Vídeo: Nomadland

No vídeo de hoje, conversei com Hector Colacelli e Thyago Bertoni sobre o favorito ao Oscar “Nomadland”, filme dirigido por Chloé Zhao, estrelado por Frances McDormand, disponível no Hulu.

Confira:

Um abraço e uma semana cinematográfica para todos nós!

Vídeo publicado em 04 de Abril de 2021 por Roberto Siqueira

QUASE FAMOSOS (2000)

(Almost Famous)

4 Estrelas 

Filmes em Geral #111

Dirigido por Cameron Crowe.

Elenco: Patrick Fugit, Billy Crudup, Frances McDormand, Kate Hudson, Philip Seymour Hoffman, Jason Lee, Zooey Deschanel, Michael Angarano, Anna Paquin, Fairuza Balk, Noah Taylor, John Fedevich, Jimmy Fallon e Rainn Wilson.

Roteiro: Cameron Crowe.

Produção: Ian Bryce e Cameron Crowe.

Quase Famosos[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Precocemente convidado para escrever numa das revistas mais conceituadas do universo do rock, Cameron Crowe não demorou a estrear também no cinema, primeiro como roteirista do ótimo “Picardias Estudantis” e depois realizando entre outros filmes o bom “Jerry Maguire”. No entanto, seu grande momento atrás das câmeras foi mesmo em “Quase Famosos”, uma espécie de autobiografia nada disfarçada que narra de maneira apaixonada suas experiências nos bastidores do rock nos tempos de revista Rolling Stone.

Obviamente escrito pelo próprio Crowe, o roteiro de “Quase Famosos” narra a trajetória de William Miller (Patrick Fugit), um jovem de apenas 15 anos que é contratado pela revista Rolling Stone para escrever sobre a turnê da promissora banda Stillwater, mas, para o desespero de sua mãe (Frances McDormand), acaba envolvendo-se não apenas com os integrantes da banda, mas também com um universo de sexo, drogas e garotas ousadas, dentre as quais se destaca a bela Penny Lane (Kate Hudson).

Em certo momento de “Quase Famosos”, um personagem diz que “ser fã é amar tanto uma banda que chega a doer”, naquela que talvez seja a frase que, dentre os inúmeros bons diálogos do roteiro, melhor capte o espírito nostálgico do longa. Inspirado na própria trajetória que levou Crowe a ser precocemente contratado como crítico da famosa revista Rolling Stone e aproximar-se de bandas mitológicas como o Led Zeppelin (a favorita de Crowe), a narrativa comandada pelo diretor exala criatividade desde a apresentação dos créditos iniciais e demonstra não apenas sua paixão pela música, mas também por todo o universo que a cerca. E ainda que espalhe momentos cômicos por toda a narrativa, a abordagem de Crowe é na maior parte do tempo repleta de encanto.

Compensando o excesso de informações mastigadas através desta abordagem extremamente sensível, Crowe reverencia o rock na maior parte do tempo, seja através da excelente trilha sonora repleta de bandas do primeiro time como o próprio Zeppelin, The Who e Black Sabbath, seja na própria abordagem visual, começando pela fotografia de John Toll, que até utiliza cenas noturnas e ambientes fechados em muitos momentos para ilustrar a luta daquele grupo para sair das sombras e ganhar projeção, mas jamais deixa as cores tão marcantes naquela época de lado, conferindo um brilho especial às cenas diurnas e às muitas sequências nostálgicas embaladas por músicas (que lembram videoclipes e escancaram a origem do diretor), como por exemplo, quando Penny volta pra casa de avião enquanto William corre pelo aeroporto ou na belíssima cena em que todos cantam “Tiny Dancer” no ônibus, assim como na encantadora cena em que as garotas se juntam para tirar a virgindade de William.

Apresentação dos créditos iniciaisCenas noturnasTiny DancerAinda na parte técnica, enquanto a montagem de Joe Hutshing e Saar Klein confere um bom ritmo a narrativa, intercalando a turnê da banda com as cenas envolvendo a mãe de William, os editores da Rolling Stone e o crítico Lester Bangs interpretado por Philip Seymour Hoffman, os figurinos de Betsy Heimann e o design de produção de Clay A. Griffith, Clayton Hartley e Virginia L. Randolph nos transportam para a época da narrativa através das roupas coloridas e do próprio ônibus escolhido para acompanhar a turnê. Finalmente, o ótimo design de som cria o ambiente perfeito nos shows através das reações do público e dos diálogos entre os integrantes da banda, caprichando até mesmo nos pequenos detalhes, como quando ouvimos um diálogo no backstage e, ao fundo, o som do show do Black Sabbath.

