FARGO (1996)

(Fargo)

Videoteca do Beto #139

Dirigido por Joel Coen.

Elenco: Frances McDormand, William H. Macy, Steve Buscemi, Peter Stormare, Harve Presnell, Kristin Rudrüd, Tony Denman, Gary Houston, Bain Boehlke e Sally Wingert.

Roteiro: Ethan Coen e Joel Coen.

Produção: Ethan Coen e Joel Coen.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Mestres na arte de contar uma boa história através das câmeras cinematográficas, os irmãos Coen costumam se destacar por características muito peculiares, como a economia narrativa, as pitadas de humor negro que permeiam seus filmes e a notável capacidade de criar cenas marcantes. Tudo isso pode ser encontrado no ótimo “Fargo”, longa que certamente merece um lugar de destaque entre os inúmeros trabalhos interessantes dos Coen, o que não é pouco, considerando a vasta e qualificada filmografia da dupla.

Sob a superfície de thriller de suspense e investigação policial, o roteiro de “Fargo” (escrito, como de costume, pelos próprios Ethan e Joel Coen) narra à história do desesperado Jerry (William H. Macy), um gerente de uma revendedora de automóveis que enfrenta dificuldades financeiras e resolve planejar o sequestro da própria esposa Jean (Kristin Rudrüd). O problema é que as coisas não saem tão bem quanto o planejado e, quando os sequestradores Carl (Steve Buscemi) e Grimsrud (Peter Stormare) cometem vários assassinatos, a determinada policial Marge (Frances McDormand) começa a investigar o caso.

Responsáveis não apenas pelo roteiro, direção e produção, como também pela montagem de “Fargo” sob o nome fictício de Roderick Jaynes, os Coen confirmam a habilidade de manter o espectador atento aos intrigantes acontecimentos que se sucedem, conduzindo a narrativa de maneira direta e eficiente. Repleto de diálogos interessantes, o criativo roteiro abre um leque de possibilidades a cada instante, sempre trabalhando de maneira brilhante como o acaso influencia em nossas vidas. Só que, ao contrário dos personagens que jamais conseguem prever o que acontecerá em seguida, os Coen demonstram controle total sobre o que vemos na tela, criando momentos absolutamente eletrizantes (que voltarei a abordar em instantes) em meio ao mar de tranquilidade da pacata cidade de Brainerd. Entretanto, apesar de todo o suspense, “Fargo” também é recheado com muito humor negro, apresentando uma série de momentos hilários que servem para quebrar a tensão crescente da narrativa, como quando Jean sai correndo amarrada na chegada ao cativeiro ou na engraçada entrevista de Marge com as prostitutas.

Apostando na violência gráfica, como na cena do assassinato do policial, na entrega do dinheiro num hotel e na prisão de Grimsrud, os Coen criam uma cadeia de acontecimentos que só pioram a situação de Jerry e, justamente por mostrarem os trágicos resultados de seus atos, fazem com que o espectador se importe com o destino dos personagens. Entretanto, apesar de funcionar muito bem como thriller, “Fargo” apoia-se no humor negro para abordar outras questões, funcionando como um estudo sobre o estilo de vida daquela região peculiar dos EUA. Investindo em cores gélidas e explorando com maestria a crueza das vizinhas regiões de Minnesota e North Dakota, repletas de estradas rodeadas pela neve que se misturam à linha do horizonte e criam um visual ao mesmo tempo belo e assustador, a fotografia do ótimo Roger Deakins é crucial para ilustrar a solidão das pessoas que vivem no local. Este isolamento colabora até mesmo para aumentar a tensão em momentos chave da narrativa, como na noite dos assassinatos, onde sabemos que os inocentes que cruzam o caminho dos sequestradores raramente escaparão com vida naquela estrada fria e abandonada. Aliás, esta cena de perseguição está entre os grandes momentos do longa, fazendo o espectador grudar na cadeira enquanto acompanha seu desfecho.

Vestindo ternos sóbrios ou roupas que transmitem uma imagem austera (figurinos de Mary Zophres), os personagens de “Fargo” representam a força central da narrativa. Com seus sotaques arrastados e diálogos afiados que denunciam a maneira engraçada de falar, até mesmo coadjuvantes com pequenas participações transformam-se numa atração à parte, como o Sr. Mohra (Bain Boehlke), que nos delicia contando como ouviu do embriagado Carl onde ele estaria escondido. Por outro lado, esta graça dificilmente será percebida por um espectador que não tenha pelo menos alguma noção de inglês (seria como tentar explicar para um estrangeiro a graça de um sotaque de qualquer região do Brasil).

