, de quebra, saindo-se muito bem em momentos que exigem mais expressividade, como quando surge chapado após consumir as drogas roubadas pelo parceiro. Aliás, a forma como Hawke nos convence de que Jake será capaz de suportar as provações às quais é submetido é crucial para o sucesso da narrativa.

Ameaçador, descolado e já muito à vontade naquele universo, o Alonzo de Washington é o típico policial corrupto que já sabe todos os caminhos que pode percorrer e, mais do que isso, imagina que sabe até mesmo como lidar com jovens idealistas como Jake, apostando na dureza de seu comportamento e no choque como forma de convencer o jovem a aceitar seus métodos controversos, uma vez que, na visão dele, somente assim é possível vencer o crime organizado – e seus números impressionantes reforçam sua visão, já que por mais questionáveis que sejam, estes métodos levaram-no a prender muitos criminosos poderosos ao longo dos anos. Por outro lado, ele parece não dar a mínima para eventos cotidianos que não possam impulsionar sua carreira, o que o leva a pacientemente acender um cigarro e fumar enquanto Jake se engalfinha com dois criminosos numa rua defendendo uma jovem que estava prestes a ser estuprada. O que mais impressiona, no entanto, é como Alonzo acredita de fato no que diz e na forma que age, como fica explícito na conversa em que explica o conceito dos lobos e ovelhas para Jake ou quando, de forma irônica, pede ao jovem que recolha as provas recolhidas ilegalmente do traficante Blue, vivido pelo icônico Snoop Dogg. Para ele, os fins justificam os meios e aquela era a única forma de sobreviver naquele ambiente. A energia de Washington no papel é contagiante, conquistando o espectador mesmo diante de diversas atitudes reprováveis – e seu sorriso quando Jake utiliza um de seus bordões contra ele chega a ser comovente, evidenciando o quanto acreditava em seus próprios métodos.

Insinuando a corrupção policial logo de cara quando Jake diz para a esposa que ela deveria ver as casas que eles têm, referindo-se aos chefes de divisão da Polícia, “Dia de Treinamento” não hesita em questionar os riscos intrínsecos ao poder concedido a estes profissionais nos Estados Unidos, onde, por exemplo, existe o malfadado excludente de ilicitude proposto recentemente em nosso Brasil, que permite um policial matar em serviço, algo escancarado na citada cena do assassinato de um traficante, minuciosamente planejado por Alonzo. “Só por que temos distintivos é diferente?”, questiona Jake após o crime. A conversa a seguir dentro do carro expõe as visões opostas dos personagens, com Jake transtornado pelo que viu enquanto Alonzo demonstra compreensão pela reação dele e, estrategicamente, elogia o parceiro, numa tentativa de elevar a autoestima do rapaz para ganhar sua empatia e atraí-lo para aquele mundo. Só que Fuqua não deixa margem para interpretações e evidencia que reprova o comportamento de Alonzo, punindo o personagem na conclusão da narrativa e ratificando Jake como herói, o que não deixa de ser decepcionante pela forma ambígua que ambos foram desenvolvidos até ali.

De toda forma, os questionamentos levantados em “Dia de Treinamento” são muito válidos e ainda atuais, sendo aplicáveis não somente nos Estados Unidos, mas em outros países como o Brasil. Como deve agir um policial para sobreviver num ambiente em que está sob constante ameaça e no qual criminosos não hesitarão um segundo sequer antes de tirar-lhe a vida? Por outro lado, até onde este mesmo policial pode ir? Certamente não é aceitável roubar suspeitos e utilizar estes objetos roubados em negociações com informantes, atuar como juiz e não apenas condenar suspeitos como assassiná-los por interesses próprios ou consumir as mesmas drogas que busca retirar das ruas – e é relevante refletir sobre isso numa sociedade que muitas vezes confunde a busca por segurança com sede por vingança. Ao mesmo tempo em que é preciso oferecer proteção aos cidadãos e aos próprios policiais, também é preciso refletir sobre os riscos inerentes ao excesso de poder que por vezes é conferido a eles. Esta é a melhor discussão que o filme de Fuqua pode fomentar e é por isso que o terceiro ato decepciona ao transformar Alonzo num monstro unidimensional e afastá-lo do espectador.