No entanto, Crowe faz ainda mais bonito na direção de atores. Vivendo a mãe opressora que proíbe muitos prazeres da vida aos seus filhos, Frances McDormand evita que Elaine Miller se torne uma personagem detestável e unidimensional ao conferir humanidade a ela através da forma como se preocupa com o bem estar do filho e da empatia que cria com o jovem William. Equilibrando-se entre o rosto inocente e o sorriso carismático, o jovem Patrick Fugit tem sucesso na difícil tarefa de compor o tímido personagem central da narrativa, criando empatia com os integrantes da banda e, especialmente, com a bela Penny Lane – o momento em que o pequeno William volta para pegar a camiseta que causou uma briga na banda é muito divertido. Através da visão encantada dele, temos acesso aos bastidores do cotidiano de uma banda menor e somos levados pelas estradas na árdua busca por um lugar ao sol, por isso, a empatia entre o personagem e a plateia é essencial para o sucesso do longa.

Carismática, sensual e descolada, a Penny Lane de Kate Hudson é o elo entre o protagonista e a banda, funcionando como o alicerce daquela complexa cadeia – e não à toa, a ausência dela provoca turbulências ainda maiores entre os músicos. Compondo a personagem com sensibilidade, Hudson destaca-se na cena em que Penny sofre uma crise no quarto após ser desprezada pelo guitarrista Russel, o mais carismático integrante do Stillwater interpretado por Billy Crudup, que é também o pivô das constantes brigas motivadas pelos egos inflados dele e do vocalista Jeff Bebe, vivido por Jason Lee – um conflito muito comum nas bandas de rock, diga-se. Infelizmente, a forte influência de empresários também se tornou comum e “Quase Famosos” aborda o tema quando os integrantes da banda são convencidos a viajar de avião para fazer mais shows – algo que Crowe realça num plano no qual vemos o ônibus ficando para trás enquanto o avião decola ao fundo. Ironicamente, é durante uma tempestade que coloca em risco um voo da banda que eles aproveitam para lavar a roupa suja e escancarar seus problemas, o que não soluciona todos eles, mas ao menos faz com que a maioria dos músicos se sinta melhor.

Se preocupa com o bem estar do filhoRosto inocenteCarismática Penny LaneFechando o elenco, Philip Seymour Hoffman encarna bem o crítico alternativo que orienta o jovem William, destilando seu veneno contra tudo que lhe desagrada e revelando importantes informações a respeito da indústria da música. Seu apartamento bagunçado e cheio de LPs diz muito sobre ele, assim como as dicas que ele dá ao garoto, que terão reflexo no futuro, quando William sentirá na pele a dificuldade de criticar o trabalho da banda após fazer amizade com eles.

Viagem interessante pelos bastidores de uma banda de rock sob o olhar de um fã, “Quase Famosos” é uma verdadeira homenagem a este gênero que encanta gerações há décadas. Sem jamais soar ácido demais e sem por isso deixar de expor o universo polêmico no qual conviveu, Cameron Crowe realizou um ótimo trabalho, capaz de agradar roqueiros e cinéfilos com a mesma eficiência. E olha que estes dois grupos são muito exigentes – e eu faço parte de ambos!

Quase Famosos foto 2Texto publicado em 13 de Setembro de 2013 por Roberto Siqueira

AS DUAS FACES DE UM CRIME (1996)

(Primal Fear)

5 Estrelas 

Videoteca do Beto #167

Dirigido por Gregory Hoblit.

Elenco: Richard Gere, Edward Norton, Laura Linney, John Mahoney, Frances McDormand, Alfre Woodard, Terry O’Quinn, Andre Braugher, Steven Bauer, Joe Spano, Tony Plana, Maura Tierney e Jon Seda.

Roteiro: Steve Shagan e Ann Biderman, baseado em romance de William Diehl.

Produção: Gary Lucchesi.