Divertida também é a atuação de Peter Stormare como Grimsrud, o parceiro mudo e ameaçador de Carl – que, como de costume, é interpretado com maestria por Steve Buscemi, um verdadeiro especialista na arte de viver criminosos. Surgindo frágil e hesitante na maior parte do tempo, o Jerry do ótimo William H. Macy parece incapaz de se impor em qualquer diálogo, parando de falar ao menor sinal de que será interrompido e gaguejando diversas vezes, num claro sinal de falta de confiança que o ator demonstra muito bem. Este sentimento, aliado à determinação do personagem de buscar uma saída para cada obstáculo que surge (e são muitos), é essencial para o desenvolvimento da narrativa, já que raramente podemos prever os próximos passos do personagem. Mas se todo o elenco tem um ótimo desempenho, o grande destaque é mesmo Frances McDormand, que confere enorme carisma e uma simplicidade desconcertante à Marge, uma mulher grávida de sete meses que se dedica ao trabalho e a família com a mesma intensidade, chamando a atenção sempre que entra em cena graças também ao ótimo desempenho da atriz. É ela quem acalma o espectador com seu raciocínio simples e sua forma direta de resolver os problemas, algo que fica claro, por exemplo, em sua visita ao escritório de Jerry e em sua conversa com um velho amigo da faculdade.

E voltamos então aos momentos eletrizantes, marca registrada dos Coen que não poderia faltar em “Fargo”. Entre tantos grandes momentos, vale destacar a excelente cena do sequestro, na qual vemos Jean paralisada diante da imagem do sequestrador que olha pela janela pra dentro da casa. Repare como Joel conduz a cena com precisão, investindo no humor negro para aliviar a tensão – afinal, só mesmo num filme dos Coen um sequestrador andaria calmamente pela casa procurando uma pomada enquanto a vítima, após tentar se esconder, sai enrolada numa cortina e se estatela no chão. Igualmente, a forma como o grandalhão Grimsrud tenta se desvencilhar do corpo do comparsa no terceiro ato chega a ser simultaneamente cômica e trágica.

O que nunca é trágico é o resultado do trabalho dos Coen, que, mesmo quando não acertam em cheio, conseguem realizar ótimos filmes. Quando estão inspirados então, o resultado só pode ser espetacular, e é isto que acontece em “Fargo”, um filme tenso e divertido, que conta com um elenco talentoso para se tornar um dos melhores exemplos do que os Coen são capazes.

Texto publicado em 28 de Outubro de 2012 por Roberto Siqueira

BRAVURA INDÔMITA (2010)

(True Grit)

 

Filmes em Geral #81

Dirigido por Joel Coen e Ethan Coen.

Elenco: Hailee Steinfeld, Jeff Bridges, Matt Damon, Josh Brolin, Barry Pepper, Doomhall Gleeson, Elizabeth Marvel, Leon Russom, Ed Corbin, Paul Rae, Nicholas Sadler, Bruce Green, Dakin Matthews, Brian Brown e Philip Knobloch.

Roteiro: Joel Coen e Ethan Coen, baseado em livro de Charles Portis.

Produção: Scott Rudin, Joel Coen, Ethan Coen e Steven Spielberg.

[Antes de qualquer coisa, gostaria de pedir que só leia esta crítica se já tiver assistido ao filme. Para fazer uma análise mais detalhada é necessário citar cenas importantes da trama].

Refilmagem do longa que rendeu o único Oscar da carreira de John Wayne, este belo “Bravura Indômita” confirma o talento dos irmãos Coen ao trazer, além de imagens belíssimas e ótimas atuações, uma surpreendente abordagem clássica de um gênero quase extinto, é verdade, mas que sempre rende ótimos filmes quando pessoas talentosas resolvem investir nele. É uma pena, portanto, que os estúdios (e o público!) não estimulem a produção dos chamados westerns, pois o mais americano dos gêneros já provou inúmeras vezes que pode nos brindar com maravilhas como esta dirigida pelos Coen.