Mesmo com estes deslizes, “Dia de Treinamento” funciona bem como um retrato da corrupção policial e da complexa situação vivida por quem é jogado na guerra ao tráfico, sejam policiais, sejam cidadãos comuns. Sedimentado em duas atuações brilhantes, funciona como bom entretenimento sem que por isso deixe de provocar reflexão, ainda que um terceiro ato melhor trabalhado pudesse elevar sua complexidade temática e narrativa. Imperfeito como Alonzo, num primeiro momento o longa de Antoine Fuqua conquista o espectador da mesma forma magnética com que o veterano policial faz com todos ao seu redor e, posteriormente, nos afasta da mesma maneira como Jake se afasta dele.

“Você quer ir para a cadeia ou ir para casa?”. Jake preferiu ir para casa. Sorte dele.

Texto publicado em 09 de Junho de 2019 por Roberto Siqueira

DUELO DE TITÃS (2000)

(Remember the Titans)

2 Estrelas 

Filmes em Geral #95

Dirigido por Boaz Yakin.

Elenco: Denzel Washington, Will Patton, Wood Harris, Ryan Hurst, Ryan Gosling, Donald Faison, Craig Kirkwood, Ethan Suplee e Kate Bosworth.

Roteiro: Gregory Allen Howard.

Produção: Jerry Bruckheimer e Chad Oman.

Duelo de Titãs[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

A história do esporte é uma fonte inesgotável de inspiração para todo e qualquer artista que se proponha a pesquisá-la. Independente da modalidade escolhida, inúmeros são os casos de superação, ascensão repentina e decadência absoluta, além das diversas oportunidades em que o esporte provou ter influência na política e na sociedade de maneira geral. O problema é que estas histórias tendem a ser repetitivas e, ainda que tenham as melhores intenções por trás do projeto, tornam-se esquemáticas e previsíveis demais nas mãos de um diretor menos habilidoso. Infelizmente, este é o de “Duelo de Titãs”.

Baseado numa história real e com grande potencial, o fraco roteiro escrito por Gregory Allen Howard nos leva ao início dos anos 70 na Virginia, EUA, quando a integração racial começava a ganhar força nas escolas, para o protesto da grande maioria da população local. Assim, a simples substituição do técnico de um time de futebol americano numa universidade é capaz de gerar enorme desconforto tanto entre os jogadores como em toda a sociedade somente porque o antigo treinador Bill Yoast (Will Patton) é branco e o novo técnico Herman Boone (Denzel Washington) é negro. Diante deste contexto, a dura missão do novo treinador vai além de formar uma equipe competitiva, tendo também que forçar os jogadores a superarem suas diferenças e conquistarem o campeonato.

A grande sacada de “Duelo de Titãs” é justamente utilizar o esporte como pano de fundo para abordar o racismo nada velado daquele período da historia norte-americana. Por isso, é muito interessante observar a maneira crua como o roteiro mostra que o racismo estava cravado na cultura do local, com professores, alunos, comerciantes e até mesmo os próprios pais demonstrando enorme preconceito racial, como fica evidente no protesto contra a integração feito pelas mães dos alunos que nos leva a refletir como o ser humano é mesmo capaz de fazer coisas horríveis. Por isso, utilizar o esporte como um fator de união entre as pessoas é algo que normalmente funciona, ainda que isto não seja nada original. Só que os meios utilizados por Howard e pelo diretor Boaz Yakin para nos levar a esta agregação é que são decepcionantes.

Abusando de diversas situações mais que batidas, a dupla cria uma sequência de discussões e conflitos totalmente artificiais, fazendo com que a narrativa soe cada vez menos realista. Aliás, os conflitos entre negros e brancos são tantos que, antes da metade da projeção, já estamos entediados, num excesso que esvazia o efeito que estes embates poderiam causar. Pra piorar, a dupla aposta no velho clichê dos brancos e negros que primeiro se odeiam para depois se adorarem, só que felizmente esta transição ocorre rapidamente e, apesar de soar pouco verossímil, traz uma melhora sensível na narrativa, tornando-a mais interessante quando eles começam a se dar bem, graças também à dinâmica do grupo, que realça a boa atuação coletiva daqueles jovens.