As Duas Faces de um Crime[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Após a desistência do então astro em ascensão Leonardo Di Caprio de participar de “As Duas Faces de um Crime”, os produtores do projeto passaram a procurar desesperadamente por alguém que pudesse encarnar o personagem chave da trama, chegando a testar mais de dois mil candidatos. Entre eles, um jovem desconhecido conseguiu se destacar de tal maneira que, após conseguir o disputado papel e ter o vídeo de seu teste circulando por toda Hollywood, ele acabou sendo contratado para trabalhar em mais dois filmes importantes daquele ano, dirigidos por ninguém menos que Woody Allen e Milos Forman. Obviamente, estamos falando do talentosíssimo Edward Norton.

A atuação ambígua de Norton é essencial para que “As Duas Faces de um Crime” funcione tão bem, mas o ótimo roteiro escrito por Steve Shagan e Ann Biderman (baseado em romance de William Diehl) também tem grandes méritos, com sua estrutura perfeita funcionando em diversas camadas e desenvolvendo muito bem este precioso personagem, além é claro de contar com reviravoltas atordoantes. A narrativa começa nos mostrando o assassinato de um conhecido Arcebispo de Chicago (Stanley Anderson) e a prisão quase imediata de um de seus coroinhas, o jovem Aaron Stampler (Edward Norton), que é encontrando todo ensanguentado numa ferrovia perto do local do crime. A cobertura midiática do evento chama a atenção do competente advogado Martin Vail (Richard Gere), que decide defender o rapaz sem cobrar nada, apenas pela exposição que teria no caso. Do outro lado, a promotora Janet Venable (Laura Linney), que já viveu um caso com Vail no passado, é contratada pelo estado para tentar a pena de morte.

Além de se destacar pela maneira envolvente com que constrói a relação entre o advogado de defesa e seu cliente, o corajoso roteiro aborda ainda a influencia da Igreja nos negócios do bairro e os crimes sexuais cometidos pelo Arcebispo, criando um complexo jogo de interesses que só prende ainda mais nossa atenção. Por isso, talvez o único escorregão do inteligente roteiro seja o desnecessário caso entre Vail e Janet, que além de não colaborar em nada para o andamento da narrativa, acaba tirando o foco da ação principal sempre que as provocações entre eles ganham espaço na tela.

Relação entre o advogado de defesa e seu clienteCrimes sexuaisDesnecessário casoAuxiliado pela montagem de David Rosenbloom, o diretor Gregory Hoblit conduz a narrativa de maneira fluida, intercalando o trabalho no escritório de Vail, os duelos verbais entre ele e Janet, as conversas com Stampler, sua análise psiquiátrica e as audiências no tribunal, que ganham mais foco somente no empolgante terceiro ato. Até lá, o diretor demonstra habilidade na construção de uma atmosfera tensa e misteriosa, trabalhando em pequenos detalhes que ajudam a confundir o espectador. Mostrando Stampler rapidamente durante a apresentação do coral de coroinhas, Hoblit inicialmente nos faz acreditar que ele é mesmo o assassino, intercalando as fortes imagens do assassinato com planos rápidos de sua fuga alucinada da polícia. No entanto, observe como na prisão o diretor engrandece Vail e diminui Stampler na tela durante as primeiras conversas, o que, somado às expressões vulneráveis de Norton, força nossa identificação com o personagem e faz com que a plateia realmente acredite em sua inocência.

Imagens do assassinatoFuga alucinada da políciaExpressões vulneráveisCompetente também na direção de atores, Hoblit evita distrair nossa atenção com invencionismos, realçando as fortes atuações de seu elenco. Repare, por exemplo, como a câmera se aproxima lentamente do rosto dos personagens conforme os diálogos evoluem, como na primeira conversa entre Vail e Stampler e em muitos outros diálogos, num movimento discreto que jamais chama a atenção para si. Da mesma forma, a fotografia de Michael Chapman cria um mundo acinzentado que realça a frieza necessária na profissão dos advogados – e descobriremos mais tarde que esta frieza remete também ao próprio Stampler -, assim como o design de produção de Jeannine Claudia Oppewall, que concebe ambientes simétricos e organizados como o escritório de Vail e os tribunais. Até por isso, nos raros momentos em que o visual foge ao padrão, o espectador sente claramente o que o diretor pretende transmitir, como na conversa entre Vail e um repórter num bar, onde os tons avermelhados que predominam na cena indicam o inferno astral vivido pelo personagem após a descoberta da suposta doença de Stampler.