Escrito pelos próprios Joel e Ethan Coen com base no romance de Charles Portis, “Bravura Indômita” narra a história de Mattie Ross (Hailee Steinfeld), uma garota de apenas 14 anos que parte em busca de vingança após seu pai ser assassinado por Tom Shaney (Josh Brolin). Para isto, ela resolve contratar o agente federal J. Cogburn (Jeff Bridges), que após recusar a proposta inicial, acaba aceitando a oferta. Só que o Texas Ranger LaBoeuf (Matt Damon) também está perseguindo o criminoso por causa de outro crime ocorrido em seu estado.

Como de costume, os diálogos escritos pelos Coen são um espetáculo à parte, desta vez chamando a atenção por surgirem realistas em sua simplicidade, refletindo a brutalidade daquelas pessoas movidas por um código de honra próprio que normalmente busca defender valores familiares (Mattie) e até mesmo suas origens (LaBoeuf). Por outro lado, o humor negro marcante dos Coen aparece pouco desta vez (como quando o índio sequer pode falar suas últimas palavras antes do enforcamento), o que não quer dizer que o bom humor não esteja presente, como podemos notar quando LaBoeuf passa a falar com dificuldade após quase perder a língua – num momento divertido da atuação de Damon – e quando eles disputam quem tem a melhor mira durante a viagem – agora num momento de destaque de Bridges, que cai do cavalo totalmente sem jeito e mal consegue mirar corretamente graças à bebedeira.

Mostrando um amadurecimento louvável, os Coen conduzem a narrativa de maneira direta e sem invencionismos, recheando a narrativa com planos belíssimos que poderiam ser transformados em quadros, numa abordagem classicista que John Ford teria orgulho de assinar. Responsáveis também pela ótima montagem, eles empregam um ritmo contemplativo coerente com o gênero, fugindo da abordagem subversiva tão comum em sua filmografia. Além disso, eles conduzem os grandes momentos do longa com tranqüilidade, como na cena em que Cogburn e Mattie observam à distancia uma cabana, repleta de tensão, especialmente porque a câmera subjetiva nos coloca na posição deles. O uso da câmera subjetiva, aliás, surge também em planos similares que revelam a visão de Mattie nos braços de Cogburn quando ela deixa o derradeiro confronto e quando ela deixa seu cavalo morto para trás. Por sua vez, a beleza plástica de “Bravura Indômita” surge logo em seu plano inicial, quando a câmera, embalada pela linda trilha sonora e pela narração poética da protagonista, lentamente revela o corpo do pai dela na entrada de um saloon.

Empregando um nostálgico tom sépia, o grande Roger Deakins cria um visual árido e colabora na elaboração destes lindos planos, explorando com maestria a paisagem e destacando-se também nos ambientes fechados que são banhados pelos raios solares – como no julgamento de Cogburn -, além de criar um visual fascinante nas cenas noturnas e até mesmo na neve – note, por exemplo, a iluminação marcante da cena em que Cogburn assassina um homem dentro de uma cabana à noite (também marcada pela violência gráfica e realista). Em certo momento, um trem de ferro se move e revela ao fundo a bela cidade típica do velho oeste, que realça o ótimo design de produção de Stefan Dechant e Christina Ann Wilson, notável também quando Cogburn é encontrado dormindo nos fundos de uma venda chinesa através dos patos mortos pendurados, da desgastada cama de cordas e dos objetos espalhados por todo o local que refletem o estado de espírito do personagem.

Colaborando na tarefa de ambientar o espectador à época da narrativa, os impecáveis figurinos de Mary Zophres também merecem destaque, especialmente pelos detalhes nas botas de LaBoeuf e pelas roupas sempre pretas de Mattie, que ilustram seu luto eterno. E fechando a competente parte técnica de “Bravura Indômita”, a trilha sonora de Carter Burwell confere uma aura clássica ao longa, empregando interessantes variações da linda “Leaning on the Everlasting Arms”.