Protesto contra a integraçãoConflitos entre negros e brancosGrupo carismáticoNa verdade, extrair boas atuações do elenco de apoio é um dos raros acertos de Yakin em “Duelo de Titãs”. Com atores certos nos papeis certos, ele consegue criar um grupo carismático, onde se destacam o determinado Gerry (Ryan Hurst), o sensível Julius (Wood Harris), o inteligente “Raios de Sol” (Kip Pardue) e o divertido Alan Bosley, interpretado por um ainda jovem Ryan Gosling. Apesar disso, nem sempre os atores conseguem driblar as falhas gritantes do roteiro. Repare, por exemplo, como num instante “Raio do sol” surge intimidado e sem confiança somente para em seguida se transformar num líder nato, capaz de orientar toda a equipe e virar uma partida – esta vibrante partida, aliás, consegue empolgar mesmo com sua pequena duração, o que não acontece na maioria dos jogos.

Entre os atores mais conhecidos, a postura durona e autoritária de Herman Boone combina muito bem com o estilo de Denzel Washington, mas não com a profissão de treinador, já que este método militar e ultrapassado não se encaixa mais aos modelos modernos de liderança. Ainda assim, o competente Washington leva bem a narrativa, ainda que seu personagem chegue bem perto de se tornar antipático. Já o estilo mais humano e intimista de liderar de Bill Yoast consegue recuperar jogadores e aproximá-lo do grupo, mas isto é insuficiente para que ele se torne o “bom moço” diante da plateia, graças exclusivamente a inexpressividade gritante de Will Patton.

Durão e autoritárioMais humano e intimistaClosesAparentemente sem perceber a falta de expressividade de Patton, Yakin abusa de close-ups não apenas dele, mas de todo o elenco. Além disso, ao imprimir um ritmo acelerado e cheio de cortes secos nos treinamentos e jogos, Yakin e seu montador Michael Tronick tornam as sequências confusas, não permitindo que o espectador compreenda o que está acontecendo com clareza – e mais uma vez o excesso de closes do diretor só piora as coisas nestes momentos. Ao menos, o estádio, os uniformes dos jogadores e a iluminação precisa utilizada nas partidas noturnas nos ambientam com precisão ao clima dos jogos, o que é mérito do design de produção de Deborah Evans, dos figurinos de Judy Ruskin Howell e da fotografia de Philippe Rousselot.

Da mesma forma, o design de som merece destaque por permitir que o espectador ouça desde detalhes como o apito e os gritos dos jogadores até os sons mais intensos dos choques entre eles e da vibração da torcida. Por outro lado, apesar de apresentar músicas empolgantes como a que acompanha um treinamento de madrugada, a trilha sonora de Trevor Rabin se excede constantemente, especialmente quando tenta ressaltar algum momento dramático como no ataque à casa de Boone. Além disso, as músicas diegéticas (cantadas pelos atletas) são repetitivas e enjoam.

Repetição, aliás, é uma palavra que define bem “Duelo de Titãs”, já que constantemente temos aquela sensação de estar assistindo mais do mesmo. O desfile de clichês continua com o mais que previsível acidente de Gerry, anunciado assim que ele convida Julius para sair e o amigo se recusa. Tentando conferir naturalidade a sequência, Yakin escorrega ao focar o rosto do garoto olhando para o lado segundos antes da colisão, permitindo que o espectador antecipe o que irá acontecer e, consequentemente, diminuindo o impacto da cena. Seguindo a tendência de todo o filme, a partida final é totalmente previsível e sem graça, permitindo que o espectador antecipe seu resultado muito tempo antes de sua concretização. Fica óbvio que “Rev” (Craig Kirkwood) será um jogador chave na partida desde o instante em que ele pede para jogar a final, assim como fica óbvio que as mudanças dos treinadores trarão resultado imediato no confronto assim que eles “abrem mão do orgulho” e aceitam conselhos. Assim, todos se reconciliam e vivem felizes, como aconteceria em qualquer novela do horário nobre.

Usar o esporte como pano de fundo para abordar um tema tão complicado quanto o preconceito racial é um dos raros trunfos de “Duelo de Titãs”. Infelizmente, no entanto, este acerto é diluído diante de tantos problemas.