Mundo acinzentadoAmbientes simétricosInferno astralEssencial num filme de tribunal onde os argumentos dos advogados precisam ser captados com clareza, o design de som ainda se destaca em sequências especiais, como no próprio assassinato do Arcebispo, no qual um cidadão escuta da rua os violentos golpes desferidos contra ele, e especialmente numa das audiências, onde as vozes de um interessante debate entre os advogados se sobrepõem às imagens da chegada deles ao tribunal. E fechando os destaques da parte técnica, a trilha sonora discreta de James Newton Howard sublinha muito bem momentos especiais, como quando indica a mudança de comportamento de Stampler segundos antes de sua primeira transformação através de uma nota sombria que lentamente ganha força, destoando deste tom discreto somente durante a acelerada perseguição de Alex (Jon Seda) pelas ruas.

Bem vestido e com um corte de cabelo impecável, Richard Gere encarna Vail como um advogado extremamente competente e, por isso, autoconfiante ao ponto de dizer que a única verdade que interessa é aquela em que ele acredita. Com um sorriso falso e um olhar penetrante, o ator faz bem o papel do advogado dissimulado, que faz tudo que está ao seu alcance para defender seus clientes, mantendo ainda um bom relacionamento com eles fora do tribunal, como atesta sua conversa com o traficante Joey Pinero (Steven Bauer). Assumindo inicialmente uma postura dominante que se reflete nas cores fortes de seus ternos (figurinos de Betsy Cox), o advogado lentamente vai sendo domado por seu cliente, o que cria uma confusão momentânea em sua mente tão acostumada a controlar este tipo de situação, refletida até mesmo na falta de cor de seus ternos no segundo ato. Quando finalmente compreende o que se passa com Stampler, Gere volta a adotar uma postura confiante e os ternos escuros novamente aparecem.

Advogado extremamente competenteSorriso falsoPostura dominanteIgualmente confiante profissionalmente, a Janet interpretada por Laura Linney se sai bem nos embates diante do ardiloso Vail, mantendo uma postura firme também fora do âmbito profissional ante as investidas nada elegantes do ex-amante. Vivendo a personagem de maneira centrada e inteligente, Linney confere credibilidade aos julgamentos, fazendo com que a plateia realmente acredite que ela será capaz de vencer Vail e conseguir a condenação de Stampler. Outra presença feminina marcante é a de Frances McDormand, que está serena como a psiquiatra Molly, transmitindo a tranquilidade esperada em sua profissão e demonstrando segurança diante dos fortes questionamentos da promotora Janet no tribunal (numa atuação minimalista que, por contraste, realça sua qualidade como atriz quando comparada a determinada policial Marge, que ela viveu naquele mesmo ano em Fargo”). Fechando o elenco secundário, vale citar o ameaçador John Shaughnessy interpretado por John Mahoney.

Janet postura firmeCentrada e inteligentePsiquiatra MollyE chegamos então ao grande responsável pelo sucesso de “As Duas Faces de um Crime”. Em seu papel de estreia no cinema, Edward Norton entrega uma atuação assombrosa, encarnando duas personalidades tão distintas de maneira mais do que convincente na pele do acusado Stampler. Enquanto o tímido Aaron surge com uma notável gagueira, um tom de voz baixo e evita olhar diretamente para as pessoas, seu alter-ego Roy é exatamente o oposto, surgindo confiante com sua voz firme, o olhar ameaçador e a postura corporal imponente e agressiva. Observe, por exemplo, como sua expressão ameaçadora no primeiro lapso diante da Dra. Molly se contrapõe diretamente ao seu olhar assustado durante as audiências no tribunal. Assim, quando Roy finalmente surge em cena, Norton complementa sua transformação de maneira sensacional, atacando Vail violentamente e se impondo com incrível firmeza, numa postura diametralmente oposta ao reprimido Aaron.