Vivendo Mattie como uma garota decidida e sempre dura nas negociações, Hailee Steinfeld tem uma ótima atuação, sobressaindo-se até mesmo nos duelos verbais com os ótimos Matt Damon e Jeff Bridges. Movida por um desejo de vingança e um imutável código de honra, a garota transmite a sensação de que nada a impedirá de alcançar seu objetivo. Exatamente por isso, sua reação chega a ser comovente no único momento em que Mattie surge vulnerável, quando, após ouvir Cogburn dizer que a abandonará, praticamente implora à LaBoeuf que não desista da perseguição – e repare como a chuva torna a cena ainda mais sufocante, refletindo a angústia da garota. Da mesma forma, seu rosto expressivo cede lugar à sutileza quando ela sorri levemente ao perceber que convencerá o dono do estábulo a comprar seus pôneis, o que só confirma a qualidade de seu desempenho.

Introduzido com competência na narrativa, Cogburn rapidamente nos apresenta características importantes de sua personalidade através da forma irritada que responde às perguntas de Mattie de dentro da latrina. Em seguida, seu jeito debochado no julgamento confirma sua personalidade conturbada, numa cena em que vale observar também como os Coen atrasam ao máximo a revelação de seu rosto, com a câmera subjetiva simulando a visão de Mattie. Conferindo carisma e ambigüidade ao personagem, Bridges tem um excepcional desempenho, com sua voz alterada e rouca, a dificuldade de pronunciar certas palavras e a oscilação de humor que revelam a instabilidade daquele homem explosivo e quase sempre alcoolizado, mas que guarda valores admiráveis – como descobriremos no terceiro ato. Matt Damon, por sua vez, confere uma interessante tridimensionalidade ao seu Texas Ranger, que surge inicialmente como um homem atrapalhado, mas ganha força nas discussões com Cogburn e, especialmente, ao conquistar o respeito de Mattie com o passar do tempo. Ambos, aliás, protagonizam instantes aparentemente despretensiosos que servem como preparação para o clímax da narrativa, quando Cogburn conta como conseguiu vencer sozinho sete homens armados (e a forma como Bridges conta a história faz o espectador acreditar nele) e quando LaBoeuf fala sem tanta convicção das proezas de sua arma, capaz de acertar alvos muito distantes.

Despretensioso também é o encontro entre Mattie e Tom Shaney, que dá inicio ao clímax da narrativa. Interpretado por Josh Brolin, Shaney é o bandido ignorante que se meteu numa enrascada e não sabe como sair dela, agindo de maneira sempre instintiva, o que também lhe coloca em situações perigosas – aqui, leva um tiro por menosprezar a garota. Entretanto, o bandido jamais soa caricato ou unidimensional, exatamente pela forma como Brolin confere vulnerabilidade ao personagem. Ainda assim, ele consegue seqüestrar a intempestiva Mattie, o que nos leva ao esperado confronto entre os “bandidos” e os “mocinhos” (assim, entre aspas mesmo). O tiroteio realista traz Cogburn enfrentando quatro homens armados, num confronto conduzido de maneira primorosa pelos irmãos Coen, especialmente depois que ele cai ferido e passamos a acompanhar a cena sob o ponto de vista de LaBoeuf, que atira e nos faz torcer para que o inimigo caia do cavalo – o que acontece alguns (longos) segundos depois.

O final poético de “Bravura Indômita” então começa a ganhar forma quando Mattie atira em Tom Shaney e, como Cogburn alertou que aconteceria, é jogada para trás, caindo num enorme buraco e sendo picada por uma cobra antes que o agente federal consiga retirá-la de lá. Desesperado para salvar a valente garota, ele parte numa linda cavalgada noite adentro, embalada pela marcante trilha sonora e repleta de planos memoráveis sob a neve. A seqüência final traz a adulta Mattie de volta à cidade e confirma que seu esforço valeu à pena. Ambos encontraram no outro o papel que faltava em suas vidas. Enquanto Mattie sentiu nos braços de Cogburn o carinho perdido com a morte do pai, Cogburn teve a chance de se redimir após o fim do relacionamento conturbado com seu filho. E enquanto ela se afasta do túmulo de Cogburn e a trilha embala os créditos finais, temos a sensação de que algo realmente marcante está chegando ao fim.

Recheado de imagens belíssimas e trazendo personagens marcantes, esta refilmagem de “Bravura Indômita” comprova a versatilidade dos irmãos Coen e a competência de atores como Bridges e Damon. Revelando ainda o talento da jovem Steinfeld, o longa revigorou um gênero quase sempre esquecido, mas sempre capaz de nos presentear com bons filmes.

Texto publicado em 16 de Fevereiro de 2012 por Roberto Siqueira