Duelo de Titãs foto 2Texto publicado em 19 de Dezembro de 2012 por Roberto Siqueira

FILADÉLFIA (1993)

(Philadelphia)

 

Videoteca do Beto #93

Dirigido por Jonathan Demme.

Elenco: Tom Hanks, Denzel Washington, Joanne Woodward, Jason Robards, Antonio Banderas, Roberta Maxwell, Karen Finley, Mark Sorensen Jr., Jeffrey Williamson, Charles Glenn, Ron Vawter, Anna Deavere Smith, Stephanie Roth, Lisa Talerico, Robert Ridgely e Buzz Kilman.

Roteiro: Ron Nyswaner.

Produção: Jonathan Demme e Edward Saxon.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Um dos primeiros filmes de Hollywood a falar abertamente sobre a AIDS, “Filadélfia” emociona não apenas por tratar com extrema sensibilidade desta terrível doença, mas também por abordar com extrema coragem outro tema bastante complicado, que é o preconceito contra os homossexuais. Através da triste história de seu protagonista e, principalmente, da trajetória do advogado que o defende, o longa dirigido por Jonathan Demme nos mostra como este preconceito é desprezível e que todos podemos mudar, desde que estejamos dispostos a isto.

Escrito por Ron Nyswaner, “Filadélfia” nos conta a história do promissor advogado Andrew Beckett (Tom Hanks), que é despedido de um importante escritório da Filadélfia quando seus superiores, especialmente o renomado Charles Wheeler (Jason Robards), descobrem que ele é portador do vírus da AIDS. Inconformado, ele procura o competente advogado Joe Miller (Denzel Washington), que encontra no caso de Andrew um verdadeiro desafio pessoal, sendo obrigado a lutar contra o seu próprio preconceito.

“Filadélfia” veio ao mundo numa época em que a AIDS ainda era um grande mistério e quando poucos filmes tinham coragem de falar abertamente do assunto. A doença era um verdadeiro tabu e todo tipo de boato circulava entre as pessoas, que não se preocupavam em saber exatamente como o vírus era contraído e quais eram as conseqüências que ele trazia, algo que o longa ilustra muito bem, especialmente através do personagem Joe Miller, interpretado por Denzel Washington. Mas, antes disto, a narrativa nos apresenta o advogado Andrew Beckett, que observa atentamente as pessoas ao seu redor enquanto faz exames de rotina – e seu olhar de compaixão por aqueles homens debilitados fisicamente se revelaria uma trágica ironia do destino. Na vida profissional, Andrew vive um momento especial, sendo escolhido para cuidar do caso de um dos mais importantes clientes do escritório comandado por Charles Wheeler. Mas tudo muda quando algumas manchas começam a aparecer em seu corpo, gerando a desconfiança de seus companheiros de trabalho ainda durante as comemorações de sua nova conquista (e a trilha sonora sombria indica o destino cruel do protagonista neste momento).