Tímido AaronRoy é exatamente o opostoPrimeiro lapsoSó que “As Duas Faces de um Crime” ainda nos reserva outra reviravolta em seus instantes finais. Preparando cuidadosamente seu explosivo terceiro ato durante toda a narrativa, Hoblit nos leva ao julgamento final e ao esperado depoimento da Dra. Molly, seguido pelo interrogatório do próprio suspeito, no qual os advogados alcançarão o ápice de suas estratégias cuidadosamente elaboradas. Incluindo planos rápidos das mãos ansiosas de Aaron durante o interrogatório, o diretor e seu montador aceleram a sequência através de planos cada vez mais curtos que só ampliam a tensão, nos permitindo antecipar o iminente ataque de fúria do acusado, que inevitavelmente acontece e deixa todos atônitos. Desta forma, o espectador termina a cena pensando que sabe mais do que a maioria dos personagens, só que quando Stampler finalmente revela seu truque para Vail, o choque torna-se inevitável tanto para o advogado quanto para a plateia. Como ilustram os planos finais em plongè que o diminuem em cena, Vail deixa o tribunal completamente desolado por constatar que aquele jovem aparentemente inofensivo foi capaz de enganá-lo durante tanto tempo.

Mãos ansiosas de AaronIminente ataque de fúriaStampler finalmente revela seu truqueQuem não se importa por ter sido enganado é o espectador, que deixa a projeção totalmente atordoado e completamente satisfeito com o que acabou de assistir. Contando com um bom elenco e uma atuação simplesmente fantástica de Edward Norton, “As Duas Faces de um Crime” é um grande filme, que vai além dos tribunais e nos faz refletir sobre até que ponto a primeira impressão é realmente a que fica. Ao menos, a impressão de que este é um dos melhores filmes da década de 90 continua intacta.

As Duas Faces de um Crime foto 2Texto publicado em 29 de Abril de 2013 por Roberto Siqueira

FARGO (1996)

(Fargo)

Videoteca do Beto #139

Dirigido por Joel Coen.

Elenco: Frances McDormand, William H. Macy, Steve Buscemi, Peter Stormare, Harve Presnell, Kristin Rudrüd, Tony Denman, Gary Houston, Bain Boehlke e Sally Wingert.

Roteiro: Ethan Coen e Joel Coen.

Produção: Ethan Coen e Joel Coen.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Mestres na arte de contar uma boa história através das câmeras cinematográficas, os irmãos Coen costumam se destacar por características muito peculiares, como a economia narrativa, as pitadas de humor negro que permeiam seus filmes e a notável capacidade de criar cenas marcantes. Tudo isso pode ser encontrado no ótimo “Fargo”, longa que certamente merece um lugar de destaque entre os inúmeros trabalhos interessantes dos Coen, o que não é pouco, considerando a vasta e qualificada filmografia da dupla.

Sob a superfície de thriller de suspense e investigação policial, o roteiro de “Fargo” (escrito, como de costume, pelos próprios Ethan e Joel Coen) narra à história do desesperado Jerry (William H. Macy), um gerente de uma revendedora de automóveis que enfrenta dificuldades financeiras e resolve planejar o sequestro da própria esposa Jean (Kristin Rudrüd). O problema é que as coisas não saem tão bem quanto o planejado e, quando os sequestradores Carl (Steve Buscemi) e Grimsrud (Peter Stormare) cometem vários assassinatos, a determinada policial Marge (Frances McDormand) começa a investigar o caso.

Responsáveis não apenas pelo roteiro, direção e produção, como também pela montagem de “Fargo” sob o nome fictício de Roderick Jaynes, os Coen confirmam a habilidade de manter o espectador atento aos intrigantes acontecimentos que se sucedem, conduzindo a narrativa de maneira direta e eficiente. Repleto de diálogos interessantes, o criativo roteiro abre um leque de possibilidades a cada instante, sempre trabalhando de maneira brilhante como o acaso influencia em nossas vidas. Só que, ao contrário dos personagens que jamais conseguem prever o que acontecerá em seguida, os Coen demonstram controle total sobre o que vemos na tela, criando momentos absolutamente eletrizantes (que voltarei a abordar em instantes) em meio ao mar de tranquilidade da pacata cidade de Brainerd. Entretanto, apesar de todo o suspense, “Fargo” também é recheado com muito humor negro, apresentando uma série de momentos hilários que servem para quebrar a tensão crescente da narrativa, como quando Jean sai correndo amarrada na chegada ao cativeiro ou na engraçada entrevista de Marge com as prostitutas.