Sempre buscando debater o preconceito, o diretor Jonathan Demme procura mostrar com naturalidade o convívio entre os homossexuais, como quando Andrew tenta disfarçar as feridas em seu rosto, brincando com seus amigos sem grandes preocupações. Mas, ao mesmo tempo em que humaniza aquele grupo de pessoas, Demme indica, através de um amigo (aquele com a toca na cabeça), que o vírus já estava presente naquele meio, o que traz preocupação a todos quando “Andy” começa a passar mal, num indício claro de que ele poderia estar infectado, reforçado quando ele aparece careca e com o semblante abatido no escritório de Joe. Repare que Demme evita mostrar o momento em que ele descobre ter o vírus da AIDS, preferindo fazer esta revelação de maneira crua e direta numa conversa com Joe, provocando no espectador o mesmo choque do personagem vivido por Washington. Antes disso, o diretor inteligentemente nos mostra Joe atendendo outro cliente que, por contraste, nos revela seu preconceito, já que ele promete resolver um caso claramente indefensável, o que não faria momentos depois ao atender Andrew. Joe é um homem bem sucedido, que tem uma bela família e demonstra ter uma vida estável, como podemos notar num momento de extrema felicidade, quando acompanha o nascimento da filha. Mas, quando ele ouve Andy dizer “eu tenho AIDS”, seu preconceito vem à tona (e o medo que a doença provoca nas pessoas também), fazendo com que ele se afaste imediatamente (repare como Washington olha rapidamente para sua mão, como quem tem medo de contrair a doença pelo toque). Demme evidencia o distanciamento através de um plano afastado, focando em seguida os objetos que Andrew toca, refletindo a preocupação de Joe, que é percebida por Andy, fazendo-o questionar se o parceiro de profissão não quer ajudá-lo por razões pessoais. A resposta positiva evidencia um pensamento comum numa época em que a AIDS ainda era um grande mistério e normalmente era associada aos homossexuais, como fica claro também em sua conversa com a esposa (“Não gosto de homossexuais”) e nos protestos na porta do tribunal da Filadélfia, que dividem as pessoas em dois grupos: os que demonstram solidariedade pela pessoa infectada pelo vírus e os que condenam sua opção sexual. Só que “Filadélfia” faz questão de ressaltar que o vírus da AIDS não se restringe aos homossexuais, através de uma personagem que contraiu o vírus numa transfusão de sangue, e que nem todo homossexual é aidético, ao espalhar personagens perfeitamente saudáveis como o próprio Miguel (Antonio Banderas).

Sofrendo uma visível transformação física, Tom Hanks tem uma atuação maravilhosa (ele perdeu aproximadamente 20 quilos para interpretar Andy nos estágios finais da doença), ganhando a empatia do espectador com seu jeito simpático (repare como ele sempre pergunta sobre a filha de Joe quando o vê) e nos comovendo com sua luta pela vida e por seus direitos – e neste aspecto, o apoio incondicional de sua família “mente aberta” é muito importante. O contraste entre o Andy contente e saudável do início e o homem abatido do final é chocante, e Hanks colabora muito para isto com seu semblante triste e abatido (destaque também para a excelente maquiagem feita no ator). Além disso, desde a primeira cena, quando se enfrentam num tribunal, Hanks e Washington conseguem criar uma empatia vital para o sucesso da narrativa. E se a transformação de Andrew é física, a de Joe é puramente psicológica e Washington demonstra isto muito bem, defendendo com veemência seu cliente, primeiro por causa da lei, depois porque muda sua postura diante do homossexualismo, chegando a freqüentar uma festa gay com o agora amigo Andy. E para isto, ele não mudou sua opção sexual, apenas passou a respeitar uma opção diferente da sua, o que não o impede de ficar irritado quando um gay lhe passa uma cantada numa farmácia. Esta transformação começa a ocorrer quando Joe resolve ajudar Andy numa biblioteca (após se esconder atrás dos livros para que ele não o veja), interrompendo uma constrangedora conversa entre Andy e um funcionário incomodado por sua presença. O desempenho de Washington melhora ainda mais durante o julgamento, onde ele se solta, dando um show de interpretação e conferindo emoção em seus argumentos ao confrontar a irônica (irritante até) advogada que defende o escritório de Wheeler. Aliás, ela consegue irritar até mesmo o controlado Andrew, como podemos notar quando repete seguidas vezes a palavra “fato” e, no segundo plano, Andy olha fixamente pra ela. Fechando o elenco, Antonio Banderas interpreta Miguel, o parceiro de Andrew, e o veterano Jason Robards vive Charles Wheeler, o poderoso dono do escritório de advocacia.

Como grande parte da narrativa se passa dentro de um tribunal, “Filadélfia” poderia se tornar cansativo, mas felizmente Demme emprega elegantes movimentos de câmera no julgamento, nos fazendo passear pelo local com seus travellings ou com um pequeno plano-seqüência que nos leva do banheiro masculino até o meio do tribunal, além de, por exemplo, nos aproximar de Joe quando ele fala perto do juiz sobre o medo que as pessoas têm dos homossexuais através de um zoom, que serve também para agigantá-lo na tela. Além disso, o diretor conta com a montagem de Craig McKay, que insere flashbacks, como quando alguém cita um momento vivido na sauna entre Charles e Andrew, o que confere um ritmo mais interessante a narrativa. O diretor demonstra ainda sensibilidade na criação de planos simbólicos, como o contra-plongèe que diminui os advogados na biblioteca quando eles lêem sobre o que caracteriza o preconceito contra os aidéticos, refletindo o quão pequeno e desprezível é este sentimento, ou nas primeiras cenas do longa, quando somos levados pelas ruas da cidade, embaladas pela linda música tema de Bruce Springsteen “Streets of Philadelphia”, num passeio que faz “Filadélfia” nascer já nostálgico, apresentando uma espécie de despedida do local em que Andy viveu – e que foi o berço do movimento libertário no país. Aliás, a fotografia sem vida de Tak Fujimoto ilustra bem este sentimento, deixando as ruas acinzentadas e tristes. Finalmente, vale destacar os belos planos aéreos da cidade, outro plano-seqüência que nos leva pelos convidados na festa de Andrew e os constantes closes que destacam as feridas na cabeça do protagonista.

Enquanto acompanharmos os argumentos apresentados no julgamento, a mensagem principal de “Filadélfia” é plantada em nossas mentes. E mesmo pessoas que ainda têm preconceito podem começar a repensar o assunto, especialmente após o comovente momento em que Andy pede para Miguel parar de medicá-lo, claramente desistindo do tratamento e preferindo seguir o seu destino, mas não sem antes organizar uma festa, que serve como uma espécie de despedida das pessoas que ama. Mas, quando a festa acaba, Andy sente que o fim se aproxima – algo que Joe percebe nitidamente – e desiste de ensaiar suas falas para o dia seguinte no tribunal, se entregando à música, numa cena tocante, onde Hanks confere muita emoção cantando ópera com sentimento, deixando Joe perplexo por testemunhar um homem que estava se despedindo da vida naquele momento. Washington demonstra muito bem esta sensação, refletindo o instante em que Joe finalmente se deu conta que de fato Andrew estava morrendo. Repare como a iluminação da cena muda durante a performance apaixonada de Andrew, refletida nos tons avermelhados da fotografia de Fujimoto, assim como as sombras que envolvem Joe simbolizam o vazio de seu coração naquele instante. Após este momento intenso, Joe chega em casa e abraça a filha carinhosamente, dizendo que a ama, enquanto a ópera continua presente em sua memória, como bem reflete a trilha sonora. Ele sequer consegue dormir. Finalmente, Joe estava completamente transformado, como fica evidente no hospital, quando demonstra muito carinho pelos familiares de Andrew, incluindo Miguel. No dia seguinte ao turbilhão de emoções, Andy aparece totalmente debilitado no julgamento, tossindo, falando baixo e bastante magro. E enquanto a advogada faz uma série de questionamentos, ele começa a passar mal, algo ilustrado no plano levemente inclinado e na voz distorcida da advogada, caindo no chão e sendo levado ao hospital. O plano seguinte se inicia mostrando sua cadeira vazia no tribunal e, como ele mesmo tinha previsto, Joe ganha a causa, mas Andy não estava lá pra ver.

A despedida de Andrew no hospital é tocante, com o ângulo baixo da câmera de Demme nos colocando praticamente sob o ponto de vista dele enquanto seus familiares passam um por um. E é difícil segurar as lágrimas ao ver aquelas pessoas que parecem pressentir que aquele momento seria o último com seu ente querido. Após sua morte, a cerimônia de despedida, com o vídeo de Andrew criança, também emociona bastante, e o clipe final, embalado pela triste música “Philadelphia”, de Neil Young, encerra este filme sensível e corajoso, que fala abertamente sobre a AIDS e, principalmente, mostra como o preconceito é algo completamente sem sentido e idiota, pois, afinal de contas, independente de nossas opções sexuais, somos todos seres humanos.

“Filadélfia” aborda a AIDS com seriedade, mas também fala sobre o preconceito contra os homossexuais com coragem, ilustrado no personagem de Washington, que muda completamente durante a narrativa, passando a respeitar as pessoas, independente de sua opção sexual. Ele continua heterossexual, obviamente, mas agora respeita quem não tem a mesma opção que ele. Assim como merece respeito este corajoso filme, que ajudou a abrir caminho para discussões relevantes sobre o assunto.

Texto publicado em 30 de Março de 2011 por Roberto Siqueira