Apostando na violência gráfica, como na cena do assassinato do policial, na entrega do dinheiro num hotel e na prisão de Grimsrud, os Coen criam uma cadeia de acontecimentos que só pioram a situação de Jerry e, justamente por mostrarem os trágicos resultados de seus atos, fazem com que o espectador se importe com o destino dos personagens. Entretanto, apesar de funcionar muito bem como thriller, “Fargo” apoia-se no humor negro para abordar outras questões, funcionando como um estudo sobre o estilo de vida daquela região peculiar dos EUA. Investindo em cores gélidas e explorando com maestria a crueza das vizinhas regiões de Minnesota e North Dakota, repletas de estradas rodeadas pela neve que se misturam à linha do horizonte e criam um visual ao mesmo tempo belo e assustador, a fotografia do ótimo Roger Deakins é crucial para ilustrar a solidão das pessoas que vivem no local. Este isolamento colabora até mesmo para aumentar a tensão em momentos chave da narrativa, como na noite dos assassinatos, onde sabemos que os inocentes que cruzam o caminho dos sequestradores raramente escaparão com vida naquela estrada fria e abandonada. Aliás, esta cena de perseguição está entre os grandes momentos do longa, fazendo o espectador grudar na cadeira enquanto acompanha seu desfecho.

Vestindo ternos sóbrios ou roupas que transmitem uma imagem austera (figurinos de Mary Zophres), os personagens de “Fargo” representam a força central da narrativa. Com seus sotaques arrastados e diálogos afiados que denunciam a maneira engraçada de falar, até mesmo coadjuvantes com pequenas participações transformam-se numa atração à parte, como o Sr. Mohra (Bain Boehlke), que nos delicia contando como ouviu do embriagado Carl onde ele estaria escondido. Por outro lado, esta graça dificilmente será percebida por um espectador que não tenha pelo menos alguma noção de inglês (seria como tentar explicar para um estrangeiro a graça de um sotaque de qualquer região do Brasil).

Divertida também é a atuação de Peter Stormare como Grimsrud, o parceiro mudo e ameaçador de Carl – que, como de costume, é interpretado com maestria por Steve Buscemi, um verdadeiro especialista na arte de viver criminosos. Surgindo frágil e hesitante na maior parte do tempo, o Jerry do ótimo William H. Macy parece incapaz de se impor em qualquer diálogo, parando de falar ao menor sinal de que será interrompido e gaguejando diversas vezes, num claro sinal de falta de confiança que o ator demonstra muito bem. Este sentimento, aliado à determinação do personagem de buscar uma saída para cada obstáculo que surge (e são muitos), é essencial para o desenvolvimento da narrativa, já que raramente podemos prever os próximos passos do personagem. Mas se todo o elenco tem um ótimo desempenho, o grande destaque é mesmo Frances McDormand, que confere enorme carisma e uma simplicidade desconcertante à Marge, uma mulher grávida de sete meses que se dedica ao trabalho e a família com a mesma intensidade, chamando a atenção sempre que entra em cena graças também ao ótimo desempenho da atriz. É ela quem acalma o espectador com seu raciocínio simples e sua forma direta de resolver os problemas, algo que fica claro, por exemplo, em sua visita ao escritório de Jerry e em sua conversa com um velho amigo da faculdade.

E voltamos então aos momentos eletrizantes, marca registrada dos Coen que não poderia faltar em “Fargo”. Entre tantos grandes momentos, vale destacar a excelente cena do sequestro, na qual vemos Jean paralisada diante da imagem do sequestrador que olha pela janela pra dentro da casa. Repare como Joel conduz a cena com precisão, investindo no humor negro para aliviar a tensão – afinal, só mesmo num filme dos Coen um sequestrador andaria calmamente pela casa procurando uma pomada enquanto a vítima, após tentar se esconder, sai enrolada numa cortina e se estatela no chão. Igualmente, a forma como o grandalhão Grimsrud tenta se desvencilhar do corpo do comparsa no terceiro ato chega a ser simultaneamente cômica e trágica.

O que nunca é trágico é o resultado do trabalho dos Coen, que, mesmo quando não acertam em cheio, conseguem realizar ótimos filmes. Quando estão inspirados então, o resultado só pode ser espetacular, e é isto que acontece em “Fargo”, um filme tenso e divertido, que conta com um elenco talentoso para se tornar um dos melhores exemplos do que os Coen são capazes.

Texto publicado em 28 de Outubro de 2012 por Roberto Siqueira